Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3425/16.6T8MAI-A.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
VENCIMENTO
ABUSO DO DIREITO
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
CONTA BLOQUEADA
CREDOR
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE OS CRÉDITOS / VENCIMENTO IMEDIATO DE DÍVIDAS.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / ABUSO DO DIREITO – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO.
Doutrina:
-António Meneses Cordeiro, Litigância de má-fé, Abuso do Direito e Culpa “In Agendo”, Almedina 2006;
-Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 9.ª Edição, 1996, Volume I, p. 563 e 564;
-J. M. Coutinho, Do Abuso de Direito, Almeida, 1983, p. 42 e ss. e 456;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado e Comentado, Volume I, 2.ª Edição, p. 277;
-Vaz Serra, Abuso do Direito, BMJ, 85, p. 253.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 91.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º E 762.º.
Sumário :
I - O art. 91.º do CIRE não dá ao Banco credor o direito de provocar o vencimento das dívidas do insolvente.
II - Tal normativo impõe obrigatoriamente, i.e. gera ipso iure, o vencimento daquelas dívidas.
III - Nunca se poderá falar em abuso de direito por parte do Banco credor, perante o vencimento antecipado das dívidas do insolvente, em exercer o direito de bloquear a conta e recusar o cumprimento do pagamento das prestações vencidas, pois que a lei impõe a consequência referida em II.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I – RELATÓRIO

  

l. As executadas AA e BB deduziram embargos à execução contra si instaurada por Banco CC, S.A. alegando, em síntese, que:

São parte ilegítima na execução, porquanto não intervieram nos contratos identificados no requerimento executivo como fundamento do crédito exequendo, não tendo qualquer obrigação perante a exequente.

O contrato foi pontualmente cumprido até 24.08.2015, tendo cessado os pagamentos por, na sequência da insolvência dos devedores, o banco exequente ter recusado o pagamento das prestações, sendo a declaração de vencimento da dívida excessiva e desproporcionada.

Concluem pedindo que seja julgada extinta a execução


2. Contestou o exequente invocando que a legitimidade das executadas resulta da lei, por terem adquirido um imóvel afecto à garantia real do crédito da exequente.

A insolvência dos mutuários determinou o vencimento das obrigações emergentes dos contratos, pelo que o pretendido pagamento das prestações pelas embargantes, que não contrataram com o embargado, carece de fundamento.

Conclui pedindo a improcedência da excepção arguida e dos embargos.


3. Tendo o processo prosseguido os seus termos, veio a ser proferida decisão do seguinte teor: «Nos termos e fundamentos expostos, julgo os embargos deduzidos por AA e BB totalmente improcedentes.

Custas a cargo das embargantes, ….».


4. Inconformadas, apelaram as embargantes AA e BB para o Tribunal da Relação do Porto, que, por Acórdão de 14 de Novembro de 2017, revogou a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, e decidiu «em julgar a Apelação procedente e em revogar a sentença recorrida e em consequência, julgar os embargos procedentes e extinta a execução».


5. Inconformado, o Banco CC, S.A. recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:

l. O presente recurso de revista vem interposto do, aliás, douto acórdão proferido nos presentes autos, que julgou a Apelação procedente e revogou a sentença recorrida e, em consequência, julgou os embargos de executado procedentes e extinta a execução.

2. Em face da matéria de facto dada como provada, o douto Acórdão recorrido não podia ter decidido como decidiu.

3. As Recorridas, AA e BB, na execução contra si instaurada pelo Recorrente, Banco CC, S.A., não são demandadas na qualidade de mutuárias dos contratos de mútuo dados à execução, mas de terceiras proprietárias da fracção autónoma designada pela letra "J", destinada a habitação, descrita na Primeira Conservatória do Registo Predial da M…, sob o n.º 7…5/19…6 - J, da freguesia da M…, inscrita na competente matriz predial urbana sob o artigo 4…7-J, que constitui garantia real dos créditos exequendos, nos termos do artigo 54.° n.º 2 do CPC.

4. Os mutuários, DD e EE, para garantia das quantias mutuadas, dos juros de mora às taxas convencionadas, da sobretaxa de 4% a título de cláusula penal e das demais despesas, constituíram hipotecas a favor do decorrente, Banco CC, S.A., sobre a mencionada fracção autónoma designada pela letra "J", destinada a habitação, descrita na Primeira Conservatória do Registo Predial da M…, sob o n.º 7…5/19…6 - J, da freguesia da M…, inscrita na competente matriz predial urbana sob o art.º 4…7-J.

5. As referidas hipotecam encontram-se definitivamente registadas a favor do Recorrente, Banco CC, S.A..

6. Os mutuários, EE e DD, em 11/01/2013, doaram às suas filhas, aqui Recorridas, AA e BB, a mencionada fracção autónoma designada pela letra "J", destinada a habitação, descrita na Primeira Conservatória do Registo Predial da M…, sob o n.º 7…5/19…6 - J, da freguesia da M…, inscrita na competente matriz predial urbana sob o artigo 4…7-J.

7. A doação da mencionada fracção autónoma, outorgada pelos referidos mutuários, EE e DD, às suas filhas AA e BB, aqui Recorridas, não produz efeitos perante o credor, Banco CC, S.A., aqui Recorrente, sendo-lhe, por isso, inoponível.

8. As hipotecas invocadas, na execução, pelo Recorrente, Banco CC, S.A., sobre a fracção autónoma doada pelos mutuários, EE e DD, às suas filhas, AA e BB, aqui Recorridas, gozam do direito de sequela.

9. Os mutuários, DD e EE, foram declarados insolventes em Julho de 2015.

 10. Na sequência das declarações de Insolvência dos mutuários, DD e EE, venceram-se todas as obrigações emergentes dos contratos de mútuo dados à execução, nos termos do artigo 91.°, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pelo que foram as declarações de insolvência dos mutuários, que determinaram obrigatoriamente o vencimento imediato de todas as obrigações daqueles contratos de mútuo, e o seu incumprimento.

11. Na sequência das declarações de insolvência dos mutuários, EE e Maria DD, o Recorrente, Banco CC, S.A., bloqueou e encerrou a conta bancária através da qual aqueles mutuários procediam ao pagamento das prestações relativas àqueles contratos de empréstimo.

12. Foi a resolução dos mencionados contratos de mútuo dados à execução, na sequência das declarações de insolvência dos mutuários, EE e DD, e por se terem vencido todas as obrigações emergentes dos referidos contratos de mútuo, nos termos do artigo 91° n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que impediu e impede o pagamento de quaisquer prestações relativas àqueles contratos de mútuo.

13. O Recorrente, Banco CC, S.A., não aceitou o pagamento das prestações dos mencionados empréstimos, nos termos propostos pela Recorrida, AA, uma vez que os mesmos se encontram vencidos e incumpridos, em consequência das insolvências dos mutuários, EE e DD, e as Recorridas, AA e BB, não são titulares, nem outorgantes dos sobreditos contratos de mútuo.

14. O Recorrente, Banco CC, S.A., não criou quaisquer expectativas e direitos às Recorridas, AA e BB, pois que foram as declarações de insolvência dos mutuários, EE e DD, que determinaram o vencimento de todas as obrigações emergentes dos contratos de empréstimo dados à execução e o incumprimento destes, nos termos do artigo 91.° n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

15. As Recorridas, AA, não são partes, nem outorgantes nos sobreditos contratos de mútuo dados à execução.

16. Foram as declarações de insolvência dos mutuários, EE e DD, que determinaram, obrigatoriamente, o vencimento de todas as obrigações emergentes dos mencionados contratos de empréstimo dados à execução, nos termos do artigo 91.°, n° 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que constitui uma norma imperativa.

17. O Recorrente, Banco CC, S.A., face às declarações de insolvência dos mutuários, DD e a EE podia e devia considerar vencidas todas as obrigações decorrentes dos mútuos dados à execução, ao abrigo do disposto no artigo 91.°, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e podia bloquear e encerrar a conta bancária em que era efectuado o pagamento das prestações, impedindo, assim, que as prestações que se venceram em 24-08-2015 e as subsequentes fossem pagas.

18. O Recorrente, Banco CC, S.A., com a sua mencionada conduta, não violou o princípio da boa-fé previsto no art.º 762.° n.º 2 do CC, nem a tutela da confiança, nem houve abuso, por parte do Recorrente, no exercício do direito conferido pelo art.º 91.°, n.º 1 do CIRE, pelo que não violou o art.º 334.° do CC.

19. O Recorrente, Banco CC, S. A., ao exigir o pagamento de todas as prestações vencidas dos contratos de mútuo dados à execução, nos termos do artigo 91.°, n.º 1 do CIRE, não utilizou tal prerrogativa para prossecução de um interesse que exorbita do contexto em que ele deve ser exercido.

20. O Recorrente, Banco CC, S. A., não esta vinculado contratualmente às Recorridas, AA e BB, no âmbito dos contratos de mútuo dados à execução, e o vencimento antecipado das dívidas dos insolventes, EE e DD, aqui mutuários, é declarado pelo artigo 91.°, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que é uma norma imperativa.

 21. As Recorridas, AA e BB, face aos factos dados como provados, não podiam acreditar que, enquanto fossem pagas as prestações dos empréstimos, o Recorrente, Banco CC, S.A., não exigia o vencimento de toda a dívida.

22. Não é imputável ao Recorrente, Banco CC, S.A., qualquer actuação censurável, ao exigir o pagamento de todas as prestações vencidas dos contratos de mútuo dados à execução, nos termos do artigo 91.°, n.º 1 do CIRE, nem às Recorridas, AA e BB, assiste o direito de obstaculizar a tal vencimento antecipado, uma vez que não são partes, nem outorgantes nos contratos de mútuo dados à execução.

23. Não houve, por parte do Recorrente, Banco CC, S.A., abuso no exercício do direito conferido pelo artigo 91.°, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ou qualquer actuação manifestamente abusiva, na modalidade de abuso de direito "venir contra factum proprium", e contrária à boa-fé, nos termos do artigo 334.° do Código Civil, nem houve violação do princípio da boa-fé previsto no artigo 762.° n° 2 do Código Civil.

24. O Recorrente, Banco CC, S.A., não violou o princípio da confiança, pois que não gerou uma situação objectiva de confiança, nem fez crer às Recorridas, AA e BB, que não ocorreria o exercício do direito conferido pelo artigo 91, n. 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas relativamente aos contratos de mútuo dados à execução.

25. No caso dos autos, não houve uma desproporção considerável, entre a vantagem auferida pelo Recorrente, Banco CC, S.A., no exercício do direito conferido pelo artigo 91.°, n.º 1 do CIRE, e o sacrifício imposto às Recorridas, AA e BB.

26. Não há abuso de direito no exercício do direito conferido pelo artigo 91.°, n.º 1 do CIRE, por parte do Recorrente, Banco CC, S.A., pois que o exercício daquele direito não constitui uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, nem este exercitou o seu direito fora do seu objectivo natural, pelo que não violou o regime de boa-fé previsto no artigo 762.° do CC e o instituto do abuso de Direito previsto no artigo 334.°do Código Civil.

27. O douto Acórdão recorrido, ao julgar a Apelação procedente e ao revogar a sentença recorrida, e, em consequência, julgar os embargos de executado procedentes e extinta a execução, partiu da premissa errada de que as Recorridas, AA e BB, seriam partes ou outorgantes nos sobreditos contratos de mútuo dados à execução, e que teriam o direito de obstaculizar o incumprimento dos referidos contratos de mútuo, ao arrepio do estatuído no artigo 91.°, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que é uma norma imperativa.

28. O Acórdão recorrido violou os art.sº 91.°, n.º 1 do CIRE e 762.° e 334.° do CC.

  Conclui pedindo que seja dado provimento ao presente recurso sendo revogado o acórdão recorrido e substituído por outro que julgue os embargos de executado deduzidos pela Recorridas totalmente improcedentes.


6. Contra-alegaram as Recorridas formulando as seguintes conclusões:

a) Em 11/01/2013, os mutuários, DD e EE, doaram às suas filhas, ora recorridas, AA e BB, a fracção descrita.

b) Os mutuários EE e DD foram declarados insolventes em Julho de 2015.

c) O banco/recorrente, como credor hipotecário dos mutuários, declarados insolventes, não impugnou, de qualquer modo, a doação.

d) As recorridas não pagaram a prestação que se venceu em 24 de Agosto de 2015, nem as que depois se venceram.

e) Na sequência da declaração de insolvência dos mutuários o banco/recorrente bloqueou a conta bancária em que era efectuado o pagamento das prestações e deixou de receber qualquer valor a título de pagamento dos contratos de mútuo.

f) Desde Janeiro de 2013, que as executadas, ora recorridas, são proprietárias do imóvel em causa;

g) Encontrando-se inscrita na Conservatória do Registo Predial, a propriedade da fracção autónoma a favor das recorridas, desde 11/01/2013;

h) De Janeiro de 2013 a Agosto de 2015, que o Banco/recorrente recebeu as prestações dos mútuos;

i) Só em Agosto de 2015 é que o Banco/recorrente impediu as recorridas de cumprir com o pagamento das prestações resultante dos empréstimos;

j) Pelo que não se pode falar em incumprimento por parte dos mutuários, que legitime o bloqueamento da conta bancária e o impedimento do pontual cumprimento das prestações;

k) De Janeiro de 2013 a Agosto de 2015, o Banco/recorrente criou expectativas e direitos às recorridas, na medida em que, recebendo as prestações e mantendo válidos os contratos de mútuo, fez com que aquelas acreditassem que, enquanto cumprissem com os empréstimos, o Banco/recorrente não lhes exigiria o vencimento de toda a dívida.

l) Sendo, deste modo, a actuação por parte do Banco/recorrente manifestamente abusiva e contraria à boa-fé, nos termos do Art.º 334.º do Código Civil;

m) Estamos perante a violação do princípio da confiança, na medida em que o Banco/recorrente gerou uma situação objectiva de confiança, fazendo crer às Recorridas que tal exercício não ocorreria.

n) A doutrina do abuso do direito tem a função de “obstar a injustiças clamorosas”, como esta.

o) É manifestamente ilegítimo, abusivo e imoral, condenar as ora Recorridas ao pagamento antecipado da quantia mutuada, quando as prestações estavam a ser pontualmente cumpridas e aquelas sempre manifestaram vontade em pagar as prestações vencidas, que o banco/recorrente impediu de pagar.

p) Ao não permitir que as recorridas pagassem as prestações devidas pelos mútuos, respeitantes às fracções que adquiriram em 2013, exigindo o pagamento de todas as prestações vincendas, “ a exequente utilizou a prerrogativa contida no artigo 91º do CIRE para prossecução de um interesse que exorbita do contexto em que ele deve ser exercido.”

q) E como tal “existe uma desproporção considerável, entre a vantagem auferida pelo Banco/Exequente e o sacrifício imposto às ora apelantes.”

Concluem pedindo que seja negado provimento ao presente recurso de Revista do Acórdão do Tribunal da Relação.


7 - O Tribunal da Relação do Porto admitiu o recurso (fls. 172).

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.



II – FUNDAMENTAÇÃO


A Factualidade que importa ponderar é a seguinte:


1. O Banco Exequente, por título particular, celebrou com DD e com EE, em 18 de Setembro de 2008, um contrato de mútuo, garantido por hipoteca, pelo qual o Banco Exequente emprestou, a prazo, a DD e a EE, a quantia de € 44.184,29 (quarenta e quatro mil cento e oitenta e quatro euros e vinte e nove cêntimos), no Regime Geral de Crédito, às taxas de juros previstas nas cláusulas quarta e quinta do indicado contrato, tendo-lhes sido conferido o direito a beneficiarem de um período de carência de capital de 36 (trinta e seis) meses a contar da data da celebração do presente contrato, a liquidar nos termos melhor definidos no documento de fls. 13 a 24 dos autos principais, cujo teor se tem por integralmente reproduzido).

2. O Banco Exequente colocou à disposição dos mencionados mutuários, DD e EE, a quantia de €44.184,29, para liquidação de um empréstimo contraído no Regime Geral de Crédito, junto da Caixa Geral de Depósitos, em 11 de Dezembro de 1997, através do depósito deste montante na sua conta de depósitos à ordem (3º do req. executivo).

3. Para garantia da quantia mutuada, dos juros de mora às taxas convencionadas, da sobretaxa de 4% a título de cláusula penal e das demais despesas, os mutuários, DD e EE, constituíram hipoteca a favor do Banco Exequente sobre a fracção autónoma designada pela letra "J", destinada a habitação, descrita na Primeira Conservatória do Registo Predial da M…, sob o n.º 7…5/19…6 - J, da freguesia da M…, inscrita na competente matriz predial urbana sob o artigo 4...7-J (cfr. doc. cit. e certidão predial de fls. 268 a 270 dos autos principais)

4. A referida hipoteca encontra-se definitivamente registada a favor do Banco Exequente, conforme resulta da certidão predial de fls. 268 a 270 dos autos principais.

5. Sucede que os mutuários, DD e EE, não pagaram a prestação que se venceu em 24 de Agosto de 2015, nem as que depois se venceram (7º do req. executivo e 12º do requerimento inicial).

6. O Banco Exequente, por título particular, celebrou com DD e com EE, na mesma data (18 de Setembro de 2008), outro contrato de mútuo, garantido por hipoteca, através do qual emprestou, a prazo, a DD e a EE, a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), às taxas de juros previstas nas cláusulas quarta e quinta do indicado contrato, tendo-lhes sido conferido o direito a beneficiarem de um período de carência de capital de 36 (trinta e seis) meses a contar da data da celebração do presente contrato, a liquidar do modo descrito no documento de fls. 48 a 59 dos autos principais, que aqui se dá por integralmente reproduzido).

7. O Banco Exequente colocou à disposição dos mencionados mutuários, DD e EE, a quantia de €25.000,00, para fazer face a compromissos financeiros, através do depósito deste montante na sua conta de depósitos à ordem (art. 25º do req. executivo).

8. Para garantia da quantia mutuada, dos juros de mora às taxas convencionadas, da sobretaxa de 4% a título de cláusula penal e das demais despesas, a os mutuários, DD e EE, constituíram hipoteca a favor do Banco Exequente sobre a fracção autónoma designada pela letra "J", destinada a habitação, descrita na Primeira Conservatória do Registo Predial da M…, sob o n.º 7…5/19…6 - J, da freguesia da M…, inscrita na competente matriz predial urbana sob o artigo 4…7-J (certidão de fls. 180 a 82 dos autos principais e art. 26º do req. executivo).

9. Os mutuários movimentaram e utilizaram em proveito próprio o valor resultante desse crédito (28º do req. executivo).

10. Em 26 de Junho de 2013, o Banco Exequente e os mutuários, DD e EE, celebraram um aditamento ao referido contrato de mútuo com hipoteca, passando a taxa de juros a ser a prevista na cláusula 1.ª deste aditamento e foi-lhes conferido o direito a beneficiarem de um período de carência de capital de 24 (vinte e quatro) meses, a contar da data de entrada em vigor do presente contrato de aditamento, a liquidar no modo descrito no documento de fls. 62 a 65 dos autos principais.

11. Os mutuários, DD e EE, não pagaram a prestação que se venceu em 24 de Agosto de 2015, nem as que depois se venceram (art. 32º do req. executivo e 12º do req. inicial).

12. Os mutuários EE e DD foram declarados insolventes em Julho de 2015 (art. 12º do req. Executivo e 3º do req. inicial).

13. Em 11/01/2013, os mutuários, DD e EE, doaram às suas filhas, ora Executadas, AA e BB, a fracção autónoma descrita em c), conforme resulta do título de doação junto a fls. 26 a 29 dos autos principais, tendo tal transmissão sido averbada no registo com data de 11.01.2013, Ap. 1231 (cfr. doc. cit. e documentos de fls. 180 a 182 e fls. 35 a 47 dos autos principais).

14. As Executadas/embargantes, AA e BB, são as proprietárias inscritas da mencionada fracção autónoma.

15. Na sequência da declaração de insolvência dos mutuários o banco exequente bloqueou a conta bancária em que era efectuado o pagamento das prestações e deixou de receber qualquer valor a título de pagamento dos contratos de mútuo (art. 13º do req. inicial e 30º da contestação).

16. Dá-se por reproduzido o teor da correspondência trocada entre as embargantes e o banco exequente, constante de fls. 9 e 51 a 55 dos presentes autos, não tendo a embargante AA recepcionado a carta de resposta remetida pelo banco exequente.

17. Dá-se por reproduzido o teor das cartas remetidas pelo banco exequente aos mutuários, declarando o vencimento imediato dos contratos de empréstimo, não recepcionadas (fls. 42 a 49 dos presentes autos).



III – DA SUBSUNÇÃO – APRECIAÇÃO


Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.


A) O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do Recorrente, artigo 635 do Código de Processo Civil.

Lendo as alegações de recurso bem como as conclusões formuladas pelo Recorrente a questão concreta de que cumpre conhecer é apenas a seguinte:


1ª- O Exequente ao exercer o direito conferido pelo artigo 91.°, n.º 1 do CIRE actuou com abuso de direito?


Vejamos

B) 1 - O Direito

Dispõe o n.º 1 do artigo 91 do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), relativo ao vencimento imediato das dívidas do insolvente, que «A declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva».

Nos termos do artigo 334.º do Código Civil, relativo ao Abuso do direito «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».


Estatui também o artigo 762.º do Código Civil, relativo ao cumprimento das obrigações, que:

1. O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado.

2. No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé.

2 - Tendo presentes os factos enunciados supra II e ponderando os princípios jurídicos sumariamente enunciados será que o Banco, ora recorrente actuou com abuso do direito?

Entendemos que não.

Importa relembrar que as Recorridas não são parte no contrato de mútuo invocado nos autos, já que tal contrato foi celebrado entre o Banco, ora Recorrente e os pais das Recorridas/embargantes.

E foi na sequência da declaração de insolvência dos pais das embargantes – eles sim, partes no contrato de mútuo – que, por força do disposto no artigo 91 n.º 1 do CIRE, se venceram todas as obrigações dos insolventes.

Nos termos deste normativo, a declaração de insolvência determina, ipso iure, o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.

Podemos afirmar que o art. 91.º, n.º 1 CIRE é um efeito automático da declaração de insolvência, que provoca, de imediato, o vencimento dos créditos, com a eventual redução (nos termos do art. 91.º, n.º 2, e n.º 3, para cada uma das prestações fraccionadas, como é o caso).

É a lei e não a vontade do credor que declara imperativamente o vencimento antecipado das dívidas dos insolventes (e necessariamente o seu incumprimento).

Este efeito ou esta consequência – o vencimento antecipado das dívidas do insolvente – não decorre de uma qualquer exigência do credor, mas sim da própria lei.

Ao Banco, ora Recorrente, perante aquele vencimento antecipado das dívidas dos insolventes, assistia o direito de bloquear a conta e recusar o pagamento das prestações vencidas.

Nem se diga que com esta sua conduta o Banco, ora recorrente, está a violar o regime de boa-fé previsto no artigo 762 do CC e a agir com abuso de direito, nos termos do artigo 334 do mesmo diploma legal.

Da redacção deste preceito retira-se que para haver abuso do direito não é suficiente que o titular do direito exceda ou abuse (d)os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Para que ocorra abuso do direito torna-se necessário algo mais. É preciso que aqueles limites sejam manifestamente excedidos, ou seja que ofendam de forma clamorosa a consciência ética e jurídica da generalidade dos cidadãos.

Muitas têm sido as abordagens ao conceito e à noção de “Abuso do Direito”.

J. M. Coutinho define o Abuso do Direito da seguinte forma: “há abuso do direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”, cfr. Do Abuso de Direito, Almeida, 1983, pag. 42 e ss.

Relativamente à figura do Abuso do Direito, Cunha e Sá considera que “abusa-se da estrutura formal desse direito, quando numa certa e determinada situação concreta se coloca essa estrutura ao serviço de um valor diverso ou oposto do fundamento axiológico que lhe está imanente ou que lhe é interno”, cfr. O Abuso do Direito, pag. 456.

Segundo A. Varela para haver Abuso do Direito “é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito.

Com a fórmula manifesto excesso dos limites impostos pelo fim económico ou social do direito tem o artigo 334 especialmente em vista os casos de exercício reprovável daqueles direitos quem, como o poder paternal, o poder do tutor (....), são muito marcados pela função social a que se encontram adstritos.

A fórmula manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé abrange, por seu turno, de modo especial, os casos em que a doutrina e a jurisprudência condenam sob a rubrica do venire contra factum propium” Das Obrigações em Geral, 9ª ed. 1996, vol. I, pag. 563/564.

Vaz Serra, RLJ, 111-296, refere que há abuso do direito se alguém exercer o direito em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado e sustenta que a palavra “direito” é de entender em sentido muito lato, abrangendo a liberdade de contratar. Refere ainda que não há motivo para excluir o exercício de meras faculdades do âmbito de aplicação do artigo 334 do CC.

Se o instituto do Abuso do Direito tem o seu campo de aplicação sempre que o titular de um direito, baseando-se nesse mesmo direito, o use de forma a violar a própria ideia de justiça, o certo é que o mesmo não pode ser usado de forma indiscriminada abrangendo situações em que apesar do exercício de um direito ser excessivo o mesmo não possa ser classificado como manifestamente excessivo.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela “exige-se que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações”, CC Anotado e Comentado, vol. I, 2ª ed. pag. 277.

Vaz Serra entende que é necessário que o excesso cometido seja manifesto, que haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, Vaz Serra, Abuso do Direito, BMJ, 85, pag. 253.

Sobre o Abuso de Direito veja-se ainda António Meneses Cordeiro, Litigância de má-fé, Abuso do Direito e Culpa “In Agendo”, Almedina 2006.

Nos presentes autos não se vislumbra que o Banco Recorrente tenha violado qualquer relação de confiança que tivesse criado nas Recorridas, que repita-se não foram parte (nem são) no contrato de mútuo.

Não é possível afirmar-se que o comportamento do Banco Recorrente seja incompatível com a ordem jurídica, tanto mais que decorre da própria lei, podendo afirmar que tal conduta surge imposta pela lei (art. 91 n.º do 1 do CIRE)

Salvo melhor opinião entendemos, perante a factualidade provada, que não se verifica qualquer Abuso do Direito por parte do Banco Recorrente, designadamente na modalidade de “venire contra factum proprium”.

Podemos mesmo afirmar que o Banco/exequente não exercer de forma abusiva qualquer direito que tivesse.

O artigo 91 n.º do CIRE não dá ao Banco credor o direito de provocar o vencimento das dívidas do insolvente.

Tal normativo impõe obrigatoriamente, gera ipso iure, o vencimento daquelas dívidas.

Nunca se poderá falar em abuso do direito por parte do Banco credor, pois que é a lei que impõe ipso iure aquela consequência (o vencimento das dívidas do insolvente).

O que sucede é que o Banco credor, ora Recorrente, veio exercer o seu crédito, que a lei considera já vencido, pela via executiva – e, tal esse exercício não pode ser considerado, face à matéria de facto, abusivo.

O imóvel das Recorridas está onerado com uma hipoteca a favor do Banco/recorrente, pelo que responde sempre pelos créditos do Banco sobre os insolventes (as Recorridas, filhas dos insolventes e terceiro adquirentes, para afastar o resultado teriam tido que expurgar a hipoteca, o que não fizeram).

Venceram-se as obrigações, o imóvel responde, foi executado.

O Embargado/recorrente com a sua conduta não se encontra a violar o princípio da boa-fé nem age com abuso do direito 

Não se vislumbra na conduta do Embargado/recorrente qualquer abuso de direito.

Em suma, entendemos que se impõe a procedência das alegações do Recorrente, pelo que se concede a revista pedida.

 


III – DECISÃO


Pelo exposto, concede-se a revista pedida e, por isso, se revoga o Acórdão recorrido, julgando-se os embargos deduzidos pelas Embargantes AA e BB, totalmente improcedentes

Custas pelas Recorridas, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que beneficiam.  


Lisboa, 22 de março de 2018


José Sousa Lameira (Relator)

Hélder Almeida

Maria dos Prazeres Beleza