Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A298
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
Nº do Documento: SJ200603210002981
Data do Acordão: 03/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: ANULADO O ACÓRDÃO.
Sumário : - O fundamento básico da intervenção acessória provocada é a acção de regresso da titularidade do R. contra terceiro, destinada a permitir-lhe a obtenção da indemnização pelo prejuízo que eventualmente lhe advenha da perda da demanda.
O chamado não influencia a relação jurídica processual desenvolvida entre o A. e o chamante e, daí que nela não pode haver sentença de condenação.
Como assim, tendo uma seguradora intervindo nos autos apenas e só na qualidade de interveniente acessória, nunca poderia ter sido condenada.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I -
Empresa-A intentou, no tribunal judicial de Vila Franca de Xira, acção ordinária contra
Empresa-B
pedindo a sua condenação no pagamento de 2.797.435$00 e juros, invocando o não cumprimento de diversos serviços de transporte que lhe prestou e cujos respectivos pagamentos não efectuou.

Contestou a R., dizendo nada dever à A., sendo, ao invés sua credora, em virtude de ter perdido num acidente toda a mercadoria transportada e, em sede de reconvenção, pediu a condenação desta no pagamento de 2.870106$00.

A A. replicou, contrariando a pretensão da R.-reconvinte e, ao mesmo tempo, requereu a intervenção acessória provocada da Companhia de Seguros que actualmente é designada por Empresa-C com o argumento de que tinha transferido para a mesma a responsabilidade por danos provocados nas mercadorias em trânsito, por ela transportadas, e até ao montante de 20.000.000$00 por anuidade ou sinistro, com franquia de 20% dos prejuízos indemnizáveis por prejuízos, no mínimo de 50.000$00.

A Seguradora, após a citação, veio dizer que nada tinha a pagar em virtude de não ser parte no contrato de transporte em que a mercadoria pereceu.

Depois de julgamento, veio a R. a ser condenada no pagamento à A. de 2.797.435$00 e juros até integral pagamento e também, por via da procedência da reconvenção, veio a A. a ser condenada a pagar à R. no pagamento de 570.021$00 e juros desde a citação e, ainda, a Seguradora condenada no pagamento à A. de 2.296.085$00 e juros desde a citação.
Considerou-se na sentença que, tendo a Seguradora assumido a responsabilidade para com a R.-reconvinte, a mesma seria responsável pelos prejuízos causados, deduzida a respectiva franquia.

Com esta decisão, não se conformou a Seguradora que apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, mas sem êxito.
De facto, a apelante nas suas alegações fez sublinhar que a sua intervenção nos autos resultou de ser interveniente acessória e, nessa qualidade, atendo o disposto nos arts. 330º, 331º, 332º, nº 4, 337º e 341º do C.P.C., nunca poderia ser condenada.
Mais, argumentou, ainda, que, para além de o tribunal a quo ter emitido pronúncia sobre matéria que lhe estava vedada, não decretou a compensação de créditos, e, ainda, foi violado o art. 23º, nº 3 da CMR ao declarar o mesmo inaplicável o limite indemnizatório nele previstos.
De novo inconformada, a Seguradora recorreu para este Supremo Tribunal, pedindo revista com vista a obter a sua absolvição, repetindo nas suas alegações argumentos que já tinha posto à consideração do Tribunal da Relação, apontando ao acórdão, para além da indevida pronúncia sobre a sua condenação, a omissão de pronúncia em relação à compensação e à alegada violação do art. 23º, nº 3 da CMR.


A recorrida, por sua vez, defendeu a manutenção do julgado.

II -
Com vista à decisão do recurso, importa relembrar os seguintes pontos:
- a Seguradora foi admitida a intervir nos na posição de interveniente acessória;
- a A. celebrou com a então Empresa-D um acordo do ramo de responsabilidade civil geral /exploração de riscos profissionais, nos termos da CMR, até ao limite de 20.000.000$00 por anuidade ou sinistro, com franquia de 20% dos prejuízos indemnizáveis por sinistro, no mínimo de 50.000$00.

III -
A questão principal a decidir é tão-somente a de saber se a ora recorrente, tendo sido chamada a intervir nos autos como acessória pode ou não se condenada nos termos em que o foi pelas instâncias.
Decidida esta questão, uma outra importa saber, qual seja a relativa às alegadas nulidades do acórdão censurado e suas consequências.

Vejamos.

Prescreve o art. 330º do C.P.C. actual:
"1 - O réu que tenha acção de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que careça de legitimidade para intervir como parte principal.
2 - A intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento".

Comentando este preceito, Lopes do Rêgo diz o seguinte:
"Na base de tal configuração está a ideia de que a posição processual que deve corresponder ao sujeito passivo da relação de regresso, conexo com a controvertida e - invocada pelo réu como causa do chamamento - é a de mero auxiliar da defesa, tendo em vista o seu interesse indirecto ou reflexo na improcedência da pretensão do autor, pondo-se, consequentemente, a coberto de ulterior e eventual acção de regresso ou de indemnização contra ele movida pelo réu da causa principal".
Mas, sendo tal a ideia - continua o mesmo A. - "não deve ser tratado como parte principal", o seu papel e estatuto reconduzem-se, pois, ao de auxiliar na defesa, visando com a sua actuação processual - não obstar à própria condenação, reconhecidamente impossível - mas produzir a improcedência da pretensão que o autor deduziu no confronto do réu-chamante" (in Comentários ao Código de Processo Civil, pág. 252 e ss.).

A este propósito, Lebre de Freitas sublinha que, com o D.-L. 329-A/95, "das três situações processuais a que o chamamento à autoria podia conduzir (litisconsórcio impróprio, substituição processual, assistência), apenas a assistência, agora designada intervenção acessória, passou a ter lugar"(in Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, pág. 583).

A este respeito, escreveu Salvador da Costa:
"Esta solução legal é inspirada, face ao interesse indirecto ou reflexo, na improcedência da pretensão ao autor, pela ideia de a posição processual que deve corresponder ao titular de uma acção de regresso, meramente conexa com a relação jurídica material controvertida objecto da causa principal, é a de mero auxiliar na defesa, em termos de acautelamento da eventualidade da hipótese de no futuro contra ele ser intentada, por quem foi réu na acção anterior, acção de regresso para efectivação do respectivo direito".
E, não deixou de fazer notar que "o fundamento básico da intervenção acessória provocada é a acção de regresso da titularidade do réu contra terceiro, destinada a permitir-lhe a obtenção da indemnização pelo prejuízo que eventualmente lhe advenha da perda da demanda", sendo certo que "o chamado não influencia a relação jurídica processual desenvolvida entre o autor e o chamante" e, daí que "nela não pode haver sentença de condenação" (in Os Incidentes da Instância - 3ª edição -, pág. 127 e ss.).

Ou seja, hoje em dia, o interveniente acessório tem a posição de assistente, tal como era regulada a mesma no art. 335º e ss. do C.P.C. de 1967.
Ora, a respeito da posição jurídica do assistente na acção, Lopes Cardoso disse, de forma bem clara, que o mesmo não podia ser condenado ou absolvido, sendo-lhe até lícito abandonar a causa em qualquer altura.
Mas, acentuou, que "o simples facto de ser admitido a assistir, vincula-o, porém, a tal decisão, não porque este forme caso julgado pleno contra ele ..., mas no sentido de que o assistente, em nova acção onde tenha a posição de parte principal, fica obrigado a aceitá-la como prova plena dos factos que a sentença estabeleceu, e como caso julgado relativamente ao direito que definiu" (in Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil 2ª edição -, pág. 155 - consideração esta tecida no âmbito de aplicação do CP.C. de 39, mas que mantém perfeita actualidade, atento o disposto no art. 341º aplicável ao caso sub iudice ex vi nº 4 do art. 332º).
Também Alberto dos Reis, acentua esta mesma ideia - "quem é condenado na acção é a parte principal; o tribunal condena o assistido, se este decair, mas não condena o assistente" (in Código de Processo Civil anotado, Volume I - 3ª edição -, pág. 478 - também esta referência é feita em relação ao C.P.C. de 39, mas permanece válida nos dias de hoje pelas mesmas razões supra referidas).

De tudo o exposto, resulta de forma bem clara que o interveniente acessório não pode nunca ser condenado na acção para a qual apenas foi chamado a intervir como mero auxiliar.
Daí que, em perfeita consonância com o que foi referido, o nº 4 do art. 332º do C.P.C. preceitue que "a sentença proferida constitui caso julgado quando o chamado, nos termos previstos no artigo 341º, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior acção de indemnização".
A ratio de toda esta orientação legislativa é, outra vez, explicada por Lebre de Freitas, em comentário, ao preceito legal acabado de referir.
Lê-se na obra citada deste A.:
"No regime do anterior chamamento à autoria, constituía-se sempre caso julgado contra o primitivo réu, mesmo que ele se excluísse da causa", mas "diversamente se passam as coisas num regime em que ao chamado só é consentido intervir acessoriamente", sendo certo que o mesmo é impedido de contrariar de forma cabal e plena a pretensão que se discute como principal, impedindo-o de fazer uso de meios processuais que podiam influir na decisão final ou tomar, no uso de um meio processual, uma orientação diversa que igualmente podia influenciar a decisão".
Daí que "a produção de caso julgado perante o chamado à intervenção acessória pode, portanto, não se produzir, como se produzia sempre perante o chamado à autoria. Mas, quando se produz, o seu alcance continua a ser o mesmo, tido em conta que a função de um incidente e de outro é a mesma: tornar indiscutíveis, no confronto do chamado, os pressupostos do direito à indemnização, a fazer valer em acção posterior, que respeitem à existência e ao conteúdo do direito do autor" (in obra citada, pág. 590).

Daqui resulta a necessária conclusão de que, tendo a Seguradora intervindo nos autos apenas e só na qualidade de interveniente acessória, nunca poderia ter sido condenada como o foi o pelas instâncias.
E, ressalvado o devido respeito, entendemos que isso só se ficou a dever a uma mera confusão sobre a verdadeira qualidade em que a ora recorrente interveio, fazendo apelo às normas da intervenção principal provocada.
Ora, este incidente destina-se a possibilitar às partes - quer sejam AA., quer sejam RR. - o chamamento de terceiros como seus associados (e não como meros auxiliares); daí que o nº 1 do art. 328º do C.P.C. imponha a força do caso julgado em relação ao interveniente, o que, como bem salienta Lebre de Freitas, nem sequer era necessário dizê-lo, já que "o interveniente goza, a partir da intervenção, de todos os direitos da parte principal (...), pelo que, assumindo a posição de autor ou réu, a sua situação jurídica (...) terá de ser considerada na sentença, que, obviamente, constituirá caso julgado em relação a ele" (in obra citada, pág. 576).
Mas também a apreciação da recorrida na parte conclusiva da sua contra-alegação, ao fazer apelo ao disposto no nº 2 do art. 329º do C.P.C., em socorro do acórdão impugnado, não seguiu, na nossa opinião, o caminho certo.
Com efeito, o referido preceito é novo e o mesmo refere-se à condenação do chamado (como parte principal) perante o primitivo R., como devedor solidário que, pagando ao credor, fica com natural direito de regresso contra o chamado.
Ora, como se disse, a Seguradora teve intervenção nos autos de forma puramente acessória e nunca a título principal, razão pela qual é desajustada a referência ao preceito em análise.

Daí o Tribunal da Relação, mantendo a decisão condenatória em relação à Seguradora, acabou, ao cabo e ao resto, por proferir pronúncia sobre matéria que lhe estava vedada, acabando, dessa forma, por cometer nulidade prevista na parte final da al. d) do nº 1 do art. 668º do C.P.C..
Tendo a recorrente arguida tal nulidade, resta a este Supremo declarar a sua razão, suprindo a mesma, ut nº 1 do art. 731º e de forma a absolver a Seguradora da condenação que lhe foi imposta pelas instâncias.

Mas, como se viu, a indignação da recorrente não se ficou pelo ponto acabado de apreciar, antes arguiu também a nulidade do acórdão recorrido por ter omitido pronúncia sobre os outros dois pontos que foram colocadas à sua consideração, quais sejam - repete-se - um relativamente à excepção de compensação e outro à invocada ilegalidade da decisão da 1ª instância no que tange ao limite indemnizatório do nº 3 do art. 23º da CMR.
Pontos esses que ficaram bem assinalados no acórdão recorrido na parte indicativa da conclusões da então apelante (3ª e 4ª a fls. 383 3 383 vº), mas que não foram considerados, certamente tendo em conta a solução adoptada em relação à 1ª questão apreciada.
Ao não emitir pronúncia sobre esses dois referidos pontos, a Relação cometeu, pois, nulidade prevista na 1ª parte da al. d) do nº 1 do art. 668º do C.P.C., o que se decreta.
Em consequência e tendo em conta o disposto no nº 2 do art. 731º do C.P.C., impõe-se que se ordene a baixa dos autos ao Tribunal da Relação com vista à sanação dos vícios apontados.

IV -
Em conformidade com o exposto, decide-se absolver a recorrente Seguradora, mas ordena-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa com vista ao suprimento das nulidades referidas e subsequente reforma da decisão com respeito pelo aqui decidido, se possível com os mesmos senhores juízes desembargadores,
Custas pela parte vencida a final.


Lisboa, 21 de Março de 2006
Urbano Dias
Paulo Sá
Borges Soeiro