Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2430/11.3TBBCLG1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: TESTAMENTO
LEI DA SUCESSÃO POR MORTE
TESTAMENTO FEITO NO ESTRANGEIRO
VALIDADE DO TESTAMENTO
Data do Acordão: 06/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – LEIS, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO / DIREITOS DOS ESTRANGEIROS E CONFLITOS DE LEIS / NORMAS DE CONFLITOS / ÂMBITO E DETERMINAÇÃO DA LEI PESSOAL – DIREITO DAS SUCESSÕES / SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA / FORMA DO TESTAMENTO / FORMAS ESPECIAIS / TESTAMENTO FEITO POR PORTUGUÊS EM PAÍS ESTRANGEIRO.
Doutrina:
- Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Volume I, 4.ª edição, p. 187;
- Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, p. 418;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição Revista, p. 333;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume VI, p. 356.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 25.º, 31.º, N.ºS 1 E 2 E 2223.º.
Legislação Estrangeira:
SUCCESSION ACT 2006 (NSW), IN WWW.LEGISLATION.NSW.GOV.AU/ACTS/2006-80.PDF, CAPÍTULO 3.9, SECÇÃO 58.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 09-01-1996, RELATOR TORRES PAULO;
- DE 12-10-2006, RELATOR SALVADOR DA COSTA;
- DE 18-06-2013, RELATOR GREGÓRIO DE JESUS, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I A sucessão por morte, como deflui do artigo 25º do CCivil é regulada pela Lei pessoal do respectivo sujeito, sendo que, tal Lei, é a da sua nacionalidade, artigo 31º, nº1 do mesmo diploma.

II O nº2 daquele artigo 31º predispõe que «São porém reconhecidos em Portugal os negócios jurídicos celebrados no país da residência habitual do declarante, em conformidade com a lei desse país, desde que esta se considere competente.».

II Resulta do artigo 2223º do CCivil que «O testamento feito por cidadão português em país estrangeiro com observância da lei estrangeira competente só produz efeitos em Portugal se tiver sido observada uma forma solene na sua feitura ou aprovação.».

IV Considerando as regras que a lei australiana - do Estado da Nova Gales do Sul - impunha para a celebração de um testamento – documento escrito e assinado pelo testador e pelo menos por duas testemunhas - temos de concluir que o testamento que o inventariado outorgou  é válido à luz daquela lei,  vigente à data em que foi outorgado.

V Contudo, como resulta quer da lei australiana, quer até do próprio testamento, não houve a intervenção de qualquer entidade pública na sua outorga ou na sua aprovação, tratando-se de disposição feita e assinada pelo falecido, na presença de duas testemunhas: um solicitador (Advogado) e um secretário, mas o facto de uma das testemunhas ser um Advogado, não significa que o dito testamento tenha sido realizado na presença de um oficial público, nem se justificava, pois a lei vigente àquela data no Estado da Nova Gales do Sul não o exigia, tal como ainda não exige, a presença de qualquer oficial público.

VI Por outro lado, não tendo o dito testamento sido por qualquer oficial público (como seria no caso do testamento cerrado), estamos assim na presença de um testamento hológrafo, ou seja, um testamento, escrito, datado e assinado pelo próprio testador na presença de duas testemunhas, o qual carece de qualquer validade em Portugal.

(APB)

Decisão Texto Integral:

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I A veio requerer o inventário para partilha dos bens da herança deixada por óbito do seu irmão J.

Alega, em síntese, que o seu irmão faleceu, no estado de divorciado, em 18.12.2009, na freguesia e concelho de …, tendo deixado como únicos herdeiros os seus irmãos, sendo alguns pré falecidos. Mais refere que é o irmão mais velho do inventariado.

Foi nomeado cabeça de casal o referido A.

O inventariado deixou os seguintes herdeiros, seus irmãos:

- A casado no regime da comunhão de adquiridos com E.

- M, falecido em 1990, casado no regime da comunhão geral de bens com M D  e que deixou as filhas, M C, casada no regime da comunhão de adquiridos com J; e L casada no regime da comunhão de adquiridos com P.

- A R casado no regime da comunhão de adquiridos com M R.

- M S, viúva de J S, falecido em 22.12.2002, casados que foram no regime da comunhão de adquiridos, e que deixou os filhos: R M casado no regime da comunhão de adquiridos com C P; e M R casado no regime da comunhão adquiridos com M F.

- J R casado no regime da comunhão de adquiridos com E.

- M R casada no regime da comunhão geral de bens com J G.

- F B casado no regime da comunhão de adquiridos com M P.

- F C casado no regime da comunhão de adquiridos com M C F.

- M S casada no regime da comunhão de adquiridos com C A.

- M F R casada no regime da comunhão de adquiridos com A N.

- M C R casada no regime da comunhão de adquiridos com F F.

- O casado no regime da comunhão de adquiridos com A M.

- C A casado no regime da comunhão de adquiridos com L G.

- M L casado no regime da comunhão de adquiridos com T F.

Os interessados foram citados e C A veio deduzir oposição ao inventário.

C A alega, em síntese, que não há fundamento para o processo de inventário, pois não existem bens a partilhar. Assenta tal entendimento, no facto de o inventariado ter outorgado testamento em 25.03.1987, na Austrália, o qual cumpre todas as formalidades exigidas pela lei estrangeira, pelo que, tal testamento é válido e produz efeitos em Portugal. Por força do referido testamento, o opoente adquiriu, por sucessão, todos os bens do inventariado, pois o mesmo não deixou quaisquer herdeiros legitimários e, consequentemente, todas as pessoas identificadas como herdeiros não têm qualquer direito à herança.

Conclui pedindo que a oposição seja julgada procedente e, em consequência, que o inventário seja julgado extinto.

À oposição deduzida por C A veio responder o cabeça de casal A, defendendo que nos últimos anos de vida, o inventariado foi acompanhado pelas irmãs M F e M C. Nos dias a seguir ao óbito, C A pediu àquelas irmãs os documentos do inventariado para tratar de assuntos relativos com o funeral, os quais depois se recusou a devolver. O inventariado, no pleno exercício das suas faculdades mentais, há vários anos que afirmava, perante a família e terceiros, que quando falecesse os seus bens seriam para ser divididos entre todos os seus irmãos, de forma igual. Em Março de 2010, C A exibiu um “putativo” testamento que não é exactamente igual ao existente nos autos, pois há divergências nas assinaturas, rubricas, nas datas dos carimbos apostos e na certificação da assinatura do tradutor feita pelo Consulado de Portugal em Sidney. Acresce que tal documento não está autenticado/certificado pelo oficial público/notário que elaborou o documento. Ou seja, não se pode concluir pela legitimidade formal e substancial do documento junto, pois nada nos permite concluir que foram cumpridas as formalidades formais e substanciais da lei Australiana. Sem prescindir, invoca ainda que a assinatura constante de tal documento não foi feita pelo punho do inventariado, pelo que se invoca a sua falsidade.

Termina pedindo que a oposição seja julgada improcedente e que os autos prossigam até final.

C A veio responder (a fls. 157 e ss.) à alegada falsidade do testamento, defendendo que as divergências entre o documento junto com a oposição e o junto com a resposta, são relativas às certidões de tal documento (há mais do que uma), e não relativamente ao original de tal documento. Acresce que tal documento está devidamente autenticado e certificado e foi aceite pelas autoridades públicas nacionais. Acresce ainda que o documento está acompanhado da Apostilha da Convenção de Haia de 05.10.1961, que certifica a autenticidade de um documento público, reconhecendo a assinatura do signatário, a qualidade em que o emitiu e a autenticidade do selo ou carimbo que constam do acto. Assim, o testamento é válido. Por fim, refere ainda que o cabeça de casal está a litigar com má-fé, pois sabe bem que o inventariado outorgou o dito testamento, o que fez de livre e espontânea vontade.

Termina pedindo que o cabeça de casal seja condenado como litigante de má-fé, em multa e indemnização de valor não inferior a €.5000,00.

Após instrução, o Tribunal proferiu decisão a julgar improcedente a oposição ao inventário determinando-se o prosseguimento dos autos, tendo sido julgado igualmente improcedente o pedido de condenação do cabeça de casal como litigante de má fé.

O processo prosseguiu com a elaboração do Mapa de Partilha e prolacção da sentença homologatória.

 

Inconformado com essas decisões o interessado C C apresentou recurso de Apelação, o qual a final veio a ser julgado improcedente.

De novo inconformado interpôs recurso de Revista excepcional, recebido pela Formação, apresentando as seguintes conclusões:

- O acórdão recorrido está em contradição com outro transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

- Por outro lado, as questões que se pretendem ver discutidas no presente recurso são juridicamente relevantes e a apreciação das mesmas afígura-se necessária para uma melhor aplicação do direito.

- Deve assim considerar-se que o presente recurso é admissível, como revista excepcional, por se verificarem as circunstâncias previstas no artigo 672°, n.° 1, alíneas a) e c) do Código de Processo Civil.

- Como dispõe o artigo 31º, nº2 do Código Civil, são reconhecidos em Portugal os negócios jurídicos celebrados no país da residência habitual do declarante, em conformidade com a lei desse país, desde que essa se considere competente.

- Estamos perante um negócio jurídico - testamento - celebrado na Austrália, país onde o Inventariado, à data da sua celebração, tinha a sua residência habitual.

- E justo que uma declaração de vontade produzida por um cidadão português no país da sua residência e em conformidade com as normas desse mesmo país possa ser reconhecida em Portugal.

- Os artigos 65º, nº1 e 2223º do Código Civil constituem um afloramento do princípio do reconhecimento internacional das situações jurídicas criadas no estrangeiro, consagrado no artigo 31º, nº2 do mesmo diploma.

- A lei, observadas determinadas circunstâncias, abstém-se de exigir aos testamentos celebrados por portugueses no estrangeiro os requisitos de forma estipulados no Código Civil Português.

- O legislador, entre os requisitos formais do testamento e a declaração de vontade do testador, deu prevalência a esta última.

- O testamento objecto dos autos foi feito em conformidade com a lei australiana do Estado da Nova Gales do Sul.

- Baptista Machado sustenta que o conceito de forma solene significa o mesmo que forma escrita.

- Se o legislador pretendesse atribuir apenas eficácia aos testamentos em que interviesse um oficial público ou equivalente, tê-lo ia dito expressamente.

- De acordo com a interpretação defendida pelo Tribunal a quo, o testamento celebrado no estrangeiro apenas seria eficaz em Portugal se obedecesse aos mesmos requisitos de forma estabelecidos na nossa lei.

- O artigo 2223° do Código Civil tem necessariamente de ser interpretado à luz do disposto no artigo 31º, n.° 2 do mesmo diploma.

- Existindo dúvidas sobre o que constitui forma solene, dado que o texto da lei não o concretiza, deve prevalecer a vontade do testador declarada no testamento.

- Nada obsta a que se considere que a redução do testamento a escrito, com a assinatura do testador e de duas testemunhas, revista um carácter de solenidade.

- A assinatura do testamento foi feita na presença de duas testemunhas que, ao mesmo tempo, também assinaram o testamento, sendo que uma delas era "solicitor", ou seja, solicitador ou advogado.

- A intervenção de testemunhas presenciais no acto constitui um factor de solenidade.

- A decisão do Tribunal a quo viola o disposto nos artigos 31°, n.° 2, 65°, n.° 1 e 2223° do Código Civil.

- O Inventariado, através de documento escrito, assinado na presença de duas testemunhas, que também assinaram o testamento, em conformidade com as exigências de forma vigentes no país onde o mesmo tinha a sua residência habitual, dispôs validamente dos seus bens, para depois da sua morte.

- Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo desrespeitou a vontade do testador, violando o seu direito à transmissão por morte, com fundamento numa interpretação excessivamente restrita do artigo 2223° do Código Civil,

- O Tribunal a quo fez uma interpretação inconstitucional do artigo 2223° do Código civil, por violação do disposto no artigo 62°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, o que expressamente se invoca.

Nas contra alegações o Recorrido pugnou pela inadmissibilidade da Revista.

II São duas as questões suscitadas na presente Revista, a primeira tem a ver com a invocada oposição de julgados, a segunda com o relevo jurídico da questão suscitada. 

As instâncias deram como assente a seguinte factualidade:

1) J, filho de D e de L, natural da freguesia de …, concelho de … e com última residência na freguesia de …, concelho de …, faleceu no dia 18.12.2009. (fls. 4)

2) J faleceu no estado de divorciado e não deixou descendentes, nem ascendentes vivos. (fls. 4 e 9).

3) No dia 25 de Março de 1987, J lavrou “Testamento”, em língua inglesa, na: “BOLZAN & PRINCI, Solicitors, 44 Norton Street, LEICHHARDT.N.S.W. 2040, (Austrália), Telefone: 560 6811»

4) O testamento referido em 3) tem os seguintes dizeres: «Este é o TESTAMENTO de mim próprio, J, residente em …, no Estado de Nova Gales do Sul (Austrália), r. 1. ANULO todos os anteriores Testamentos e Disposições Testamentárias. 2. NOMEIO o meu irmão C A residente em … como meu único Executor Testamentário deste meu testamento e LEGO para ele, em absoluto, todos os meus bens mobiliários e imobiliários, quaisquer que sejam e onde quer que estejam. EM TESTEMUNHO DISTO incumbi-me deste meu Testamento em Sidney aos 25 de Março de Mil Novecentos e Oitenta e Sete. ASSINADO pelo TESTADOR nessa qualidade e para o seu Testamento, na presença de nós ambos, presente simultaneamente, e que a seu pedido, à sua vista e na sua presença, assim como na presença de cada um de nós, pusemos as nossas assinaturas neste documento, como testemunhas.»

5) O documento referido em 3) e 4) foi assinado pelo punho do falecido J.

6) O documento referido em 3) e 4) tem duas outras assinaturas: uma assinatura ilegível seguida dos dizeres «Solicitador Leichhardt»; outra assinatura ilegível seguida dos dizeres «193 Corunna Road Petersham Secretário».

7) O documento referido em 3) a 6) foi assinado e datado, em 16.03.2010, por «Maurice Neil Edwards», foi carimbado com o carimbo de «Maurice Neil Edwards, Solicitador e Notário Público, 17-21 Macquarie Street Parramatta» e foi afixado com o selo de «Notário Público».

8) Em 17.03.2010, foi aposta, no documento identificado em 3) a 6), «Apostila» da Convenção de Haia de 5 de Outubro de 1961, por funcionário do Departamento de Negócios e Comércio Estrangeiros, de New South Wales, Austrália, que atesta que o documento identificado em 3) a 6) foi assinado por Maurice Neil Edwards, na qualidade de Notário Público e está marcado com o selo/carimbo de Maurice Neil Edwards, Notário Público, Parramatta, Austrália.

9) Depois do óbito do inventariado, C A recusou entregar a M F os documentos de identificação do falecido J que possuía.

Declararam como não provados os seguintes factos:

a) Nos anos e em especial nos meses que antecederam o óbito do inventariado J, este foi acompanhado de perto pelas irmãs M F C e M C.

b) Nos dias seguintes ao falecimento de J, C A solicitou a M F e M C o bilhete de identidade, número de contribuinte e passaporte do falecido para tratar de alguns assuntos burocráticos com o armador.

c) Os documentos foram entregues a C A.

d) O falecido J, há vários anos, que afirmava perante toda a família e terceiros, que quando falecesse, os seus bens seriam para dividir entre os irmãos, em partes iguais.

Vejamos, então.

Lê-se no Acórdão impugnado:

«[3.3.] DO DIREITO APLICÁVEL

1. Está em primordialmente em causa no recurso em apreço a devida interpretação do art. 2223º, do Código Civil, onde se prevê que o testamento feito por cidadão português em país estrangeiro com observância da lei estrangeira competente só produz efeitos em Portugal se tiver sido observada uma forma solene na sua feitura ou aprovação.

No entender do Recorrente, contrariamente ao defendido na sentença em crise, essa norma constitui, tal como art. 65º, nº 1, do mesmo Código, “um afloramento” da regra do art. 31º, nº 2, desse Código, onde se afirma que são reconhecidos em Portugal os negócios jurídicos celebrados, por cidadão português, no país da sua residência habitual, em conformidade com a lei desse país, desde que esta se considere competente.

Esquece, porém e além de mais, que essa regra geral é, de acordo com a norma do art. 9º, nº 1, do Código Civil, neste caso particular em que o negócio em causa constitui uma disposição por morte, derrogada pela norma especial do art. 65º, do mesmo Código, onde se dita claramente, no seu nº 2, que se a lei pessoal do autor da herança no momento da declaração exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o acto seja praticado no estrangeiro, será a exigência respeitada.

Sendo ponto assente ou indiscutível nesta instância que o inventariado era cidadão português à data da dita declaração e da sua morte, como considerou a decisão aqui impugnada, manda o legislador português aplicar à sua sucessão por morte a sua lei pessoal ao tempo do falecimento deste (artºs 25º e 62º do C.C.), a qual corresponde à lei da sua nacionalidade (artº. 31º, nº. 1, do C.C.), ou seja, a lei portuguesa. 

De acordo com esta, nomeadamente o citado art. 2223º, o falecido J C devia, como cidadão português, ao outorgar testamento no estrangeiro, ainda que respeitando as normas desse outro país, no caso a Austrália, ter em mente que o mesmo só seria eficaz em Portugal caso tivesse sido observada uma forma solene na sua feitura ou aprovação, como bem concluiu a decisão do Tribunal a quo.

É assim patente, ressalvado o devido respeito pela posição diversa, defendido pelo Recorrente, que teve acolhimento no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça 12.5.1992, que a acolhida consideração pelo regime formal estabelecido pelo país estrangeiro em que foi emitida a declaração não é absoluto e esbarra sempre na necessidade de o mesmo envolver a exigida solenidade, na sua feitura ou aprovação (sendo despiciendo que se observe ou não rigorosamente alguma das formas estabelecidas no citado art. 2202º, do Código Civil português).

Subjacente a essa exigência está, em nosso entender, patente, por um lado, a defesa da soberania e independência nacionais e, por outro, a necessidade de evitar fraudes ao regime nacional, na outorga de deixas testamentárias, o que vai de encontro à interpretação que a doutrina e jurisprudência dominantes fazem dessa referência legislativa, ao exigirem a intervenção de uma entidade pública que ateste a sua emissão ou aprovação.

Como salienta Cristina Araújo, seguindo a doutrina já citada pela sentença recorrida: Esse carácter solene "traduz-se na intervenção da entidade dotada de fé pública, seja na elaboração da disposição de última vontade), seja na aprovação por mera delibação das disposições lavradas pelo declarante. Exige-se, assim, um testamento escrito com intervenção notarial, na elaboração ou aprovação do mesmo, não produzindo efeitos em Portugal os testamentos nuncupativos ou ológrafos feitos no estrangeiro.

(…)

não podemos deixar de sufragar a decisão do Tribunal da primeira instância, dado que o escrito referido em 4. e ss., dos factos julgados assentes, tendo observado a forma escrita, não beneficiou da exigida intervenção de algum oficial público que lhe conferisse a referida solenidade, marca essa que não se pode encontrar na intervenção de simples testemunhas (ainda que profissionais forenses, porque não se demonstrou que tivessem agido em funções públicas da sua competência) ou na posterior autenticação do documento, passados cerca de 23 anos da sua emissão, apenas para efeitos de respeitar a Convenção de Haia de 5.10.1961.

Com efeito, essa factualidade não nos parece equivaler ao que o legislador pretendeu com a citada referência a “forma solene”, cujo significado deve enquadrar-se no nosso universo jurídico (cf. art. 9º, nº 1, do C.C.) e ter com o seu elemento literal alguma correspondência (cf. seu nº 2).

De resto, se o legislador quisesse que a simples forma escrita, subscrita pelo testador, fosse suficiente, de certeza que teria sido mais claro e não teria usado expressão tão icónica como a presente na norma em apreço (cf. citado art. 9º, nº 3).

Daí que consideremos improcedente a argumentação do Recorrente nesse sentido e, à luz do direito vigente, maxime das normas ordinárias citadas, correcta a interpretação do Tribunal a quo.»

Insurge-se o Recorrente contra a decisão aqui extractada, na sua tese, por duas vias.

A primeira tem a ver com a contradição entre a mesma e o decidido no Acórdão do STJ, datado de 12 de Maio de 1992, cuja certidão foi junta e consta de fls 681 a 697.

Contudo, só aparentemente existirá a contradição apontada, já que no aludido Aresto embora se tenha concluído que «Se a ordem jurídica portuguesa reconhece eficácia e relevância em Portugal, a testamento feito por cidadão português em país estrangeiro, com observância da lei estrangeira, observados que sejam certos requisitos de forma, o enquadramento legal de um testamento feito por português em país estrangeiro, deve ser dado pela lei estrangeira e não pela lei portuguesa» (cfr ponto IV do sumário), também se concluiu que no caso em análise, o respectivo testador não poderia «[r]elevantemente, residindo no …, ir a … testar segundo a lei francesa, e perante um notário francês; pois que, com tal atitude, violou o âmbito da sua lei pessoal, a portuguesa, que é a reguladora da sua sucessão por morte, sem que se verificasse a especial conexão exigida pelo artigo 31, II, Código Civil, para se transigir perante a lei estrangeira.» (cfr texto do Acórdão in fine), e por isso não deu a relevância pretendida ao testamento apresentado.

Quer dizer, embora se constatasse que o testador pudesse ter lavrado um testamento no estrangeiro reconhecível em Portugal, desde que observadas as formalidades impostas pela Lei portuguesa, na espécie tal testamento carecia de validade porquanto o seu autor não era residente no país estrangeiro, França, onde o mesmo havia sido celebrado, tendo sido violada, por aqui a sua Lei pessoal, a portuguesa, reguladora da sua sucessão por morte, tendo em atenção o preceituado no nº2 do artigo 31º do CCivil, onde se predispõe que «São porém reconhecidos em Portugal os negócios jurídicos celebrados no país da residência habitual do declarante, em conformidade com a lei desse país, desde que esta se considere competente.».

Do mesmo modo, o Acórdão recorrido, seguiu entendimento idêntico, e concluiu «[q]ue o escrito referido em 4. e ss., dos factos julgados assentes, tendo observado a forma escrita, não beneficiou da exigida intervenção de algum oficial público que lhe conferisse a referida solenidade, marca essa que não se pode encontrar na intervenção de simples testemunhas (ainda que profissionais forenses, porque não se demonstrou que tivessem agido em funções públicas da sua competência) ou na posterior autenticação do documento, passados cerca de 23 anos da sua emissão, apenas para efeitos de respeitar a Convenção de Haia de 5.10.1961.», o que levava ao seu não reconhecimento.

Quer dizer, em ambos os Acórdãos se assentou sobre a necessidade de intervenção de um oficial público do país da feitura do testamento, sendo que, no Acórdão fundamento interveio um notário francês e no Acórdão recorrido embora tivesse intervindo um profissional forense, o mesmo actuou na qualidade de testemunha e não no exercício da sua actividade profissional.

É que, a sucessão por morte, como deflui inequivocamente do artigo 25º do CCivil é regulada pela Lei pessoal do respectivo sujeito, sendo que, tal Lei é a da sua nacionalidade, artigo 31º, nº1 do mesmo diploma, improcedendo as conclusões neste particular.

A segunda questão, consiste em saber se o Autor da sucessão, dispôs ou não, validamente, dos seus bens, pela via testamentária.

Importa aqui relembrar, o que se escreveu a esse propósito, na decisão de primeiro grau, fazendo apelo ao direito australiano, aqui chamado por ser o da Lei do país da residência habitual do autor da sucessão:

«[e]m Portugal não são válidos os testamentos hológrafos, ou seja, o testamento escrito, datado e assinado pelo testador mas não aprovado pelo notário (veja-se Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, vol. I, 4.3 ed., pág. 187).

Posto isto, analisemos, então, o testamento em discussão nos autos e o regime legal vigente na Austrália, em Nova Gales do Sul, à data da sua celebração.

Em primeiro lugar, importa referir que não se aplica o disposto na «Succession Act 2006 (NSW)» (obtido na internet em http://www.legislation.nsw.gov.au/acts/2006-80.pdf), pois do Capítulo 3.9, secção 58, que remete para o anexo 1 e que regula a aplicação da lei no tempo, determina quais as regras que se aplicam aos testamentos realizados antes da sua entrada em vigor e quais as que se aplicam apenas aos testamentos realizados depois da sua entrada em vigor. De acordo com tal norma a secção 6.,que é relativa à forma e ao modo como deve ser executado um testamento apenas se aplica aos testamentos realizados depois da sua entrada em vigor.

Assim, considerando que tal lei não é aplicável quanto à forma dos testamentos realizados antes da sua entrada em vigor, em 2006, aplica-se então a lei anterior, que era a «The Former Wills, Probate and Administration Act 1898».

A outorga de testamento, no Estado de Nova Gales do Sul (Austrália), no ano de 1987 regulava-se, então, pela «The Former Wills, Probate and Administration Act 1898» (retirado da internet in sydney.edu.au/lec/subjects/succession/Former%20WPAA.doc), a qual estabelecia na l.s parte, ponto 7, subsecção (1) as regras relativas à forma e modo de execução dos testamentos e que determinava que:

(1)          Um testamento não é válido a menos que:

(a)          Seja reduzido a escrito, e

(b)          Seja assinado pelo testador e

(c)          Conste, na face do testamento ou no verso, que o testador tenciona,  com  a .—.. assinatura, conferir efeito ao testamento e

(d)          A assinatura seja feita pelo testador na presença de duas ou mais testemunhas presentes ao mesmo tempo ou que a assinatura seja reconhecida pelo testador na presença de duas ou mais testemunhas presentes ao mesmo tempo e

(e)          Que pelo menos duas das testemunhas atestem e assinem o testamento na presença do testador, mas não necessariamente na presença uma da outra.

Ora, considerando as regras que a lei australiana - do Estado da Nova Gales do Sul - impunha para a celebração de um testamento e atendendo ao teor do testamento celebrado por J, temos de concluir que o testamento que o inventariado outorgou (conforme factos provados em 3) a 6)) é válido à luz da lei australiana vigente à data em que foi outorgado.

Contudo, como resulta quer da lei australiana, quer até do próprio testamento, não houve a intervenção de qualquer entidade pública na outorga do testamento ou na sua aprovação (ao contrário do que alega o opoente). Tratou-se de um testamento feito e assinado pelo falecido J, na presença de duas testemunhas: um solicitador (Advogado) e um secretário. Contudo, o facto de uma das testemunhas ser um Advogado, não significa que o dito testamento foi realizado na presença de um oficial público. Nem isso se justificava, uma vez que a vigente àquela data no Estado da Nova Gales do Sul não o exigia, tal como ainda não exige a presença de qualquer oficial público.

Por outro lado, o dito testamento não foi aprovado por qualquer oficial público (como seria no caso do testamento cerrado), pois nada consta do documento exibido e dos factos dados como provados, desconhecendo-se mesmo onde esteve guardado o dito testamento durante os 20 anos que sobrevieram até ao óbito do inventariado J.

Estamos assim na presença de um testamento hológrafo, ou seja, um testamento, escrito, datado e assinado pelo próprio testador na presença de duas testemunhas. Acresce que a intervenção, com a aposição da assinatura, selo e carimbo, em 16.03.2010, por «Maurice Neil Edwards», Solicitador e Notário Público, e o selo de «Notário Público», não permitem também concluir pela intervenção ou aprovação do testamento pelo dito Public Notary, pois a sua intervenção apenas ocorreu depois do óbito do testador.

Com efeito, se atendermos às funções dos Public Notary na Austrália, constatamos que as funções dos Notários (que são Advogados com mais de cinco anos de experiência, com um curso e nomeados pelo Suprem Court) passam essencialmente pela autenticação de documentos e informação para ser utilizada no estrangeiro, para testemunhar assinaturas ou autenticar a identificação, certificar fotocópias para serem utilizadas no estrangeiro.

Ou seja, as suas funções envolvem, quase exclusivamente, a documentação exigida por um cliente para usar no estrangeiro, pois muitas vezes, os documentos para serem remetidos para o estrangeiro, necessitam da assinatura e selo de um Notário para serem legalizados pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros e do Comércio da Austrália.

Ora, e foi essa efectivamente a intervenção do «Maurice Neil Edwards», Solicitador e Notário Público na presente situação, pois o mesmo limitou-se a assinar e apor o seu carimbo e selo de Notário Público no testamento outorgado pelo falecido J C, antes de o mesmo, ser apresentado no Ministério dos Negócios Estrangeiros para aposição da apostila. Mas isso, como decorre da data aposta pelo mesmo, ocorreu meses depois do óbito.

Quanto à apostila, de acordo com o art. 5.Q da Convenção de Haia Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Actos Públicos Estrangeiros, «A apostila será passada a requerimento do signatário ou de qualquer portador do acto.

Devidamente preenchida, a apostila atestará a veracidade da assinatura, a qualidade em que agiu o signatário do acto e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do acto.

A assinatura, o selo ou carimbo que figurarem sobre a apostila são dispensados de qualquer reconhecimento.»

E apondo-se a apostila, de acordo com o art. 2.9 da mencionada Convenção, «cada um dos Estados contratantes dispensará a legalização dos actos aos quais se aplica a presente Convenção e que devam produzir os seus efeitos no seu território. A legalização, no sentido da presente Convenção, apenas abrange a formalidade pela qual os agentes diplomáticos ou consulares do país sobre cujo território o acto deve produzir os seus efeitos reconhecem a assinatura, a qualidade em que o signatário do acto actuou e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do acto.»

Deste modo, tendo sido aposta a apostila no testamento, o mesmo não necessita de ser legalizado, nos termos em que o prevê a Convenção e o art. 365.º do Código Civil.

Contudo, a aposição da apostila que atesta a veracidade da assinatura de Maurice Neil Eduards e a qualidade em que agiu, considerando a data em que o fez, não significa que o mesmo tenha intervindo na sua celebração, nem que o tenha aprovado.

Ou seja, e em suma, ainda que o testamento seja válido à luz da lei do local e da data da sua celebração, não podemos considerar que o mesmo produza efeitos em Portugal, por não ter sido observada a forma solene na sua feitura ou aprovação, ou seja, por o mesmo não ter sido celebrado por oficial público ou por não ter sido aprovado por oficial público.

Desta forma, a oposição ao inventário improcede na íntegra, e os presentes autos têm de prosseguir para a partilha do bem imóvel que o inventariado deixou, uma vez que o mesmo não dispôs validamente do seu património, por morte.».

A análise da questão foi feita pelo primeiro grau à luz do direito australiano, de harmonia com o disposto no artigo 348º, nº1 do CCivil, o que foi confirmado pelo segundo grau.

Não obstante o testamento realizado pelo Autor da sucessão fosse válido em face das leis vigentes na Austrália, na data da sua feitura, o mesmo carece de qualquer validade em Portugal, já que se trata de um testamento hológrafo, cfr Ac STJ de 12 de Outubro de 2006 (Relator Salvador da Costa), in www.dgsi.pt..

Resulta do artigo 2223º do CCivil que «O testamento feito por cidadão português em país estrangeiro com observância da lei estrangeira competente só produz efeitos em Portugal se tiver sido observada uma forma solene na sua feitura ou aprovação.», o que significa que, sem embargo daquela validade, porque a mesma não se encontra eivada de qualquer forma solene, maxime, através da sua feitura perante um oficial público australiano, não poderá produzir quaisquer efeitos no nosso país, cfr Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, 418; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol VI, 356; Ac STj 18 de Junho de 2013 (Relator Gregório de Jesus), 9 de Janeiro de 1996 (Relator Torres Paulo), in www.dgsi.pt.

Soçobram, também por aqui as conclusões de recurso.

Da invocada inconstitucionalidade.

Insurge-se ainda o Recorrente contra o Acórdão impugnado, uma vez que na sua tese o Tribunal recorrido fez uma interpretação inconstitucional do artigo 2223° do Código Civil, por violação do disposto no artigo 62°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa.

O apontado artigo 62º, nº1 da CRPortuguesa dispõe que «A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.», constituindo o apanágio da liberdade de transmissão inter vivos ou mortis causa, proibindo a existência de bens sujeitos a uma qualquer interdição de alienação ou disposição.

O referido preceito apenas significa que a Constituição garante a todos os cidadãos o direito fundamental de não ser impedido de transmitir a sua propriedade, mas a liberdade de transmissão pode estar mais ou menos limitada por via legal ordinária, cfr Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição Revista, 333.

E essa limitação, deixada ao poder de conformação do legislador, esbarra, entre outros, com os contornos formais impostos por aquele no que tange aos negócios jurídicos que envolvem a sua transmissão, vg, mortis causa através de testamento, como aconteceu no caso em análise.

Daqui decorre que o autor da sucessão embora tivesse plena liberdade para dispor dos seus bens, estava, além do mais, sujeito às regras da sua lei nacional, a Portuguesa, quanto à forma, a qual, como se viu, não foi observada adequadamente.

Inexiste, assim qualquer interpretação desconforme com a Constituição, do normativo inserto no artigo 2223º do CCivil

III Destarte, nega-se a Revista, mantendo-se a decisão ínsita no Aresto impugnado.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 27 de Junho de 2019

Ana Paula Boularot (Relatora)

Pinto de Almeida

José Rainho