Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B4373
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
DENÚNCIA
NECESSIDADE DE CASA PARA HABITAÇÃO
Nº do Documento: SJ200701250043732
Data do Acordão: 01/25/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário : 1. Uma parte não pode invocar a nulidade do Acórdão da Relação reportada ao não conhecimento da invocação das nulidades da sentença previstas nas alíneas b), c) e d) do n.º1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, que a contraparte fizera no recurso da primeira para a segunda instância.
2. A nulidade consistente em o Tribunal da Relação ter considerado factos que não podia considerar, por não ter seguido o caminho previsto na lei para a alteração factual, atinge o aresto de modo parcial, subsistindo a parte sã não dependente de tal excesso factual.
3. O conceito de necessidade do arrendado para habitação própria, como fundamento de denúncia do arrendamento, é jurídico e, como tal, sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça.
4 . E é autónomo relativamente aos requisitos do n.º1 do artigo 71.º do RAU.
5 . Na sua avaliação, há que atender, primeiramente, à situação de habitação do senhorio e, depois, àquilo que a pretendida habitação no arrendado pode significar em cotejo com aquela, na perspectiva dos interesses dele.
6. Tudo devendo ser apreciado tendo em conta o homem de normais sensibilidades e aspiração, colocado na posição específica dele.
7. É de considerar verificado este requisito relativamente a um jovem que concluiu a sua licenciatura em Aveiro, regressou a Lisboa onde habita em casa dos pais, ocupando um quarto, pretende casar e constituir família e foi admitido como bolseiro duma fundação situada na capital, situando-se a fracção arrendada na área da comarca de Oeiras.
8. A excepção peremptória constante da alínea b) do n.º1 do artigo 107.º do RAU depende da alegação e prova, por parte do inquilino, de que se vem mantendo no arrendado, nessa qualidade, pelo período de tempo que tal preceito exige, não bastando a referência ao tempo durante o qual o arrendamento vem vigorando.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I – Na comarca de Lisboa, mas com remessa posterior do processo a Oeiras, AA intentou contra: BB;
A presente acção declarativa ordinária.

Alegou, em síntese, que:
Adquiriu, por doação do seu avô, na data que refere, a fracção autónoma que identifica e que havia sido arrendada ao réu;
Necessita dela, contudo, para sua própria habitação, por razões que enumera.

Pediu, em conformidade, se decrete a denúncia do contrato, com consequente despejo do réu.

Contestou este, sustentando, na parte que importa, que não correspondem à verdade os factos integrantes da necessidade de habitação e que o autor não alega que não possui na área da comarca de Oeiras, onde se situa o arrendado, casa própria ou arrendada.

Respondeu o autor.
II - A acção prosseguiu a sua normal tramitação e, na altura própria, foi proferida sentença que a julgou procedente, com base na necessidade da fracção para habitação própria do autor.
III - Recorreu o réu para o Tribunal da Relação de Lisboa que revogou a sentença de primeira instância.

Entendeu tal Tribunal, em resumo, o seguinte:
O prazo de 30 anos, impeditivo da denúncia, deve ser contado até ao momento da efectivação do despejo; mas – como expressamente refere -não se fundamenta a decisão nesse ponto;
Fundamentando-se antes na não verificação do requisito da necessidade da fracção para habitação do senhorio.
O acórdão tem uma declaração de voto nos seguintes termos:
“ voto a decisão, não se concordando com os fundamentos, maxime no que tange à interpretação que foi feita quanto à operância do prazo de caducidade do direito da acção (de 20 anos no caso em apreço) e à "vacatio " introduzida pelo Ac. T.C. de 16 de Fevereiro de 2000, citado no acórdão, vacatio essa que no nosso modesto entendimento não ocorreu. Por outra banda, igualmente se não concorda com a interpretação efectuada do normativo inserto no artigo 107.º, n° 1 do RAU (na nova redacção). Existiria, deste modo, uma causa obstativa ao peticionado despejo, adveniente do decurso do prazo "mais curto" - de 20 anos - aludido naquele normativo).”

IV – Pede revista o A.
Conclui as respectivas alegações do seguinte modo:

1ª. Na petição inicial o AA procurou justificar factualmente, ainda que de forma algo sintética, a sua necessidade do arrendado, terminando por concluir que precisava de uma casa onde pudesse «residir com dignidade, privacidade e autonomia».
2ª. A 1ª instância reconheceu a alegada necessidade, tendo decretado o despejo, mas a Relação revogou tal sentença, por entender que a alegada necessidade não havia sido suficientemente demonstrada para justificar o despejo.
3ª. É sindicável perante o STJ a arguição do acórdão recorrido enfermar de nulidade, em qualquer das suas modalidades. E sendo tal necessidade um conceito abstracto, a preencher por factos materiais concretos, também é uma questão de direito sindicável pelo STJ determinar se a matéria de facto cimentada nos autos foi pelas instâncias devidamente interpretada ao concluírem pelo preenchimento ou não a aludida necessidade habitacional.
4.ª Ora no seu recurso de apelação os RR. suscitaram três questões (embora distribuídas por 6 alíneas), que os próprios Apelantes qualificaram de nulidades da sentença previstas nas alíneas b), c) e d) do n° 1 do art° 668 do CPC, a que o A. respondeu pugnando pela sua improcedência.
5ª. Logo, a Relação deveria ter conhecido das alegadas nulidades, sob pena de incorrer em nulidade por omissão de pronúncia. E, mais, só delas deveria ter conhecido, sob pena de incorrer em excesso de pronúncia, pois as conclusões delimitam positiva e negativamente o objecto do recurso de apelação.
6ª. Com efeito, o objecto dos recursos, é limitado às questões já postas, ficando as Questões novas ficam excluídas do âmbito do recurso, tenham sido ou não levadas às conclusões (excepto se de conhecimento oficioso). E de entre as questões já postas, é limitado às questões levadas às conclusões:
a. Positivamente, pois todas as questões suscitadas nas conclusões devem ser em princípio apreciadas;
b. Negativamente, pois somente as levadas às conclusões deverão ser apreciadas (excepto se de conhecimento oficioso).
7ª. Ora o acórdão sob revista nada diz quanto ás apontadas nulidades, considerando tão-somente que o problema "entre mãos é o de saber se o A. como a sentença decidiu - tem efectiva necessidade do locado para sua habitação». Dado o exposto, o acórdão enferma de nulidade, ex vi da ala d) do n.º 1 do art° 668 do CPC, por omissão de pronúncia.
8ª. Acresce que a Relação entendeu por bem debruçar-se sobre a questão técnico-jurídica de fundo – ou seja, «... saber se o A. tem efectiva necessidade do locado para sua habitação» – o que lhe estava vedado, já que nas suas conclusões os Apelantes, em bom rigor, apenas criticavam a sentença por a considerarem ferida de nulidades (e não por erro de julgamento, de facto ou de direito). Daí a nulidade do acórdão recorrido, agora por excesso de pronúncia.
9ª. Acresce que a Relação, na fundamentação do seu acórdão, invocou e apreciou matéria nova - e "nova" pois não havia sido suscitada nem apreciada em 1ª instância - e que por isso lhe era vedado invocar e/ou apreciar.
10ª. Fê-lo, nomeadamente, ao estabelecer um paralelo entre a situação habitacional do A. e a situação habitacional de sua irmã .....
11ª. Acresce que é no mínimo contraditório que o acórdão se permita afirmar, no mesmo segmento, que a irmã do A. «objectivamente parece estar em igual situação». Ora nada se provou quanto à irmã do A. – a não ser que é comproprietária e que vive em casa dos pais – tanto que a própria Relação admite que «neste caso, nós nem sabemos se a irmã do A. (...) também precisará da mesma casa ...».
12ª. A comparação espúria prossegue no que respeita à hipotética vontade da Irmã do A, de também pretender casar e constituir família Trata-se de uma comparação anómala (por "presunção"?), não só espúria do ponto de vista processual -- porque apresentada de "surpresa" -- como totalmente balofa do ponto de vista fáctico, Para além de irrelevante para o direito, pois a Irmã do A não veio aos autos reclamar a casa",!
13ª. Quanto à argumentação de que o A estaria a pedir a casa dos autos «pelo simples facto de se atingir a maioridade» -- e que seria estribado apenas nessa circunstância que o Tribunal da 1 a instância lhe reconhecera «automaticamente» a alegada necessidade da casa - está em contradição com os fundamentos concretos em que se estriba a causa de pedir. É que foram diversas as razões invocadas pelo A, tendo sido a "maioridade" apenas uma dessas razões, como "pano de fundo" das restantes.
14ª. E basta ler a sentença da 1ª instância para concluir que o apontado "automatismo" da sentença nunca existiu, pois a decisão foi minuciosa e criteriosamente ponderada, tudo menos "automática", e não atendeu apenas, nem sobretudo, à "maioridade" do senhorio.
15ª. Os factos dados como provados são complexos e encadeados com grande clareza e "naturalidade". Podem ser "escassos" - como refere a 1ª instância e repete a Relação - mas só na quantidade. Mas isso não afecta a sua qualidade probatória e demonstrativa da alegada necessidade. Nem sempre a quantidade é sinónimo de qualidade.
16ª. Quanto ao argumento da Relação, de que o pedido da casa está feito, ou foi deferido, «... à margem de qualquer projecto iminente e sério de casamento», contradiz a resposta dada ao quesito 9°, que na sua singeleza e amplidão diz tudo o que é necessário saber: «O A. pretende casar-se e constituir família».
17ª. Facto este provado com total actualidade - tanto que a forma verbal está no presente do indicativo – sem os RR. lograrem contra-provar qualquer restrição ou reserva de qualquer ordem, material ou temporal, que levasse a pensara que o projecto não era actual ou sério.
18ª. Relativamente à carta de fls 61 - que segundo a Relação «não abonaria muito a convicção sobre tal necessidade» -- encerra uma questão nova, pois nunca a dita carta fora invocada pelos RR. para o efeito de consubstanciarem e/ou demonstrarem qualquer «materialização forçada dessa anunciada necessidade».
19ª. E trata-se de uma objecção meramente retórica e errónea; a carta surge nos autos num contexto totalmente diferente (alegada pressão no sentido da venda) do que pretende a Relação. E é jurídica e factualmente irrelevante, já que foi escrita muito antes da presente acção dar entrada, pelo que quaisquer "necessidades" habitacionais que ali se prognosticassem, nunca poderiam corresponder às necessidades concretas que mais tarde vieram a ser alegadas e julgadas na presente acção.
20ª. Quanto à frase do acórdão - «Outro facto que deixou dúvidas é este: a casa pertence, em compropriedade, ao A. e sua irmã II» - é obscura, já que o facto do A. ser comproprietário do locado juntamente com sua irmã II nunca suscitara, até àquela data, quaisquer "dúvidas", tanto às partes como ao tribunal.
21ª. Aliás, a situação de compropriedade, nos termos em que é esgrimida pelo acórdão, constituiu questão nova, já que nunca os RR. haviam pretendido retirar dessa "compropriedade" qualquer excepção, ou afirmação de maior exigência aos senhorios - fosse de que natureza fosse - que lhes fosse favorável ou então desfavorável à pretensão do A ..
22ª. Por outro lado, a afirmação segundo a qual «a existência de outros com proprietários põe necessariamente, uma maior exigência de provar quanto a invocada necessidade» traduz erro de direito - pois essas suposta "maior exigência" não decorre da letra da lei nem sequer do seu espírito, sendo certo que a lei (art. 71-b RAU) apenas fala em casa "que satisfaça as necessidades de habitação ..." do senhorio, e nem é defendida por jurisprudência conhecida.
23ª. Em parte alguma a lei distingue os casos de despejo em que a propriedade do locado é detida por um único titular, daqueles em que existem vários comproprietários, isto para o efeito específico de exigir naquele caso uma "necessidade" mais leve ou menos intensa do que nestes. Num caso como noutros a necessidade deve ser igualmente séria, ponderosa e actual.
24ª. A lei também não exige que a casa despejanda, quando detida em compropriedade, esteja em condições de satisfazer, tal necessidade «Quanto a todos ...» (os comproprietários, inclusive os que não requereram o despejo, como é o caso da irmã do A). A lei basta-se que a casa despejanda satisfaça a necessidade habitacional do comproprietário concreto que solicitou judicialmente o despejo. Apenas desse.
25ª. Ora no caso dos autos apenas um dos dois comproprietários requereu o despejo da casa alegando dela necessitar. E podia legalmente fazê-lo mesmo desacompanhado de sua Irmã, como aliás a sentença de 1ª instância bem salienta, em termos aqui dados como reproduzidos.
26ª. Portanto, a referências feitas no acórdão às hipotéticas "necessidades habitacionais" da irmã do A., ou ao seu eventual e futuro "desentendimento" com o A, ou ao surgimento de «uma possível acção de divisão de coisa comum», são totalmente descabidas, porque meramente conjecturais e especulativas.
27ª. E mesmo em termos do direito a constituir, a ideia subjacente ao acórdão -- de que a exigência da "necessidade habitacional" cresceria em função do aumento do número dos titulares -- afigura-se descabelada, estando por demonstrar a bondade de tal solução.
28ª. Por outro lado, essa suposta "maior exigência" deveria ter sido oportunamente invocada pela parte a quem aproveitaria - no caso os réus - logo que foram confrontados com a petição e com a situação de "compropriedade" subjacente.
29ª. Mas os RR. nunca invocaram os efeitos jurídicos restritivos que o acórdão agora pretende extrair da aludida compropriedade; logo, não é aceitável que a Relação pretenda agora, de surpresa, estribar o acórdão nessa distinção nova.
30ª. Também não colhe colocar em dúvida a situação profissional do A, sugerindo a Relação que não seria suficientemente estável para justificar a alegada necessidade, sendo certo que tal problema de "estabilidade" não é sequer aflorado pelos inquilinos nas conclusões do seu recurso. Mais uma questão "nova" tratada com excesso de pronúncia e geradora de nulidade.
31ª. Mais ainda que não houvesse excesso nem nulidade, ainda assim não deverá proceder. Além de discriminatória é imoral e até iníqua. É geralmente sabido que os licenciados que optam por seguir em Portugal a carreira do ensino superior ou da investigação científica não entram imediatamente para lugares do quadro, permanecendo por vezes vários anos em situações relativamente instáveis. Uma dessas situações é precisamente a ilustrada nos autos: contratado por instituição pública (Fundação da Universidade de Lisboa), na posição de Bolseiro, para desenvolver programas de investigação.
32ª. Se a relativa instabilidade dessa situação (ou de outras semelhantes, como as Bolsas para mestrado, doutoramento, ou post-doutoramento), fosse razão bastante para desqualificar a necessidade de habitação própria pelo Bolseiro – sobretudo tratando-se de um investigador ainda jovem e em início de carreira – então estariam impedidos de aceder a habitação própria todos os que quisessem enveredar pela carreira científica ou académica em Portugal. Ou seja, a nata da nossa inteligência seria discriminada.
33ª. Por maioria de razão estariam excluídos dessa "necessidade" de habitação própria todos os trabalhadores com contratação não definitiva, ou a termo. E todos os prestadores de serviço, dada a natureza eminentemente precária deste tipo de actividade. A discriminação daí resultante seria não só monstruosa nas suas consequências e fundamentos, mas até inconstitucional, por violação do art.º 13 da CRP.
34ª. Quanto à especulação sobre a hipotética alteração da situação profissional do A., podendo estar a trabalhar no Porto, em Angola, ou no Japão, é juridicamente irrelevante: não passa de especulação. Não é ao tribunal de recurso que cabe tecer hipóteses ou conjecturas, sobretudo não sendo de conhecimento oficioso e não tendo as mesmas sido discutidas na instância anterior. É no mínimo desleal, gerando nulidade por excesso de pronúncia. Se fosse o caso, seriam os RR. que tinham o ónus de alegar e provar. Mas nada alegaram ou provaram nessa matéria.
35ª. Quanto ao argumento segundo o qual o casamento do senhorio não seria «um projecto imediato» o argumento não corresponde aos factos provados, além de erróneo.
36ª. Para que seja relevante em termos de despejo, a vontade do senhorio em casar - e/ou em constituir família - não tem que ser um o projecto "imediato", nomeadamente que o senhorio já tenha data marcada para o casamento na altura em que mete a acção de despejo ... ou na altura em que decorre o julgamento. A «objecção é perversa», como diz sagazmente a Relação de Évora em douto acórdão de 23/4/98, « ... pois sempre se poderia contra-argumentar que o casamento não foi ajustado porque o apelado não tem casa para ir habitar ...».
37ª. A necessidade apenas tem «tem de ser verdadeira, real, actual, ou, pelo menos, iminente». E até pode acontecer que a referida necessidade de casa não seja determinada por um "projecto de casamento" formal. Uma simples "união de facto" teria o mesmo efeito.
38ª. No caso do Autor, resulta dos autos que nascera em Janeiro de 1976 (cfr. doc. 4 e 5 da p.i). Pelo que à data da entrada da acção já era um homem feito (27 anos), já estava licenciado em Biologia e profissionalmente activo (investigador integrado num projecto científico em Lisboa) e tornara-se economicamente autónomo (bolseiro); e como se isto não fosse bastante, namorava (há vários anos, como se colhe do relatório de resposta aos factos provados) e pretendia "casar-se e constituir família", como também se provou.
39ª. Estando a frase no presente do indicativo, nada permite questionar:
F. Que não seja um «um projecto sério» de casamento (mas antes uma ficção ou quimera).
G. Que não seja um "projecto" de casamento "actual' (mas antes pretérito).
H. Que não seja um "projecto" de casamento "imediato" ou pelo menos "iminente" (mas só para concretizar a logo prazo).
40ª. Como lucidamente refere a sentença de 1ª instância, nestas circunstâncias o A. «não tem de ver-se obrigado a habitar, por favor ou por empréstimo, na casa de outrem (ainda que sejam os pais). Assim, gozando o senhorio do direito à sua privacidade e autonomia, pode exigir, nesse caso, invocando a respectiva necessidade, o direito de denúncia da fracção locada para habitação própria».
41ª. Estas circunstâncias, se tivessem sido no acórdão «ponderadas segundo as regras de experiência de acordo com as exigências normais da vida e do estado do denunciante», deveriam ter sido suficientes para demonstrar a necessidade de casa própria.
42ª. Não colhe o argumento de que «a seguir-se a lógica da sentença (e face aos factos provados), qualquer comproprietário, só pelo simples facto de ser maior e viver com os pais ... teria, sem mais necessidade do locado. Inutilizar-se-ia, assim, a exigência legal da "necessidade", pela sua evidente banalização».
43ª. A objecção é demagógica, e escandalosamente reducionista no caso concreto. É que no caso do A, não é «só pelo simples facto de ser maior e viver com os pais» - como pretende o acórdão recorrido de forma assaz redutora e simplista - que o A tem necessidade do locado. Também ... mas não só.
44ª. No caso do A a sua necessidade de casa própria sai enormemente reforçada pela circunstância, absolutamente fundamental, de também pretender casar-se e constituir família, como se provou plenamente. E dizemos "plenamente" pois tal vontade/projecto ficou demonstrada(o) sem qualquer reserva ou limitação, fosse esta temporal ou de qualquer outra natureza. Este aspecto é decisivo.
45ª. Se os RR. entendiam que a vontade do A de casar e constituir família - anunciada pelo A logo em 2002, assim que propôs a acção - já não se mantinha actual na altura do julgamento ou que entretanto deixara de ser um projecto sério e imediato, ou iminente, era seu ónus alegá-lo e prová-lo. Mas nada fizeram.
46ª. Os RR. nada alegaram nem provaram que diminuísse aquele elemento de facto, como era seu ónus. Logo, o facto provado de que o A "pretende casar-se e constituir família" - no presente do indicativo - não deve ser interpretado de forma restritiva ou limitativa - para não dizer dubitativa - como pretende fazer o acórdão recorrido, pois isso seria:
c) Inverter o ónus da prova.
d) Questionar matérias em sede de recurso que os próprios RR. não quiseram ou não lograram pôr em causa em 1ª instância.
47ª. De qualquer modo, um namoro com a testemunha CC, que já vem desde 1999 (como o relatório dos factos provados expressamente refere) diz muito quanto à solidez, persistência e seriedade do propósito familiar do A.
48ª. Este aspecto, conjugado com a inexistência de outra habitação para o A nela constituir a sua família, e o facto de apenas dispor de um quarto a título provisório, determinam claramente a necessidade de habitação na casa arrendada. Sendo certo que segundo a Relação de Évora, «ensina a sabedoria popular que "quem casa quer casa”».
49ª. Não parece assim legítimo discutir, perante estes factos, a seriedade e realidade da necessidade do A.; o mesmo se dirá da sua actualidade, já que devemos interpretar esta em sentido lato, por forma a abranger também as necessidades iminentes ou futuras, desde que comprovadas.
50ª. Quanto à questão se saber se «prazo de 30 anos, previsto agora, com toda a legitimidade, no RAU, deverá aqui relevar?» -- a que o acórdão recorrido responde positivamente -- trata-se de matéria nova, tendo a Relação consciência que «os recursos se destinam a apreciar a bondade das decisões e não a produzir decisões novas.». Logo, nunca poderia ser acolhida como fundamento do acórdão "embora não decisivamente", pois isso implica "fazer entrar pela janela o que não pode entrar pela porta".
51ª. En passant, sempre se dirá, subsidiariamente, que a problemática dos 30 anos adrede suscitada no acórdão não tem fundamento: onde a lei processual e civil constituída não acompanha a Relação, os autores do acórdão elaboram uma construção alternativa, de modo a conferir relevância a um prazo de 30 anos que já não é, ou ainda não é, aproveitável pelos inquilinos. Não pode ser.
52ª. Mas mesmo que se entenda que a Relação não ficou aquém, e/ou exorbitou do que lhe era lícito conhecer, ainda assim o recorrente entende, subsidiariamente, que a matéria de facto cimentada nos autos foi indevidamente interpretada ao concluir a Relação pelo não preenchimento da aludida necessidade habitacional: é que a necessidade da casa pelo recorrente ficou suficientemente provada é juridicamente relevante, conforme a generalidade da fundamentação factual e jurídica desenvolvida na sentença de primeira instância.
53ª. Ora entre a necessidade de habitação do inquilino e a do senhorio, a lei opta por esta, como se compreende. Logo, como tal, a denúncia do contrato será considerada eficaz, sendo decretado o despejo dos RR. da casa dos autos, para habitação do A., tudo nos termos e prazos do art.º 70 do RAU.
TERMOS EM QUE:
O recurso deverá ser considerado provado e procedente, sendo revogado o douto acórdão recorrido.
Assim, deve ser sufragada a generalidade da fundamentação factual e jurídica desenvolvida na sentença de primeira instância, como tal, a denúncia do contrato será considerada eficaz, sendo decretado o despejo dos RR. da casa dos autos, para habitação do A., tudo nos termos e prazos do art° 70 do RAU.

Não houve contra-alegações.

V – Ante as conclusões das alegações – que, com ressalvas que aqui não cabem, delimitam o objecto do recurso - importa tomar posição sobre se o recorrente pode invocar as nulidades do acórdão da Relação que invoca e, na hipótese, afirmativa, se elas se verificam.
Não havendo prejudicialidade, importa ainda saber se se verifica o requisito da denúncia consistente na necessidade do arrendado para habitação própria.
E também não havendo prejudicialidade, importa ainda saber se a procedência encontra obstáculo emergente do período de tempo em que o réu vem permanecendo no arrendado.

VI – 1 Vem provada a seguinte matéria de facto:
1) Por escritura pública celebrada no 19.º Cartório Notarial de Lisboa, no dia 6.8.79, DD e EE, "em representação" de "FF-Sociedade Geral de Investimentos Para o Comércio e Indústria, S.A.R.L.", declararam que ''vendem ao segundo outorgante (GG), pelo preço de Esc. 620.000$00, que já receberam, a fracção autónoma designada pelas letras "DM", destinada a habitação, que é o nono piso direito do lote 102 do prédio urbano situado na Avenida ..., lotes 100, 101 e 102, em ..., freguesia de Carnaxide, concelho de Oeiras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n° 9561, a fls. 38 do Livro B-31..." (al. A) dos "Factos Assentes”);
2) Por escritura pública celebrada no 24.º Cartório Notarial de Lisboa, no dia 10.7.89, por GG e mulher, JJ, foi dito que "livre de quaisquer ónus ou encargos, doam, em comum e partes iguais, a seus netos, AA ... menor de 13 anos de idade ... e II o… menor de 8 anos de idade… filhos da filha ainda viva deles doadores,HH ... a fracção autónoma designada pelas letras "DM", que constitui o nono piso direito, do lado sul, lote 102, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida ..., lotes 100, 101 e 102, em ..., freguesia de Carnaxide, concelho de Oeiras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oeiras- segunda secção, sob o n° 00170/201184 ... " e que "atribuem a esta doação o valor de um milhão e cem mil escudos" (aI. B) dos "Factos Assentes”);
3) A fracção autónoma acima indicada mostra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de Oeiras a favor de "GG c/c JJ, comunhão geral", desde 30.11.79, por "compra" (al. C) dos "Factos Assentes”);
4) E a favor de "AA e II, ambos menores", desde 25.7.89, "em comum" e por "doação" (al. D) dos "Factos Assentes”);
5) Por acordo escrito celebrado em 15.2.1976, GG declarou ceder ao R. marido, LL, pelo prazo de seis meses e com início em 1.3.76, a utilização da fracção acima referida, para habitação, mediante o pagamento da retribuição mensal de Esc. 6.000$00 (al. E) dos "Factos Assentes”);
6) Retribuição hoje no valor de € 109,84 (aI. F) dos "Factos Assentes”);
7) O A. nasceu em Lisboa (aI. G) dos "Factos Assentes”);
8) O A. concluiu, em 21.12.01, o curso de Licenciatura em Biologia na Universidade de Aveiro (al. H) dos "Factos Assentes”);
9) Em 1.6.02, o A foi admitido como bolseiro da FUL-Fundação da Universidade de Lisboa, conforme acordo de fls. 22/23, cujo teor aqui se reproduz integralmente, sendo o plano de trabalhos a realizar por este no Museu, Laboratório e Jardim Botânico da Universidade de Lisboa (al. I) dos "Factos Assentes”);
10) O A. residiu, até 1994, em casa de seus pais, na Rua ..., n° 0, 00° Esq., em Lisboa (resp. ques. 1°);
11) Pais esses que suportavam o sustento do A (resp. ques. 2°);
12) O A. matriculou-se no curso de Biologia da Universidade de Aveiro que passou a frequentar (resp. ques. 3°);
13) O A, na sequência do referido no ques. 3°, passou a residir em Aveiro (resp. ques. 4°);
14) Em 21.12.01 o A passou a procurar uma actividade profissional remunerada (resp. ao ques. 5°);
15) O A. não dispõe, há mais de um ano, em Oeiras, nem em Lisboa ou na respectiva zona metropolitana, de casa própria ou arrendada que satisfaça as suas necessidades de habitação (resp. ques. 6°);
16) O A., face ao referido em I) supra, passou a habitar na casa onde residem os pais e a irmã, na Rua ..., n° 0, 00° Esq., em Lisboa, onde ocupa um quarto (resp. ques.7°);
17) Até ter casa própria (resp. ques. 8°);
18) O A pretende casar-se e constituir família (resp. ques. 9°);
19) Foi GG quem, pelo menos até Janeiro de 2002, emitiu os "recibos" referentes ao valor da retribuição mensal relativa à utilização da fracção dos autos (resp. ques. 10°);
20) Passando a sê-lo HH, mãe do A, a partir de Fevereiro de 2002 (resp. ques. 11°).

VI – 2 Importando ainda, para a resolução da primeira das questões enumeradas em V, atentar nas conclusões das alegações que os réus apresentaram, no recurso da primeira para a segunda instância, que são do seguinte teor:

A - A nulidade da sentença é clarissimamente evidente, por aplicação do disposto nas alíneas b) e c) do n° 1, artigo 668.º do Código do Processo Civil.
B - Os factos que consubstanciam a decisão não foram trazidos à colação pelo A., nem tão pouco identificados pelo Tribunal a quo. Que, comprovadamente os considerou escassos, não demonstrativos da iminência de constituição de família ou a não demonstração da estabilidade da sua vida profissional.
C - Ao valorar, subjectivamente o simples facto de o A. ter obtido uma licenciatura, não permite concluir que tal facto é " compaginável com uma natural e tendencial autonomia de vida, pessoal e económica".
D - O não ser " exigível ao A. que continue a viver com os pais, vindo ou não a constituir família" não consta dos normativos legais como condição a preencher pelo pretendente à denúncia de um contrato de arrendamento que vigora há mais de 29 anos.
E - A comprovada a existência continuada do contrato há mais de vinte e nove anos, sendo do conhecimento oficioso, verifica-se a nulidade de sentença por aplicação do disposto na aI. d), n° 1, artigo 668.º do Código do Processo Civil.
F - A decisão de inverter o ónus da prova viola a lei, é contrária à doutrina e jurisprudência, merecendo a devida censura.
Nestes termos e nos mais de direito, deve a sentença recorrida ser declarada a sua nulidade, absolvendo-se os RR. do pedido.

VI – 3 Mais importando que o autor termina as contra-alegações que apresentou naquele recurso (da primeira para a segunda instância) com a seguinte frase:
“Improcedem todas as conclusões do recurso.”

VII – O recorrente invoca em recurso para este tribunal, logo à cabeça, a existência de nulidades no acórdão da Relação.
Em duas vertentes opostas:
Uma, por não ter conhecido das nulidades invocadas pela contraparte no recurso da primeira para aquela instância;
Outra, por ter conhecido de questões de que, atentos os limites do recurso, não podia tomar conhecimento.

VIII – Relativamente à primeira das invocações, não lhe assiste o direito de a fazer.
As nulidades que os apelantes invocaram no recurso para a Relação eram as das alíneas b),c) e d) do n.º1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil.
Conforme o n.º3 deste artigo e, na esteira do que determina, no plano geral, o artigo 203.º, n.º1 do mesmo código, as nulidades hão-se ser invocadas por aquele a quem aproveitam.
Por isso, a propósito delas, já Casto Mendes (Direito Processual Civil, Lições Policopiadas de 1971-1972) referia que se tratava antes de anulabilidades e não de nulidades. Ideia que vem sendo seguida por Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto no Código de Processo Civil Anotado, 2.º, 669.

No recurso para a Relação, foram os réus que arguíram as nulidades da sentença da primeira instância.
Era apenas correspondendo a arguição deles e não oficiosamente ou por impulso do autor ali recorrido que o Tribunal da Relação havia de ter conhecido delas.
Só aqueles ficaram, pois, vencidos relativamente ao não conhecimento das mesmas por parte daquele tribunal.
E só quem fica vencido pode interpor recurso, nos termos do n.º1 do artigo 680.º do Código de Processo Civil.
Não pode, pois, este Supremo Tribunal agora conhecer da invocação feita pelos réus de que o acórdão da Relação não conheceu das nulidades invocadas pela contraparte. Tendo-se esta remetido ao silêncio quanto ao cometimento de tais nulidades, morreu a questão.

IX – E, contra isto, não se argumente que, tendo o autor sido vencedor na primeira instância, não podia recorrer e invocar as nulidades da sentença da 1.ª instância. E que, tendo os réus sido vencedores na segunda, também o não podiam fazer relativamente ao acórdão da Relação.
Quer o primeiro, relativamente ao primeiro recurso, quer os segundos relativamente à revista, podiam lançar mão do n.º2 do artigo 684.º A do Código de Processo Civil e manter a invocação das nulidades viva.
Não o fizeram, todavia, tendo até o autor sustentado o contrário nas contra-alegações que apresentou para a Relação, ou seja que as nulidades invocadas pelos RR não tinham lugar.

X – Abstemo-nos, assim, de conhecer das nulidades que o autor invoca por o acórdão de 2.ª instância não ter conhecido da invocação das nulidades que os RR aduziram para a Relação.
Mas, fora desta abstenção de conhecimento, fica a agora também invocada nulidade do acórdão da Relação por ter ido para além dos seus limites de conhecimento.
Este invocado excesso de conhecimento nada tem a ver com posição das partes relativa a vícios da sentença da 1.ª instância. Trata-se, segundo se argumenta, dum vício novo a que a parte prejudicada reage.

XI – A mencionada alínea d) do n.º1 do artigo 668.º dispõe, efectivamente, que é nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Vem de longe e mantém-se firme o entendimento de que aquilo a que a lei se reporta é a “questões” e não “razões” (1). Estas integram-se antes no domínio de liberdade do juiz quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito determinada pelo artigo 664.º e no regime de conhecimento imposto pelo artigo 660.º, n.º2, ambos do mesmo código.
As “questões”, para estes efeitos reportam-se, portanto, a “todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente” (2) cabe ao juiz conhecer.

XII – Por outro lado, também pertence do domínio do direito e consequentemente de liberdade do juiz a denominação que determinada argumentação tem.
Por isso, se a parte, em recurso, argumenta com a nulidade e o juiz entende que tal argumentação não integra qualquer vício formal, antes discordância de direito relativamente ao que vem decidido, nem por isso, deverá ficar-se pelo conhecimento daquela nulidade.
A questão não era de forma, estava mal adjectivada, mas, com a adjectivação certa, tinha que ser conhecida em obediência ao já falado regime geral do artigo 660.º, n.º2, para que, aliás, remete o n.º2 do artigo 713.º.

XIII – Ora, tendo em conta o que vem sendo veiculado, vemos que não enferma o acórdão recorrido de nulidade por excesso de pronúncia.
A parte recorrente apelidara de “nulidades” realidades que, segundo entendeu a Relação, integravam antes erro de direito quanto à verificação dum elemento da causa de pedir (necessidade do arrendado para habitação própria). Por isso, não só podiam, como deviam, os Sr.s Desembargadores conhecer de tal requisito.

Quanto à ultrapassagem, por parte do Tribunal da Relação, da realidade factual que lhe chegava, há que distinguir, se foi levada a cabo no uso dos poderes conferidos pelo artigo 712.º do Código de Processo Civil ou não.
Se foi, não foi cometido qualquer vício formal.
Se não foi, há nulidade, mas apenas circunscrita a tal ultrapassagem. Vale aqui o princípio “viciatur sed non viciat”, sendo a consequência a retirar apenas a de não considerar os factos que a Relação considerou em acrescentamento aos que lhe chegavam. (3)
Finalmente, o ter chamado à colação o tempo de permanência do réu no arrendado foi inócuo, já que, conforme expressamente consta do aresto, não foi por aí que a decisão de improcedência da acção foi tomada.


XIV – Assim, temos de avançar considerando os factos provados e só estes, supra enumerados.

Dispunha o artigo do RAU (aplicável, sem dúvida, ao caso dos autos), na parte que nos interessa, que “o senhorio pode denunciar o contrato… quando necessite do prédio para sua habitação…”

Levanta-se aqui, logo à partida, a questão de saber se este requisito encerra apenas realidade factual com a consequente insindicabilidade por este tribunal, ou se, pelo contrário, encerra uma vertente jurídica a reapreciar aqui.
A lei emprega expressões usadas no quotidiano vulgar, portadoras, assim, dum conteúdo próprio, ainda que fluído. Mas, ao fazê-lo, não repousa, ou não repousa apenas, na realidade factual. Criou um conceito jurídico abstracto, com vida própria, ainda que naturalmente preenchido por factos. Ou seja, no texto legal, não está a expressão do quotidiano extra jurídico, mas antes a consagração desse conceito jurídico abstracto.
E tanto assim é que, como vamos ver no número seguinte, logo se levantou a discussão consistente em saber se tal conceito ficava ou não preenchido pela verificação cumulativa dos requisitos que, no RAU, estavam no artigo 71.º.
Tratando-se de conceito jurídico, nada obsta a que se conheça em recurso de revista. Estamos, deste modo, com o Ac. deste Tribunal de 22.6.2005 (4), ainda que não correspondendo a orientação aqui uniforme (5).

XV – No preenchimento deste mesmo conceito de necessidade do arrendado para habitação própria, pode-se ter dois entendimentos:
Um vai no sentido de que tal necessidade resulta automaticamente da verificação dos requisitos do n.º 1 do artigo 71.º do RAU; não haveria, assim, autonomia conceptual;
Outro defende a autonomia; para além da verificação dos apontados requisitos, terá o intérprete que indagar se tem lugar a necessidade a que alude a alínea a) do n.º1 do artigo 69.º.
Cremos nós que o próprio legislador tomou posição no artigo 109.º deste diploma legal, ao referir-se cumulativamente aos requisitos previstos no artigo 71.º e à invocada necessidade de habitação.
Somos, então, pela autonomia.
Seguindo, assim, a posição largamente maioritária: Alberto dos Reis, Processos Especiais, I, 176, Pereira Coelho, Arrendamento, Direito Substantivo e Processual, Lições Policopiadas de 1988, 273, Galvão Teles, CJ, VIII, 5, 10, Januário Gomes, Arrendamentos para Habitação, 297, Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7.ª ed., 500, Antunes Varela, RLJ, Ano 118, 95 e os ac.s deste Tribunal de 22.11.2005, 6.7.2004 e 22.6.2005.


XVI – Se estamos perante um requisito autónomo, temos de indagar o seu conteúdo.
Este requisito vem de muito longe na nossa história de sorte que já há longo tempo se vêm debruçando os autores e a jurisprudência sobre o que – encarado autonomamente – traduz.
Justifica-se, assim, uma resenha, ainda que necessariamente breve, do modo como vem sendo abordado, incluindo nela os exemplos de que os autores se socorrem, por corresponderem a casos da vida com bastantes semelhanças ao nosso.
Alberto dos Reis, no lugar citado, exemplifica, quanto ao requisito da necessidade:
“O senhorio vive em Lisboa…não carece da casa de Coimbra, que deu de arrendamento… Em certa altura, porém, opera-se uma mudança na sua vida; o centro dos seus negócios e dos seus interesses desloca-se para Coimbra; era, por exemplo funcionário público em Lisboa e foi transferido para Coimbra…”
Pereira Coelho refere-se a este requisito, na parte que agora nos interessa, nos seguintes termos (loc. também citado);
“Note-se que, como resulta do artigo 1098.º, n.º2, a necessidade não supõe que o senhorio não tenha casa; pode o senhorio ter na localidade casa própria ou tomada de arrendamento e, todavia, necessitar da casa que deu de arrendamento, dada a manifesta insuficiência daquela para alojar o seu agregado familiar. Por outro lado, a necessidade deve ser real e séria; não tem que ser actual, pode ser futura, contanto que seja iminente.
Galvão Teles, também no lugar que se referiu, escreveu:
“Assente que o senhorio não tem, na área da situação do imóvel despejando, casa própria ou arrendada, ainda não está inteiramente demonstrada a sua necessidade de habitação. É preciso que ocorra outro pressuposto: que esteja residindo ou pretenda residir naquela área. Se este elemento acrescer à falta de casa arrendada ou própria, está feita a demonstração plena da necessidade de habitação e a acção deve proceder.” E, mais adiante, depois de recusar a adjectivação da “necessidade”:
“O funcionário público transferido do Porto para Lisboa passa a ter necessidade de habitação em Lisboa logo que é despachada a transferência, antes mesmo da sua efectivação. O solteiro que dorme num quarto arrendado e come onde lhe apraz passa a ter necessidade de uma casa onde possa instalar o lar que vai constituir, antes mesmo da celebração do casamento.”
Mais adiante ainda, escreve este Professor:
“Se o senhorio vive em casa emprestada ou em companhia de parentes ou amigos, isso não pode constituir obstáculo à procedência da acção.
Já o vimos.
Mas, em corroboração da conclusão atrás formulada, faça-se ainda a seguinte ponderação, que se impõe por si mesma. Dizer que nas aludidas situações o senhorio não tem necessidade da casa, não só é negar-lhe o direito a uma habitação estável e independente, como é pretender resolver à custa de terceiros o conflito de interesses entre ele e o arrendatário.
O terceiro em cuja casa o senhorio vive por favor não ficará legalmente impedido de o forçar a sair dela – o que mostra a precariedade da situação do senhorio. Mas poderá moralmente sentir-se constrangido a não o fazer, pelas relações de parentesco ou de amizade que a ele o unem. E teremos assim que, para permitir ao locatário continuar a viver na casa do locador, se fazem duas vítimas ou dois grupos de vítimas …”
No apontado número da Revista de Legislação e de Jurisprudência, agora a folhas 117, Antunes Varela, comentou uma decisão deste tribunal que se debruçou perante o requisito que vimos abordando relativamente a uma senhoria que vive com os pais e uma filha menor, em situação precária, tendo a mãe e filha de dormir num divã-cama, instalado numa varanda que tiveram de fechar para esse efeito, por os pais necessitarem do resto do andar. E escreveu, a dado passo:
“Mesmo que a caso dos pais dispusesse de espaço bastante para nela viverem filha e neta, e os pais se não opusessem a tal situação, seria intolerável, por contrário ao espírito da lei, que os tribunais quisessem impor à filha o dever de continuar a conviver com os pais, negando legitimidade à sua pretensão de habitar em casa própria, desde que por qualquer razão… ela sinta realmente o desejo de se emancipar de facto da tutela paternal.”
Sempre a propósito deste requisito, são de Januário Gomes (ob. e loc. citados) as seguintes palavras:
“A necessidade de habitação tem de ser uma necessidade verdadeira, real, actual, ou pelo menos, iminente, como no caso do emigrante que aguarda a efectivação de denúncia do contrato para poder voltar.”
Palavras semelhantes às de Aragão Seia:
“A necessidade de casa tem, pois, de ser séria e actual, mas sempre posterior à celebração do contrato, podendo também ser futura desde que séria e comprovada.”(o. e loc. também citados).
E também semelhantes às do citado acórdão deste tribunal de 6.7.2004:
“A necessidade de habitação tem que ser real, séria, actual ou futura, não eventual mas iminente, traduzida em razões ponderosas, não se confundindo com uma maior comodidade e deve corresponder a uma intenção séria de no locado fixar residência, devendo ser apreciada objectivamente em função das condições, vida, interesses e carências do senhorio, sob pena de se poder transformar em mero pretexto para obter a desocupação.
Ocorre essa necessidade quando o estado de carência seja objectivamente motivado por um condicionalismo que, segundo a experiência comum, determinaria a generalidade das pessoas que nela se encontrassem a precisar do arrendado para sua habitação.
Para tal efeito, ter casa insuficiente equivale a falta de casa, pelo que a necessidade tanto existe quando se não tem casa alguma como quando se tem uma que se mostra de todo em todo insuficiente.”
Não diferindo substancialmente o que consta do acórdão, também já citado, de 22.6.2005 (revista n.º 2064/04):
“A necessidade só ocorre quando se comprovar um verdadeiro estado de carência motivado por um condicionalismo que, segundo a experiência comum, determinaria a generalidade das pessoas que nele se encontrassem a precisar do arrendado para habitação, devendo portanto ser séria e medida por um critério objectivo, não se podendo confundir com uma simples maior comodidade.”
Por sua vez, em outro acórdão com aquela data de 6.7.2004 (revista n.º 2337/04) entendeu-se que:
“É legítima a pretensão dos autores que pretendem pôr cobro à situação em que se encontram, de viver numa casa que não lhes pertence e na dependência de pais/sogros, ainda que se não haja provado que estes vêm insistindo para que a filha e família abandonem o imóvel.”

XVII – Lendo a lei, ponderando o que acabou de se verter e olhando já para os factos provados, cremos poder cindir, para efeitos de raciocínio:
A situação de habitação presente do senhorio;
O que a habitação no arrendado pode significar, em cotejo com a presente, na perspectiva dos interesses dele.

E cremos dever acolher o que já vem vertido nalguns dos arestos citados: O julgador terá de guiar-se por critérios objectivos. Estão em causa direitos à habitação, constitucionalmente garantidos porque fundamentais (artigo 65.º da Constituição) e seria, de todo por todo, irrazoável que se decidisse a favor de um deles em detrimento do outro com base em subjectivismos do senhorio, como modos de sentir particulares dele.
Temos, assim de “vestir” o autor com trajes próprios do homem de normais sensibilidade e aspiração, ainda que colocado na sua específica posição.

Mais cremos que a adjectivação que se referiu relativamente à necessidade também seja de acolher, embora se possa, com fundamento, discutir se é imprescindível ou se se integra na realidade conceptual, logo à partida, que a lei traçou.


XVIII – Neste modo de raciocinar, atentemos, então nos dois pontos que referimos no início do número anterior.

Se o senhorio tiver uma situação de habitação adequada e não houver previsibilidade de ela se alterar negativamente, é manifesto que não está “necessitado” de outra habitação.
A alínea b) do n.º1 do artigo 71.º do RAU contempla precisamente o caso, mais frequente, de o senhorio ter casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades de habitação própria, caso esse que aqui não cabe atento o que está vertido no ponto 15.º da enumeração factual.
Mas outras hipóteses se poderiam considerar.
Em nenhuma delas, todavia, se poderá integrar o nosso caso.
O autor concluiu, em 21.12.01 uma licenciatura.
Residiu, até 1994, em casa de seus pais;
Passou a residir em Aveiro e, por razões profissionais, regressou a Lisboa;
Passando a habitar a casa dos pais, onde ocupa um quarto.
Pretendendo casar-se e constituir família.

Atingiu o autor uma idade e umas circunstâncias de vida em que a autonomia habitacional é aspiração do comum das pessoas. Para a grande maioria delas, está aqui o ponto de viragem da realidade habitacional, o rompimento com uma dependência que o mesmo tecto sempre implica.
Até mal se compreenderia que uma pessoa que concluiu uma licenciatura e foi admitido como bolseiro, continue a viver num quarto em casa dos pais. Para mais, tendo como escopo de vida casar e constituir família.
A situação habitacional do autor, vista numa perspectiva de normalidade, é inadequada. Consideração idêntica à que fizeram os Professores Galvão Teles e A. Varela perante situações com muita afinidade e que supra se referiram.

XVIII – A desadequação da habitação actual do senhorio não basta, como vimos em XVII.
É que, pode dar-se o caso de ela se verificar, mas o senhorio não necessitar do arrendado por, por exemplo, ir, com carácter de estabilidade e permanência, viver para outro país ou para outra zona.
Contudo, provou-se que o autor foi admitido como bolseiro duma Fundação situada em Lisboa, passando a trabalhar no Museu, Laboratório e Jardim Botânico desta cidade.
Também aqui estamos perante um caso com particulares semelhanças aos exemplificados pelos referidos autores. A situação laboral é uma componente decisiva para alguém viver ou passar a viver em determinado aglomerado, aí tendo, por isso, de encontrar residência.
Decerto que a sua posição laboral pode evoluir. A estabilidade laboral já não é o que era, mas a admissão como bolseiro, com um plano de trabalhos a realizar, permite aquele mínimo de segurança que leva o julgador a tomar posição favorável às suas pretensões.
Nem contra esta construção se poderá argumentar que a actividade laboral se situa em Lisboa e o arrendado na área da comarca de Oeiras. Valem aqui considerações de ordem prática que, claramente, superam as derivadas dos traçados administrativos. Por isso, aliás, a própria alínea b) do n.º1 do artigo 71.º, ainda do RAU, alude a comarcas de Lisboa e Porto e “suas limítrofes”

XIX – Ao arrepio do alegado na contestação, a Relação discorreu sobre o limite ao direito de denúncia constante do artigo 107.º, n.º1 b) do RAU.
Trata-se, no melhor dos entendimentos, de excepção peremptória cujos factos tinham que ser alegados e demonstrados. (6). E esses factos não se resumem à duração do arrendamento, antes exigindo a lei a manutenção do arrendatário no local arrendado (neste sentido, os acórdãos deste Tribunal de 23.5.2002 e de 12.2.2004). Se a lei se reportasse à duração do arrendamento não teria sido usada a expressão que o foi, bastando dizer que o direito de denúncia ali referido não podia ter lugar relativamente a arrendamentos vigentes há 30 ou mais anos.
Ora tal alegação não consta da contestação.

XX – Face ao exposto, concede-se a revista, revogando-se a decisão da Relação e repondo-se a de 1.ª instância.
Custas pelos recorridos.

Lisboa, 25.1.2007

João Bernardo ( Relator)
Duarte Soares
Oliveira Rocha
______________________________
(1) Cfr-se Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 195, Antunes Varela, RLJ, Ano 122, 112 e, entre muitos, os acórdãos deste Tribunal de 16.1.1996, na CJ STJ 1996, 1.º, 44 e de 25.2.1997, no BMJ 464.º, 464.
(2) Lebre de Freitas e Outros, ob. e vol. citados, 670.
(3) Cfr-se, a propósito da nulidade parcial da sentença, Lebre de Freitas e Outros, ob. cit. 3.º, 670.
(4)Que, como os demais que vão ser citados sem menção de inserção, se pode ver em www.dgsi.pt.
(5) Contra, pode ver-se o Ac. de 26.5.1998, Revista n.º 206/98.
(6) Podia aqui abrir-se a discussão sobre se, face ao artigo 496.º do Código de Processo Civil, a própria excepção seria ou não de conhecimento oficioso. Mas tal discussão seria inócua pois, como referem Lebre de Freitas e Outros, ob. cit. 3.º 315, “o conhecimento oficioso da excepção não se confunde com o conhecimento dos factos em que ela se baseia. Estes têm, de acordo com os artigos 264.º, n.º1 e 664.º, de ser alegados pelas partes, ao abrigo do princípio dispositivo, limitando-se o juiz a extrair deles a consequência jurídica própria da excepção.”