Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
904/06.7BSSB.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
BEM IMÓVEL
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
DIREITO A REPARAÇÃO
CULPA
GARANTIA DE BOM FUNCIONAMENTO
RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
Data do Acordão: 04/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
Doutrina: - Antunes Varela, João, “Das Obrigações em Geral”, II Vol., Almedina, 5.ª edição, 1992, págs. 14-15; Parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XII, Tomo IV, pág. 23-35.
- Baptista Lopes, Manuel, “Do Contrato de Compra e Venda no direito civil, comercial e fiscal”, Almedina, 1971, págs. 12-122.
- Baptista Machado, João, “Acordo Negocial e Erro na Venda de Coisas Defeituosas,” BMJ 215 (1972), págs. 22 e 23.
- Brandão Proença, José Carlos, “Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das obrigações”, Coimbra Editora, 2011, págs. 133, 137-138.
- Calvão da Silva, João, “Compra e Venda de Coisas Defeituosas – Conformidade e Segurança”, Almedina, 4.ª edição, págs. 4, 56, 80-86.
- Carneiro da Frada, Manuel, “Erro e incumprimento na não-conformidade da coisa com o interesse do comprador”, em O Direito, ano 121 (1989), 1. 3, pág. 463.
-Galvão Teles, Inocêncio, “Contratos Civis - Exposição de Motivos”, RFDUL, ano IX, 1953, pág. 161.
- Menezes Cordeiro, António. Albuquerque, Pedro e Carneiro da Frada, Manuel, “Direito das Obrigações – Contratos em Especial”, III Vol., AAFDL, 1990, págs. 9-85.
- Paes de Vasconcelos, Pedro, in “Contratos Atípicos”, Almedina, Coimbra, 2009, 2.ª edição, pág. 166.
- Pereira Coelho, “Obrigações”, Sumários das Lições ao curso de 1966-1967.
- Pessoa Jorge, “Lições de Direito das Obrigações”.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. II, Almedina, pág. 205.
- Romano Martinez, Pedro, “Cumprimento Defeituoso. Em especial na Compra e Venda e na Empreitada”, Colecção Teses, Almedina, 2001, págs. 129-157, 280-281, 293-294; “Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos – Compra e venda, Locação, Empreitada”, Almedina, 2000, l, págs. 21-60, 122-123, 126.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 247.º, 342.º, 406.º, N.º1, 550.º, 874.º, 879.º, 908.º, 909.º, 911.º, 913.º, 914.º, 915.º, 1218.º, 1221.º, 1222.º, 1223.º.
DL N.º 68/2004, DE 25-3: - ARTIGOS 7.º, 9.º.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 03-04-2010;
-DE 04-05-2010.
Sumário :
I - O vendedor que, num contrato de compra e venda de um imóvel para habitação, intervém na qualidade de promotor imobiliário ou de primitivo adquirente a quem fora fornecida a “ficha técnica da habitação”, tem a incumbência de a transmitir ao adquirente (art. 9.º do DL n.º 68/2004, de 25-03).

II - Estando o vendedor, que não tenha agido na qualidade de promotor, mas como consumidor, obrigado a fornecer a “ficha técnica da habitação”, não está compelido a garantir a conformidade da coisa com as regras de qualidade e perfeição técnica que são exigidas ao construtor ou ao promotor da venda.

III - O vendedor/consumidor não está adstrito a uma obrigação de garantia originária, respondendo pelos defeitos da coisa nos termos do art. 914.º do CC.

IV - Nestes casos, a obrigação de reparação dos defeitos só surge se se provar que, no momento em que transmitiu a propriedade da coisa, sabia ou não podia desconhecer, com um mínimo de razoabilidade, que a mesma era portadora de defeito, pelo que, demonstrando o vendedor/consumidor que desconhecia, sem culpa, os defeitos de que a coisa era padecente, queda desonerado da responsabilidade de reparação da coisa (art. 914.º, n.º 1, 2.ª parte, do CC).

V - O vendedor de um imóvel para habitação que, na “ficha técnica da habitação”, assume a responsabilidade pela garantia de boa construção e funcionamento do imóvel vendido, tem a obrigação de prover à reparação dos defeitos detectados e de proporcionar os meios para que o comprador possa desfrutar de uma cómoda e eficiente utilização do imóvel adquirido.

VI - A garantia de bom funcionamento actua de forma a inculcar um dever objectivo de responsabilização do vendedor da coisa garantida; ao garantir o bom funcionamento e assegurar a qualidade da coisa vendida, o garante responde, objectivamente, pelos defeitos que venham a emergir de um normal e corrente funcionamento da coisa.

VII - A responsabilidade só será afastada se o garante demonstrar e provar que o mau funcionamento ou a existência dos defeitos denunciados se ficaram a dever ao mau uso feito da coisa vendida, de acção dolosa ou meramente negligente do comprador sobre a coisa, de modo a propinar uma deterioração da coisa, ou de qualquer acção ou omissão voluntária e culposa actuada sobre a coisa, que a desvirtua e incapacita para as suas funções normais e fins úteis.

VIII - Assente que o comprador denunciou, atempadamente, os defeitos e o fez perante o vendedor/garante da coisa vendida, não tendo este afastado a responsabilidade que sobre si fez recair de garantir a idoneidade e boa qualidade do imóvel vendido, incumbe-lhe reparar os defeitos denunciados e propiciar os meios para que o comprador possa fruir de forma adequada, tendo em vista o fim a que a mesma se destina, a coisa vendida.
Decisão Texto Integral:

I. - RELATÓRIO.

Irresignados com o julgado na apelação interposta pelo demandante, CC, que na respectiva procedência, revogou a decisão proferida na 1.ª instância que havia julgado improcedentes os pedidos formulados pelo demandante, recorrem, de revista, os demandados, AAe BB, havendo a considerar, os sequentes      

I.1. – Antecedentes Processuais.

Mediante escritura pública, celebrada no 3º Cartório Notarial de Lisboa, no dia 19 de Novembro de 2004, o Autor, CC, declarou comprar e os RR., AAe mulher BB, declararam vender, o prédio urbano denominado lote …, sito em ..., composto de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, na freguesia de S... (C...), concelho de S..., descrito na Conservatória de Registo Predial de S..., sob a ficha n.º ….    

    Após a data referida no parágrafo anterior, o A. pretendeu contratar o fornecimento de energia eléctrica, tendo sido informado que seria necessária a apresentação de um certificado da DD, a comprovar que a instalação eléctrica estava devidamente executada e de acordo com as normas legais. Após insistências junto do Réu marido este não tinha entregue até ao momento da propositura da acção o referido certificado.

Do mesmo passo a moradia apresenta defeitos de construção, que discrimina de artigos 14.º a 30.º, tendo o Autor solicitado, através de carta endereçada pelo mandatário do A., a sua reparação, não obteve satisfação.

Estas situações têm provocado incómodos e mal estar pessoal, pela impossibilidade de habitação da moradia, por estar cerceado de convidar os amigos e poder ver cortada a energia eléctrica, que se traduzem em danos não patrimoniais ressarcíveis.

Pede que os réus sejam condenados a reparar os defeitos no prazo de 30 dias após o trânsito desta sentença, sob pena de o autor contratar a reparação por terceiros e de os réus suportarem esses custos; a entregarem no mesmo prazo o certificado que permita a celebração do contrato de fornecimento de energia eléctrica, sob pena de pagarem os custos que o autor tenha de suportar para esse efeito; e a pagarem uma indemnização de € 15.000,00, acrescida de juros de mora desde a citação.

Os réus contestaram alegando, em resumo, que a moradia não foi construída por eles, que desconheciam a existência de defeitos, que tentaram em vão que a construtora os resolvesse e que os defeitos poderão ter sido casados pela construção, pelo autor, de uma piscina que não estava prevista no projecto.

Após a realização da audiência de julgamento, foi proferida decisão quanto à matéria de facto que havia sido fixada como controvertida, tendo na sentença prolatada, o tribunal de 1.ª instância julgado a acção improcedente absolvendo os RR dos pedidos, por considerar que os RR. não tinham sido os construtores e desconheciam, sem culpa, os defeitos  de que a moradia era portadora.

Em contramão com o decidido, foi interposto recurso de apelação pelo Autor, tendo, na respectiva procedência, sido decidido (sic): 

“Condenam-se os RR AAe BB a procederem às obras necessárias com vista à reparação dos defeitos enumerados no nº 2 da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida.

Condenam-se os mesmos Réus a entregarem ao A, no prazo de 30 dias, o certificado da DD sob pena de, não o fazendo, serem obrigados a pagar ao A todos os gastos que este tenha de realizar para obter tal certificado.

Absolvem-se os Réus do pedido de indemnização por danos morais.”

E do assim decidido que trazem os demandados a presente revista para o que alinham o sequente,

I.2. - Quadro Conclusivo.

“1.º O acórdão da Relação baseou a sua convicção na Ficha Técnica da Habitação, para assim condenar os Recorrentes na reparação dos defeitos apresentados no imóvel.

2.º A ficha técnica foi elaborada e assinada pela Técnico Responsável da Obra, conforme melhor se alcança pela análise de todo o documento.

3.º Não foi lavrada nem assinada por nenhum dos Recorrentes.

4.º Não houve prestação de garantia no sentido explanado no artigo 921.º do C.C.

5.º Foi o Técnico Responsável da Obra, que lavrou na ficha técnica da habitação a menção descrita no ponto 29.

6.º Pois, o imóvel destinava-se a habitação própria e permanente dos Recorrentes e não à venda.

7.0 Não houve, assim, qualquer declaração dos RR. e dirigida ao A., no sentido de prestar garantia do imóvel.

8.º E sempre se dirá que, tal menção pode ser interpretada no sentido de encaminhar as eventuais reclamações para quem de direito, in casu, o construtor da moradia em causa.

9.º A menção inscrita na ficha técnica da habitação não é, nem pode ser, interpretada como garantia nos termos e para os efeitos descritos no artigo 921.º CC.

10.º Os Recorrentes, sempre, agiram de boa fé e sem culpa.

11.º A questão latente é a da responsabilidade decorrente de venda de coisa defeituosa, prevista nos artigos 913.0 e seguintes do Código Civil, a qual não se verifica in casu.

12.º A Decisão recorrida condena ainda os Recorrentes a entregar o certificado da DD.

13.º Os Recorrentes não dispõem de meios para obter tal documento, uma vez que, a intervenção da firma construtora é essencial para a obtenção do mesmo.

14.º Sendo certo que, os Recorrentes diligenciaram nesse sentido conforme resulta dos factos provados.

15.º Sempre se dirá que tal parte da decisão se encontra prejudicada uma vez que o A. já obteve tal certificação conforme documento que juntou em sede de audiência de discussão e julgamento.”

Repontou o demandante/recorrido, tendo concluído com o epítome conclusivo que a seguir queda extractado.  

“1. A norma do artigo 921.º do CC não exige forma especial para constituição de garantia de bom funcionamento da coisa vendida;

2. Mais, a ficha técnica dos autos preenche os requisitos do Decreto-Lei n.º 68/2004, de 25 de Março;

3. Neste sentido, veja-se que o R. marido, na qualidade de promotor imobiliário, para efeitos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 68/2004, de 25 de Março, entregou nos serviços da Câmara Municipal de S... a Ficha Técnica da Habitação vendida, na qual se encontram descritas as características técnicas e funcionais da mesma, em cumprimento do disposto no artigo 4.º do mesmo diploma;

4. Carecem, assim, os Recorrentes de razoabilidade quando se desresponsabiliza pelos elementos constantes da ficha técnica de habitação, já que foi o próprio Recorrente marido quem procedeu à entrega da aludida ficha técnica nos serviços camarários, através de requerimento dirigido ao Presidente da Câmara Municipal de S..., por si assinado, datado de 18 de Outubro de 2004, onde se lê que" AA (. . .) vem solicitar (. . .) a junção de ficha técnica de habitação ao processo de obras … ", tal como se extrai do doc. de fls. ... , junto aos autos pelo A., durante a discussão da causa, através do requerimento de fls. ... , datado de 29 de Junho de 2009;

5. Em consequência, afigura-se irrelevante a afirmação de que a elaboração e assinatura da ficha técnica tenham sido concretizadas pelo Técnico Responsável da Obra;

6. Sendo que nenhuma prova foi feita pelos Recorrentes quanto a este facto nem o mesmo foi invocado quando foi junto aos autos a ficha técnica de habitação;

7. Nos termos do n.º 6, alínea a), do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 68/2004, o documento em causa contém expressamente o modo como o accionamento da garantia deveria ser operado em caso de detecção de defeitos quando dispõe no seu ponto n.º 29 que " em caso de defeitos: Contactar Directamente o Sr. AA ";

8. Pelo que, os RR. garantiram o bom funcionamento da coisa vendida por um prazo de 5 anos, independentemente de culpa, através da menção inserta no item 29 da Ficha Técnica da Habitação;

9. De todo o modo, ainda que assim não se entendesse, considerando-se não verificada qualquer garantia do bom funcionamento da coisa vendida, sempre se dirá que os Recorrentes não elidiram a sua presunção de culpa;

10. Com efeito, face à dimensão dos defeitos verificados, e tendo-se em conta o teor descritivo da Ficha Técnica da Habitação – entregue pelo R. marido, na qualidade de promotor imobiliário, nos serviços da Câmara Municipal de S... –, que contém a descrição das características técnicas e funcionais da mesma, os RR. poderiam ou deveriam ter conhecimento da possibilidade da verificação dos vícios;

11. Veja-se a este respeito que a Ficha Técnica da Habitação promotor imobiliário pelas características da habitação;

12. Logo, os Recorrentes, enquanto promotores imobiliários, saberiam, ou deveriam saber, de antemão, as técnicas e os materiais de construção utilizados na edificação da moradia dos autos;

13. Assim, atendendo-se ao facto de os vícios verificados terem resultado de omissão de iniciativa para obter o certificado da DD ou de instalação em condições técnicas erradas que o impediram de ser emitido, sendo que os demais vícios resultaram de uma construção deficiente ou com materiais errados, conclui-se que, face à natureza dos vícios, os Recorrentes, enquanto promotores imobiliários da moradia dos autos, poderiam e/ou deveriam ter conhecimento de que os mesmos poderiam ocorrer tal como ocorreram;

14. Pelo que, no caso de se entender não prestada qualquer garantia do bom funcionamento da coisa vendida, sempre deverá considerar-se que o desconhecimento dos vícios por parte dos RR. é culposo, nomeadamente a título de negligência;

15. Ademais, o certificado DD foi, de facto, obtido a expensas do A., uma vez que o mesmo não conseguiu contratar com a EDP o fornecimento de electricidade enquanto não obtivesse o referido certificado e a EDP por falta de certificação da instalação cortou o fornecimento de electricidade ao imóvel;

16. Pelo exposto, face aos gastos em que incorreu o Recorrido para obtenção do certificado DD, e atendendo-se ao dispositivo do douto Acórdão, será, assim, deduzido incidente de liquidação de sentença após o seu trânsito em julgado, para condenação dos RR., ora Recorrentes, no pagamento das quantias despendidas pelo A. para obtenção do sobredito certificado;

17. Ainda, avulta que os Recorrentes afirmam nas suas alegações que a Ficha Técnica da Habitação foi preenchida e assinada à sua revelia, sem o seu conhecimento, ignorando os mesmos totalmente o seu conteúdo;

18. Contudo, não podia o Recorrente marido ignorar que foi o próprio quem procedeu à entrega da aludida ficha técnica nos serviços camarários, através de requerimento dirigido ao Presidente da Câmara Municipal de S..., por si assinado, datado de 18 de Outubro de 2004, onde se lê que " AA (...) vem solicitar (...) a junção de ficha técnica de habitação ao processo de obras 568/00 ", tal como se extrai do doc. de fls. ... , junto aos autos pelo A., durante a discussão da causa, através do requerimento de fls. ... , datado de 29 de Junho de 2009;

19. Pelo que, os Recorrentes na sua alegação faltam à verdade, sendo manifesta a desonestidade processual dos RR. no seu recurso de Revista, verificando-se, com tal alegação dos Recorrentes, uma impolida violação do dever de probidade processual imposto pelo artigo 266.o-A do CPC;

20. Em suma, os RR. esgrimiram conclusões cuja falta de fundamento e patente desonestidade eram do seu perfeito conhecimento e fizeram-no com consciência das implicações processuais, pelo que se impõe a sua condenação como litigantes de má fé em multa a fixar por este Venerando Tribunal e em indemnização a favor do Recorrido em valor não inferior a € 922,50, valor que o mesmo teve que custear com o pagamento dos honorários devidos ao seu mandatário com a elaboração das presentes contra-alegações de recurso, tudo conforme documento que se junta como doc. 1 e se dá como reproduzido para todos os efeitos legais;

21. Em síntese, e nos termos supra expostos, se tem por preenchida a responsabilidade dos RR. a título objectivo e subjectivo pelos defeitos verificados;

22. Termos, pois, em que, por tudo o exposto, deverá julgar-se improcedente o recurso, confirmando-se o douto Acórdão recorrido.

I.3. - QUESTÕES A RESOLVER.

Contrato de compra e venda; Cumprimento defeituoso; Responsabilidade pela eliminação dos defeitos (vendedor/mediador ou construtor do imóvel).

II. - FUNDAMENTAÇÃO.

II.A. – DE FACTO.

Para a decisão a proferir vem consolidada das instâncias a factualidade que a seguir queda extractada.

“A) Em 19 de Novembro de 2004 o autor e os réus outorgaram escritura pública denominada "compra e venda e mútuo com hipoteca", na qual os segundos declararam vender ao primeiro, e o primeiro declarou aceitar, o prédio urbano denominado lote 10, sito em ..., composto de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, na freguesia de S... (C...), concelho de S..., descrito na Conservatória do Registo Predial de S..., sob a ficha nº … da mesma freguesia.

B) Depois de 19 de Novembro de 2004 o autor constatou existirem as seguintes deficiências no imóvel:

- Na zona de estacionamento da viatura, uma pendente desnivelada para a zona de drenagem, onde as águas da chuva se acumulam;

- No logradouro, fendilhações nas zonas de remate entre os panos de alvenaria e a estrutura, em consequência de assentamentos da moradia;

- Fundações insuficientes;

- Várias cantarias quebradas, em consequência de deficiente comportamento estrutural;

- Fachadas com rebocos fissurados e tintas empoladas, com permeabilização, em consequência de utilização de um excessivo teor de cimento da argamassa de reboco e aplicação incorrecta, originando problemas de retracção e rigidez excessivos;

- Falta de isolamento térmico da fachada;

- Infiltrações de águas, empolamentos de tintas, fungos, degradação de rebocos e outros materiais de revestimento, em consequência de deficiente impermeabilização;

- Degradação dos aros em madeiras, em consequência da deficiente impermeabilização do massame;

- Infiltrações de água no soalho flutuante do piso inferior;

- Rodapés descolados em todas as divisões;

- Infiltrações de água no tecto do quarto do piso térreo, em consequência de deficientes remates na impermeabilização da varanda confinante;

- Humidades e fungos nas divisões do piso superior, em consequência de deficiente impermeabilização da varanda confinante;

- Humidades, fungos e estuques rachados em consequência da infiltração de água;

- Azulejos rachados na cozinha e na casa de banho;

- Degrau partido na escada de acesso aio primeiro andar;

- Portas e portadas que não trancam;

- Porta de acesso à varanda do quarto que não tranca;

- Água na cozinha quando chove, em consequência do mau isolamento da cozinha;

C) Após 19 de Novembro de 2004, o réu não entregou ao autor o certificado da DD relativo à instalação eléctrica do imóvel e o autor não conseguiu contratar com a EDP o fornecimento de electricidade ao mesmo por falta do referido certificado.

D) No dia 19 de Dezembro de 2005 o autor enviou carta aos réus, por eles recebida, a relatar-lhe os "defeitos de construção" do imóvel a solicitar-lhes a reparação dos mesmos e a entrega do certificado da DD no prazo de 10 dias.

E) As humidades e infiltrações agravaram-se nos primeiros meses de 2006, com as chuvas, degradando as condições de habitação.

F) O autor inibe-se de convidar os amigos para se deslocarem ao imóvel.

G) Sofre com o risco de, em consequência de não poder celebrar contrato de fornecimento de energia eléctrica, a EDP poder a todo o tempo cortar esse fornecimento.

H) O autor sente-se ludibriado e enganado;

I) Adquiriu o imóvel com grande esforço financeiro e suporta todos os meses as prestações bancárias devidas pelos empréstimos contraídos para aquisição da moradia e verifica que a utilização que está a fazer da mesma não é proporcional ao valor da mensalidade paga.

J) Os réus desconheciam as deficiências descritas e logo que tomaram conhecimento da necessidade do certificado da DD contactaram a empresa construtora EE, Lda." para que o fornecesse, o que esta não fez.

K) O réu comprometeu-se perante o autor a pedir o certificado da DD ao electricista e a entregá-lo quando o tivesse.

L) Após 19 de Novembro de 2004 o autor procedeu à construção de uma piscina no imóvel.”

II.B. – DE DIREITO.

II.B.1. – Contrato de compra e venda; Cumprimento defeituoso; Responsabilidade na eliminação dos defeitos.

A dissensão dos recorrentes relativamente ao acórdão revidendo resulta do facto de este, após os ter isentado de responsabilidade, por ausência de culpa relativamente à existência de defeitos da coisa vendida, os ter condenado por “[…]existindo garantia de bom funcionamento, o vendedor responde objectivamente, independentemente de culpa da sua parte”. [[1]]  

Não vem posto em crise pelas instâncias a tipicidade ou a qualificação jurídica do contrato [[2]] em que foram intervenientes demandantes e demandados. Na verdade, o demandante, por escritura pública datada de 19 de Novembro de 2004, declarou comprar o imóvel identificado na mencionada escritura o qual, por declaração de vontade expressa, no mesmo momento temporal, os demandados declararam querer vender.

Constitui-se e este acordo de vontades como um típico contrato de compra e venda subsumível ao suposto de facto contido no artigo 874.º do Código Civil, segundo o qual: “ compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.”  

Nos termos do artigo 879.º do mesmo livro de leis o contrato de compra e venda tem como efeitos essenciais: a) a transmissão da propriedade da coisa...; b) a obrigação de entregar a coisa; c) a obrigação de pagar o preço. [[3]]

Concitam-se neste tipo de contrato dois tipos de efeitos: um de natureza real, traduzido na transferência da titularidade de uma coisa ou direito para outrem – cfr. art. 879.º, alínea a); e um outro de natureza puramente obrigacional, que se desdobra em duas vertentes: 1) do lado do vendedor a obrigação de entrega da coisa (vendida) – cfr. artigo 879.º, alínea b); e 2) para o comprador o dever de proceder ao pagamento do correlativo preço (obrigação pecuniária) – cfr. artigos. 879.º, alínea c) e 550.º do Código Civil.

O devedor cumpre a obrigação quando realiza, pontualmente, a prestação a que está vinculado (art. 406.º, n.º 1 do Código Civil), o que significa, que «o cumprimento deve coincidir, ponto por ponto, em toda a linha, com a prestação a que o devedor se encontra adstrito». [[4]]

“Surgindo da obrigação um dever de conduta especifico, uma prestação de conteúdo (dar, entregar, fazer, não fazer) e significado (dever principal, secundário e lateral) multiformes., esse(s) dever(es) pode(m) não ser cumprido(s), em regra, por vontade do devedor e, Por vezes sem culpa do obrigado, num circunstancialismo que pode estar relacionado com a falat de cooperação de credor ou com um comportamento creditório ainda mais gravoso.” [[5]]   

O incumprimento reparte-se em quatro estratos: artigos 790.º a 797.º e 813.º a 816.º - impossibilidade de cumprimento e mora não imputáveis ao devedor - artigos 798.º a 808.º - falta de cumprimento e mora imputáveis ao devedor - artigos 809.º a 812.º - fixação contratual dos direitos do credor - e 817.º a 836.º - realização coactiva da prestação. 

Como categoria heterogénea – entre a mora e o incumprimento definitivo [[6]] – a doutrina tem procurado definir ou desenhar os contornos da figura do cumprimento defeituoso (chamada na doutrina alemã “violação contratual positiva”), afirmando que “na execução defeituosa o devedor realiza a totalidade da prestação (ou parte dela) mas cumpre mal, sem ser nas condições devidas,” valorando a sua autonomia para os “danos que credor não teria sofrido se o devedor de todo não tivesse cumprido a obrigação”ou exigindo certos pressupostos, a saber: realização da prestação contra a pontualidade, aceitação da prestação pelo credor, não conhecendo este o vicio ou, em caso de conhecimento, emitindo reservas, relevância do vicio e verificação de danos específicos.” [[7]]                     

“Em sentido amplo, o cumprimento defeituoso corresponde a uma desconformidade entre a prestação devida e a que foi realizada.

O cumprimento defeituoso depende do preenchimento de quatro condições. A saber: a primeira, ter o devedor realizado a prestação violando o princípio; segunda, ter o credor procedido à sua aceitação por desconhecer a desconformidade, ou conhecendo-a, apontando reserva; terceira, mostrar-se o defeito relevante; quarta, sobrevirem danos típicos.” [[8]]

Ainda que sem nos alongarmos demasiado quanto à equivocidade que se foi construindo na doutrina nacional quanto à figura do cumprimento defeituoso, sempre diremos, na esteira do autor atrás citado, que não se nos afigura correcta qualificação/equiparação que é feita entre esta figura e o erro, nas sua modalidade de erro vicio (falsa representação da realidade (diferença entre a vontade real e a vontade conjectural), ou ainda da culpa in contrahendo. [[9]/[10]]  

Na verdade, ao contrário do erro cuja principal consequência é a anulabilidade (artigo 247.º do Código Civil), o cumprimento defeituoso permite a resolução do, a exigência das pretensões de cumprimento, de redução do preço e de indemnização pelos danos.  

A regulamentação do regime de cumprimento e incumprimento das obrigações não contempla, especificamente, a figura do cumprimento defeituoso de uma obrigação – cfr. artigos 762.º a 816.º do Código Civil – sendo esta figura da violação do dever de prestar de forma pontual e em conformidade com o núcleo essencial do contratualizado, disciplinada especificamente a propósito da violação da prestação inadequada e incorrecta de determinados contratos, notadamente nos contratos típicos ou nominados de compra e venda e de empreitada – cfr. artigos 913.º e1218.º do Código Civil - fazendo a lei derivar desta patologia de cumprimento de um contrato determinadas consequências, como sejam  o direito conferido ao  credor de exigir a reparação ou substituição da coisa - cfr. artigos 914.º e 1221.º do Código Civil; o direito a indemnização decorrente dos prejuízos sofridos – cfr. artigos 909.º e 1223.º do mesmo livro de leis; e o direito à redução da contraprestação ou à resolução do contrato – cfr. artigos 911.º e 1222.º igualmente do Código Civil. [[11]/[12]]

No entanto, a doutrina, não deixa de estabelecer ou figurar a diferença entre cumprimento defeituoso de uma obrigação e venda defeituosa. [[13]/[14]]

Estatui o artigo 913º do Código Civil que: “1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes. 2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria”.

No comentário adrede referem os Professores Pires de Lima e Antunes: “[...] O artigo 913.º cria um regime especial cuja real natureza constitui um dos temas mais debatidos na doutrina germânica [...] para as quatro categorias de vícios que nele são destacadas: a) Vício que desvalorize a coisa; b) Vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada; c) Falta das qualidades asseguradas pelo vendedor; d) Falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.

Equiparando, no seu tratamento, os vícios às faltas de qualidade da coisa e integrando todas as coisas por uns e outras afectadas na categoria genérica das coisas defeituosas, a lei evitou as dúvidas que, na doutrina italiana por exemplo, se têm suscitado sobre o critério de distinção entre um e outro grupo de casos.

Como disposição interpretativa, manda o nº 2 atender, para a determinação do fim da coisa vendida, à função normal das coisas da mesma categoria [...]”. [[15]]

Do mesmo passo refere Calvão e Silva que “[o] vício ou não-conformidade reside na discrepância entre a qualidade real ou existencial e a qualidade devida ex contractu...” e, por isso, “a inexactidão qualitativa da prestação respeita à fase executiva do negócio e será um caso de incumprimento parcial ou cumprimento imperfeito: o vendedor não cumpre exactamente a prestação devida ao comprador segundo a interpretação objectiva do contrato (...). [[16]]

Na hermenêutica do segmento normativo contido no n.º 2 do preceito citado retira-se a intenção do legislador em privilegiar um critério funcional ou de destinação ajustada um fim utilitário, idóneo e típico da coisa vendida. [[17]]

Uma coisa está ervada de defeito, no apontado sentido, quando não se consegue obter dela o efeito ou a utilidade finalística que lhe são atribuídas pelo sentido experiencial em que a utilidade genérica da coisa se inere. A obtenção do efeito prático normal e pretendido, pode não ser total, mas tem de assumir uma relevância que torne a coisa inapta ou inábil para o fim que lhe está destinado. Esta aptidão da coisa deve ser aferida de forma objectiva e de acordo com padrões de normalidade, apreciada na perspectiva que o utilizador lhe pretendia conferir, segundo os padrões de normalidade e experiência comuns.

O cumprimento defeituoso pode, no entanto, resultar de específicas e concretas condições apostas no contrato celebrado entre as partes. Assim tendo as partes contraentes estipulado as características que devem estar reunidas na coisa a transmitir ou a fazer, o desvio, no cumprimento, das especificas e concretas qualidades convencionadas, pode constituir, pela sua relevância na economia e equilíbrio da relação contratual, um cumprimento defeituoso. Incluem-se nesta categoria as condições, características e qualidades que foram anunciadas e que se hajam revelado idóneas e determinantes para a realização do contrato, nos termos em que as partes o quiseram celebrar, v. g. declarações negociais tácitas e que não devam estar estado ausentes do texto contratual.

Não constando do contrato uma finalidade específica, como se deixou dito, deverá atender-se e estar presente, na hora de valoração do comportamento e da conduta de cada um dos contraentes, a função típica, usual e normal conferida à coisa. Deste modo, quer o valor normal quer o uso comum ou ordinário devem ser aferidos e perspectivados tendo como padrão e paradigma com o que a utilidade típica e corrente conferem à coisa objecto do negócio contratualizado, maxime o fim económico e social, ou outro especificamente querido e convencionado, adstrito ao bem transaccionado,

A detecção e denúncia da verificação e existência de uma situação de cumprimento defeituoso, consubstanciada num desvio ao aos cânones estabelecidos e convencionados no negócio jurídico, constitui a causa donde emerge a faculdade/direito do lesado pelo cumprimento defeituoso pelo que, pretendendo o accionamento da respectiva pretensão, em juízo, deverá, nos termos do artigo 342.º do Código Civil, invocar os factos (concretos e específicos) donde decorre o direito para que tenciona obter a respectiva tutela jurídica. Tratando-se de defeito da coisa objecto da prestação quem a recebeu deverá provar a existência de um desvio ao que foi convencionado e acordado, do mesmo passo que lhe está cometido o dever de demonstrar que o defeito detectado se revela de tal modo gravoso e decisivo que, pela relevância que assume na utilização (ordinária e normal) da coisa é susceptível de afectar o fim que lhe estava destinado pelo uso normal que lha cabia. 

Do mesmo passo ao vendedor caberá demonstrar que os defeitos, originários ou provindos de uma deficiente execução, lhe são imputáveis ou que houve concurso de terceiros ou do próprio credor na produção dos efeitos que determinaram o desvalor e a inutilidade (ou utilidade relativa) da coisa. [[18]] Naturalmente neste feixe de pendor probatório caberá ao devedor provar que o desvalor ou a carência de aptidão utilitária da coisa não a descaracteriza ao ponto de a tornar incapaz de servir o fim previamente destinado ou, inclusive, que o defeito denunciado era aparente, visível e patente no momento em que a coisa foi entregue e não obstante o comprador a aceitou, sem reservas.  

Para além de causas imputáveis ao devedor ou ao credor, que podem determinar o afastamento da responsabilidade do obrigado á prestação devida, o vendedor pode ausentar-se de responsabilidade, decorrente do cumprimento defeituoso, se vier a fazer a prova de que ocorreram factores e causas exteriores ao escorreito cumprimento, v. g. um cumprimento isento e deserto de desconformidades e distorções tanto quanto ao convencionado como com o uso normal e corrente do comércio corrente, que determinaram a deterioração ou perversão do estado de cumprimento ou da coisa objecto do contrato - cfr. artigos 914.º e 915º do Código Civil. Neste caso o vendedor desonera-se da responsabilidade consistente em indemnizar, reduzir, reparar ou substituir a coisa defeituosa, por ausência de culpa na produção do evento causante do vicio ou da falta de qualidade de que a coisa, eventualmente, seja padecente.

Recentrando-nos no caso sob apreciação, temos que:

- O vendedor do imóvel agiu na qualidade de vendedor de coisa adquirida a terceiro – construtor;

- Os réus desconheciam a existência das deficiências apontada na carta que o Autor lhes enviou bem como a necessidade de um certificado da DD, tendo-se comprometido a obtê-los junto da empresa construtora ou da entidade certificada (electricista) para o efeito.

O acórdão revidendo arranca da pressuposto que, embora desconhecendo os réus a existência de defeitos da coisa vendida, e portanto quando efectivaram a venda estavam convencidos que a coisa vendida se encontrava em perfeitas condições e apta a servir os fins a que se destinava, a habitação do autor, o facto é que existia um certificado de garantia prestado pelos réus junto da Câmara Municipal de S..., mediante o qual eles se comprometiam a garantir a qualidade e o funcionamento da coisa vendida. [[19]]

Da ficha técnica certificada pela Câmara municipal de S... – cfr. fls. 145 a 156 – consta – cfr. fls. 146 – que o demandado, AA, agiu na qualidade de promotor imobiliário, tendo a fls. 152 indicado como garante da habitação, o aqui demandado, AA.

Tendo o demandado agido como promotor imobiliário, haverá que determinar qual a situação de um promotor perante a coisa vendida. 

Refere o Professor Romano Martinez que: “Com respeito à relação existente entre estes dois contratos (compra e venda e empreitada) é de mencionar os problemas suscitados com os contratos de compra e venda de edifícios (andares e moradias) em que o vendedor é um promotor imobiliário (sublinhado nosso). Considera-se promotor imobiliário, aquele que constrói por conta própria mediante contrato de empreitada, o prédio e promove a sua venda, normalmente andares, antes ou depois da respectiva construção.

A recente jurisprudência espanhola, italiana e alemã com o apoio da doutrina, tem considerado que, a tais contratos de transferência de propriedade são de aplicar as regras da empreitada.

(…) Mas, mesmo quando a obra é vendida depois de terminada, a solução mais justa consiste em aplicar as regras da empreitada. (…) Assim será de admitir a existência de uma lacuna no contrato de compra e venda, pois não está prevista solução para o caso de venda de edifícios e outros imóveis destinados a longa duração, construídos ou reparados pelo vendedor, e a aplicação das regras gerais leva a resultados injustos. Perante a lacuna da lei, deverá ter-se em conta o disposto no contrato de empreitada (art. 1225.º), em razão da similitude existente entre as duas situações. Justifica-se o recurso à analogia, porque, no caso omisso, procedem as razões que estão na base da regulamentação estabelecida no artigo 1225.º (art. 10.º, n.º 2).” [[20]]

O Decreto-Lei n.º 68/2004, de 25 de Março, pretendeu criar, como refere no respectivo preambulo, “[…] um conjunto de obrigações a cargo de quantos se dediquem, profissionalmente, à actividade de construção de prédios urbanos habitacionais para comercialização”, “[…] importando referir a obrigação de elaboração e disponibilização aos consumidores adquirentes de  um documento descritivo das principais características técnicas e funcionais da habitação, características estas que se reportam ao momento de conclusão das obras de construção, impondo a lei sanções para a não apresentação da denominada “ficha técnica da habitação”, como seja o caso de não celebração da escritura pelo Notário – cfr. artigo 9.º do citado diploma legal. “Esta regra, destinada aos contratos celebrados entre profissionais e consumidores, aplica-se também aos contratos celebrados entre consumidores, caso o prédio urbano objecto de transmissão já possua ficha técnica de habitação.”     

Refere, especialmente, o ponto 6 do artigo 7.º do citado Decreto-lei que: ”A ficha técnica da habitação deve ainda conter informação sobre: a) garantia da habitação, bem como o seu modo de accionamento em caso de detecção de defeitos.”  

Do documento junto aquando da altura da audiência de discussão e julgamento – cfr. fls. 145 a 156 - constata-se, pela documentação entretanto junta, na audiência de discussão e julgamento, a existência da qualidade em que o sujeito vendedor, demandado AA, interveio no contrato de compra e venda. Na verdade, o demandado interveio na qualidade de promotor imobiliário ou pelo menos na qualidade de primitivo adquirente a quem tinha sido fornecida a “ficha técnica da habitação” e que ele tinha a incumbência de transmitir para o adquirente – cfr. artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 68/2004, de 25 de Março.

Estando o vendedor, que não tenha agido na qualidade de promotor, obrigado a fornecer a “ficha técnica da habitação”, não está, compelido a garantir a conformidade da coisa. Neste caso, isto é, em que o vendedor do prédio ou imóvel actua com consumidor, apenas lhe está cometida a obrigação de “transmitir” a ficha técnica da habitação ao novo vendedor. Já não lhe estará cometido o dever ou a obrigação de “garantir” a conformidade da coisa com as regras de qualidade e perfeição técnica que é exigida ao construtor ou ao promotor da venda. O vendedor consumidor não está adstrita a uma obrigação de garantia originária, respondendo pelos defeitos da coisa nos termos do artigo 914.º do Código Civil. Vale por dizer que, nestes casos, a obrigação de reparação dos defeitos só surge se se provar que no momento em que transmitiu a propriedade da coisa sabia, ou não podia desconhecer, com um mínimo de razoabilidade, que a mesma era portadora de defeito. Demonstrando o vendedor/consumidor que desconhecia, sem culpa, os defeitos de que a coisa era padecente, queda desonerado da responsabilidade de reparação da coisa – cfr. segunda parte do n.º 1 do artigo 914.º do Código Civil.        

No caso em apreço, consta da “ficha técnica da habitação” apresentada pelo demandado na Câmara Municipal de S... que a garantia da habitação seria dada pelo prazo de cinco (5) anos e que para a denúncia dos defeitos devia ser contactado “[…] directamente o Sr. AA”.

A garantia edilícia, estabelecida no regime dos contratos de compra e venda empreitada, por exemplo, desencadeia-se, segundo o regime estabelecido no Código Civil, considerando as duas fases em que se pode desdobrar a relação negocial: uma primeira, a denominada fase estipulativa (contemporânea da formação da vontade negocial, em que o comprador adquire a coisa na errónea convicção de que seja isenta de defeitos), e neste caso, ocorrendo erro, a lei confere ao comprador o direito de pedir a anulação do contrato, por erro ou dolo, para o que terá que provar a essencialidade do erro e a cognoscibilidade, por parte do devedor, da essencialidade do elemento essencial sobre que incidiu o erro, podendo ainda cumular o pedido de anulação com o de indemnização, demonstrado que fique que o vendedor conhecia ou devia conhecer o defeito determinante do erro-vicio – cfr. artigos 908.º, 909.º, 913.º, n.º 1 e 914.º, parte final, e 915.º, todos do Código Civil); e uma segunda, a denominada fase executiva (a que corresponde a concretização do sinalagma funcional das prestações), em que mantendo-se válido o contrato, um cumprimento desconforme, incorrecto ou desqualificado é susceptível de desequilibrar a correspectividade e equanimidade das prestações devidas. Neste caso, o credor acreditou e aceitou prestar a sua parte na relação prestacional no pressuposto que da parte contrária ocorreria uma adequada e correcta prestação. A desconformidade e verificação da existência de um defeito ou de uma desconformidade da qualidade da coisa vendida (prestada), não sendo apta a invalidar o contrato - v. g. porque a parte essencial foi correctamente cumprida ou o desvio se ficou a dever a prestações secundárias - impõe que o comprador exija ou reclame uma correcção do defeito pu vício, tendo em vista a merma dos prejuízos sofridos, mediante mecanismos como sejam a redução do preço ou exigência do cumprimento mediante a eliminação dos defeitos ou substituição da coisa, cumuláveis com indemnização - cfr. artigos 911.º, ex vi do 913.º e 914.º, do Código Civil. [[21]]

Para o primeiro caso estaríamos perante uma acção redibitória e para o segundo ou acção estimatória, esta prevista no artigo 914.º do Código Civil dado que por ela será possível ao contraente lesado com o cumprimento defeituoso sanar o equilíbrio contratual e minorar os efeitos danosos que a violação contratual positiva ocasionou na sua esfera jurídica. Mediante esta acção, o comprador lesado pretende inculcar a disposição de manter o vinculo contratual, advertindo ou sinalizando que o essencial do que foi convencionado ou acordado terá sido prestado de forma ajustada e correcta, mas que a defeituosa prestação deverá ser sanada ou reparada á custa do cumpridor faltoso.

Existindo, por virtude de regulamentação legal obrigatoriedade de o devedor ou incumpridor, garantir a qualidade da coisa vendida e tendo o comprador efectuado, atempadamente, a denúncia dos defeitos, ao garante da conformidade da coisa com as regras de boa construção e de normal funcionamento da coisa vendida cabe reparar os defeitos detectados. O vendedor de um imóvel para habitação que na “ficha técnica da habitação” assume a responsabilidade pela garantia de boa construção e funcionamento do imóvel vendido tem a obrigação de prover à reparação dos defeitos detectados e de proporcionar os meios para que o comprador possa desfrutar de uma cómoda e eficiente utilização do imóvel adquirido.

A garantia de bom funcionamento actua de forma a inculcar um dever objectivo de responsabilização do vendedor da coisa garantida. Na verdade, ao predispor-se a garantir o bom funcionamento e a assegurar a qualidade da coisa vendida, o garante responde, objectivamente, pelos defeitos que venham a emergir de um normal e corrente funcionamento da coisa. A responsabilidade só será afastada se o garante demonstrar e provar que o mau funcionamento ou a existência dos defeitos denunciados se ficaram a dever ao mau uso feito da coisa vendida, de acção dolosa ou meramente negligente do comprador sobre a coisa, de modo a propinar uma deterioração da coisa ou de qualquer acção ou omissão voluntária e culposa actuada sobre a coisa que a desvirtua e incapacita para as suas funções normais e fins úteis.

No caso concreto, tendo o demandante denunciado, atempadamente, os defeitos e tendo-o feito perante o vendedor/garante da coisa vendida e não tendo este afastado a responsabilidade que sobre si fez recair de garantir a idoneidade e boa qualidade do imóvel vendido, incumbe-lhe reparar os defeitos denunciados e propiciar os meios para que o vendedor possa fruir de forma adequada, tendo em vista o fim a que a mesma se destina, a coisa vendida.

III. - DECISÃO.

Na defluência do expendido, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 1.ª Secção cível, do Supremo Tribunal de Justiça, em:

- Negar a revista;

- Condenar os Réus nas custas.

Lisboa, 24 de Abril de 2012

Gabriel Catarino  (Relator)

António Piçarra                           

Sebastião Póvoas

_________________________

[1] Queda transcrito o sumário inerido no acórdão revidendo.”I. - Vendido imóvel que vem a revelar inúmeros defeitos de construção, o vendedor que não foi o construtor, deverá ser responsabilizado, salvo se provar que, sem negligência da sua parte, desconhecia tais vícios. II. - Provando-se que os vendedores desconheciam esses defeitos e provando-se igualmente que o próprio comprador só se apercebeu dos defeitos depois de adquirir a casa, é de entender que os Réus vendedores elidiram a presunção de culpa que sobre eles recaía. III. - Contudo, existindo garantia de bom funcionamento, o vendedor responde objectivamente, independentemente de culpa da sua parte.”

[2] Cfr. Paes de Vasconcelos, Pedro, in “Contratos Atípicos”, Almedina, Coimbra, 2009, 2.ª edição, págs. 166. “A recondução de um contrato a um tipo contratual implica a sua qualificação como contrato desse tipo. Na metodologia tradicional, esta qualificação vai, por sua vez, possibilitar a subsunção desse contrato, assunido como facto jurídico, ao tipo legal, colocado como norma, para fazer emergir, como efeito jurídico, a disciplina conatrtual completa, tal como num silogismo em que o tipo seja posto como premissa maior e o contrato como menor. Este é o processo de qualificação próprio da doutrina dos “elementos do contrato”: a verificação da exisstência no contrato de todos os elementos essenciais do tipo determina a qualificação e esta, por sua vez, a vigência dos elementos naturais. Na doutrina tipológica, a qualificação não constitui um processo de subsunção a um conceito, mas de correspondência do contrato a um tipo. A qualificação é um juízo predicativo que tem como objecto um contrato concretamente celebrado e que tem como conteúdo a correspondência de um contrato a um ou mais tipos, bem como o grau e o modo de ser dessa correspondência.”  

[3] Cfr. quanto à caracterização do contrato de compra e venda, Baptista Lopes, Manuel, “Do Contrato de Compra e Venda no direito civil, comercial e fiscal”, Almedina, 1971; págs. 12 a 122; Romano Martinez, Pedro, in “Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos – Compra e venda, Locação, Empreitada”,Almedina, 2000, l, págs. (em espacia) 21 a 54; Menezes Cordeiro, António. Albuquerque, Pedro e Carneiro da Frada, Manuel, in “Direito das Obrigações – Contratos em Especial”, III Vol., AAFDL, 1990, págs. 9 a 85.    
[4] Cfr. Antunes Varela, João, in “Das Obrigações em Geral”, II Vol., Almedina, 5.ª edição, 1992, pág. 14-15. Quanto ao princípio da pontualidade e as variáveis em que se desdobra (modo distinto do estabelecido no acordo; tempo distinto do acordado - inexactidão; ser de quantidade distinta da devida; não ser realizada no local devido; entrega de coisa diferente da acordada; a prestação seja de qualidade diversa da devida; quando, para realização da prestação principal, foram violados deveres acessórios; outros que estejam especialmente previsto na lei, no caso de contratos especiais) veja-se Romano Martinez, Pedro, in Cumprimento Defeituoso. Em especial na Compra e Venda e na Empreitada”, Colecção Teses, Almedina, 2001, págs. 130 a 134.     
[5] Cfr. Brandão Proença, José Carlos, in “Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das obrigações”, Coimbra Editora, 2011, pág. 133.
[6] Cfr. Romano Martinez, Pedro in “Cumprimento Defeituoso. Em especial na Compra e Venda e na Empreitada”, Colecção Teses, Almedina, 2001, págs. 129-157. “[O] cumprimento defeituoso constitui um tipo de responsabilidade contratual ao lado do não cumprimento definitivo e da mora, totais ou parciais, podendo abranger uma multiplicidade de situações.”
[7] Cfr. Brandão Proença, José Carlos, in op. loc. cit. págs. 137-138, e ainda Pessoa Jorge, F. “Lições de Direito das obrigações”, e Pereira Coelho, “Obrigações” (Sumários das Lições ao curso de 1966-1967), citados na obra referida.  
[8] Cfr. Romano Martinez, Pedro in “Cumprimento Defeituoso. Em especial na Compra e Venda e na Empreitada”, Colecção Teses, Almedina, 2001. págs. 129 e 130.
[9] Para um maior desenvolvimento veja-se Romano Martinez, Pedro, in op. loc. cit. págs. 35 a 60. 

[10] Cfr. Cfr. neste sentido Galvão Teles, Inocêncio, in “Contratos Civis - Exposição de Motivos”, RFDUL, ano IX, 1953, pág. 161), “[não] haveria motivo para excluir aqui o regime jurídico geral sobre esses vícios da vontade», acrescentando que «os vícios da coisa, como os do direito, e à semelhança do legislado no actual Código (art. 1582) [Código Civil de 1867], não constituem segundo o projecto fundamento autónomo de anulação: integram-se no regime jurídico do erro e do dolo”. Em sentido adverso veja-se Baptista Machado, João, in “Acordo Negocial e Erro na Venda de Coisas Defeituosas,” BMJ 215 (1972), págs. 22 e 23), «tais direitos do comprador pressupõem uma base negocial – pressupõem, isto é, têm o seu fundamento no próprio contrato (no conteúdo deste) e, portanto, hão-de ser concebidos como efeitos jurídico-negociais. E ainda Pedro Romano Martinez, Pedro, in “Cumprimento Defeituoso – Em especial na compra e venda e na empreitadaCoimbra, 1994, págs. 293 - 294): “[Os] deveres de eliminar os defeitos e de substituir a coisa são estranhos ao regime do erro e não podem estar na dependência dos requisitos deste. (…) A actio quanti minoris não encontra a sua fundamentação no erro (. . .) Trata-se (. . .) de uma adaptação do preço à coisa prestada e não de uma redução do negócio. «Nas situações referidas, os direitos conferidos ao comprador são uma consequência directa do não cumprimento dos deveres da contraparte, sendo a referência ao erro desnecessária. De facto, o comprador que exige qualquer dos direitos referidos (. . .) não tem de provar o seu erro, nem a essencialidade do mesmo, nem que o vendedor conhecia ou não devia ignorar a situação. Basta provar a existência do defeito para lhe ser conferida a pretensão mais apropriada, perante a vicissitude». Ou ainda Carneiro da Frada Manuel, in “Erro e incumprimento na não-conformidade da coisa com o interesse do comprador” em O Direito, ano 121 (1989), 1. 3, p. 463), ao afirmar que «o critério que permite distinguir as situações de erro das situações de incumprimento é o da adequação do negócio efectivamente celebrado entre comprador e vendedor à vontade que aquele quis manifestar em ordem à prossecução do seu interesse.” Para este autor erro e negócio são, assim, «distintos e irredutíveis entre si»,pois «se o contrato vale com o sentido que foi efectivamente querido pelo comprador (...) seria um contra-senso conceder ao comprador um direito de anulação por erro, isto é, por o contrato não corresponder à sua vontade real, pois que ele corresponde de facto a essa vontade».

[11] Cfr. Calvão da Silva, João, in “Compra e Venda de Coisas Defeituosas – Conformidade e Segurança”, Almedina, 2006, 4.ª edição, pág. 56, refere que “[além] da anulação do contrato e da redução do preço, cumuláveis com a indemnização, o regime da venda de coisas defeituosas reconhece ainda ao comprador um quarto direito: o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela (art. 914.º, 1.ª parte); mas esta obrigação não existe, se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece (art. 914.º, 2.ª parte).
Esse desconhecimento tem de ser alegado e provado pelo próprio vendedor, visto tratar-se de facto impeditivo do direito contra si invocado pelo comprador (art. 342.º, n.º2) e estar obrigado a prestar a coisa isenta de vícios ou defeitos. Equivale a dizer, noutra formulação, que o direito à reparação ou substituição da coisa repousa sobre a culpa presumida do vendedor, cabendo a este ilidir tal presunção mediante prova em contrário (art. 350.º, nº 2), isto é, a prova da sua ignorância, sem culpa, do vício ou da falta de qualidade da coisa, como facto impeditivo do direito invocado pelo comprador.”. Do mesmo refere
Romano Martinez, Pedro, in “Direito das Obrigações (Parte Especial) – Contratos”, Almedina, 2001, pág. 126, que: “[as] consequências da compra e venda de coisas defeituosas determinam-se atentos três aspectos: em primeiro lugar, na medida em que se trata de um cumprimento defeituoso, encontram aplicação as regras gerais da responsabilidade contratual (arts. 798.º ss. Código Civil); segundo, no art. 913.º, n.º1, do Código Civil faz-se uma remissão para a secção anterior…Nos termos gerais, incumbe ao comprador a prova do defeito (art. 342.º, n.º l Código Civil) e presume-se a culpa do vendedor, se a coisa entregue padecer de defeito (art. 799.º, n.º 1do Código Civil).”

[12] Cfr. neste sentido o Ac. deste Tribunal, de 04-05-2010, relatado pelo Conselheiro Hélder Roque, onde se escreveu: “No domínio da venda de coisas defeituosas, o comprador goza de um conjunto de meios de reacção específicos que pode usar, consoante lhe aprouver, e que se traduzem, desde logo, no direito à anulação do contrato, com base em erro sobre o objecto do negócio [artigo 251º, do CC] ou dolo [artigo 254º, do CC], desde que, no caso, se verificarem os requisitos legais da anulabilidade, designadamente, a essencialidade do erro e a cognoscibilidade dessa essencialidade para o vendedor [artigo 905º, «ex vi» do artigo 913º, ambos do CC.
Dispõe, igualmente, do direito à redução do preço, baseado em erro ou dolo, quando as circunstâncias do contrato mostrarem que, sem esse erro ou dolo, o comprador teria, igualmente, adquirido a coisa, mas por preço inferior [artigos 911º e 913º, do CC], e do direito de exigir o exacto cumprimento, mediante a eliminação dos defeitos da coisa, quer pela via da reparação ou da sua substituição, se for necessário e tiver natureza fungível, a menos que o vendedor desconhecesse, sem culpa, o vício ou a falta de qualidades da mesma [artigo 914º, do CC].
Apesar de o vendedor ignorar o vício da coisa e, portanto, não estar obrigado à sua reparação ou substituição, se conhecer a essencialidade para o comprador do elemento sobre que incidiu o erro, sujeita-se, consequentemente, à anulação do contrato.
E, na acção de anulação do contrato, por venda de coisa defeituosa, fundada em simples erro, o vendedor é obrigado a indemnizar o comprador, com respeito aos danos emergentes do contrato, ainda que não tenha havido culpa da sua parte, a menos que desconhecesse, sem culpa, o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece, em conformidade com o preceituado pelos artigos 909º, 914º e 915º, do CC.
No caso de garantia de bom funcionamento, o vendedor é obrigado a reparar ou substituir a coisa, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador, nos termos do estipulado pelo artigo 921º, do CC.
Por fim, o direito à indemnização pelo interesse contratual negativo, traduzido no prejuízo que o comprador sofreu por ter celebrado o contrato, no caso de anulação deste, quer haja dolo, quer simples erro, sendo certo que, nesta última hipótese, a indemnização limita-se aos danos emergentes e, apenas, na hipótese de o vendedor conhecer, com culpa, o vício ou falta de qualidades de que a coisa padeça, de acordo com o preceituado pelos artigos 909º e 915º, do CC.
Tratando-se de vícios da coisa, ao contrário do que acontece no caso de vícios do direito, em que o vendedor é obrigado a sanar a anulabilidade do contrato, expurgando os ónus ou limitações existentes, atento o disposto pelo artigo 907º, nº 1, aquela obrigação é substituída pela obrigação de reparar ou, se for necessário e a coisa tiver natureza fungível, pela obrigação de a substituir por outra que tenha as qualidades necessárias para a realização do fim a que se destina, por se entender que a garantia edílica prestada pelo vendedor assegura, tacitamente, ao comprador a inexistência de defeitos da coisa vendida, tendo de a reparar ou substituir, excepto se o vendedor desconhecia, sem culpa, o vício ou a falta de qualidades de que ela era portadora, nos termos do preceituado pelo artigo 914º, ambos do CC.
De todo o modo, ainda que o vendedor desconheça, sem culpa, o vício ou a falta de qualidades da coisa, conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o comprador, do elemento sobre que incidiu o erro, não sendo obrigado à reparação ou substituição, está sujeito à propositura de uma acção de anulação do contrato, por parte deste último, desde que se verifiquem os respectivos requisitos legais, em conformidade com o disposto pelos artigos 914º, 247º e 251º, todos do CC.”

[13] Cfr. Parecer do Professor Antunes Varela, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XII, Tomo IV, pág.23 a 35, para quem ocorre uma situação de “[...] venda de coisa defeituosa sempre que no contrato de compra e venda, tendo por objecto a transmissão da propriedade de uma coisa, a coisa vendida sofre de vícios ou carece das qualidades abrangidas no art. 913.º do C.C....”.

Verifica-se, no entanto, uma situação de cumprimento defeituoso da obrigação “ […] não apenas em relação à obrigação de entrega da coisa proveniente da compra e venda, mas quanto a toda e qualquer outra obrigação proveniente do contrato ou qualquer outra fonte.

E apenas se dá quando a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidade ou requisitos dela, ao objecto da obrigação a que ele estava adstrito.”

[14] Cfr. e este propósito o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 03-04-2010, relatado pelo Conselheiro Hélder Roque, onde se escreveu: “Por coisa defeituosa, entende-se, em conformidade com o disposto pelo artigo 913º, do CC, aquela que sofre de vício que, funcionalmente, a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada ou que não tenha as qualidades, atributos ou propriedades asseguradas, expressa ou tacitamente, pelo vendedor ou necessárias à realização desse fim e que a desvalorizam.

Ao lado dos casos em que a venda de coisa defeituosa vem acompanhada de cumprimento defeituoso da obrigação ou de falta qualitativa de cumprimento da obrigação, que contende com o âmbito da venda de coisas genéricas, ou seja, da coisa como deve ser, em que a vontade jurídico-negocial se estende às próprias qualidades da coisa, não se confinando apenas à coisa determinada que tenha sido entregue em cumprimento da obrigação (2), e em que o vendedor não realiza a prestação a que, por força do contrato, se encontra obrigado, em conformidade com o estipulado pelos artigos 762º, 798º, 817º e 406º, nº 1, do CC, outros há em que, como acontece com as vendas de coisas específicas ou individualizadas, ou seja, da coisa como é, falta uma qualidade essencial ao fim do contrato, existindo uma diferença de qualidade ou de identidade, que configura a situação, tão-só, como de venda de coisa defeituosa.

Um outro critério determinativo da diferença de qualificação das duas situações em confronto consiste em avaliar se as qualidades da coisa vendida ingressaram no conteúdo do contrato, hipótese em que se trata de uma situação de inadimplemento ou de cumprimento defeituoso do contrato, ou, ao invés, se as qualidades da coisa vendida não ingressaram no conteúdo do contrato, hipótese em que a situação só pode ser tributária de erro, que não de incumprimento ou de cumprimento defeituoso, porquanto a qualidade determinante não constitui efeito negocial.

Neste último caso, trata-se de um erro sobre as propriedades do objecto, porquanto foi a falta de representação acerca de certas propriedades da coisa que levou o agente a negociar.

De facto, na hipótese de o vendedor entregar ao comprador a coisa, realmente, devida, segundo o contrato celebrado, mas que sofria de alguns vícios ou defeitos, elencados pelo artigo 913º, do CC, existe uma venda de coisa defeituosa, mas não, simultaneamente, um caso de cumprimento defeituoso do contrato.
Há, assim, venda de coisa defeituosa, no contrato de compra e venda, sempre que este, tendo por objecto a transmissão da propriedade de uma coisa, esta sofra de vícios ou careça das qualidades abrangidas pelo artigo 913º, do CC, quer a coisa entregue corresponda, quer não à prestação a que o vendedor se encontra vinculado.

Em suma, a caracterização dogmática do regime da venda de coisa defeituosa pressupõe que a venda é realizada e a propriedade da coisa logo transmitida ao comprador, sendo a mesma já defeituosa, ao tempo da celebração do contrato.”
[15] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. II, Almedina, pág. 205.
[16] Cfr. Calvão e Silva, João, in “Compra e Venda de Coisas Defeituosas – Conformidade e Segurança”, Almedina, 2006, 4.ª edição, pág. 

[17] Cfr. Calvão da Silva, João “Compra e Venda de Coisas Defeituosas – Conformidade e Segurança”, Almedina, 2002, 4.ª edição, pág. 41, para quem a coisa vendida não realiza ou não cumpre o fim de funcionalidade normal a que se destina, quando está ervada de “vício que a desvaloriza ou impede a realização do fim a que se destina; falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que se destina.

Nesta medida, diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente – função negocial concreta programada pelas partes – ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art. 913.º,n.º2,). Refere o mesmo autor que a lei privilegia a idoneidade do bem para a função a que se destina, cônscio de que a relevância deve ser atribuída à “aptidão da coisa, a utilidade que o adquirente dela espera. Donde a noção funcional: vício que desvaloriza a coisa ou impede a realização do fim a que se destina; falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que se destina.
” Do mesmo passo Romano Martinez, Pedro, in “Direito das Obrigações (Parte especial) – Contratos”, Almedina, 2001, págs. 122-123 “[a] coisa é defeituosa se tiver um vício ou se for desconforme atendendo ao que foi acordado. O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto a desconformidade representa a discordância com respeito ao fim acordado. Os vícios e as desconformidades constituem defeito da coisa.” 

[18] Cfr Romano Martinez, Pedro, in op. loc. cit., págs. 280-281, {pode] concluir-se que a responsabilidade derivada do cumprimento defeituoso se baseia, por princípio, na culpa do devedor. Culpa essa que, por um lado se presume (...) e por outro deverá ser apreciada em abstracto (...) Destes aspectos, como já foi referido, infere-se uma certa objectivação da responsabilidade contratual. Na realidade, para que o facto não se considere imputável ao devedor, a este cabe unicamente a prova de uma causa estranha.

Assim, o vendedor, para afastar a presunção de culpa, só pode invocar três causas: força maior, atitude negligente da contraparte e facto de terceiro.”  

[19] Queda transcrito o trecho do aresto adrede. “No caso dos autos o vendedor entregou na Câmara Municipal de S... uma ficha técnica de habitação, ao abrigo do Decreto-Lei nº 68/2004 de 25 de Março.

Entre as informações que tal ficha técnica deverá incluir, mencionem-se, no âmbito do artigo 4º, a caracterização das soluções construtivas das principais elementos de construção do prédio, nomeadamente das fundações e da estrutura, das paredes exteriores e da cobertura”.

Se analisarmos a ficha técnica entregue pelos RR nos serviços municipalizados constata-se que se trata de um documento essencialmente descritivo das características do imóvel, estruturais e outras.

Mas, obviamente uma coisa é saber o que foi feito e outra como foi feito. A descrição constante da ficha técnica em causa não foi alvo de qualquer reparo do A. O que este invoca, é a deficiente construção, nomeadamente ao nível das fundações, da impermeabilização da varanda e tectos, falta de isolamento térmico da fachada, além dos demais vícios constantes da factualidade provada.

É de admitir que tais defeitos, embora presentes desde a construção, não seriam detectáveis antes de a casa começar a ser habitada. Existem motivos para se levar em conta esta perspectiva: com efeito, e referindo-nos por exemplo à deficiente impermeabilização da varanda, não é crível que o A fosse comprar a casa, sem exigir prévia reparação, se tivesse dado conta de infiltrações resultantes de tal deficiente impermeabilização. Mas, do mesmo modo, não parece exigível aos vendedores – que não são os construtores da casa – que se apercebessem de tais defeitos que, pelos vistos, ainda se não haviam manifestado.

Contudo, no âmbito da venda de coisa defeituosa, a responsabilidade do vendedor pode ser imputada a título objectivo, ou seja, sem culpa.

É, além do mais, o caso previsto no art. 921º nº 1 do Código Civil: “Se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador”.

E, no caso dos autos, tal garantia foi prestada, por um prazo de 5 anos, como se vê do nº 29 da ficha técnica de habitação junta aos autos (fls.152).

Além disso, refere-se na rubrica “descrição do modo de accionamento em caso de defeitos”: “contactar directamente o Sr AA”, Réu nos presentes autos e vendedor do imóvel.

Esta garantia foi prestada de acordo com o previsto no art. 6.º a) do já mencionado Decreto-Lei nº 68/2004 de 25 de Março. O A. efectuou a denúncia dos defeitos dentro do prazo de garantia, desconhecendo-se a data em que tomou conhecimento das deficiências do imóvel.”

[20] cfr. Romano Martinez, Pedro, in “Cumprimento Defeituoso. Em especial na Compra e Venda e na Empreitada”, Colecção Teses, Almedina, 2001. pág. págs. 153 a 156”     

[21] Cfr. Calvão e Silva, João,, in “Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança, 4.ª ed., Almedina, 2008, págs. 80-86.