Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
139/12.0TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONSUMIDOR
DEFEITOS
RESOLUÇÃO
REPARAÇÃO DO DANO
do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DO CONSUMO - VENDA DE BENS DE CONSUMO / GARANTIAS DO CONSUMIDOR.
Doutrina:
- Jorge Morais de Carvalho, Manuel de Direito de Consumo, 2013, pp. 172, 182, 183.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 266.º, N.º6, 274.º, N.º6, 286.º, N.º2, 296.º, N.º2.
DECRETO- LEI N.º 67/2003, DE 08.04: - ARTIGOS 1.º- A, N.º1, 2.º, N.ºS 1 E 2, AL. D).
Sumário :
I - No âmbito de um contrato de compra e venda para consumo, o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato, devendo essa conformidade ser aferida através da comparação entre a prestação estipulada no contrato e a prestação efetuada – art. 2.º, n.º 1, do DL n.º 67/2003, de 08-04. 

II - Consagrando o n.º 2 do citado normativo um sistema de presunções, caberá ao consumidor a prova de um facto que dê origem à presunção de desconformidade, incumbindo, por seu turno, ao vendedor o ónus de negar a verificação desse facto e de provar a conformidade com o contrato.

III - Presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar (tendo em conta a natureza do bem e as declarações públicas do vendedor, do produtor ou do seu representante) – art. 2.º, n.º 2, al. d), do referido diploma legal.

IV - Remetendo tal norma para uma conceção objetiva de desconformidade, o bem tem de ser conforme com aquilo que qualquer pessoa possa razoavelmente esperar, independentemente de, em concreto, o consumidor ter essa expetativa.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Em 2012.01.19, na então 1ª Vara Cível de Lisboa, AA instaurou contra BB - Comércio e reparação de automóveis, S.A., e CC – Sociedade de Importação de Veículos Automóveis, S.A., a presente ação declarativa, sob a forma de processo ordinário.


Pediu

- que fosse reconhecida a resolução do contrato de compra e venda do veículo automóvel, matrícula 80-...-72;

- que a Ré BB fosse condenada a restituir-lhe a quantia de 33. 596,00 €;

- que ambas as Rés fossem condenadas, solidariamente, a pagar-lhe a quantia de € 14 260,49 (incluindo a ampliação de fls. 279), acrescida dos juros vencidos desde a citação até efetivo e integral pagamento.


Alegou

em resumo, que

- celebrou, em 11 de Dezembro de 2009, um contrato de locação financeira, tendo por objeto o veículo automóvel, marca Volkswagen, modelo Golf Plus 2.0 TDI Highline, fornecido pela R. BB e produzido pela R. CC;

- o veículo veio a revelar defeitos de funcionamento irreparáveis;

- tem direito à resolução do contrato e à reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.


Contestando e também em resumo, a R. BB, por exceção, alegou a ilegitimidade da A. e a prescrição do direito invocado na ação, e por impugnação, concluindo pela improcedência da ação.


Em reconvenção, pediu que a autora fosse condenada a pagar-lhe a quantia correspondente à diferença entre o preço do veículo e novo e o seu valor à data em que a autora o entregou à ré, como compensação pelo uso do veículo automóvel.


Contestou também a R. CC, arguindo tanto a ilegitimidade da A. como a sua, a caducidade do direito à resolução do contrato, para além de impugnar os factos, concluindo pela improcedência da ação.

Deduziu ainda reconvenção, nos mesmos termos da R. BB.


Por despacho de 22 de maio de 2012, as reconvenções não foram admitidas.

Por convite do Juiz, a autora apresentou nova petição inicial.


Proferido despacho saneador, fixada a matéria assente e elaborada a base instrutória, foi realizada audiência de discussão e julgamento.


Em 2014.12.01, foi proferida sentença, em que se julgou a ação parcialmente procedente quanto à ré BB e se declarou resolvido o contrato de compra e venda, condenando a R. BB a restituir à Autora a quantia de € 33 596,12 e a pagar-lhe a quantia de € 4 085,89, ambas acrescidas de juros, desde a citação até efetivo e integral pagamento, e julgou a ação improcedente no demais.

Mais absolveu a ré CC de todos os pedidos.


A ré BB apelou, com êxito, pois a Relação de Lisboa, por acórdão de 2015.05.07, revogou a decisão recorrida e absolveu a referida ré dos pedidos.

 

Inconformada, a autora deduziu a presente revista, apresentando as respectivas alegações e conclusões.

A recorrida contra alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

Cumpre decidir.


As questões


Tendo em conta que

- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;

- nos recursos se apreciam questões e não razões;

- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido

são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:

A) - Reconvenção

B) – Resolução do contrato.


Os factos


São os seguintes os factos que foram dados como provados no acórdão recorrido, após alteração da matéria de facto fruto da impugnação deduzida pela ré BB:

1. A A. e a R. BB assinaram o escrito de 24 de setembro de 2009, intitulado “contrato/proposta de compra e venda”, a fls. 88, do qual, além do mais, consta: “ Condições Gerais 1.º 1.1. A(o) Cliente mediante o preenchimento e assinatura deste documento propõe-se comprar o veículo automóvel novo, identificado nas condições particulares. 1.2. Após a aceitação desta proposta pela promitente vendedora, o acordo tem-se para todos os efeitos como contrato promessa de compra e venda, regendo-se pelo disposto nestas condições gerais e pelas condições particulares constantes do verso. (…) 10.º 10.1 Os veículos novos são vendidos com garantia prestada pelo fabricante, pelo prazo e nas condições consignadas na carta de garantia. O prazo de garantia conta-se desde a entrega do veículo ao Cliente e tem validade em qualquer concessionário ou agente da marca mediante a apresentação da mesma. (…)”.

2. Na face do escrito ficou a constar sob a epígrafe “viatura a comprar” “Marca VW Golf Plus”, “Modelo 2.0 TDI 140 cv Highline”, e sob a epígrafe “Financiamento” “Entidade Financiadora CC”.

3. O veículo, de matrícula 80-...-72, foi adquirido pela R. CC à Volkswagen AG, tendo sido aquela que, na qualidade de importadora, o introduziu no mercado nacional e o vendeu à R. BB.

4. Em 30 de dezembro de 2009, a R. BB declarou vender a Banco CC Portugal, S.A., que declarou comprar-lhe, pelo preço de € 33 596,11, o referido veículo.

5. A R. BB é representante da R. CC para vendas e serviço pós-venda da marca de automóveis Volkswagen.

6. Em 11 de dezembro de 2009, a A. celebrou, com Banco CC Portugal, S.A., o contrato de locação financeira n.º …, tendo por objeto o veículo identificado e do qual consta como vendedor/fornecedor a R. BB, pelo preço de € 27 996,77, acrescido do IVA, no valor de € 5 599,35, e cujo pagamento seria efetuado em 48 prestações mensais e sucessivas, ficando, a final, um valor residual de € 671,92, sendo a primeira prestação de € 785,00 e as seguintes de € 779,40.

7. A A. é titular do certificado de matrícula do referido veículo automóvel ligeiro, constando do mesmo que é proprietária do veículo o Banco CC Portugal, S.A., e aquela “locatário em regime de locação financeira” pelo período de 4 de janeiro de 2010 a 3 de janeiro de 2014.

8. O veículo foi colocado à disposição da A. no dia 30 de dezembro de 2009.

9. As aquisições referidas foram feitas com o veículo em estado de novo.

10. A A. pretendeu adquirir o veículo para efetuar as deslocações diárias de e para o seu local de trabalho e para o usar como transporte durante os seus períodos de descanso.

11. A A. reside e trabalha habitualmente em Telheiras, na cidade de Lisboa.

12. Utiliza a viatura para se deslocar de casa para o trabalho.

13. Em 2 de junho de 2010, a A. enviou à R. BB, que a recebeu, a comunicação eletrónica de fls. 17 v., na qual, além do mais, declarou: “Tendo adquirido nessa empresa, em finais de dezembro de 2009, uma viatura Volkswagen, com a matrícula 80-...-72, e tendo esta sofrido já duas avarias, tanto quanto sei, no sistema de ventilação, as quais foram reparadas nesses serviços, solicito que, com a maior brevidade possível, me seja enviado o relatório discriminativo das mesmas e das respetivas intervenções (…)”.

14. Em 9 de junho de 2010, a A. enviou à R. BB, que a recebeu, a comunicação eletrónica de fls. 19.

15. Em 4 de julho de 2011, a A. enviou à R. BB, que a recebeu, a comunicação eletrónica de fls. 21 v., na qual, além do mais, declarou: “Mais uma vez reitero que o defeito é de fabrico e é do produto, isto é, da viatura, pelo que, cansada de toda esta problemática, solicito que me substituam ou o carro ou a peça que dá problemas, sob pena de fazer as devidas diligências junto das entidades competentes, designadamente (…) e instâncias judiciais”.

16. A A. enviou à R. CC, que a recebeu, a carta de 4 de julho de 2011, a fls. 22 e 34/35.

17. No dia 15 de julho de 2011, a A. enviou à R. BB, que a recebeu, a comunicação eletrónica de fls. 35 v.

18. Em abril de 2010, apareceram no painel de instrumentos do veículo as luzes do filtro de partículas/resistência e motor acesas.

19. Pelo que foi à oficina da R. BB, tendo permanecido dois dias a fim de ser reparado.

20. No dia 23 de maio de 2011, o veículo deu entrada na oficina da R. BB, tendo permanecido três dias a fim de ser reparado.

21. Por apresentar, de novo, as luzes do filtro de partículas/resistência e motor acesas no painel de instrumentos.

22. O veículo voltou a permanecer na oficina da R. BB durante o período compreendido entre 6 e 15 de julho de 2011.

23. Por apresentar, de novo, as luzes do filtro de partículas/resistência e motor acesas no painel de instrumentos.

24. Em 29 de agosto de 2011, a A. recorreu às oficinas da R. BB para que esta procedesse à regeneração do filtro de partículas.

25. Em data não apurada, a A. conduziu o veículo na autoestrada para Cascais, com a luz do filtro de partículas acesa no painel de controlo.

26. O problema referido em 18., 21. e 23, mantém-se.

27. Esse veículo vem equipado de fábrica com um sistema de filtro de partículas.

28. Este sistema faz com que as partículas libertadas no decurso do processo de combustão dos veículos e os resíduos presentes no combustível que se acumulam nos depósitos sejam, através de um aumento de temperatura, incinerados e eliminados.

29. No veículo esse sistema de filtro funciona como um incinerador que, sempre que necessário, segundo indicações dos sensores, efetua a incineração de partículas.

30. Esse processo é designado por “regeneração”.

31. Nos percursos mais longos, a incineração de partículas é efetuada sem que o condutor seja alertado através da visualização de um sinal no painel de instrumentos do veículo.

32. Se o veículo for constantemente utilizado em percursos curtos e em contínuas filas de trânsito, poderá acender-se uma luz avisadora no, amarela, no painel de instrumentos.

33. A qual alerta o condutor que o filtro de partículas se encontra saturado e que deve proceder de acordo com as instruções do manual do veículo.

34. De acordo com o manual, o utilizador do veículo deve efetuar a limpeza do sistema de partículas.

35. E, para tanto, circular cerca de quinze minutos na quarta velocidade (caixa de velocidades manual) ou na posição de marcha D (caixa de velocidades automática) a uma velocidade de, pelo menos, 70 Km/hora.

36. Comportando-se o utilizador tal e qual está no manual, adotando os procedimentos referidos, poderá não resolver o problema detetado, isto é, poderá não proceder dessa forma à limpeza do filtro de partículas.

37. A oficina deu indicações à A. de que, caso acenda a luz avisadora no painel de instrumentos, para efetuar a limpeza do sistema de partículas, deve conduzir-se o veículo durante cerca de quinze minutos, em quarta ou quinta velocidade, a uma velocidade mínima de 60Km/hora, com o motor aproximadamente às 2 000 rotações por minuto.

38. Quando a limpeza é concluída com êxito, o sinal avisador no painel de instrumentos apaga-se.

39. Caso não ocorra a limpeza do sistema de partículas, acende-se no painel de instrumentos uma luz de motor (modo de emergência), que visa salvaguardar os componentes do motor, começando então o veículo a perder força e sendo necessário recorrer à oficina para efetuar o processo de regeneração.

40. Quando o veículo deu entrada na oficina da R. BB pela primeira, segunda e terceira vezes, os técnicos procederam à regeneração do filtro de partículas e entregaram o veículo à A.

41. Tendo ainda efetuado no veículo uma atualização de software que, entretanto, havia surgido para o aparelho de comando do motor e, após esta, um teste de estrada à viatura.

42. Por ocasião da quarta vez que o veículo se deslocou à oficina, a R. BB entrou em contacto com os serviços técnicos do fabricante do automóvel, aos quais pediu instruções no sentido de saber se havia algum procedimento adicional que devesse ser realizado.

43. Os técnicos do fabricante deram instruções à R. BB para verificar os valores de temperatura dos gases de escape, os valores da sonda lambda e, sobretudo, para tentar saber que tipo de condução era feito pela utilizadora do veículo.

44. A 13 de julho de 2011, foram feitas as medições desses valores, os quais se encontravam normais e eram idênticos aos de outras viaturas com a mesma tecnologia.

45. Os técnicos do fabricante do automóvel foram então informados de que, de acordo com indicações transmitidas pela utilizadora do veículo, este era maioritariamente usado em percursos curtos e citadinos.

46. Esses técnicos concluíram então que a frequência com que, no veículo, se acendia o sinal avisador para regeneração do filtro de partículas se ficava a dever ao tipo de condução da utilizadora do veículo e ao facto desta ignorar as instruções para regeneração contidas no manual da viatura.

47. Os técnicos da R. BB procederam à regeneração do filtro de partículas e, em 15 de julho de 2011, entregaram o veículo à A.

48. Quando o veículo deu entrada nas oficinas da R. BB, em 29 de agosto de 2011, a situação era igual às anteriores, tendo sido efetuados, de novo, os procedimentos de regeneração do filtro de partículas, após o que o veículo foi entregue à A.

49. Em consequência das luzes do filtro de partículas/resistência e motor acenderem no painel de instrumentos, a A. recorreu a táxis para efetuar deslocações, pagando os custos, num total de € 25,40.

50. A A. entregou a viatura, para reparação, em 29 de maio de 2013, 20 de novembro de 2013, 30 de janeiro de 2014 e 11 de março de 2014, tendo despendido, em reparações na viatura, decorrentes da obstrução do filtro de partículas, a quantia de € 239,81.


Os factos, o direito e o recurso


A) Reconvenção


Com sua contestação, a ré BB veio deduzir reconvenção, alegando que caso fosse reconhecida a resolução do contrato, invocada pela autora, teria “direito a uma compensação pela utilização que tiver sido dada ao veículo, contando-se esta desde a data da entrega do veículo ao cliente até à data da restituição.”

A ré CC aderiu a este pedido reconvencional.

Por decisão proferida na 1ª instância, de 2012.05.22, não foi admitida a reconvenção, com base em não ser admissível, no caso concreto, a sua dedução a título subsidiário.

No acórdão recorrido, tal despacho foi revogado e admitida a reconvenção, por se entender ser tal subsidiariedade aqui admissível.

A autora discorda.

Mas não tem razão.

Na verdade, tal admissão resulta das disposições conjugadas do nº6 do artigo 266º e do nº2 do artigo 286º, ambos do Código de Processo Civil – nº6 do artigo 274 e nº2 do artigo 296º do Código de Processo Civil anterior – conforme bem de refere no acórdão recorrido.

Assim, nada há a censurar à admissão da reconvenção.


B) Resolução do contrato


Na sentença proferida na 1ª instância julgou-se procedente o pedido de resolução do contrato porque se entendeu, aplicando o disposto na alínea d) do nº2 do Decreto Lei 67/2003, de 08.04, que “os factos apurados (,,,) designadamente em 17) a 25), permitem concluir que o veículo da autora não apresenta as qualidades e o desempenho habituais dos carros do mesmo tipo e com que a mesma podia razoavelmente contar”,  sendo que se presumia a não conformidade com o contrato.

E quanto ao direito de restituição integral do preço, que o pedido também era de proceder, porque a utilização que a autora fez do veículo não devia ser tida em conta para o efeito de a ré BB ser compensada por isso, na medida em que essa utilização tinha uma causa justificativa.


No acórdão recorrido julgou-se improcedente o pedido de resolução do contrato – e, consequentemente, os restantes – porque se entendeu que “podendo a utilização (não recomendada) do veículo automóvel influenciar o funcionamento do sistema de filtro de partículas, importava demonstrar a sua boa utilização, para então, por exclusão, se poder concluir pela existência de defeito no veículo. Assim, sem tal demonstração e na ausência de prova direta do defeito, não é possível afirmar-se que o veículo automóvel sofra de desconformidade ou de defeito.”


A autora recorrente entende que “o facto de (…) se ver obrigada, inúmeras vezes, por acender o sinal avisador para regeneração do filtro de partículas, a observar o procedimento indicado no manual do veículo para que seja efetuada a autolimpeza do filtro de partículas, acarretando a necessidade de conduzir a uma velocidade constante e acima de 60/70 Km/h, durante 15 minutos, e que, não se apagando a luz avisadora seja necessário levar a viatura à oficina para que a mesma proceda à regeneração em falta, não pode deixar de constituir falta de qualidade e desempenho habituais de um veículo automóvel” nos termos e para o efeitos do disposto na alínea d) do nº1 do artigo 2º do Decreto-lei 67/2003, de 08.04 e, portanto, ter o direito a resolver o contrato, com as consequências de a ré BB ser obrigada restituir o preço do veículo e a pagar-lhe as indemnização por danos patrimoniais fixada no sentença proferida na 1ª instância.


Vejamos um resumo dos factos com interesse para a decisão da questão em causa.

- Em Setembro de 2009 a autora e a ré BB celebraram um contrato de compra e venda relativo a um veículo automóvel marca VW Golf Plus, Modelo 2.0 TDI 140 cv Highline, em estado novo, identificado nas condições particulares

- O veículo foi colocado à disposição da A. no dia 30 de Dezembro de 2009.

- A A. pretendeu adquirir o veículo para efetuar as deslocações diárias de e para o seu local de trabalho e para o usar como transporte durante os seus períodos de descanso.

- A A. reside e trabalha habitualmente em Telheiras, na cidade de Lisboa.

- Utiliza a viatura para se deslocar de casa para o trabalho.

- Em Abril de 2010, apareceram no painel de instrumentos do veículo as luzes do filtro de partículas/resistência e motor acesas, pelo que foi à oficina da R. BB, tendo permanecido dois dias a fim de ser reparado.

- No dia 23 de maio de 2011, o veículo deu entrada na oficina da R. BB, tendo permanecido três dias a fim de ser reparado, por apresentar, de novo, as luzes do filtro de partículas/resistência e motor acesas no painel de instrumentos.

- O veículo voltou a permanecer na oficina da R. BB durante o período compreendido entre 6 e 15 de julho de 2011, por apresentar, de novo, as luzes do filtro de partículas/resistência e motor acesas no painel de instrumentos.

- Em 29 de agosto de 2011, a A. recorreu às oficinas da R. BB para que esta procedesse à regeneração do filtro de partículas.

- Em data não apurada, a A. conduziu o veículo na autoestrada para Cascais, com a luz do filtro de partículas acesa no painel de controlo.

- O problema referido mantém-se

- O veículo vem equipado de fábrica com um sistema de filtro de partículas.

- Este sistema faz com que as partículas libertadas no decurso do processo de combustão dos veículos e os resíduos presentes no combustível que se acumulam nos depósitos sejam, através de um aumento de temperatura, incinerados e eliminados.

- No veículo em causa esse sistema de filtro funciona como um incinerador que, sempre que necessário, segundo indicações dos sensores, efetua a incineração de partículas, sendo esse processo designado por “regeneração”.

- Nos percursos mais longos, a incineração de partículas é efetuada sem que o condutor seja alertado através da visualização de um sinal no painel de instrumentos do veículo.

- Se o veículo for constantemente utilizado em percursos curtos e em contínuas filas de trânsito, poderá acender-se uma luz avisadora no, amarela, no painel de instrumentos, a qual alerta o condutor que o filtro de partículas se encontra saturado e que deve proceder de acordo com as instruções do manual do veículo.

- De acordo com o manual, o utilizador do veículo deve efetuar a limpeza do sistema de partículas e, para tanto, circular cerca de quinze minutos na quarta velocidade (caixa de velocidades manual) ou na posição de marcha D (caixa de velocidades automática) a uma velocidade de, pelo menos, 70 Km/hora.

- Comportando-se o utilizador tal e qual está no manual, adotando os procedimentos referidos, poderá não resolver o problema detetado, isto é, poderá não proceder dessa forma à limpeza do filtro de partículas.

- A oficina deu indicações à A. de que, caso acenda a luz avisadora no painel de instrumentos, para efetuar a limpeza do sistema de partículas, deve conduzir-se o veículo durante cerca de quinze minutos, em quarta ou quinta velocidade, a uma velocidade mínima de 60Km/hora, com o motor aproximadamente às 2.000 rotações por minuto.

- Quando a limpeza é concluída com êxito, o sinal avisador no painel de instrumentos apaga-se.

- Caso não ocorra a limpeza do sistema de partículas, acende-se no painel de instrumentos uma luz de motor (modo de emergência), que visa salvaguardar os componentes do motor, começando então o veículo a perder força e sendo necessário recorrer à oficina para efetuar o processo de regeneração.

- Quando o veículo deu entrada na oficina da R. BB pelas primeira, segunda e terceira vezes, os técnicos procederam à regeneração do filtro de partículas e entregaram o veículo à A, tendo ainda efetuado no veículo uma atualização de software que, entretanto, havia surgido para o aparelho de comando do motor e, após esta, um teste de estrada à viatura.

- Por ocasião da quarta vez que o veículo se deslocou à oficina, a R. BB entrou em contacto com os serviços técnicos do fabricante do automóvel, aos quais pediu instruções no sentido de saber se havia algum procedimento adicional que devesse ser realizado.

- Os técnicos do fabricante deram instruções à R. BB para verificar os valores de temperatura dos gases de escape, os valores da sonda lambda e, sobretudo, para tentar saber que tipo de condução era feito pela utilizadora do veículo.

- A 13 de julho de 2011, foram feitas as medições desses valores, os quais se encontravam normais e eram idênticos aos de outras viaturas com a mesma tecnologia.

- Os técnicos do fabricante do automóvel foram então informados de que, de acordo com indicações transmitidas pela utilizadora do veículo, este era maioritariamente usado em percursos curtos e citadinos.

- Esses técnicos concluíram então que a frequência com que, no veículo, se acendia o sinal avisador para regeneração do filtro de partículas se ficava a dever ao tipo de condução da utilizadora do veículo e ao facto desta ignorar as instruções para regeneração contidas no manual da viatura.

- Os técnicos da R. BB procederam à regeneração do filtro de partículas e, em 15 de julho de 2011, entregaram o veículo à A.

- Quando o veículo deu entrada nas oficinas da R. BB, em 29 de agosto de 2011, a situação era igual às anteriores, tendo sido efetuados, de novo, os procedimentos de regeneração do filtro de partículas, após o que o veículo foi entregue à A..


O Decreto- Lei 67/2003, de 08.04, que estabelece o regime do contrato de compra e venda para consumo, é aplicável aos contratos de compra e venda celebrado entre profissionais e consumidores – cfr. artigo 1º- A-1.

Ao contrato de compra e venda celebrado entre a autora e a ré BB é aplicável este regime, conforme, aliás, já foi decidido na sentença proferida na 1ª instância, nesta parte já transitada em julgado.


Nos termos do disposto no nº1 do artigo 2º do mesmo diploma, “o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda”.


A conformidade é sempre avaliada pela operação que consiste em comparar a prestação estipulada (explícita ou implicitamente) no contrato e a prestação efetuada – Jorge Morais de Carvalho “in” Manuel de Direito de Consumo, 2013, página 172.


Conforme também aqui se refere, mais do que caraterizar o que é ou não conforme o contrato, o que se pretende no citado artigo 2º é precisar-se o que é que consta do contrato, para depois, no momento do cumprimento, aferir se o objeto prestado corresponde ao objeto contratado.


O citado artigo, no seu nº2, veio consagrar um sistema de presunções.


O consumidor tem de provar um facto que dê origem à presunção de desconformidade, tendo o vendedor ónus de negar a verificação desse facto e depois, provar a conformidade com o contrato.


No nº 2 do artigo 2º do Decreto-lei 67/2003, estabelece-se que ”presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar alguns dos seguintes factos:

a) (…)

b) (…)

c) (…)

d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre s suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.”


Estas alíneas referem-se às qualidades e ao desempenho dos bens do mesmo tipo.

Não estão em causa as utilizações habituais, a que alude a alínea c), mas as próprias caraterísticas dos bens de consumo objeto do contrato.

Na verdade, “o bem deve apresentar todas as particularidades – quer ao nível da sua essência, quer no que respeita à sua performance – que o consumidor pode razoavelmente esperar, dentro dos limites a norma (natureza do bem e as declarações públicas do vendedor, do produtor ou do seu representante)”  - ob.cit, página 182.

“A razoabilidade deve ser avaliada segundo um critério objetivo, tendo como referência um consumidor normal (ou médio), e, portanto, com poucos conhecimentos da área do bem em causa” – ob. cit., página 183.

“Não releva a expetativa do consumidor em concreto, pois a norma remete para uma conceção objetiva de desconformidade; o bem tem de ser conforme com aquilo que qualquer pessoa possa razoavelmente esperar, independentemente de, em concreto, o consumidor ter essa expectativa”. – ob.cit., página183.

“Se se tratar de coisa genérica, a verificação da desconformidade da coisa efetivamente prestada tem como referência o género acordado pelas partes, com base nas características identificadas por estas como essenciais”. – ob. cit. página 183.


Postos estes conceitos, vejamos o caso concreto em apreço.


Será que em face dos factos dados como provados se tem que presumir a desconformidade referida na alínea d) do nº2 do artigo 2º do Decreto-lei 67/2003, conforme pretende a autora?

Melhor dizendo, será que a autora logrou provar que o veículo automóvel que comprou não apresentava as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que podia razoavelmente esperar?

Cremos bem que não.


Face àqueles factos, não podemos deixar de concluir que a autora aceitou adquirir o veículo automóvel em causa com as caraterísticas imanentes ao seu funcionamento, incluindo, pois, o sistema de filtro de partículas em causa.

Consequentemente, também não podemos deixar de concluir que aceitou o modo de manutenção dos diversos sistemas necessários ao funcionamento do veículo.

Não existem quaisquer factos que denunciem que a autora tenha questionado esse modo.


Ora, está provado que os veículos do tipo do comprado pela autora - VW Golf Plus, modelo 2.0 TDI 140 cv Highline – vêm equipados de fábrica com um sistema de filtro de partículas e que, quando se acende, no painel de instrumentos, uma luz avisadora de que o filtro se encontra saturado, o condutor deve proceder de acordo com as instruções contidas no manual do veículo.

E que de acordo com este manual, o utilizador deve efetuar a limpeza do referido sistema, devendo para o efeito circular em quarta velocidade cerca de quinze minutos, a uma velocidade de, pelo menos, 70 Kms/h, sendo certo que isso pode não acontecer em todos os casos.

E que quando não ocorra a limpeza do sistema de partículas, acende-se no painel de instrumentos uma luz de motor e é necessário recorrer a uma oficina para efetuar o processo de regeneração.


Temos, pois, que os veículos do mesmo tipo do veículo adquirido pela autora, funcionam como este funciona, nomeadamente quanto à existência do filtro de partículas e seu modo de manutenção.

Isto significa que o comprador normal, médio, desses veículos não podia razoavelmente contar que qualquer um deles não estivesse provido desses filtros e não tivesse que suportar o necessário modo de manutenção.


Mas é óbvio que podia esperar que esse filtro e o modo de manutenção indicado funcionassem corretamente.

Será que no caso concreto em apreço existem factos que nos permitam isso concluir?

Entendemos que não.


O que se sabe é que as luzes avisadoras, existentes no painel de instrumentos, de que o filtro de partículas se encontrava saturado, se acendem frequentemente.

Para se presumir que isso constituiria uma desconformidade, teria a autora que demonstrar que aqueles factos se ficavam a dever à falta de qualidades e desempenho habituais do veículo.

Ora, não existem elementos seguros que nos permitam concluir qual é essa causa, que tanto pode ser atribuída a qualquer defeito do veículo, como à atuação da autora no modo de manutenção, como a qualquer outra causa.


Concluímos, pois, que perante a não demonstração dos factos indiciários da presunção referida na transcrita alínea d) do nº2 do artigo 2º do Decreto-lei 67/3003, não se pode considerar que o veículo vendido pela ré BB à autora estivesse desconforme com o contratado.

E assim, não se provando esta desconformidade, não podia a autora invocar, como invocou, a mesma como causa da resolução do contrato e, consequentemente, dos restantes pedidos.

Motivo porque não merece qualquer censura o acórdão recorrido.


A decisão


Nesta conformidade, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 5 de Novembro de 2015


Oliveira Vasconcelos (Relator)

Fernando Conceição Bento

João Carlos Pires Trindade