Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B2078
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
COMPRA E VENDA
EMPREITADA
PREÇO
MORA
REVISTA
Nº do Documento: SJ200606290020787
Data do Acordão: 06/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : 1. O erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa em quadro de decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador excede o âmbito do recurso de revista.
2. Não pode ser considerada no recurso como matéria de facto relevante para a decisão, por se tratar de mera conclusão jurídica, a afirmação de que a ré ainda deve à recorrida determinada quantia.
3. Aquela afirmação não podia integrar a base instrutória, e porque a integrou, não devia o tribunal responder-lhe nos termos em que o fez, e como assim lhe respondeu, deve ser ignorada como se não existisse.
4. Não é contrato de compra e venda, mas sim de empreitada, o que decorre solicitação por uma pessoa a outra de um orçamento para a realização de determinada infra-estrutura eléctrica e telefónica, da apresentação do orçamento pela última com discriminação de preço do material e da mão-de-obra, da convenção subsequente entre as partes, face ao desacordo quanto ao preço, no sentido de a última proceder à realização dos referidos trabalhos para a primeira, fornecendo os materiais e a mão-de-obra e apresentando posteriormente a respectiva relação, e, finalmente, do recebimento da obra por aquela sem qualquer reparo, salvo quanto ao preço.
5. Não tendo as partes convencionado o preço relativo ao contrato de empreitada nem a forma de o determinar, deve atender-se para o efeito aos critérios a que se reportam os artigos 883º, nº 1 e 1211º, nº 1, do Código Civil.
6. No quadro das referidas vicissitudes, a data da factura continente da afirmação impressa de condição de pagamento a trinta dias, na qual o empreiteiro indicou os trabalhos executados e o respectivo preço, é insusceptível de relevar para a definição da situação de mora, que dever ser considerada a partir da citação do réu dono da obra para a acção.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I

Empresa-A intentou, no dia 5 de Dezembro de 2002, contra Empresa-B, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 30 281,84 e juros de mora à taxa legal desde 2 de Dezembro de 2002 sobre a quantia de € 28 748,58, com fundamento na omissão do pagamento do preço de infra-estruturas eléctricas e telefónicas realizadas a solicitação da ré no âmbito da construção de um prédio urbano.
A ré, em contestação, afirmou que a autora só fez metade dos trabalhos e que os facturou como se tivesse concluído a obra, e, na réplica, a segunda reiterou o afirmado na petição inicial.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, no dia 8 de Julho de 2005, por via da qual a ré foi condenada a pagar à autora € 30 281,84, incluindo juros moratórios à taxa legal vencidos até 1 de Dezembro de 2002 e os vincendos desde o dia seguinte sobre € 28 748,50.
Apelou a ré, e a Relação, por acórdão proferido no dia 1 de Março de 2006, negou provimento ao recurso.

Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- a factura nº 29-A foi emitida quando os trabalhos ainda estavam em execução e o valor dos trabalhos e do material aplicado pela recorrida nunca foi determinado ou acordado;
- o documento de folhas 91 e seguintes, emitido pela recorrida no dia 23 de Setembro de 2002, evidencia diferenças substanciais de unidades fornecidas e de preços unitários e de preços globais relativos à mesma obra, comparados com os documentos de folhas 4 e 86
- o tribunal fundamentou a decisão em documentos com valores diferentes, referindo-se embora à mesma obra onde a recorrida realizou determinados trabalhos para a recorrente;
- a recorrida comprometeu-se a rever a factura e não a reviu, pelo que a recorrente não podia ser condenada a pagar-lhe o seu valor;
- como não foi acordado prazo de pagamento, estava vedado ao tribunal condenar a recorrente no pagamento de juros contados após trinta dias a data do fornecimento, e quanto muito só a partir da data da citação.
- o acórdão violou os artigos 804º, 806º, 874º do Código Civil e 653º, 655º e 659º do Código de Processo Civil;
- deve substituir-se a decisão recorrida por outra que reconheça à recorrida o valor dos trabalhos e dos materiais por ela realmente fornecidos, a determinar em processo distinto em que a recorrida prove o respectivo valor.

Respondeu a recorrida, em síntese de conclusão:
- a recorrente deve à recorrida € 28 748, 50 correspondentes ao valor do material e mão-de-obra aplicados na obra;
- os juros de mora, conforme o convencionado, são devidos desde 21 de Junho de 2002.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. A autora dedica-se à actividade de projectos e instalações eléctricas; e a ré à actividade de construção civil, ambas com intuito lucrativo.
2. A ré, no exercício da sua actividade, procedeu à construção de um prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, na freguesia de Lomar, Município de Braga, com destino à venda das suas fracções autónomas.
3. A autora, no exercício da sua actividade, foi solicitada e incumbida pela ré de lhe executar vários trabalhos de instalações eléctricas no prédio mencionado sob 2.
4. Após a solicitação da ré, a autora apresentou-lhe o orçamento para a execução das infra-estruturas eléctricas e telefónicas com o valor de € 37 391,09 acrescido de € 6 356,49 relativos ao imposto sobre o valor acrescentado, em conformidade com os documentos, insertos a folhas quatro a nove, discriminativos de todo o material e preços unitários, incluindo o custo unitário de cada hora laboral de cada um dos trabalhadores intervenientes.
5. Quando a ré solicitou à autora o orçamento mencionado, parte da obra havia sido iniciada por outra empresa, e a última apresentou então à primeira o orçamento-proposta nº 02/131, de 25 de Fevereiro de 2002, no valor de € 13 121,31.
6. Na posse deste orçamento, porque o achou demasiado elevado, a ré, de imediato contactou a autora, comunicando-lhe ser o preço muito caro, porquanto, efectuado com base no projecto, não tinha em conta que havia trabalhos já executados.
7. Face à mencionada não aceitação pela ré de tal valor, o engenheiro AA, ao serviço da autora, comprometeu-se a rever o orçamento apresentado e, para tal, os representantes de uma e de outra deslocaram-se à obra a fim de fazerem um levantamento dos trabalhos a executar, ficando a autora de apresentar um novo orçamento rectificado.
8. No dia 7 de Março de 2002, a autora enviou via fax à ré o orçamento rectificado, e a ré discordou de novo quanto ao valor respectivo, pois continuava a contemplar trabalhos já executados.
9. Nessa situação de impasse, a autora e a ré, que se não entendiam quanto ao valor a atribuir aos trabalhos já executados, acordaram em proceder à realização dos trabalhos, executando a primeira os que faltavam, com fornecimento dos materiais e da mão-de-obra e apresentação posterior da respectiva relação.
10. A autora iniciou os trabalhos na obra em Abril de 2002 e, após a sua execução e aplicação do respectivo material, procedeu à elaboração da factura nº 49 A, em 21 de Maio de 2002, correspondente ao valor do trabalho e material aplicados na obra, no montante de € 37 391,09, acrescidos de imposto sobre o valor acrescentado à taxa respectiva no montante de € 6 356,49, sendo o total da factura no montante de € 43 747,58.
11. A ré recebeu a obra sem qualquer reparo e reclamou do valor da factura e, após essa reclamação, a autora, através do engenheiro BB, comprometeu-se a rever a factura.
12. O referido custo do material e da mão-de-obra orçamentado e facturado pela autora corresponde a preços correntes de mercado.
13. A autora, através do engenheiro BB, seu sócio-gerente, solicitou à ré o pagamento de € 15 000, que ela efectuou atentas as boas relações existentes entre ambas as sociedades, e, no dia 4 de Junho de 2002, a ré, por conta, pagou à autora a quantia de € 15 000 através do cheque nº 8947165 da Empresa-C.
14. A ré deve ainda à autora a quantia de € 28 747,58 desde 21 de Junho de 2002 - após o decurso de trinta dias da emissão da factura.


III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrida tem ou não direito a exigir da recorrente o pagamento de € 30 281,84 e juros de mora à taxa legal desde 2 de Dezembro de 2002.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente e da recorrida, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática;
- deve ou não manter-se a matéria de facto fixada pela Relação?
- natureza do contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida;
- efeitos jurídicos do referido contrato;
- critérios de determinação do preço em causa;
- contagem dos juros moratórios;
- síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela análise da questão de saber se deve ou não manter-se a matéria de facto fixada pela Relação.
A recorrente continua a pôr em causa no recurso de revista a decisão da matéria de facto proferida nas instâncias baseada na factura e nos outros documentos que indicou.
A Relação considerou que do processo não constavam todos os elementos de prova que serviram de base à resposta aos quesitos, por ter sido produzida prova testemunhal sem transcrição, não haver documento ou elemento que imponha resposta diversa aos quesitos em causa nem documento novo superveniente suficiente para destruir a prova em que as respostas assentaram.
Salvo casos excepcionais legalmente previstos, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro -LOFTJ).
Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Excepcionalmente, pode sindicar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, só pode conhecer do juízo de prova sobre a matéria de facto formado pela Relação quando esta deu como provado um facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência, ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no nosso ordenamento jurídico de origem interna ou externa.
Em consequência, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador excede o âmbito do recurso de revista.
Os documentos referidos pela recorrente são particulares e, pela sua estrutura e fim, são insusceptíveis de implicar a produção de prova plena (artigos 363º, nºs 1 e 2, 374º, nº 1 e 376º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
A Relação apreciou a decisão da matéria de facto proferida no tribunal da 1ª instância com base em prova de livre apreciação judicial, nos termos do artigo 655º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Por conseguinte, sem prejuízo do que a seguir se vai referir, não pode este Tribunal sindicar e, consequentemente, não pode alterar a decisão da matéria de facto proferida pela Relação no sentido de manter a fixada no tribunal da primeira instância.
Todavia, não se considera como matéria de facto relevante para a decisão da causa, por se tratar de mera conclusão jurídica, a afirmação constante de II 14, ou seja, a de que a ré ainda deve à recorrida a quantia de € 28 747,58 desde 21 de Junho de 2002.
Com efeito, dada a estrutura jurídica daquela afirmação, não podia integrar a base instrutória, e porque a integrou, não devia o tribunal responder-lhe nos termos em que o fez, e como assim lhe respondeu, a conclusão é no sentido de dever ser ignorada por inexistência (artigos 511º, nº 1 e 646º, nº 4, do Código de Processo Civil).

2.
Atentemos agora na natureza e nos efeitos dos contratos celebrados entre a recorrente e a recorrida.
As instâncias qualificaram o contrato em causa como contrato de compra e venda e de colocação de materiais, enquanto a recorrente entende tratar-se de um contrato de empreitada.
Expressa a lei que a compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço (artigo 874º do Código Civil).
Dir-se-á estar envolvida neste tipo contratual uma dupla transmissão prestacional, por um lado, de um direito de propriedade ou outro, e, por outro, do efectivo meio de pagamento correspondente ao preço.
Trata-se, assim, de um contrato oneroso, bilateral, com recíprocas prestações e eficácia real ou translativa.
A empreitada é, por seu turno, o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra mediante um preço (artigo 1207º do Código Civil).
A circunstância de a recorrida ter facturado à recorrente os materiais utilizados e o trabalho, sem convenção prévia sobre o preço, terá, porventura, motivado as instâncias no que concerne à qualificação do contrato que empreenderam.
Mas nessa perspectiva, então tratar-se-ia de coligação de um contrato de compra e venda e de um contrato de prestação de serviços, de natureza comercial (artigos 874º e 1154º do Código Civil, 2º, 13º, nº 2º, do Código Comercial).
Todavia, tendo em conta, por um lado, os termos da proposta contratual mencionada sob II 3, relativa à execução de infra-estruturas eléctricas e telefónicas em determinado prédio, que a recorrida dirigiu à recorrente, e a apresentação pela primeira o orçamento para o efeito constante de II 4.
E, por outro, o acordo mencionado sob II 9, e a própria expressão de recebimento da obra constante de II 11, a conclusão é no sentido de que se não trata de mera coligação de contratos de compra e venda e de prestação de serviços.
Não obstante a discussão sobre o preço concernente à actividade desenvolvida pela recorrida para a recorrente, a conclusão é a de que se trata de um contrato de empreitada de natureza comercial.

3.
Vejamos agora os efeitos jurídicos do referido contrato.
Conforme acima se referiu, a recorrente e a recorrida celebraram um contrato de empreitada cujo objecto mediato foi a obra de infra-estruturas eléctricas e telefónicas no âmbito da edificação de determinado prédio urbano.
É um contrato sinalagmático, porque dele resultam para as partes obrigações recíprocas e interdependentes.
Dele resultarem, com efeito, para a recorrida a de realizar a obra convencionada acima referida, e para a recorrente a de pagar o respectivo preço (artigos 406º, nº 1, 762º, nº 2, e 1207º do Código Civil).
O preço deve ser pago, na falta de convenção ou uso em contrário, no acto da aceitação da obra (artigo 1211º, nº 1, do Código Civil).
A aceitação da obra pelo respectivo dono deve ocorrer, como é natural, no termo da sua conclusão.

4.
Atentemos agora na sub-questão da determinação e do pagamento do preço relativo à obra convencionada.
O caso vertente é envolvido pela divergência entre a recorrente e a recorrida no que concerne à determinação do preço da obra que a última realizou para a primeira.
Não se considera a afirmação mencionada sob II 14 por se tratar, conforme acima já se referiu, de uma conclusão meramente jurídica.
Expressa a lei, ser aplicável à determinação do preço, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 883º do Código Civil (artigo 1211º, nº 1, do Código Civil).
No caso vertente não há, como é natural, preço fixado por entidade publica e a recorrente e a recorrida não determinaram nem convencionaram o modo da sua determinação.
Com efeito, em quadro de impasse nessa matéria, elas limitaram-se a convencionar subsequentemente que a recorrida procederia à execução dos trabalhos em falta, envolvendo materiais e trabalho, na obra de infra-estruturas eléctricas e telefónicas acima referida e que, posteriormente, a última apresentaria a respectiva relação.
Nesse quadro convencionado, a recorrida realizou a mencionada obra no decurso dos meses de Abril e Maio de 2002 e elaborou, no dia 21 de Maio de 2002, a factura relativa ao preço que considerou quanto ao material e à mão-de-obra
A recorrente recebeu a obra realizada pela recorrida, mas reclamou do valor indicado pela última, e esta, através de um seu representante, comprometeu-se a revê-lo, ignorando-se, porém, se ocorreu ou não tal revisão.
Depois disso, a solicitação de um representante da recorrida, a recorrente pagou a esta última, no dia 4 de Junho de 2002, € 15 000, e, depois disso, não lhe pagou o restante, o que motivou a instauração desta acção no dia 5 de Dezembro daquele ano de 2002.
Expressa a lei aplicável, devidamente adaptada, além do mais que aqui não releva, que se o preço não estiver fixado por entidade pública e as partes o não determinarem nem convencionarem o modo de o determinar, vale como preço contratual o que o empreiteiro normalmente praticar à data da conclusão do contrato ou, na falta dele, o do mercado no momento do contrato e no lugar em que o empreiteiro deva cumprir, ou na insuficiência dessas regras, o determinado pelo tribunal segundo juízos de equidade (artigos 883º, nº 1 e 1211º, nº 1, do Código Civil).
No caso vertente, porque o preço da obra em causa não está fixado por entidade pública nem as partes o determinaram nem convencionaram o modo de o determinar, importa atender, para o efeito, à ordem de critérios supletivos a que se reporta o mencionado normativo.
Ignora-se o preço que a recorrida praticava em relação às obras do tipo daquela que está aqui em análise, mas sabe-se, por via do que consta de II 12, que o custo do material e da mão-de-obra orçamentado por ela facturado corresponde a preços correntes de mercado.
Por isso, face aos factos provados e às referidas considerações de ordem jurídica, importa concluir que o preço da mencionada obra, incluindo o imposto sobre o valor acrescentado, se cifra no montante de € 43 747,58.
Ora como a recorrente já entregou à recorrida a quantia de € 15 000, certo é que ainda lhe falta pagar desse preço a quantia de € 28 747,58.

5.
Vejamos agora a problemática da contagem dos juros moratórios.
No tribunal da 1ª instância e na Relação considerou-se, com base na afirmação mencionada sob II 14, por um lado, que a recorrente devia à recorrida, desde 21 de Junho de 2002 - fim do trigésimo dia constante da factura como data de pagamento - a quantia de 28 747,58.
A recorrente alegou que o tribunal não podia condená-la no pagamento de juros desde a referida data por virtude de não ter sido acordado o prazo de pagamento.
A este propósito, está assente, por um lado, que na factura a que acima se fez referência, elaborada no dia 21 de Maio de 2002, pela recorrida, consta a menção da condição de pagamento a trinta dias.
E, por outro, que a recorrente reclamou da mencionada factura e a recorrida, através de seu representante, comprometeu-se a revê-la.
Ignora-se, conforme já se referiu, se a recorrida procedeu ou não à revisão da mencionada factura, mas sabe-se que a presente acção foi instaurada exactamente com base nos valores dela constantes, e que a recorrente foi para ela citada no dia 9 de Dezembro de 2002.
Expressa a lei, por um lado, que a simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, e que ela ocorre quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação possível não foi efectuada no tempo devido (artigo 804º, do Código Civil).
E, por outro, quanto às obrigações pecuniárias, como aquela que aqui está em causa, que a indemnização corresponde aos juros legais a contar do dia da constituição em mora, salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou se as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal (artigo 806º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).
A propósito da data da constituição em situação de mora, a regra é no sentido de que o devedor só fica nela constituído depois de ser judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir, no primeiro caso, por exemplo, por via da citação para a acção declarativa de condenação (artigos 481º, proémio, do Código de Processo Civil e 805º, nº 1, do Código Civil).
Uma das excepções à mencionada regra é a que consta da alínea a) do nº 2 do artigo 805º do Código Civil, segundo a qual há mora do devedor, independentemente de interpelação, se a obrigação tiver prazo certo, ou seja, no que concerne a prestações que tenham prazo certo de cumprimento, designadamente por via de convenção nesse sentido.
Conforme acima se referiu, não pode relevar como afirmação de facto, a conclusão jurídica constante de II 14.
Acresce que a data de pagamento constante da mencionada factura não foi convencionada entre a recorrente e a recorrida, além de que depois da sua emissão a última se vinculou perante a primeira no sentido de operar a sua revisão.
As referidas vicissitudes no que concerne à determinação do preço da obra realizada pela recorrida para a recorrente implicam, ao invés do que foi considerado nas instâncias, a conclusão de que se não pode entender como data certa para o pagamento a correspondente ao termo do prazo de trinta dias constante da mencionada factura.
Em consequência, a situação de mora da recorrente só pode ser temporalmente fixada a partir do dia em que foi citada para a acção declarativa de condenação em causa (artigo 805º, nº 1, do Código Civil).


6.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.
Inexiste fundamento legal para que no recurso de revista se altere a matéria de facto fixada pela Relação, mas não pode ser considerada no recurso, como se matéria de facto se tratasse, a conclusão jurídica mencionada sob II 14.
Os factos provados revelam que a recorrente e a recorrida celebraram um contrato de empreitada de natureza comercial.
O preço da obra é o considerado nas instâncias, mas por virtude do segundo critério supletivo previsto nos artigos 883º, nº 1 e 1211º, nº 1, do Código Civil.
A recorrente só se constituiu na situação de mora na sequência da sua citação para a presente acção.
Por isso, o recurso só procede no que concerne à substituição da data do início do pagamento dos juros de mora de 21 de Junho para 9 de Dezembro de 2002.

Vencidas parcialmente no recurso, são a recorrente e a recorrida responsáveis pelo pagamento das custas respectiva na proporção do vencimento (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, dá-se provimento ao recurso apenas quanto ao segmento relativo ao início da contagem dos juros de mora, que se fixa no dia 9 de Dezembro de 2002, mantendo-se no restante o decidido nas instâncias, e condenam-se a recorrente e a recorrida, no pagamento das custas respectivas, na proporção do vencimento, designadamente no que concerne à sentença proferida no tribunal da 1ª instância e ao recurso de apelação.

Lisboa, 29 de Junho de 2006
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís