Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
641/20.0T8MAI.P1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
JOGADOR PROFISSIONAL
JOGADOR DE FUTEBOL
FUTEBOLISTA PROFISSIONAL
CONTRATO DE SEGURO
REPARAÇÃO
RESPONSABILIDADE
REGULAMENTOS DA FIFA
CLUBE DE FUTEBOL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário :
I- Constitui acidente de trabalho a lesão desportiva sofrida por jogador profissional de futebol aquando da sua participação em jogo da seleção nacional, uma vez que esta sua atividade se encontra prevista no contrato de trabalho e decorre de obrigações impostas ao jogador e ao clube, não deixando o atleta, nessas circunstâncias, de estar a desempenhar a prática desportiva para a qual foi contratado.

II- Nos termos do art. 79.º, nº 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro [LAT], “o empregador é obrigado a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na presente lei para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro”. No mesmo sentido, dispõe a norma especial constante do art. 9º, nº 1, da Lei n.º 27/2011, de 16 de junho, que “no ato do registo do contrato de trabalho desportivo (…) é exigida prova da celebração do seguro de acidentes de trabalho”.

III- Por outro lado, estipula o art. 2.º, n.º 3, do Anexo I do Regulamento Relativo ao Estatuto e Transferências de Jogadores, da FIFA, que o clube em que o jogador está inscrito é responsável pela cobertura de seguro contra doença e acidentes durante todo o período da cedência à respetiva seleção nacional, cobertura que deve estender-se a quaisquer lesões sofridas pelo jogador durante qualquer jogo internacional para o qual tenha sido cedido.

IV- Tendo ainda presente o texto da apólice do seguro, do qual decorre, nomeadamente, que as sobreditas obrigações legais eram do conhecimento das rés, que delas estavam cientes, impõe-se concluir que a transferência para a R. seguradora da responsabilidade por acidentes de trabalho abrange todas as dimensões da atividade do atleta que seja desenvolvida em execução do programa contratual contemplado no contrato de trabalho, como é o caso da sua participação em jogos da respetiva seleção nacional.

Decisão Texto Integral:

Revista n.º 641/20.0T8MAI.P1.S1


MBM/DM/JES


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1. AA, praticante desportivo profissional de futebol, intentou ação com processo especial emergente de acidente de trabalho contra CARAVELA - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., e ... B..., SOCIEDADE DESPORTIVA DE FUTEBOL, S.A.D.


2. Na 1ª instância foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a ação, decidiu: a) condenar a ré seguradora no pagamento ao autor de 30,00 €, a título de reembolso de despesas de transporte, e no capital de remição da pensão anual e vitalícia, devida desde 18.04.2018, no montante de 3.545,63 €, tudo acrescido de juros de mora; b) absolver esta ré dos restantes pedidos; c) absolver a ré “B...” de todos os pedidos contra si formulados.


3. Interposto recurso de apelação pela R. seguradora, o Tribunal da Relação do Porto (TRP), concedendo-lhe provimento, decidiu, com um voto de vencido, absolver também a recorrente de todo o peticionado na ação, considerando, em síntese, que o acidente de trabalho sofrido por atleta num jogo da respetiva seleção nacional não ocorre sob a autoridade do empregador desportivo, não cabendo por isso a sua reparação à seguradora que com este celebrou contrato de seguro que não prevê a cobertura de acidentes nessas circunstâncias.


4. O A. interpôs recurso de revista, dizendo, essencialmente, nas conclusões da sua alegação:


– Dispõe o n.º 3 do seu Princípio 2 do ANEXO 1 do REGULATIONS ON THE STATUS AND TRANSFER OF PLAYERS da FIFA (em vigor à data do acidente de trabalho aqui em crise), relativo à DISPENSA DE JOGADORES PARA AS SELECÇÕES NACIONAIS, que: «...O clube em que o jogador em questão está inscrito é responsável pela cobertura de seguro contra doença e acidentes durante todo o período da cedência. Esta cobertura deve estender-se a quaisquer lesões sofridas pelo jogador durante o(s) jogo(s) internacional/ais para o(s) qual/quais foi cedido.»


– O Acórdão recorrido incorreu em erro de direito ao alegar que disposto nesta norma não tem aplicação ao caso concreto porque “não se pode concluir que a Federação Portuguesa de Futebol tenha acolhido tal regime”.


– Nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 3.º dos Estatutos da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), os Estatutos, Regulamentos, Diretivas e Decisões da FIFA e da UEFA, incluindo o Código de Ética da FIFA, organização internacional que a FPF faz parte, constituem parte integrante dos seus Estatutos e são obrigatórios para si.


– A entidade patronal estava obrigada a celebrar um seguro de acidentes de trabalho que cobrisse os danos consequentes de eventuais acidentes de trabalho ocorridos pelos seus jogadores ao serviço das seleções dos seus países.


– Não existem motivos legais para exclusão da responsabilidade da 1.ª Ré, porquanto, a representação das seleções nacionais é feita com autorização e no interesse da Entidade Patronal, sendo o clube que paga o salário do jogador durante o período em que o jogador está ao serviço da respetiva seleção e, durante essa cedência, mantêm-se em vigor todos os direitos e deveres da relação contratual entre jogador e clube.


– A FIFA regulamenta a relação entre clubes, jogadores e seleções nacionais dos países de origem dos jogadores, dispondo no seu REGULATIONS ON THE STATUS AND TRANSFER OF PLAYERS em vigor 07.10.2017 (junto documento n.º 6 com a Petição Inicial), no número 3 do seu Princípio 2 do ANEXO 1 que: «O clube em que o jogador em questão está inscrito é responsável pela cobertura de seguro contra doença e acidentes durante todo o período da cedência. Esta cobertura deve estender-se a quaisquer lesões sofridas pelo jogador durante o(s) jogo(s) internacional/ais para o(s) qual/quais foi cedido.»


– O facto da 2.ª Ré e Entidade Patronal ter, ou não ter, recorrido a tal mecanismo de compensação, é totalmente alheio ao Sinistrado/Autor e em nada pode prejudicar o seu direito de ser indemnizado pelas sequelas que resultaram do acidente de trabalho.


– A Ré entidade Patronal tinha interesse na participação do Autor nesse jogo (FACTO PROVADO N.º 39 DA SENTENÇA DA 1.ª INSTÂNCIA), sendo que a representação das seleções nacionais – que não é gratuita – é feita no interesse da Entidade Patronal, que retira proveitos diretos de tais participações (FACTO PROVADO N.º 42 DA SENTENÇA DA 1.ª INSTÂNCIA), pelo que a FIFA instituiu um sistema de compensações económicas aos clubes que dispensam jogadores às respetivas seleções - FACTO PROVADO N.º 44 DA SENTENÇA DA 1.ª INSTÂNCIA.


– Das condições particulares da apólice do seguro em causa não consta qualquer exclusão de responsabilidade por acidentes ocorridos pelo exercício da sua profissão de jogador profissional de futebol ao serviço das respetivas seleções nacionais, sendo que a cláusula 6ª das Condições gerais da Apólice prevê uma lista de situações que ficam excluídas da proteção do contrato de seguro.


– Uma hipotética absolvição da Entidade Responsável “Caravela S.A.”, sempre acarretaria, em consequência, a condenação da 2.ª Ré “B... SAD” do pagamento das indemnizações fixadas ao Sinistrado, por incumprimento culposo das obrigações de celebrar seguro de acidentes de trabalho imposto pelo n.º 3 do Princípio 2 do Anexo 1 do Regulamento relativo ao Estatuto e Transferências de Jogadores relativo à Dispensa de Jogadores para as Selecções Nacionais.


5. Contra-alegou a R. seguradora.


6. O Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido do provimento do recurso, em parecer a que apenas respondeu a recorrida, em linha com as posições antes assumidas nos autos.


7. Em face das conclusões da alegação de recurso, e inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), a única questão a decidir1 consiste em determinar se o acidente de trabalho em causa se encontra abrangido pela cobertura do contrato de seguro celebrado entre as rés.


Decidindo.


II.


8. Com relevo para a decisão, foi fixada pelas instâncias a seguinte matéria de facto:


1. O Autor é Praticante Desportivo Profissional da modalidade de futebol.


2. Tem nacionalidade gabonesa (…).


3. No dia 06 de junho de 2017, entre os “... B... – Sociedade Desportiva de Futebol, SAD” e o Autor foi celebrado um contrato de trabalho desportivo, pelo qual este se comprometeu a exercer a atividade de jogador profissional de futebol sob a autoridade e direção da 2ª Ré, mediante retribuição, com início de produção de efeitos no dia 01 de julho de 2017 e termo em 30 de junho de 2019 (…).


[…]


8. À data do alegado acidente, por contrato de seguro válido, titulado pela apólice n.º .......94, a responsabilidade por acidentes de trabalho verificados com o Autor ao serviço da 2ª Ré, havia sido transferida para a 1ª Ré – cfr. doc. 1 da contestação da Ré seguradora.


[…]


13. O Autor é jogador internacional pela seleção principal do seu país – Gabão – desde 2012.


[…]


15. Quando o Autor celebrou o seu contrato de trabalho com a 2ª Ré “... B...” SAD em 06 de junho de 2017, esta bem sabia que o Autor era assiduamente convocado para representar a seleção do seu país.


16. O Autor foi convocado para, no sábado dia ... de ... de 2017, pelas ...horas locais, jogar pela seleção principal “A” do seu país Gabão6, para participar no jogo de seleções entre ... – Gabão, disputado no ..., a contar para o grupo C (C.A.F.) de Apuramento para o Campeonato de Mundo de Futebol 2018 (a disputar na ...) […].


17. A convocatória para tal deslocação, estágio e jogo da seleção foi enviada pela Federação do Gabão8 para a 2.ª Ré “... B...” SAD.


18. Que autorizou a deslocação e viagem do Autor para tal estágio e jogo oficial.


19. O Autor foi titular nesse jogo entre ... e o Gabão.


20. No dia ... de ... de 2017, às ... horas locais, ou seja, ao minuto 14:30 do jogo de futebol da sua seleção do Gabão contra ..., no ..., em ... – ..., na disputa de um lance com um adversário da seleção de ..., o Sinistrado ficou com o pé esquerdo preso na relva e, ao rodar, sofreu uma entorse do joelho esquerdo.


21. O Sinistrado foi assistido em campo pela equipa médica da seleção do Gabão10 que, perante a gravidade da lesão constatada, obrigou o Autor a ser substituído ao minuto 18 desse jogo.


22. O que lhe ocasionou as lesões e incapacidades descritas no relatório de perícia de avaliação do dano corporal realizada à ordem destes autos na Delegação ... do INML e constante de fls. 93 a 95.


23. Do supra descrito acidente de trabalho resultou, como consequência direta e necessária, rotura do ligamento cruzado anterior e rotura do menisco interno do joelho esquerdo.


24. O Autor ficou imediatamente e totalmente impedido de continuar a exercer a sua profissão.


25. Tendo regressado a Portugal e se apresentado na sua Entidade Patronal 2ª Ré “... B...” SAD.


26. Este acidente de trabalho foi participado pela sua Entidade Patronal e 2ª Ré “... B...” SAD à 1ª Ré e Entidade Responsável Caravela, S.A.


[…]


31. […] [O] médico da 2.ª Ré “... B...” SAD, decidiu que, para tratamento dessas lesões, o Sinistrado deveria ser submetido a intervenção cirúrgica ao seu joelho esquerdo, instruções essas às quais o Sinistrado se submeteu e aceitou.


[…]


33. Essa cirurgia consistiu na realização de ligamentoplastia do LCA e meniscectomia parcial interna no joelho esquerdo do Sinistrado.


34. A recuperação física inerente a tal intervenção e tendente ao regresso do Sinistrado ao exercício da sua profissão foi realizado pelo Departamento Médico da 2.ª Ré “... B...” SAD e nas suas instalações.


[…]


39. A Ré Entidade Patronal tinha interesse na participação do Autor no jogo de futebol onde ocorreu a lesão uma vez que poderia resultar proveito económico pelo facto de o Autor ser jogador internacional pelo seu país.


[…]


42. A representação das seleções nacionais é feita no interesse da Entidade Patronal, que retira proveitos diretos de tais participações, quer ao nível da publicidade e valorização dos direitos de imagem do jogador que são detidos, em exclusivo, pelo Clube, quer pela valorização dos seus jogadores enquanto “ativos económicos”, que muitas vezem triplicam ou quadruplicam de valor económico apenas pelo facto de serem internacionais pelos respetivos países.


43. É o clube que paga o salário do jogador durante o período em que o jogador está ao serviço da respetiva seleção.


44. A FIFA institui compensações económicas aos clubes que dispensam jogadores às respetivas seleções.


45. No caso concreto a Entidade Patronal teve prejuízos de várias ordens com a participação do Autor na seleção nacional.


[…]


49. No dia 16 de janeiro de 2019, antes do termo previsto do contrato de trabalho desportivo, as Partes revogaram o contrato de trabalho do Autor.


50. Durante o período em que o Autor esteve na seleção, a 2ª Ré continuou onerada com o pagamento do prémio mensal do respetivo seguro à 1ª Ré.


[…]


55. O Autor esteve afetado de ITA desde .../.../2017 até 17/04/2018 e encontra-se afetado de IPP de 8,74%, a partir de 18/04/2018, de acordo com a TNI.


III.


9. O recorrente e a recorrida (R. seguradora) – como desde logo decorre das contra-alegações desta – estão de acordo no tocante a algumas questões fundamentais suscitadas nos autos, as quais, efetivamente, não suscitam qualquer dúvida.


A saber: i) está em causa um acidente de trabalho; ii) São diretamente aplicáveis, no ordenamento jurídico interno, as disposições regulamentares emanadas da FIFA; iii) e, nos termos art. 2.º, n.º 3, do Anexo I do Regulamento Relativo ao Estatuto e Transferências de Jogadores, da FIFA, o clube em que o jogador está inscrito é responsável pela cobertura de seguro contra doença e acidentes durante todo o período da cedência à respetiva seleção nacional, cobertura que deve estender-se a quaisquer lesões sofridas pelo jogador durante qualquer jogo internacional para o qual tenha sido cedido.


Deste modo, a única questão a decidir consiste em saber se a cobertura do contrato de seguro celebrado entre as rés abrange o acidente de trabalho em apreço.


Vale por dizer que se impõe interpretar o conteúdo de tal contrato, com especial enfoque no contexto normativo em que o mesmo foi celebrado, sendo que, como se refere no Ac. do STJ de 21.05.2020, Proc. nº 15910/17.8T8PRT.P1.S1 (7ª Secção)2: «[N]esta tarefa interpretativa, importa (…) recordar o ensinamento de Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral Tomo I, 1999, págs. 478, 479 e 483) quando afirma que “a doutrina atual encara a interpretação do negócio jurídico como algo de essencialmente objetivo; o seu ponto de incidência não é a vontade interior: ela recai antes sobre um comportamento significativo.” Acrescenta ainda o mesmo autor que a autonomia privada “(...) tem de ser temperada com o princípio da tutela da confiança...”, que não se opõe à autonomia privada, antes a delimita, e que a própria interpretação não pode deixar de atender à boa-fé, ou seja, aos valores fundamentais do ordenamento jurídico que aí se jogam».


10. Resulta das Condições Particulares da Apólice (cfr. doc. nº 1 junto com a contestação da Ré, como consta do ponto nº 8 da matéria de facto), nomeadamente, que: “a legislação aplicável é a Lei 98/2009 e as respetivas normas regulamentares, bem como a Lei 27/2011”; “foi celebrado entre a CARAVELA e a ENTIDADE EMPREGADORA um contrato de seguro do ramo Acidentes de Trabalho de Praticantes Desportivos Profissionais”; “o referido contrato de seguro tem por objeto garantir, nos termos previstos na Lei 27/2011, de 16 de junho, a reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho (…) ao serviço da ENTIDADE EMPREGADORA (…)”.


Ora, conjugando o clausulado pelas partes com a sobredita norma estipulada pela FIFA, com o disposto no art. 79.º, nº 1, da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro (LAT), segundo o qual “o empregador é obrigado a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na presente lei para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro”, bem como com a norma especial a este propósito constante do art. 9º, nº 1, da Lei n.º 27/2011, de 16 de junho (“No ato do registo do contrato de trabalho desportivo (…) é exigida prova da celebração do seguro de acidentes de trabalho”), em vigor à data dos factos, não pode deixar de concluir-se que a transferência para a R. seguradora da responsabilidade por acidentes de trabalho relativos ao autor (ao serviço da 2ª R.) abrangia todas as dimensões da atividade desenvolvida pelo atleta em execução do programa contratual contemplado no contrato de trabalho, como é o caso da sua participação em jogos da respetiva seleção nacional.


Com efeito, o contrato de seguro abrange todas as lesões sofridas no âmbito da prestação de trabalho do sinistrado, a qual também incluía os jogos internacionais para os quais aquele fosse cedido (devidamente autorizado pela empregadora, como ocorreu no caso vertente), não havendo qualquer razão para distinguir esta vertente do seu trabalho, tanto mais que a entidade patronal tinha interesse na participação do autor no jogo de futebol onde ocorreu a lesão, uma vez que poderia resultar proveito económico pelo facto de o autor ser jogador internacional pelo seu país (ponto 39 da matéria de facto); a representação das seleções nacionais é feita no interesse da Entidade Patronal, que retira proveitos diretos de tais participações, quer ao nível da publicidade e valorização dos direitos de imagem do jogador que são detidos, em exclusivo, pelo Clube, quer pela valorização dos seus jogadores enquanto “ativos económicos”, que muitas vezem triplicam ou quadruplicam de valor económico apenas pelo facto de serem internacionais pelos respetivos países (ponto 42 da matéria de facto); e a FIFA institui compensações económicas aos clubes que dispensam jogadores às respetivas seleções (ponto 44 da matéria de facto), assim se compreendendo que seja o clube a pagar o salário do jogador durante o período em que ele está ao serviço da respetiva seleção (ponto 43 da matéria de facto).


Por outro lado, em face da obrigação legal que o empregador tem de transferir para uma entidade seguradora a responsabilidade emergente de acidentes que se verifiquem em qualquer dimensão da atividade laboral do jogador profissional de futebol – obrigação que era naturalmente conhecida pelas rés e que dela estavam cientes, como desde logo decorre do texto da apólice –, é revelador que a apólice do seguro em causa não inclua qualquer exclusão de responsabilidade por acidentes ocorridos ao serviço da seleção nacional do sinistrado.


Também no sentido da posição do recorrente aponta o facto de o jogador, enquanto está ao serviço da seleção nacional, não participar nos treinos e jogos do respetivo clube, pelo que, estando em causa a mesma atividade, o risco infortunístico é idêntico nas duas situações. Na verdade, não se vislumbrando, no caso da participação do jogador em jogos da seleção nacional, qualquer risco não expetável, nem qualquer acréscimo de risco, em relação à atividade desenvolvida no âmbito estrito do clube, inexistem razões justificativas de desigual tratamento das duas situações.


Em suma: todos os elementos disponíveis impõem concluir que a cobertura do contrato de seguro celebrado entre as rés abrange o acidente de trabalho em apreço, procedendo, pois, a revista.


11. Uma vez que a Relação considerou prejudicado o conhecimento da questão, também suscitada na apelação, relativa à remição da pensão fixada ao sinistrado, determinada na sentença da 1ª instância, o processo terá de lhe ser remetido ao TRL, para conhecimento de tal matéria, uma vez que o art. 679.º, do CPC, exclui do julgamento da revista a “regra da substituição do tribunal recorrido”, consagrada no art. 665.º, do mesmo diploma, relativamente ao julgamento da apelação.


IV.


12. Em face do exposto, concedendo a revista, acorda-se:


– Em revogar o acórdão recorrido e em repristinar a decisão da 1ª instância, relativamente à questão conhecida no âmbito do presente recurso.


– No mais, em remeter os autos à Relação para apreciação da questão cujo conhecimento foi considerado prejudicado pela solução dada ao litígio.


Na parte em que decaiu, custas da revista, bem como nas instâncias, a cargo da recorrida.


Quanto ao mais, custas pela parte vencida a final.


Lisboa, 8 de fevereiro de 2024


Mário Belo Morgado (Relator)


Domingos Morais


José Eduardo Sapateiro





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1. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais não vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎

2. https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:15910.17.8T8PRT.P1.S1/↩︎