Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A1565
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RIBEIRO DE ALMEIDA
Descritores: SIMULAÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
Nº do Documento: SJ200306170015651
Data do Acordão: 06/17/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 11955/01
Data: 12/17/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I- A Lei declara nulo, por não corresponder à vontade das partes, o negócio que enferme de vício de simulação. Na simulação relativa, manda-se aplicar ao negócio dissimulado o «regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação.» Se o negócio dissimulado for formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei.
II- O negócio dissimulado é válido desde que os elementos essenciais objectivos se encontrem em instrumento revestido de forma exigida. Na compra e venda que dissimula uma doação não é necessário que se encontre no escrito a contra declaração do «animus donandi» para que seja válida.
III- Havendo documento que indicie uma aparência de prova acerca do intuito simulatório, é admissível a prova testemunhal, uma vez que o facto a provar já se tornou verosímil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


A) No Tribunal Judicial da Comarca de Braga A e mulher intentaram acção declarativa na forma ordinária no forma ordinária, contra B, C e mulher, D e E e marido, pedindo que fosse declarada válida a doação dissimulada que F quis fazer através da referida escritura a favor do Autor A, tendo por objecto o imóvel nessa escritura identificado, sem prejuízo da eventual redução se e no medida que for necessário para não ofender a quota disponível dos RR., atenta a sentença proferida no Acção Ordinária 86/97, já transitada em julgado, que declarou nulo, por simulação, o contrato de compra e venda titulado pela escritura de 16/2/93, ordenando-se a alteração ou rectificação do registo do transmissão a favor do Autor do mesmo imóvel, em conformidade com a sentença.

Para tanto alegaram que os Réus são os únicos herdeiros legitimários de F.
Esta última, na qualidade de vendedora, e o Réu marido, na qualidade de comprador, em 16/2/93, outorgaram escritura pública de compra e venda de uma fracção predial, com reserva de usufruto para a vendedora.
Em acção judicial anterior, tal acto foi impugnado por simulado, pelos ora Réus, obtendo ganho de causa, tendo sido declarado como provado que a dita F declarou vender a fracção, quando a sua intenção foi doar a mesma fracção e a intenção do Autor aceitar tal doação.
A vontade real dos outorgantes tinha em vista uma doação, pelo que existe uma doação dissimulada em contrato de compra e venda.

Contestaram os Réus e em reconvenção, pediram que se declare a nulidade absoluta da pretensa doação feita pela avó dos Réus aos Autores, como negócio dissimulado, encoberto pela compra e venda simulada a que se refere e escritura de 16/2/93, devendo os Reconvintes ser autorizados a proceder ao cancelamento de quaisquer registos efectuados pelos Autores na Conservatória do Registo Predial de Braga, respeitante à mencionada fracção autónoma e com base nessa escritura e no concernente à pretensa doação dissimulada e ferida de nulidade.

Após resposta e réplica, veio a acção a ser julgada procedente e improcedente a reconvenção.

Inconformados com tal decisão dela apelaram os Réus tendo o tribunal da Relação do Porto confirmado a sentença.

B) Recorrem agora para este Supremo, e alegando, formulam estas conclusões:

1. O estabelecido no art. 241 do Código Civil adoptou a solução preconizada pelo Prof. Beleza dos Santos e seguida no falado Assento;

2. O negócio dissimulado - a pretensa doação - só seria de manter, no caso de existir alguma contra-declaração válida ou na escritura pública haver a declaração do «animus donandi», para além da declaração de transmissão do imóvel, pela venda simulada;

3. No caso em apreço, dado não haver contra - declaração alguma válida e da escritura não constar qualquer "animus donandi", mas somente a declaração de transmissão do andar, essa pseudo dissimulada doação mencionada é nula;

4. Isto, por essa declaração de transmitir, sem o "animus donandi", ser parcial e insuficiente e motivadora dessa nulidade do negócio jurídico dissimulado;

5. Da escritura pública não constando, como não consta, doação alguma, não pode esta ser considerada como início de qualquer prova;

6. Aos próprios simuladores está-lhes cerceado o uso de prova testemunhal, tanto para a demonstração da simulação como da dissimulação, em negócio;

7. Quer na presente acção, quer na anterior, com vista à prova da simulação podiam os autores naquela e réus nesta, como terceiros lançar mão de testemunhas para demonstrar a simulação da compra e venda;

8. Os autores nesta acção e réus na anterior não podiam apresentar prova testemunhal e produzi-ta, para demonstrar acto dissimulado;

9. Em ambas as acções, as respostas aos quesitos, referente a acto dissimulado, têm de ser dadas como não escritas, por baseadas em testemunhas dadas pelos simuladores contra documento de compra e venda, com valor probatório pleno;

10. Ao ser decidido no douto acórdão, na orientação em que o foi, operou-se a inobservância, tal como ocorreu com a douta sentença, do estabelecido nos Artigos 221, 238, 239, 240, 241, 373, 379, 393 e 394 do Código Civil e Artigo 646° do Código de Processo Civil.

Nas suas contra alegações os recorridos entendem que deve ser de manter o decidido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
C) Os Factos:

1. O Réus, são filhos de G e de E.

2. G, faleceu em 16.11.1982.

3. Este faleceu sem ter deixado outros descendentes, para além dos Réus.

4. Ao referido G sobreviveu-lhe a sua Mãe, E.

5. Por sua vez esta E faleceu com a idade de 90 anos, no estado de viúva de H, em 9 de Janeiro de 1997.

6. Sem ter deixado nenhum outro filho, pelo que os Réus são os seus únicos herdeiros legitimários.

7. Por escritura pública realizada em 16 de Fevereiro de 1993, exarada de fls. 3 a fls. 4v do Livro 300-G do 1º Cartório Notarial de Braga, aquela F declarou vender ao aqui Autor marido e este declarou comprar, pelo preço de 4.500.000$00 (quatro milhões e quinhentos mil), com a reserva de usufruto, enquanto viva fosse e a favor da vendedora, a raiz ou nua propriedade da fracção "M", correspondente ao 6" andar direito, destinada a habitação, do prédio urbano no regime de propriedade horizontal sito na Rua 25 de Abril, com os nº 448 e 454, da cidade de Braga, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Braga (São José de São Lázaro) sob o artigo 1474 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o nº 41.003.

8. Pela Vara de Competência Mista de Braga, com o nº 86/97-5, correu termos uma Acção Ordinária que os aqui Réus intentaram (como Autores) contra os aqui Autores (ali Réus), tendo essa acção como causa de pedir e pedido que constam da certidão adiante junta como documento n°2 e aqui dada integralmente por reproduzida

9. Nessa acção, em que somente eram partes a aqui Autores e Réus, após sentença proferida na 1ª Instância, foram interpostos recursos para o Tribunal da Relação do Porto e para o Supremo Tribunal de Justiça, em que foram proferidos os acórdãos cujo teor é igualmente certificado naquele documento nº 2.

10. A sentença proferida naquela acção já transitou em julgado em 3 de Maio de 2000.

11. Dos factos dados por provados e da douto sentença proferida naqueles autos, resultou que os aqui Autores não pagaram à falecida F qualquer quantia a título de preço.

12. Foi ainda dado por provado que o aqui Autor (ali Réu) declarou comprar a referida fracção e a F declarou vendê-la quando a intenção desta foi doa-la e a do Autor (ali Réu) foi aceitar essa doação.

13. Na douta sentença proferida veio a ser declarada a referida simulação e decretada a nulidade do contrato de compra e venda titulado pela referida escritura de 16.02.1993.

14. Quando outorgaram a referida escritura de compra e venda intenção da F foi doar ao A. marido aquele prédio e a intenção deste foi aceitar essa doação.

15. Visaram ambas essas partes dissimular uma doação no contrato de compra e venda outorgada.

D) Decidindo:

A questão que se coloca neste recurso, recortada nas conclusões das alegações que delimitam o âmbito da sua apreciação é a mesma que já foi apreciada pela 1ª Instância e pela Relação, ou seja, o negócio dessimulado, a doação, é também nulo, uma vez que falta a declaração do «animus donandi».
Além disto a prova testemunhal é inadmissível.

Como se sabe, o facto de estar estabelecida a autenticidade de um documento, seja ele autêntico ou particular, não equivale a considerar verdadeiras e sinceras as declarações que deles constam. Um documento particular, assinado pelas partes e por elas aceite, faz apenas prova plena da materialidade das declarações nele contidas; mas já não faz prova plena quanto à exactidão das mesmas.
A inexactidão das declarações pode, mediante a prova de algum dos vícios da vontade ou divergência entre a vontade e a declaração, ser demonstrada, mesmo mercê do recurso à prova testemunhal, apenas conhecendo restrições esta possibilidade no que concerne à simulação quando invocada pelos próprios simuladores, como ao diante veremos.

Sendo muito difícil a prova da simulação entre os simuladores, ela radica muitas vezes, em indícios e ilações baseados em factos que à luz da experiência comum podem revelar a existência dos aludidos requisitos.
Tanto mais, quanto o art. 394º,nº2, do Código Civil, na sua estrita literalidade, proíbe a prova testemunhal como elemento probatório do acordo simulatório e também do negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores.
Todavia, a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo que, nestes casos, é admissível prova testemunhal, se os factos probandos "aparecem" com alguma verosimilhança, em provas escritas. Então, complementarmente, é admissível tal tipo de prova.
Neste sentido na doutrina Luís Carvalho Fernandes, in "A Prova da Simulação pelos Simuladores", em "O Direito", 124. (1992), Págs. 593 e SS., que termina com a formulação das seguintes conclusões (págs. 615 e segs.):

"a) A interpretação estrita dos Artigos 351º e 394º, nº º2, do Código Civil limitando fortemente a arguição da simulação pelos simuladores, pode conduzir a resultados injustos de aproveitamento do acto simulado por um dos simuladores em detrimento do outro;
b) A ponderação dos interesses em jogo postula, assim, uma interpretação restritiva desses preceitos, que atenue a limitação dos meios de prova disponíveis a que a letra da lei conduz:
c) Essa interpretação não pode, porém, pôr em causa a ratio desses preceitos, nem chegar ao ponto de sobrepor, à certeza da prova documental, a fragilidade e a falibilidade da prova testemunhal e por presunções judiciais;
d) Deste modo, a estes meios de prova só pode estar reservado o papel secundário de determinar o alcance de documentos que à simulação se refiram ou de complementar ou consolidar o começo de prova a que neles seja lícito fundar;
e) Sempre que, com base em documentos trazidos aos autos, o julgador possa formular uma primeira convicção relativamente à simulação de certo negócio jurídico, é legítimo recorrer-se ao depoimento de testemunhas sobre factos constantes do questionário e relativos a essa matéria com vista a confirmar ou a infirmar essa convicção;
f) Como legítimo é, a partir desse mesmo começo de prova, pela via de presunções judiciais, deduzir a existência de simulação com base em factos assentes no processo" - citámos do "Código de Processo Civil Anotado", de Abílio Neto, 12ª edição pág. 292.
Também Mota Pinto, in CJ, 1985, III, 9, escreve:

- "Constitui excepção à regra do art. 394 ° e, por isso, deve ser permitida a prova por testemunhas no caso de o facto a provar estar já tornado verosímil por um começo de prova por escrito. Também deve ser admitida tal prova testemunhal existindo já prova documental susceptível de formar a convicção da verificação do facto alegado quando se trate de interpretar o conteúdo de documentos ou completar a prova documental".
Na Jurisprudência, entre vários: Ac. do STJ, de 4.3.1997, in CJSTJ, 1997, I, 121; Ac. da Relação de Évora de 16.6.1994, in CJ, 1994, II, 459; da Relação do Porto de 27.9.1984, in BMJ 439-655 e da Relação de Coimbra de 9.12.1997, BMJ 472-576.
Ora, considerando que o documento que se transcreveu nos factos provados traduz, efectivamente, uma aparência de prova acerca do intuito simulatório, mas não dissipa todas as dúvidas que possam permanecer no espírito do julgador, e tratando-se de uma escritura publica, como documento autêntico que é, deve ser considerada como prova, plena desde que do texto da mesma resultem os factos que se querem provar, isto é, se da mesma emergirem factos concludentes ou dos mesmos possa resultar qualquer presunção.
Não restam pois dúvidas de que a prova testemunhal era admissível no caso.
Dizer agora que não podiam ser ouvidas testemunhas, mesmo quanto à primeira acção já decidida com trânsito em julgado, uma vez que se formou caso julgado material sobre as questões aí decididas tornou-se impossível alterar essa mesma decisão.

A Lei declara nulo, por não corresponder à vontade das partes, o negócio que enferme de vício de simulação (art. 240. °, n.º 2). Os feitos que as partes pretendem atingir com o negócio jurídico que celebram, deve estar sempre em sintonia com a vontade de quem desse negócio se serve para satisfazer os seus interesses. Por isso mesmo, quando a declaração de vontade negocial se encontra viciada quer por erro dolo coação ou simulação, conforme a gravidade desse vício a lei prescreve para o mesmo a nulidade ou a anulação do negócio.
A simulação, que é o vício a vontade que aqui interessa analisar, é absoluta ou relativa. Na simulação absoluta as partes não quiseram realizar nenhum negócio.
Tratando-se, porém, de simulação relativa, manda-se aplicar ao negócio dissimulado, que está em harmonia com a vontade das partes, «o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado» - Artigo 241 n.º 1 do Código Civil -.
Mas se «o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei» (art. 241. °, n.º 2).
Pretendem os recorrentes que o Artigo 241 do Código Civil consagrou a doutrina do Prof. Beleza dos Santos e que o Assento de 23 de Julho de 1952 seguiu.
A doutrina deste Assento relativa ás doações, firmou a jurisprudência no sentido de que «anulados os contratos de compra e venda de bens imóveis e de cessão onerosa de créditos hipotecários, que dissimulavam doações, não podem estas considerar-se válidas» foi afastada pela n.º 2 do Artigo 241 do Código Civil na esteira do que defendeu Manuel de Andrade.
Beleza dos Santos, Simulação Em Direito Civil nota 1 pág. 358, sustentou que: Pode (...) estabelecer-se o princípio geral de que no caso de dissimulação de actos formais se só existe a forma devida no acto aparente e dele não constam os elementos essenciais do acto dissimulado, nos termos em que para eles se exige essa forma, esse acto é nulo. Daqui resulta que só poderá ser suficiente a forma do acto aparente para a validade de um acto formal dissimulado quando a simulação incidir apenas sobre um elemento acessório ou qualquer estipulação ou declaração que possa suprimir-se sem comprometer fundamentalmente a estrutura do acto verdadeiro, porque, eliminado o elemento ou cláusula aparente, fica o bastante para que o acto se reconstitua».
Com base nesta doutrina que deu origem ao referido Assento, entendia-se que caso se haja fingido a venda de um imóvel em lugar de uma doação, ou o contrário, tendo o negócio simulado sido feito por escritura pública, o acto real deverá ser nulo, uma vez que da escritura da venda não consta o animus donandi, ou na escritura da doação não figura o elemento preço - em qualquer dos casos não constam da escritura exigida para a validade do negócio dissimulado todos os elementos essenciais desse negócio.
É este o entendimento defendido no recurso. Não existindo no contrato simulado o «animus donandi» o contrato dissimulado seria também nulo por falta desse elemento.
Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica 1953 criticou essa doutrina afirmando que não há motivo para propugnar a invalidade formal do negócio dissimulado quando as razões do seu formalismo se achem satisfeitas com a observância das solenidades do negócio simulado.
Neste mesmo caminho surgem os Prof. Vaz Serra RLJ 113/64 Pires de Lima Antunes Varela in Código Civil Anotado, anotação ao Artigo 241 pág. 228 e Hörster, A Parte Geral do Código Civil pág. 544.
Oliveira Ascensão, Direito Civil Teoria Geral, 1999, V. II pág. 198 e Seg. sustenta a validade do negócio dissimulado desde que os elementos essenciais objectivos se encontrem em instrumento revestido de forma exigida, ou seja, que contenham o mesmo tipo de elementos relativos ao negócio simulado.
Acrescenta ainda se se pretende fazer uma doação e se simula uma compra e venda, a doação é válida, pois o preço fictício ter-se-á por não escrito e os elementos objectivos essenciais da doação se encontram em instrumento revestido de forma exigida. A declaração de doar não pode porém, por natureza constar desse instrumento Temos pois que o Artigo 241 n.º 2 implica a dispensa de que figure declaração de vontade relativa ao negócio dissimulado. - Ob. e local citado pág. 200. -.
Interpretar o Artigo no sentido de que é necessário que o negócio dissimulado conste de um acto solene, seria absurdo, uma vez que, se o negócio é dissimulado não pode estar exteriorizado no negócio simulado.
Teremos que concluir que não é necessária a contra declaração do «animus donandi» para se ter por válido o negócio dissimulado, pois como se deixou dito não deixaria de ser absurdo que por detrás de um negócio aparente se admitissem todos aqueles que se bastassem com a sua forma, o que seria igualmente absurdo se se pretendesse que no acto solene se fizesse constar o negócio dissimulado, o que seria igual a dizer que inexistia qualquer negócio simulado.
Improcedem todas as conclusões das alegações de recurso.

E) Face ao que se deixou exposto acorda-se em negar a revista.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 17 de Junho de 2003
Ribeiro Almeida
Afonso de Melo
Nuno Cameira