Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1932/19.8T8PDL-N.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
PRESSUPOSTOS
IMPUGNAÇÃO
INSOLVÊNCIA
DEVEDOR
NEGÓCIO GRATUITO
ATO ONEROSO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

No preenchimento da resolução incondicional (sem os requisitos do art. 120º do CIRE) em benefício da massa insolvente por parte do administrador da insolvência de «atos celebrados pelo devedor [declarado insolvente] a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, incluindo o repúdio da herança ou legado, com exceção dos donativos conformes aos usos sociais» (art. 121º, 1, b), CIRE), uma compreensão teleológica da gratuidade, de acordo com o princípio reitor de protecção dos credores da insolvência em face de uma diminuição patrimonial, prejudicial por consistir em liberalidade, basta-se com a avaliação do enriquecimento patrimonial da contraparte, sem correspectivo, à custa da diminuição patrimonial do atribuinte, depois insolvente, de acordo com uma relação objectiva e funcional de valor entre prestação realizada e contraprestação recebida; assim, a (ausência de) representação subjectiva das partes não é de relevar como primordial para ponderar (e afastar, se assim fosse) a gratuitidade implicada na al. b) do art. 121º, 1, do CIRE (como conceito de relação tendo por base as atribuições patrimoniais realizadas, relevando com natureza primordial o conteúdo objectivo-funcional do acto).

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 1932/19.8T8PDL-N.L1.S1


Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, ... Secção


Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO


1. AA intentou contra «Massa Insolvente da Azores Parque Sociedade de Desenvolvimento e Gestão de Parques Empresariais, E.M., S.A.» acção declarativa de impugnação de resolução de negócio em benefício da massa insolvente (prestação de serviços no valor de € 75.000, pagos por cheque), por apenso ao processo de insolvência n.º 1932/19.8T8PDL, pedindo a final em função da procedência: declarar-se o vício de forma e invalidade (nulidade formal) da resolução nos termos do regime previsto no art. 123º do CIRE, em conjunção com o art. 436º do CCiv., e, ainda por remissão do art. 17º, 1, do CIRE, por aplicação dos arts. 225º, 1, b), e 191º do CPC; declarar-se a caducidade do exercício do direito de resolução em benefício da massa insolvente; se assim não se entendesse, declarar-se nula ou ineficaz a decisão de resolução nos termos do art. 121º, 1, h), do CIRE, por, não sendo acto gratuito, não exceder manifestamente as obrigações da impugnada em relação às da contraparte, e não existir prejudicialidade do acto sindicado, com todas as legais consequências.


2. A Ré Massa Insolvente apresentou Contestação, alegando a validade da notificação da resolução em benefício da massa insolvente, a tempestividade do exercício do direito de resolução e manteve o alegado na comunicação de resolução, ou seja, a gratuitidade do acto resolvido (pagamento de € 75.000 sem contraprestação) e a integração do fundamento da resolução no art. 121º, 1, b) (também com referência subsidiária à al. h)), do CIRE, defendendo ter sido a mesma válida e eficaz; concluiu pela improcedência da acção.


3. Foi realizada audiência prévia (na tramitação do apenso “I”, ao qual foi apensado os presentes autos do apenso “N” por despacho de 8/11/2021) que permitiu ser proferido despacho saneador quanto a este apenso (12/5/2023), no qual (i) se fixou o valor da causa (€ 75.000), (ii) se confirmou o decidido no Ac. do TRL de 18/10/2022 sobre a validade e eficácia da notificação do acto de resolução (que decidira em recurso revogar o anterior saneador-sentença, que declarara inválida e sem qualquer efeito a resolução, uma vez considerado em 2.ª instância que o Autor a conheceu efectivamente, e ordenar o prosseguimento dos autos com vista à apreciação das demais questões suscitadas1), (iii) relegou para final a apreciação da excepção de caducidade do exercício do direito de resolução, (iv) fixou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova e (v) apreciados os requerimentos probatórios.


Foi ainda proferido nessa oportunidade despacho que ordenou a separação dos apensos I, N, O e Q, passando agora os autos onde se vai realizar a audiência de julgamento serem remetidos ao apenso N, devendo a secção separar os apensos, mantendo o apenso I e Q juntos relativos ao L........, separar o N e mantê-lo autonomamente (que é o que se vai realizar a diligência de julgamento) e separar o apenso O (…)”.


4. Realizada audiência final de discussão e julgamento, o Juiz 1 do Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada proferiu sentença (28/6/2023), que assim julgou e decidiu:


“1) Julgo improcedente a excepção de caducidade do direito de resolução invocada pela Autora.


2) Julgo a acção de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente totalmente procedente e, em consequência, julga-se invalidamente resolvido o pagamento realizado pela Azores Parque – Sociedade de Desenvolvimento e Gestão de Parques Empresariais E.M. S.A. relativo ao cheque bancário, com o número ... ... ..53, datado de 16 de Maio de 2019, no valor de 75.000,00€ (setenta e cinco mil euros).”


5. Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, uma vez delimitadas as questões decidendas, conduziu a ser proferido acórdão, que, no que toca à (i) reapreciação da matéria de facto impugnada pela Apelante, considerou não provados os factos 20., 21., 22., 25., 26, 30., 35., 36. e 38., modificou os factos provados 31. e 32. e rejeitou a consideração como provado do facto não provado f), e, quanto à (ii) validade e eficácia da resolução em benefício da massa, considerou haver fundamento para a resolução incondicional prevista na al. b) do art. 121º, 1, do CIRE, sendo prejudicada a análise do preenchimento da respectiva al. h), por isso julgando procedente a apelação e revogando a sentença proferida, de forma a decidir julgar resolvido “o pagamento realizado pela Azores Parque – Sociedade de Desenvolvimento e Gestão de Parques Empresariais E.M. S.A., relativo ao cheque bancário, com o número ........53, datado de 16 de Maio de 2019, no valor de setenta e cinco mil euros”.


6. O Autor, sem se resignar, interpôs recurso de revista para o STJ, com fundamento nos arts. 671º, 629º, 2, d), do CPC, e 14º, 1, do CIRE, juntando certidão com nota de trânsito em julgado do Ac. do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 14/7/2020 no processo 8986/17.


Finalizou as suas alegações com as seguintes Conclusões:


“A) Veio a Relação de Lisboa através do seu douto Acórdão, revogar a decisão da 1ª Instância.


B) E decidido: “Nos termos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença proferida e em consequência, julga-se resolvido o pagamento realizado pela Azores Parque Sociedade de Desenvolvimento e Gestão de Parques Empresariais E.M. S.A., relativo ao cheque bancário, com o número ........53, datado de 16 de Maio de 2019, no valor de setenta e cinco mil euros.”


C) Por ter decidido, mal, salvo douta opinião que estaríamos perante um acto gratuito nos termos do artigo 121º n.º 1 alínea b) do CIRE.


D) Não se conformando com tal decisão e nos termos do artigo 14º do CIRE, vem o Recorrente recorrer para o SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, por estar em tempo e ter legitimidade, e juntar certidão de Acórdão já transitado em julgado que está em oposição com a decisão ora recorrida – ver AC. do Tribunal da Relação do Porto – processo n.º 8986/17.0T8VNG – D.P1, in www.dgsi.pt , quanto à resolução em Beneficio da Massa – resolução incondicional, acto oneroso, decisão transitada em julgado em 30-07-2020 – cfr. certidão que ora se junta e se dá por totalmente reproduzida.


E) Neste acórdão ora junto, decidiu e bem a Relação que se trata de um acto oneroso.


F) Ao contrário da decisão ora recorrida, que apesar de aceitar o pagamento dos 75.000,00€ ao recorrente, por causa dos serviços prestados à Azores Parque no âmbito da venda dos terrenos à L........ entre outros – ver matéria de facto assente de 17 a 31.


G) Só porque ainda não existe documento contabilístico, uma vez que foram pedidos os dados para facturar o serviço – cfr. 17 da matéria assente.


H) O certo, é que mal entendeu o Tribunal recorrido, que se trata de um acto gratuito e por isso, não apreciou a alinea h) do artigo 121º do CIRE.


I) Violou assim a douta decisão o artigo 121º n.º 1 alinea h) do CIRE, e por isso deve ser revogada a douta decisão da relação de Lisboa.


J) E deverá ser substituída por outra que considere o acto sub judice um acto oneroso e que os 75.000,00€ pagos ao Recorrente não excederam manifestamente a contraparte da Azores Parque, no negócio celebrado na escritura de compra e venda entre a L.........


K) Decidindo como na 1ª Instância: Julgo a acção de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente totalmente procedente e, em consequência, julga-se invalidamente resolvido o pagamento realizado pela Azores Parque – Sociedade de Desenvolvimento e Gestão de Parques Empresariais E.M. S.A. relativo ao cheque bancário, com o número ... ... ..53, datado de 16 de Maio de 2019, no valor de 75.000,00€ (setenta e cinco mil euros).


Nessas mesmas alegações, o Recorrente invoca a nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, nos termos do explanado no ponto 27º.





A Ré Massa Insolvente apresentou contra-alegações, nas quais se bateu pela inadmissibilidade da revista, tendo por base uma impugnação com fundamento em oposição jurisprudencial e na insusceptibilidade de recurso sobre a decisão relativa à matéria de facto, e pela confirmação da decisão de mérito do acórdão recorrido quanto à validade da resolução incondicional.





Colhidos os vistos nos termos legais, cumpre apreciar e decidir.


II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS


1. Configuração e objecto do recurso


1.1. A acção é tramitada por apenso aos autos principais de insolvência da sociedade-“empresa local” «Azores Parque Sociedade de Desenvolvimento e Gestão de Parques Empresariais, E. M., S. A.», declarada insolvente por sentença transitada em julgado em 19/12/2019.


Deste modo, o seu regime recursivo junto do STJ não segue o regime da revista, atípico e restritivo, contemplado pelo art. 14º, 1, do CIRE; antes segue o regime geral da revista enquanto espécie – arts. 671º, 1, e 674º, 1, do CPC.


Assim, não é necessário aferir de oposição jurisprudencial que legitime a admissibilidade da revista, seja ao abrigo do art. 14º, 1, do CIRE, seja ao abrigo do art. 629º, 2, d), do CPC (neste caso, prima facie, sempre inaplicável, pois não se verifica qualquer situação de irrecorribilidade por razões diferentes da alçada que proporcionasse a sua convocação).


1.2. A questão recursiva incide exclusivamente sobre a interpretação e aplicação do art. 121º, 1, b), do CIRE, e, se for o caso de procedência da revista nesse aspecto, do art. 121º, 1, h), do CIRE, enquanto regimes aplicáveis ao acto resolvido em benefício da massa insolvente pelo administrador da insolvência (AI).


Preliminarmente, deve verificar-se a bondade da arguição da nulidade, ainda que não constante das Conclusões, ao abrigo do regime do art. 615º, 1, d), 1.ª parte, do CPC.


2. Factualidade


2.1. Foram considerados provados pela 2.ª instância os seguintes factos, uma vez decidida a reapreciação da matéria de facto impugnada:

1. Azores Parque – Sociedade de Desenvolvimento e Gestão de Parques Empresariais E.M. S.A. foi declarada insolvente em 28-11-2019, no processo n.º 1932/19.8T8PDL, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores – Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada, Juiz ....

2. A sentença de insolvência transitou em julgado em 19-12-2019.

3. Na data mencionada em 1) foi nomeado como Administrador de Insolvência o Exmo. Senhor Dr. BB, que aceitou exercê-las [e] aceitou o desempenho de funções em 04-12-2019.

4. O Sr. Administrador de Insolvência dirigiu, através de carta registada simples, datada de 29 de Março de 2021, a AA e a CC, para efectivar e declarar a resolução em benefício da Massa insolvente, que representa, do pagamento realizado pela Azores Parque a favor do mesmo, através de cheque bancário n.º ... ... ..53, da Caixa Económica da Misericórdia de ..., datado de 16 de Maio de 2019, no valor de 75.000,00.

5. Da declaração de resolução aludida em 4. o Sr. Administrador de Insolvência fez constar que “(…) em 16 de maio de 2019, a Azores Parque emitiu um cheque bancário, com o número ... ... ..53, no valor de 75.000 € (setenta e cinco mil euros), sem identificação do respetivo beneficiário (cfr. Doc. 1 anexo). A fim de se obter a identificação do referido beneficiário, foi ordenado o levantamento do sigilo bancário da conta da Azores Parque junto da Caixa Económica da Misericórdia de ....//Em 28 de outubro de 2020 a Caixa Económica da Misericórdia de ... comunicou ao processo de insolvência da Azores Parque que o mencionado cheque bancário com o número ... ... ..53, no valor de 75.000 €, foi depositado no dia 17 de maio de 2019 na conta à ordem titulada por CC com o IBAN ... (cfr. Doc. 2 anexo).//(…)// Em conclusão, através da presente missiva dá-se por resolvido o pagamento realizado pela Azores Parque a favor de V. Exas. e ficam V. Exas notificados, nos termos do disposto no artigo 126º, n.º1, do CIRE, para proceder à devolução dos 75.000,00€ (setenta e cinco mil euros) que receberam. Com efeito, tendo o cheque sido entregue a AA e depositado na conta da sua unida de facto CC, a responsabilidade pelo pagamento é solidária. Esta devolução deverá ser realizada no prazo de 30 dias a contar da receção da presente comunicação, através de cheque emitido à ordem da Massa Insolvente da Azores Parque, enviado ao cuidado do Administrador Judicial signatário.”

6. Os serviços de distribuição postal registaram a entrega da carta aludida em 4., correspondente ao registo postal ...........PT, no dia 31.03.2021, pelas 17h10.

7. Para além da carta aludida em 4., no mesmo dia, 31.03.2021, [o]Sr. Administrador de Insolvência remeteu missiva de igual teor através de correio registado, correspondente ao registo nº ...........PT.

8. Os serviços de distribuição postal registaram a entrega da carta aludida em 7. ao próprio Requerente/Autor, AA, no dia 13 de abril, na Loja CTT ..., em ..., Açores, depois de frustrada a sua entrega na morada do destino e consequente devolução ao posto dos CTT com a menção Destinatário não atendeu.

9. AA instaurou a presente acção de impugnação da resolução, correspondente aos autos em apenso N, em 30.06.2021.

10. O cheque em apreço é um cheque ao portador, sem beneficiário identificado.

11. O Sr. Administrador de insolvência tomou conhecimento da existência do cheque aqui em apreço poucos meses depois de iniciar funções.

12. No Parecer elaborado pelo Sr. Administrador de Insolvência, Dr. BB, nos termos do artigo 188.º, n.º 3 do CIRE, em 25.06.2020 e apresentado nos autos em 28.06.2020, pode ler-se “(…) Outros movimentos das contas bancárias da Insolvente Existem ainda outros movimentos registados nos extratos bancários da Insolvente junto da Caixa Económica da Misericórdia de ... que apontam igualmente no sentido de que a Insolvente praticou atos que contribuíram para o agravamento da situação de insolvência (…) E também passou pelo menos dois cheques em branco, no valor de 75.000 € cada um, em 17 de maio de 2019.(…)”.

13. Mais se lê o seguinte “Nos termos conjugados do disposto nos artigos 17.º do CIRE e 429.º e 452.º do Código de Processo Civil, requer-se sejam notificadas as seguintes entidades: (…) c) a Caixa Económica da Misericórdia de ... para identificar os titulares das contas bancárias nas quais foram depositados os cheques em branco que foram levantados da conta bancária da Insolvente em 17 de maio de 2019.”.

14. Até 7 de novembro de 2020, Sr. Administrador de Insolvência desconhecia por completo em que conta bancária havia sido depositado o cheque e, portanto, a quem deveria dirigir a carta de resolução em benefício da massa insolvente.

15. O Sr. Administrador de Insolvência teve conhecimento de que o depositante deste cheque era CC em 7 de novembro de 2020, com a resposta da Caixa Económica da Misericórdia de ... ao ofício que lhe foi enviado pelo tribunal e depois de levantado o respetivo sigilo bancário pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

16. CC vivia à data da emissão do cheque em causa nos autos, e bem assim, actualmente, em união de facto, com o Requerente/Autor.

17.O Requerente/Autor é uma pessoa séria e respeitada, com vastos conhecimentos na área do imobiliário.

18. A sua ligação com Azores Parque advém do tempo anterior a esta ter sido vendida à A..... ........

19. Sempre se pautando a sua intervenção junto da Azores Parque, como consultor e angariador de compradores para vários lotes de armazéns.

20. Não provado. (Decisão da Relação.)

21. Não provado. (Decisão da Relação.)

22. Não provado. (Decisão da Relação.)

23. O Requerente/Autor iniciou contactos com a L........, em Abril de 2019, empresa esta que era do conhecimento do Requerente/Autor que andava a sondar o mercado em ..., e estava interessada na compra de outros imóveis na ilha.2

24. Mas, que o Requerente/Autor, através do conhecimento e dedicação conseguiu persuadir esta empresa a interessar-se pelos imóveis da Requerida/Ré, no sentido de conseguir, alcançar o objectivo lançado pelo Administrador da Azores Parque.

25. Não provado. (Decisão da Relação.)

26. Não provado. (Decisão da Relação.)

27. Em Maio de 2019 foi feita a compra e venda dos terrenos melhor identificados na escritura, junta com a resolução da primeira fase da venda com a L........ – Terminal Logística Lda., no valor de total de 450.000,00 €.3

28. Na escritura relativa à compra e venda dos imóveis mencionados em 27, consta o seguinte “não houve intervenção de empresa de mediação imobiliária no presente negócio”.

29. E ainda uma outra compra e venda entre a Requerida/Ré e a L........ – Terminal Logística Lda., quanto a prédios rústicos de ..., no valor total de 60,000,00 €.

30. Não provado. (Decisão da Relação.)

31. O AA escreveu uma carta à Azores Parque, datada de 23 de Maio de 2019, solicitando o envio de dados para emissão de factura (Doc. 2, junto a fls. 24). – Modificado pela Relação.

32. Não consta qualquer resposta. – Modificado pela Relação.

33. Decidiu o mesmo, não depositar o cheque, tendo pedido para que este fosse emitido ao portador, e pediu a CC, pessoa de sua confiança, para proceder ao depósito do mesmo, numa sua conta.

34. Não tendo, a CC qualquer intervenção, ou conhecimento no negócio, celebrado entre o Requerente/Autor e a Requerida/Ré em Maio de 2019.

35. Não provado. (Decisão da Relação.)

36. Não provado. (Decisão da Relação.)

37. A título de exemplo o prédio urbano, terreno destinado a construção, localizado à Rua ..., com área de 4.819,41 m2, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 2171, com o valor patrimonial à data de maio de 2019 de 32.922,25 €, foi comprado e escriturado pelo valor de 105,930,00 €.

38. Não provado. (Decisão da Relação.)

39. O Requerente/Autor, enquanto pessoa singular, não tem nem nunca teve licença para o exercício da actividade de mediação imobiliária.

40. O Requerente/Autor não apresenta liquidações de IVA, por referência ao segundo trimestre do ano de 2019 nem emitiu recibos a favor da AZORES PARQUE (NIPC ... ... .27) por referência ao ano de 2019.

41. O Autor requerente é sócio gerente da sociedade T..... ..... – Investimentos Imobiliários, Lda., desde 02.02.2007, data da sua constituição, a qual tem como objeto social a compra, venda e administração de imóveis, incluindo a compra para revenda, a promoção imobiliária, a administração de bens imóveis, a prestação de serviços a empresas, nomeadamente consultoria no sector imobiliário, o arrendamento e gestão de imóveis.

42. Os valores de comissão por mediação imobiliária usualmente praticados no comércio jurídico rondam os 3% a 5% do valor total do negócio.

43. Existem outras formas [de] negociação das comissões de mediação imobiliária/consultoria, promoção imobiliária praticadas no comércio jurídico, nomeadamente: a) a cobrança de 5.000,00€ pela venda de cada terreno; b) o vendedor estabelece um valor para o bem e, tudo o que for obtido acima desse valor, será a comissão do angariador.




Com interesse para a causa, elencam-se ainda os seguintes factos, resultantes dos autos (arts. 607º, 4, 5º, 2, 663º, 2, 679º, CPC):


(i) Da declaração de resolução referida em 4. e transcrita parcialmente em 5. constam ainda os seguintes extractos:


A gratuitidade do pagamento


Não existe qualquer registo contabilístico na Azores Parque que justifique a realização deste pagamento a favor de CC (CC).


Na audiência de julgamento do incidente de qualificação de insolvência da Azores Parque, foi afirmado por DD – administrador da Azores Parque à data da outorga do cheque e seu assinante – e por EE (gerente da L..........) que este pagamento seria uma comissão paga a AA (AA), unido de facto com CC, a qual supostamente seria devida por serviços de intermediação imobiliária alegadamente prestados no âmbito da venda de imóveis pela Azores Parque à sociedade L........ – Terminal Logística, Lda. Mais foi referido que o cheque foi entregue a AA.


No entanto, esta é uma justificação que não se aceita. Desde logo, a escritura de compra e venda atesta que não existiu mediação imobiliária no referido negócio (…), o que, a admitir-se não ser verdade, corresponderia à possível prática de um crime de prestação de falsas declarações por parte de cada um dos intervenientes na compra e venda.


O Administrador Judicial signatário procurou chegar ao contacto com CC, através de carta datada de 12 de novembro de 2020, a fim de esclarecer o motivo da realização deste pagamento (…). Contudo, não foi rececionada qualquer resposta.


A ausência de justificação contabilística para esta operação – reiterada pelo silêncio de CC – leva a crer que o pagamento de 75.000 € realizado a favor de V. Exa. deva ser entendido como um ato gratuito, desacompanhado de contraprestação, que foi efetuado pela A..... .... nos meses imediatamente anteriores à sua declaração de insolvência.


A resolução incondicional do ato em benefício da massa insolvente



A realização deste pagamento constitui um ato prejudicial para os credores da massa insolvente e deve ser resolvido de forma incondicional, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 121.º, n.º 1, alínea b), do CIRE.


(…)


Assim, pela presente comunicação, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 121.º, n.º 1, 123.º e 126.º do CIRE, declara-se a resolução incondicional em benefício da massa insolvente do pagamento de € 75.000 realizado pela Azores Parque a favor de CC, através do cheque bancário n.º 381 575 0553, datado de 16 de maio de 2020 e sacado a 17 de maio de 2020.


Subsidiariamente, resolução incondicional nos termos da alínea h) do n.º 1 do artigo 121.º do CIRE


Mas ainda que se tratasse de uma comissão pela mediação dos terrenos da L........, sempre se dirá que os valores de comissões por mediação imobiliária usualmente praticados no comércio jurídico rondam os 3% a 5% do valor total do negócio. No caso, os imóveis foram vendidos pelo preço global de 450.000 €, o que significa que mesmo uma comissão de 5%, acrescida de IVA, corresponderia a 27.675 € e não a € 75.000. Assim, a ser uma comissão de mediação imobiliária tratar-se-ia de um contrato em que as obrigações da massa insolvente excedem manifestamente as da contraparte, agravado pela falta de qualificações de V.as Ex.as para exercer a atividade de mediação imobiliária. E, por fim, de acordo com a informação que nos foi possível recolher, CC desempenhava funções como presidente da mesa da assembleia geral da A..... .... à data da venda, o que significa que esta não dispunha da isenção necessária à prestação de serviços de mediação imobiliária.”


(ii) O cheque referido em 4. foi depositado na Caixa Económica da Misericórdia de ... no dia 17 de Maio de 2019 na conta à ordem titulada por CC, com o IBAN PT.....................16.


2.2. Na sentença de 1.ª instância, foram considerados não provados os seguintes factos, incluindo o da al. f):


a) Desde o início do processo de insolvência ou pelo menos desde Fevereiro de 2020, o Senhor Administrador de Insolvência teve conhecimento directo do negócio a que respeitava o cheque aqui em causa, de quem o recebeu (o aqui Requerente/Autor), e do alegado motivo para a sua emissão.


b) Quando apresentou o parecer mencionado em 12. o Sr. Administrador de Insolvência, Dr. BB, tinha conhecimento directo do negócio a que respeitava o cheque aqui em causa, bem como a quem o mesmo havia sido entregue, ou seja, ao aqui Requerente/Autor, e do alegado motivo para a sua emissão.


c) Apenas em 5 de janeiro de 2021, com o depoimento do administrador DD, no incidente de qualificação de insolvência, o administrador de insolvência teve conhecimento de que, independentemente do respetivo depósito, este cheque tinha sido entregue pela AZORES PARQUE ao Requerente/Autor na sequência da celebração da escritura de venda de imóveis à L.........


d) O Requerente/Autor na data do pagamento dos 75.000,00€, encontrava-se em negociações para obtenção de empréstimo bancário, para aquisição de um imóvel.


e) Acontece que, para justificar a necessidade do empréstimo junto da entidade bancária – Caixa Económica de ... – e a celeridade do mesmo, para aquisição de um imóvel.


f) A escritura de venda de imóveis à L........ ocorreu na presença do Requerente/Autor.


g) Com a entrega dos 75.000,00 € (ou em rigor de 150.000,00 €) ao Autor, a Azores Parque ficou desprovida desse montante, sem que tenha recebido qualquer contraprestação pelo seu valor.


3. Fundamentação de direito


3.1. Sobre a nulidade do acórdão


O Autor veio invocar a nulidade do acórdão recorrido por alegada omissão de pronúncia, uma vez que não teria apreciado a subsunção do caso à al. h) do art. 121º, 1, de acordo com a pretensão recursiva do Autor.


O art. 615º, 1, d), do CPC sanciona com nulidade as sentenças e acórdãos em que o julgador «deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».

A “omissão de pronúncia” enquanto nulidade decorre da exigência prescrita no n.º 2 do artigo 608º do CPC, nos termos do qual «[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”. Este ónus processual implica, como corolário do “princípio da disponibilidade objectiva” (traduzido no art. 5º do CPC/2013), que “o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões”4.


Essa nulidade do art. 615º serve, por isso, de cominação para o desrespeito do art. 608º, 2, aqui aplicável por força dos art. 663º, 2, e 679º do CPC.


O essencial é aferir se foi mobilizada a questão ou as questões identificadas nas conclusões dos recorrentes e assim delimitadas pelo julgador, assim como as questões que sejam de qualificar de conhecimento oficioso, para verificar se o dever de julgamento foi ou não omitido; de todo o modo, o dever de pronúncia cai sempre que a decisão da questão ou questões apreciadas torne sem efeito e sem utilidade a apreciação das demais, nomeadamente quando é claro o seu carácter alternativo ou subsidiário na aplicação do regime jurídico pertinente.


É este o caso da relação da aplicação das als. b) e h) do art. 121º, tendente a averiguar se poderia operar de forma válida e eficaz a resolução incondicional invocada pelo AI – desde logo, de acordo com as Conclusões da Apelação: cfr. pontos 48. a 75.





Assim entendeu e fundamentou, com acerto, o acórdão recorrido:

“Nos termos do disposto no n.º 2 do art. 608º do CPC, mostra-se prejudicado o conhecimento a título subsidiário, do disposto na al. h) do n.º 1 do art. 121º do CIRE.”

Neste contexto, é manifesto que o acórdão recorrido clamado não se encontra ferido por se ter furtado ou ter deixado sem resposta a questão recursiva, pelo que, contrariamente ao alegado pelo Recorrente, não há qualquer nulidade que o censure à luz do art. 615º, 1, d), 1.ª parte, do CPC.


3.2. Sobre a resolução do acto em benefício da massa insolvente


3.2.1. A pronúncia deste STJ apenas pode incidir sobre a subsunção dos factos considerados provados pela Relação (tribunal recorrido) ao direito aplicável, exercendo a função primordial que é atribuída pela norma central do art. 682º, 1, do CPC: aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.


No caso, verifica-se que a Relação, no exercício da reapreciação da matéria de facto que o art. 662º, 1, do CPC faz competir legitimamente à instância – não impugnada pelo Recorrente, na perspectiva do uso desse poder pela Relação –, efectuou uma mudança radical da factualidade relativa à actuação do Autor na relação com a insolvente, enquanto prestador de serviço relativo à consultoria e angariação de clientes para a venda de imóveis e respectiva remuneração dessa prestação.





É verdade que se mantiveram os factos 18. e 19.:


“A sua ligação [como consultor] com Azores Parque advém do tempo anterior a esta ter sido vendida à A..... ........ / Sempre se pautando a sua intervenção junto da Azores Parque, como consultor e angariador de compradores para vários lotes de armazéns.”


Mas é decisivo para a sorte dos autos que se tenham considerado não provados os factos antes considerados provados em 1.ª instância – a saber, os factos 20., 21., 22., 25., 26., 30., 35., 36. e 38.:


“Sendo o Requerente/Autor reembolsado do seu trabalho, após a concretização das vendas por um valor negociado entre o Requerente/Autor e a Azores Parque, que iria variar conforme o resultado da venda, e sempre com o objectivo de atingir lucros com a venda para a Requerida/Ré, muito superiores aos valores patrimoniais e de mercado, dos imóveis rústicos e urbanos.”;


“Com a nova Administração do Azores Parque, exercida pelo DD, mais uma vez foi o Requerente/Autor solicitado a intervir na venda dos imóveis melhor identificados no documento n.º 3 anexo com a resolução.”;


“Tendo-lhe sido transmitido, pelo Sr. DD, que a Azores Parque, venderia pelo valor de 300.000,00 €, os dez terrenos melhor identificados no doc n.º 3 junto com a Resolução.”;


“Foram feitas avaliações informais aos imóveis, pelo Requerente/Autor, e o valor por m2 à data de 2019, na zona onde se encontravam implantados os imóveis, ..., rondava para os urbanos 10,00€ m2 e para os rústicos 5,00€ m2.”


“Tendo acordado o ora Requerente/Autor e o DD, que caso conseguisse preço superior aos 300.000,00€, seria parte da diferença, para pagar o seu trabalho de Consultor, negociador e angariador de comparadores.”


“O cheque bancário, com o número ... ... ..53, no valor de 75.000 € (setenta e cinco mil euros), foi para pagamento parcial (50%) pela Azores Parque – Sociedade de Desenvolvimento e Gestão de Parques Empresariais E.M. S.A. dos serviços prestados pelo Requerente/Autor como consultor e angariador de compradores para os terrenos identificados no doc. 3 anexos com a resolução e entre outros.”


“O valor acordado entre as partes não se trata de uma comissão pela mediação dos terrenos, mas de todo um trabalho extenso e acordado entre as partes (Requerente/Autor e Requerida/Ré) quanto ao preço a pagar pelos serviços.”


“Todo o” Know-how”, de negociação e conhecimentos do Requerente/Autor quanto a compra de venda de terrenos, que há muito que se encontravam para venda pela Requerida/Ré, mas sem sucesso, teve expressividade no valor a ser pago pelos serviços.”


“A intervenção do Requerente/Autor foi decisiva para a obtenção de valores superiores com a compra e venda dos imóveis, e à obtenção de lucro pela Requerida/Ré, com o negócio.”


Ou seja, é fulcral (e letal para a pretensão recursiva em revista) que não se encontre por último na materialidade factual dada como assente uma intervenção do consultor nos negócios da «Azores Parque» pelos quais seria devida a prestação concretizada no pagamento de € 75.000 feito pelo cheque referido no facto provado 4., a título de remuneração de prestação de serviço(s); em esp., não se provaram os trabalhos de avaliação de imóveis vendidos, o acordo para pagamento dos seus serviços em função do trabalho solicitado e do valor de venda desses imóveis e a determinação da causa negocial (relação fundamental) do saque e depósito do cheque no pagamento de serviços como “consultor e angariador de compradores para os terrenos identificados” (ainda que utilizando a conta bancária da unida de facto CC, co-destinatária da declaração resolutiva), em referência aos negócios constantes dos factos provados 27. a 29.


Por outro lado, não resulta dos factos provados 31. e 32. qualquer reconhecimento por parte da «Azores Parque» dessa mesma intervenção e serviço – em esp., o pedido de emissão de factura pelo Autor não mereceu resposta.


*


Logo, não é possível admitir que a atribuição patrimonial da «Azores Parque» – v. factos provados 4., 5., 10., 15. e 16. – se encontre justificada causalmente (causa remota em face da subscrição do cheque) num nexo ou relação de correspectividade e contrapartida com uma prestação (= atribuição patrimonial) do Autor enquanto consultor imobiliário; logo, se não se encontram provadas atribuições patrimoniais de ambas as partes no negócio causal, não temos um acto negocial oneroso a justificar o pagamento através do cheque.


O que nos atira irremediavelmente para – na lógica dicotómica que a falta de onerosidade comporta – a existência de uma atribuição patrimonial a favor de outra parte, sem contrapartida ou correspectivo ou equivalente da parte beneficiária, com – por regra mas sem ser esgotante – a intenção ou espírito de liberalidade (animus donandi, animus beneficandi) de uma parte e aceitação pela outra, que caracteriza como padrão a maior parte dos actos negociais gratuitos5.


O certo, porém, é que a manifestação dessa intenção liberal (v., nesse padrão, o art. 940º, 1, do CCiv. para a doação) não se encontra demonstrada, nem sequer se vislumbra factualidade relativa ao Autor que indique a consciência e a vontade de receber uma vantagem sem o sacrifício correspondente, plasmada num acordo-causa correspondente à bilateralidade do negócio e à vantagem proporcionada a uma só das partes; por isso, poderemos levantar a hipótese de não poder ser visto o acto resolvido como acto gratuito por falta da subjectividade inerente aos actos gratuitos.


3.2.2. A resolução em benefício da massa insolvente (arts. 120º e ss do CIRE) tem como escopo a reconstituição do património do devedor insolvente, convertido em massa insolvente, por força da extinção dos actos-negócios praticados pelo devedor «dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência», que sejam condicionalmente prejudiciais à massa («diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência») – art. 120º, 2, 4 e ss – ou incondicionalmente pela sua própria natureza e circunstâncias – arts. 121º, 1, 120º, 3, sempre do CIRE. Destina-se, pois, à tutela da generalidade dos credores da insolvência, na medida em que permite ao administrador da insolvência que a eficácia de todo um conjunto de actos seja destruída, verificados que sejam certos requisitos de ordem temporal, subjectiva e objectiva.


A resolução incondicional do art. 121º do CIRE assenta num benefício ampliado para os interesses dos credores nessa reconstituição patrimonial: a má fé do terceiro não é requisito, nem é necessária a demonstração da prejudicialidade para a massa da celebração de tais negócios (v. o n.º 3 do art. 120º do CIRE).


É necessário alegar e provar as circunstâncias factuais-jurídicas que se integram nos casos taxativamente (sem prejuízo de extensão teleológica) enumerados no n.º 1 do art. 121º do CIRE; de todo o modo, sempre diremos que tal ónus deve ser enquadrado à luz dos princípios reitores do regime jurídico da insolvência e dos fundamentos que motivam a resolução operada pelo administrador da insolvência.


A esta luz, vejamos como melhor interpretar o regime aplicável em função dos elementos essenciais caracterizadores de um acto gratuito e dos seus tipos negociais (por regra, com liberalidade).


3.2.3. A al. b) do art. 121º, 1, do CIRE determina a resolubilidade em benefício da massa insolvência dos «atos celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, incluindo o repúdio de herança ou legado, com exceção dos donativos conformes aos usos sociais».


Esta previsão constitui uma tradução clara de uma racionalidade intrínseca à censura feita pelo art. 121º, 1, do CIRE: a falta de equivalência entre as prestações patrimoniais em prejuízo do devedor insolvente, visível nomeadamente nas als. b), d) e h)6.


Em particular, a resolubilidade dos actos gratuitos funda-se na prejudicialidade7 inerente à sua categoria de liberalidade: “diminuem o património de quem os pratica e, como tal, diminuem a satisfação dos credores”8; “[t]utelam-se, deste modo, os interesses dos credores em detrimento dos beneficiários do acto”9.


Se assim é a razão de ser do regime e identificado o interesse primordial de proteger os credores da insolvência de actos de diminuição patrimonial num arco temporal próximo ao início do processo de insolvência, será de avaliar o enriquecimento patrimonial da contraparte, sem correspectivo, à custa da diminuição patrimonial do atribuinte, depois insolvente, de acordo com uma relação objectiva e funcional de valor entre prestação realizada e contraprestação recebida, de modo que a (ausência de) representação subjectiva das partes não é de relevar como primordial para ponderar (e afastar, se assim fosse) a gratuitidade implicada na al. b) do art. 121º, 1, do CIRE (como conceito de relação tendo por base as atribuições patrimoniais realizadas10).


Não obstante, sempre se poderá advogar que, se os contratos gratuitos se distinguem dos contratos onerosos com base no conteúdo e finalidade do negócio, o que mais releva para a sua caracterização são as atribuições patrimoniais que envolvem11, independentemente das especificidades do regime jurídico que convoque essa gratuitidade negocial.


3.2.4. Neste filão de compreensão teleológica da gratuitidade no domínio da insolvência, determinada pelo seu conteúdo objectivo-funcional12, o STJ teve já oportunidade de tomar posição abonatória, por ex., nos Acs. (nesta 6.ª Secção) de 1/7/2014


– “Apurando-se não ter sido paga qualquer quantia a título de preço, a invocada “venda”, sempre poderia ser subsumida no preceituado na al. b) do n.º 1 do art. 121.º do CIRE, por se apresentar como um negócio gratuito, celebrado pelo devedor nos dois anos anteriores à data do início do processo e, assim sendo, resolúvel a título incondicional.”13 –,


26/1/2016


– “Tendo o insolvente formalizado, em 26-01-2011, escritura de compra e venda de imóvel com compradora que consigo já viveu em união de facto e que não lhe pagou, então ou depois, qualquer preço, e tendo-se iniciado o processo de insolvência em 06-08-2011, conclui-se ter sido celebrada uma doação, resolúvel ao abrigo do disposto no art. 121.º, n.º 1, do CIRE.”14 –,


e 12/3/2019


– “(…) o aludido acto de «venda», uma vez que se apurou não ter sido paga qualquer quantia a título de preço por parte dos Recorrentes à Insolvente, sempre poderia ser subsumido no preceituado na alínea b) do nº1, do artigo 121º do CIRE, por se apresentar como um negócio gratuito celebrado pelo devedor nos dois anos anteriores à data do início do processo (…)”15.


3.2.5. Ora, no caso, ficou claro nos factos provados que o valor patrimonial conferido pelo devedor insolvente ao Autor não ficou objectivamente traduzido como a contraprestação de uma prestação do Autor, faltando a tal atribuição a correspectividade que permitiria configurar o acto como oneroso, salientando-se a gratuitidade do acto.


Por outro lado, a resolução comunicada pelo AI apresenta desde logo como fundamento concreto, a título principal, para a declaração extintiva a qualificação como gratuito do pagamento feito através do cheque com saque e depósito da quantia de € 75.000 (cfr. novamente os factos provados 4., 5. 10., 15. e 16., e factos adicionais (i) e (ii)), reiterada como excepção aduzida pela Ré na contestação, o que habilita a sindicação dessa mesma qualificação em juízo do acto como gratuito de acordo com a aplicação do art. 121º, 1, b), do CIRE16 (em respeito do princípio do dispositivo e correspondente conformação objectiva da instância: arts. 5º, 1, 552º, d) e e), 576º, 3, 608º, 1, 1.ª parte, 609º, 1, CPC).


Em conformidade, ainda que com fundamentação adicional na interpretação da al. b) do art. 121º, 1, do CIRE, sufraga-se o entendimento do acórdão recorrido –

“Na situação em apreciação, datado de 16 de Maio de 2019, a Azores Parque emitiu um cheque bancário, no valor de € 75.000,00, sem identificação do respectivo beneficiário.

O Sr. Administrador de Insolvência não encontrou qualquer registo contabilístico que justifique um tal pagamento, nem a realização de julgamento nos presentes autos teve a virtualidade de encontrar causa justificativa.

O autor dos autos não logrou alcançar qualquer desiderato, a si favorável, com a acção.

Assim, entendemos que a situação materializa um acto gratuito (…).” –,


improcedendo as Conclusões do Recorrente.


3.2.6. Fica assim prejudicada a apreciação, alternativa e subsidiária, da aplicação da al. h) do art. 121º, 1 (art. 608º, 2, 1.ª parte, do CPC).


III) DECISÃO


Pelo exposto, julga-se improcedente a revista.


Custas da revista a cargo do Recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.


STJ/Lisboa, 16 de Janeiro de 2024


Ricardo Costa (Relator)


Luís Correia de Mendonça


António Barateiro Martins


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).


_________________________________________________

1. Cfr., respectivamente, ref.ª CITIUS 53281236 e ref.ª CITIUS 19054372, relativos aos autos principais da insolvência.↩︎

2. Na versão da 1.ª instância, este facto, que não foi modificado pela Relação, começava a sua enunciação com “Neste sentido”, que foi eliminado em 2.ª instância.↩︎

3. Na versão da 1.ª instância, este facto, que não foi modificado pela Relação, começava a sua enunciação com “Assim”, que foi eliminado em 2.ª instância.↩︎

4. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “As formas de composição da acção”, Estudos sobre o novo Processo Civil, 2ª ed., Lex, Lisboa, 1997, págs. 219-220↩︎

5. V. MANUEL DE ANDRADE, Teoria geral da relação jurídica, Vol. II, Facto jurídico, em especial negócio jurídico, Almedina, Coimbra, 1992 (reimp.), págs. 54-56, ANTUNES VARELA, Das obrigaçõe em geral, Vol. I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, pág. 404 (“segundo a comum intenção das partes”), CARLOS MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed. por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, págs. 400-401, e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil português, I, Parte geral, Tomo I, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, págs. 474-475; para o contraponto, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, Volume II (artigos 762.º a 1250.º), 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1997, sub art. 940º, págs. 239-240.↩︎

6. Neste sentido, CATARINA SERRA, Lições de direito da insolvência, Almedina, Coimbra, 2018 (reimp. 2019), pág. 248.↩︎

7. Presumida com natureza inilidível: art. 120º, 3, do CIRE.↩︎

8. CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, Código da insolvência e da recuperação de empresas anotado, 2.ª ed., Quid Juris, Lisboa, 2013, sub art. 121º, pág. 531.↩︎

9. FERNANDO DE GRAVATO MORAIS, Resolução em benefício da massa insolvente, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 86.↩︎

10. LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das obrigações, Volume I, Introdução. Da constituição das obrigações, 15.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020 (reimp.), pág. 201.↩︎

11. Neste sentido, ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, págs. 368, 370.

De todo o modo, em geral, há uma corrente que dispensa tal representação subjectiva da liberalidade – o que, portanto, motivaria a dispensa do ajustamento do acto gratuito às razões da insolvência – e associa tal liberalidade à sua função económico-social, em que basta, para subsistir a gratuitidade liberal em termos objectivos, a inexistência de contrapartida para a vantagem atribuída e a não correspondência ao cumprimento de uma obrigação ou de qualquer outro dever jurídico de atribuir, retribuir ou de prestar (não tenha causa adquirendi, credendi ou solvendi): v. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos, III, Contrato de liberalidade, de cooperação e de risco, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2013 (reimp. 2016), págs. 23-24, 33 e ss.↩︎

12. Sublinhada e problematizada (na esteira da doutrina alemã) por JÚLIO GOMES, “Nótula sobre a resolução em benefício da massa insolvente”, IV Congresso de Direito da Insolvência, coord.: Catarina Serra, Almedina, Coimbra, 2017, págs. 118-119; aparentemente sustentada por MARISA VAZ CUNHA, Garantia patrimonial e prejudicialidade. Um estudo sobre a resolução em benefício da massa, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 153, sem prejuízo de conceder atenção à vontade das partes no contexto negocial concreto: “na análise dos actos prejudiciais à massa importará atender às atribuições patrimoniais realizadas pelas partes”.↩︎

13. Processo n.º 529/10, Rel. ANA PAULA BOULAROT, in www.dgsi.pt: ponto III. do Sumário.↩︎

14. Processo n.º 2113/11, Rel. FERNANDES DO VALE, descrito in www.stj.pt: ponto II. do Sumário.↩︎

15. Processo n.º 493/12, Rel. ANA PAULA BOULAROT, in www.dgsi.pt: ponto IV. do Sumário.↩︎

16. No âmbito, portanto, da necessidade de comunhão de fundamentos entre a declaração resolutiva e a contestação apresentada na acção de impugnação pelo administrador da insolvência/massa insolvente: v. os Acs. do STJ de 25/2/2014, processo n.º 251/09.2TYVNG-H.P1.S1, Rel. ANA PAULA BOULAROT, e 29/4/2014, processo n.º 251/09.2TYVNG-R.P1.S1, Rel. PINTO DE ALMEIDA, sempre in www.dgsi.pt; convergentes na doutrina, JÚLIO GOMES, “Nótula sobre a resolução em benefício da massa insolvente”, loc. cit., págs. 122-123, ALEXANDRE DE SOVERAL MARTINS, Um curso de direito da insolvência, Volume I, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, pág. 315.↩︎