Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1955/09.5T2AGD-B.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: EXECUÇÃO CAMBIÁRIA
CO-AVALISTA
AVAL PLURAL
PAGAMENTO
DIREITO DE REGRESSO
SUB-ROGAÇÃO
INCIDENTE
HABILITAÇÃO
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática: DIREITO COMERCIAL
Doutrina: - Abel Pereira Delgado, “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças- Anotada” , 6ª edição, pág. 177.
- Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial”, vol. III, Letra de Câmbio, Coimbra, 1966, págs. 196, e segs.
- Gonçalves Dias, “Da Letra e da Livrança”, vol. VII, págs. 563 e 564.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Estudo denominado “Pluralidade de avales por um mesmo avalizado e “regresso” do avalista…”, págs. 947 a 978, publicado na obra “Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais”, Homenagem aos Professores Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Volume III, Vária, pág. 961.
- Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. 1º, págs. 484/485.

Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 632.º, N.º1
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 55.º, N.º1
LEI UNIFORME DAS LETRAS E LIVRANÇAS (LULL): - ARTIGOS 30.º, 32.º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- DE 24.10.2002, CJSTJ, TOMO III, PÁG. 120;
- DE 27.10.2009 – PROC. 480/09.9YFLSB, IN WWW.DGSI.PT .

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
- DE 27.05.2004, PROC N.º 0432601, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário : I) - Sendo as obrigações dos “co-avalistas” autónomas, mesmo que o avalista dê o aval a diferentes obrigados cambiários, não adquire pela via do pagamento, direito de regresso contra algum dos outros “co-avalistas”, assim como não tem acção cambiária contra qualquer dos demais avalistas do mesmo avalizado.

II) Porque esse direito não lhe foi transmitido, não há sucessão, para poder tomar a posição de exequente – em patente contradição com a incompatível posição, em termos de legitimidade – art.55º, nº1, do Código de Processo Civil – passando a figurar no título como credor (pela via da habilitação-incidente) sendo devedor, originariamente, por via da garantia do aval, e ser nessa qualidade executado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA - Banco P... do A..., S.A. como exequente, instaurou na Comarca de Águeda, acção executiva para pagamento de quantia certa, com forma de processo comum, contra os executados:

BB - A... – Sociedade de Artes Gráficas, Lda.,

CC,

DD,

EE - Fábrica de Chocolates R..., Lda.,

FF,

GG.

O executado CC deduziu, em 1.3.2001, incidente de habilitação, alegando, em resumo:

- a dívida exequenda funda-se em letra aceite pela EE-“Fábrica de Chocolates R..., Lda.”, sacada por BB-“A...-Gráficas, Lda.”, com o aval a favor da sacadora dado pelo requerente e pela executada DD e o aval a favor da referida aceitante dado pelos executados FFe GG;

- o requerente pagou ao Banco exequente o montante de 4.357.507$70, dando-se o mesmo como integralmente pago da dívida exequenda, pelo que tem direito a ser sub-rogado nos direitos do exequente (arts.592º e 644º do Código Civil).

Requereu, assim, a sua habilitação como exequente, para prosseguir a execução contra os demais executados, mormente contra a aceitante e seus avalistas.

Não houve oposição ao pedido incidental de habilitação.

***

Por sentença de 21.7.2008, decidiu-se julgar improcedente o incidente.

***

Inconformado, o requerente recorreu de agravo para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por Acórdão de 25.3.2010 – fls. 60 a 69 –, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

***

De novo inconformado, recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

I – O recorrente, enquanto avalista do sacador, tendo pago o valor da letra ao portador, ficou sub-rogado nos direitos deste contra a própria sacadora, sua avalizada, contra a aceitante e contra os avalistas desta, que são perante si responsáveis solidários, e também contra a co-avalista da sacadora (embora a responsabilidades desta perante recorrente seja conjunta);

II – Como sub-rogado nos direitos daquele, sucedeu ao Exequente, podendo, nos termos gerais, habilitar-se, como sucessor do seu direito, para com ele prosseguir a execução, tendo por base o mesmo título e as responsabilidades relativas que dele emergem, de acordo com as regras dos arts. 1°, n°s. 2 e 3, 28° e 32° da LULL.

III – A interpretação do art. 32° do LULL deve ser feita com o sentido e alcance que lhe são dados pelo termo “sub-rogado” constante do seu parágrafo 3°, uma vez que o mesmo consta do texto em que a Convenção de Genebra de 7 de Junho de 1930, foi ratificada, aprovada e publicada em Portugal.

IV – O douto Acórdão recorrido interpretou e aplicou erradamente os arts. 1°, n°s. 2 e 3, 28° e 32° da LULL.

Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente agravo e revogado o douto Acórdão recorrido e substituído por outro que julgue o recorrente habilitado no processo de execução, para com ele prosseguir a execução, contra os demais co-obrigados na letra.

Não houve contra-alegações.

***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que releva a seguinte factualidade:

Nos autos principais de execução foi dada à execução uma letra de câmbio, com aceite de EE-“Fábrica de Chocolates R..., Lda.”, figurando como sacadora BB-“A... – Gráficas, Lda.”, com o aval a favor da sacadora dado pelo requerente CC e pela executada DD e o aval a favor da referida aceitante dado pelos executados FF e GG.
Neles foi dada quitação da quantia exequenda, tendo a exequente declarado ter recebido a mesma.
Mais foi aí julgada extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide no que se refere à executada EE- Fábrica de Chocolates R..., Lda., em face da sua declaração de falência, por despacho de 12.05.00.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se o “co-avalista” que pagou a letra de câmbio exequenda – pode tomar no processo executivo onde era executado, pela via do incidente de habitação, a qualidade de exequente.

As instâncias recusaram a pretensão do ora recorrente, essencialmente, por considerarem que entre “co-avalistas” não existem relações cambiárias, não podendo o “co-avalista” que paga a letra ou livrança na execução, obter por via desse pagamento a qualidade de credor, passando a dispor de título executivo como exequente.

Pretende pela via da habilitação incidental, o avalista/recorrente passar da qualidade de executado e devedor para a de exequente, o que desde logo, implica que na modificação subjectiva que o incidente da habilitação exprime, uma inversão de posições em sede de título executivo.

O “co-avalista” que pagou a letra que direito dispõe contra os demais executados, sacadora e aceitante do título?

O aval é o acto pelo qual uma pessoa estranha ao título cambiário, ou mesmo um signatário – art. 30º da LULL – garante, por algum dos co-obrigados no título, o pagamento da obrigação pecuniária que este incorpora.

O aval é, pois, uma garantia dada pelo avalista à obrigação cambiária e não à relação extracartular.

“O aval pode ser prestado a favor de qualquer signatário da letra.
Porém, se o dador do aval não indicou a pessoa por conta de quem prestou o aval, considera-se como dado ao sacador, sem que seja admissível a prova de que foi dado a outro obrigado” – “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças-Anotada” – 6ª edição, pág. 177, do Conselheiro Dr. Abel Pereira Delgado.

“Será o aval uma fiança? Tudo está em saber de que modo o fim de garantia, para que o aval é dado, se reflecte no seu regime jurídico. É incontroverso que as partes visam esse escopo; mas comportar-se-á a obrigação do avalista em relação à do avalizado como uma verdadeira obrigação de garantia, como uma fiança? (…) Temos de concluir que o aval, sendo uma garantia, não é rigorosamente uma fiança; que não pode enquadrar-se perfeitamente o aval na fiança: a acessoriedade não esgota a sua natureza jurídica.” - Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial”, vol. III, Letra de Câmbio, Coimbra, 1966, págs. 196, e segs.

O aval é uma garantia autónoma (não é uma fiança): a obrigação do avalista é, por um lado, subsidiária ou acessória de outra obrigação cambiária ou da obrigação de outro signatário; no entanto, o aval é também um verdadeiro negócio cambiário, origem de uma obrigação autónoma; o dador de aval não se limita a responsabilizar-se pela pessoa por quem dá o aval, mas assume a responsabilidade do pagamento da letra.

O avalista não detém uma posição acessória em relação à obrigação garantida, tanto assim é que a sua vinculação como garante se mantém ainda que seja nula a obrigação garantida – art. 32º II da LULL – por qualquer motivo que não seja um vício de forma.

Na fiança, sendo nula a obrigação principal, nula é a garantia – art. 632º, nº1, do Código Civil.

Segundo o Estudo de Pedro Pais de Vasconcelos, denominado “Pluralidade de avales por um mesmo avalizado e “regresso” do avalista…”, págs. 947 a 978, publicado na obra “Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais” – Homenagem aos Professores Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Volume III, Vária,
pág. 961, pode ler-se:

“O artigo 32.° da LULL não permite relações cambiárias entre os chamados “co-avalistas” ao contrário do artigo 650.° do Código Civil que estabelece relações internas de regresso, em solidariedade, entre os co-fiadores.
O avalista que paga tem duas ordens de faculdades que lhe são conferidas pelo artigo 32.° da LULL: pode accionar em regresso o interveniente cambial por quem prestou o aval (o avalizado), e pode colocar-se na posição jurídica do avalizado, subrogando-se-lhe, e accionar todos aqueles que sejam perante ele responsáveis. Diferentemente, o fiador que pagou tem direito de regresso contra o afiançado ou, alternativamente, contra os co-fiadores.
O impropriamente chamado “co-avalista” que pagou pode cobrar a totalidade do que pagou, seja do avalizado seja dos intervenientes cambiários que são perante o avalista responsáveis; o co-fiador que pagou pode cobrar do afiançado a totalidade da quantia que tiver pago ou, alternativamente, dos co-fiadores, não já a totalidade do que pagou, mas apenas do valor que tiver pago, o montante em que o seu pagamento exceda o quinhão que lhe cabia no regime da solidariedade.
É pacífico que o impropriamente chamado “co-avalista” que pagou não tem o poder de accionar cambiariamente os demais avalistas, não tem contra eles qualquer acção cambiária, o avalista que pagou está privado de acção cambiária contra os outros avalistas do mesmo modo que o avalizado que pagou não pode accionar um ou mais dos seus próprios avalistas.
Seria completamente privado de sentido que o avalizado que pagou pudesse accionar em regresso algum dos seus avalistas; do mesmo modo, um avalista que tenha pago, uma vez subrogado na posição do avalizado por quem pagou, não tem acção cambiária contra qualquer dos demais avalistas do mesmo avalizado. Se assim fosse admitido, a posição jurídico-cambiária do avalista passava a ser muito menos gravosa do que a do respectivo avalizado, que não pode accionar de regresso qualquer dos seus próprios avalistas”.

Sendo as obrigações dos “co-avalistas” autónomas, mesmo que o avalista dê o aval a diferentes obrigados cambiários, não adquire pela via do pagamento, direito de regresso contra algum dos “co-avalistas”, assim como não tem acção cambiária contra qualquer dos demais avalistas do mesmo avalizado.
Porque esse direito não lhe foi transmitido, não há sucessão, para poder tomar a posição de exequente – em patente contradição com a incompatível posição, em termos de legitimidade – art.55º, nº1, do Código de Processo Civil – de figurar no título como credor (pela via da habilitação-incidente) e devedor, originariamente, por via da garantia do aval, e ser nessa qualidade executado por o avalizado não ter pago.

Gonçalves Dias –“Da Letra e da Livrança”, vol. VII, pág.563 e 564 – ensina:

“É pois exacto que o avalista, pagando o título, não fica propriamente subrogado nos direitos do portador. Não há sub-rogação, mas aquisição própria.
Não fica mesmo subrogado nos direitos daquele por quem pagou – nos direitos do avalizado: nem é sucessor do portador pago, porque não é seu cessionário, nem um sucessor do avalizado, porque este é sempre um obrigado cambiário a respeito do avalista que o garante.
Todas estas explicações servem para a Lei Uniforme e seriam desnecessárias se a tradução portuguesa não tivesse adulterado o texto original da alínea III do art°32°.
Esta alínea, reportando-nos à redacção francesa ou inglesa, nem de perto, nem de longe fala da “sub-rogação”.
A versão correcta seria: “Efectuando o pagamento, o dador de aval adquire os direitos emergentes da letra contra o seu avalizado e contra os obrigados para com este”.

Tem-se entendido, na doutrina e na jurisprudência, que o co-avalista que pagou não tem uma acção cambiária contra o co-avalista não pagador – v. Gonçalves Dias, ob. citada, Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 24.10.2002, CJSTJ, Tomo III, pág. 120, e Ac. da Relação do Porto, de 27.05.2004, Proc n.º 0432601, in www.dgsi.pt.

No mesmo sentido, mais recentemente, decidiu o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 27.10.2009 – Proc. 480/09.9YFLSB – de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Azevedo Ramos, in www.dgsi.pt.

I – Não existem relações cambiárias entre os vários avalistas de um mesmo avalizado.
II – O recurso ao regime jurídico da fiança para regular as relações entre os avalistas do mesmo avalizado, nomeadamente entre o avalista que pagou e os demais avalistas do mesmo avalizado, só pode ancorar-se em relações extra cambiárias que tenham sido estabelecidas entre os vários avalistas do mesmo avalizado.
III – Esta fiança extra cambiária só existe se for convencionada e nada permite presumi-la.
IV – O regime jurídico do art. 32º da LULL, ao não permitir relações cambiárias entre a pluralidade de avalistas do mesmo avalizado, não contém uma lacuna que possa ser preenchida por analogia ao regime civil da fiança.
V – Em caso de pluralidade de avales pelo mesmo avalizado, se apenas for exigido o pagamento a um deles (ou a mais do que um, mas não a todos), o avalista que pagou só tem acção comum extra cambiária contra os demais avalistas do mesmo avalizado que não tiverem pago, se tal tiver sido extra cambiariamente convencionado entre eles e nos precisos termos do que tiver sido convencionado.”

Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. 1º, págs. 484/485, ensinam:

Se o avalista cumpriu voluntariamente a obrigação, o seu regresso contra os co-avalistas só é admissível depois de excutidos os bens do emitente do título e, só depois de accionado o subscritor da livrança, é que poderá exigir dos outros co-avalistas, de harmonia com as regras das obrigações solidárias, as partes que proporcionalmente lhes cabem em dívida”.

Concluindo, diremos que, por não existir sub-rogação nos termos preditos, não existe “sucessão”, razão pela qual o incidente de habilitação estava votado ao insucesso.

Decisão.

Nestes termos, nega-se provimento ao agravo, mantendo o Acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça,

Lisboa, 23 de Novembro de 2010.

Fonseca Ramos (Relator)*
Cardoso de Albuquerque
Salazar Casanova
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* Sumário e descritores elaborados pelo Relator.