Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3503/16.1T8VIS-A.C1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: TÍTULO DE CRÉDITO
TÍTULO EXECUTIVO
EXEQUIBILIDADE
EXCEPÇÃO
DESPACHO SANEADOR
RECURSO DE APELAÇÃO
CASO JULGADO
CHEQUE
MÚTUO
NULIDADE
QUIRÓGRAFO
Data do Acordão: 02/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: JULGADO O RECURSO DE REVISTA PROCEDENTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / INTERPOSIÇÃO E EFEITOS DO RECURSO / JULGAMENTO DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA – PROCESSO DE EXECUÇÃO / TÍTULO EXECUTIVO / EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA / PROCESSO ORDINÁRIO / OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5.ª Edição, p. 205 e 206;
- Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, p. 748.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 644.º, N.ºS 1, ALÍNEA B) E 3, 652.º, N.º 1, ALÍNEA B), 655.º, N.º 2, 679.º, 703.º, N.º 1, ALÍNEA C), 729.º, N.º 1, ALÍNEA A), 731.º, 732.º, N.º 4 E 852.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 3/2018, DE 12-12-2017;
- DE 15-11-2017, PROCESSO N.º 262/14.6TBCMN-A.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - O despacho saneador em que se decidiu a excepção da inexequibilidade do título executivo deve ser impugnado em recurso de apelação autónoma e não no recurso da apelação final, por decidir do mérito da causa, quer se entenda que se trata de uma questão processual, quer de uma questão de direito material subjacente à emissão do título.
II - Decidida no despacho saneador, transitado em julgado, a questão da inexequibilidade do título, não pode a mesma questão voltar a ser discutida em sede de sentença final, por força do caso julgado formado.
III - Pode servir de base à execução um cheque não só enquanto título de crédito em sentido próprio, mas também como mero quirógrafo, quando, neste caso, forem alegados no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente.
IV - A nulidade do mútuo por inobservância da forma legalmente prescrita não retira a exequibilidade ao cheque que o titula.
Decisão Texto Integral:



Processo n.º 3503/16.1T8VIS-A.C1.S1[1]

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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:

I. Relatório


AA, executado na execução para pagamento de quantia certa, sob a forma ordinária, que lhe moveram BB e mulher CC, todos melhor identificados nos autos, deduziu oposição mediante embargos, pedindo que aquela seja declarada extinta, com fundamento nas excepções de:
(I) inexistência ou inexequibilidade do cheque como quirógrafo;
(II) pagamento de 47.500 € e
(III) incomunicabilidade da dívida ao cônjuge do executado,
bem como na impugnação da matéria alegada no requerimento executivo.

Os exequentes/embargados contestaram, sustentando que a quantia titulada refere-se a vários empréstimos de valor inferior ao indicado no cheque que não carecem de forma legal e que os executados se comprometeram a pagar a dívida até ao final de 2015, o que nunca fizeram, concluindo pela improcedência dos embargos.
No despacho saneador, foi julgada improcedente a excepção da inexistência ou inexequibilidade do cheque (cfr. fls. 35 a 37), ordenando-se o prosseguimento dos embargos para julgamento.

Realizado este, foi proferida sentença a julgar os embargos parcialmente procedentes e a reduzir a quantia exequenda para 37.000,00 € (trinta e sete mil euros), com juros de mora à taxa civil, a contar da respectiva citação.

Inconformado com o assim decidido, o embargante/executado interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 9/10/2018, julgou o recurso procedente, revogou a decisão recorrida e declarou extinta a execução.

Não conformados, desta feita, os embargados/exequentes interpuseram recurso de revista e apresentaram a correspondente alegação com as seguintes conclusões:

“1.      Os recorrentes/exequentes entendem que a decisão recorrida se encontra errada sendo ilegal e jurisprudencialmente desconforme com outras decisões e a doutrina dominante e, por isso, interpõem o presente recurso de revista.

2.        Decidiu a primeira instância o seguinte: “Pelo exposto, julga-se a matéria dos embargos parcialmente procedente, e, em consequência, reduz-se a quantia exequenda para 37.000 (trinta e sete mil euros) com juros de mora à taxa civil a contar da respectiva citação.”.

3.         Recorreu desta decisão o executado, requerendo a alteração da matéria de facto dada como provada para que se considerasse que o executado pagou determinadas quantias e, só subsidiariamente, caso assim não se entendesse, que se declarasse a nulidade do mútuo e a inexistência de título executivo.

4.         Veio a ser proferida a douta decisão de que se recorre que, em suma, decidiu o seguinte: “A causa da obrigação executada é aquele mútuo que, sendo nulo por falta de forma, não produzirá efeitos executivos, não sendo permitido ao juiz a “convolação” da causa de pedir da ação executiva. Sendo assim, por falta de título válido, não podemos manter a decisão recorrida.”

5.         Decisão que se interpõe a presente revista.

6.         Desde logo, entendem os ora recorrentes que o Tribunal a quo não poderia ter apreciada a questão colocada em sede de recurso quanto à alegada nulidade do mútuo e inexistência de título, porque tal questão já havia sido decidida pelo Tribunal de primeira instância, em sede de Despacho saneador e que, por não ter sido objecto de impugnação recursiva, transitou em julgado antes mesmo da prolação a decisão final.

7.         Pugnou o executado, enquanto recorrente, para o Tribunal da Relação, a revogação da decisão recorrida, vindo este a proferir Acórdão reconhecendo que o contrato de mútuo celebrado entre as partes era nulo e, nessa medida, tal consubstanciaria a inexistência de título executivo.

8.         É entendimento dos agora recorrentes que o Tribunal da Relação não poderia ter apreciado essa questão por a mesma estar desde há muito ultrapassada.

9.         É que, além de o executado ter levantado tal questão em sede de embargos, a verdade é que, o Tribunal pronunciou-se sobre essa concreta questão e sobre o pedido de absolvição da instância executiva por nulidade ou inexistência de titulo, em sede de despacho saneador, tendo decidido e considerando, não se verificar a nulidade e inexistência invocada, entendendo julgar improcedente a alegada inexistência de título executivo, julgando assim válida a instância executiva, absolvendo os exequentes do pedido deduzido pelo executado e decidindo do mérito dessa concreta questão, tendo decidido, na audiência prévia de 28 de Junho de 2017, o seguinte: Ora, dado que o embargante não põe em causa a existência do mútuo mas tão-somente a forma como o mesmo foi celebrado, afigura-se-nos, salvo o devido respeito por opinião contrária, que se apresentaria como absolutamente desnecessária, constituindo até um abuso de direito da parte do embargante, pretender que os exequentes propusessem previamente uma ação declarativa para reconhecimento de um mútuo relativamente ao qual emitiu e entregou o cheque dado em execução para assegurar o seu pagamento. De forma que, face ao que antecede e subscrevendo a doutrina vertida nos citados acórdãos, improcede a arguida exceção.

10.      Desta decisão de mérito, que lhe era desfavorável, não recorreu o executado AA, pelo que, conformando-se com ele, transitou a mesma em julgado – à contrário – artº 644º, nº 1 al. b) – absolveu os exequentes do pedido de inexistência de titulo - e também, nº 2 al. d), pois admitiu o articulado de execução, indeferindo a alegação de inexistência de titulo que levaria à rejeição do articulado petitório de execução -não podendo, assim, ser atacada, como o foi, apenas a final.

11.         Pese embora tal decisão – transitada em julgado e, assim, insindicável – não poder merecer censura, o recorrente, em sede de alegação de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, voltou a discutir a questão da invocada inexistência de título, tendo tido, desta vez, assentimento por parte deste Tribunal a quo, que e pese embora a questão já ter sido decidida e, portanto, apesar de já haver decisão e mérito no processo, por decisão transitada em julgado, pronunciou-se e voltou a decidir sobre o mérito da mesma questão, decidindo, agora, pela existência da alegada nulidade do título e assim pela sua inexistência.

12.       Por conseguinte e a nosso ver, ferindo a autoridade de caso julgado material e formal, formado dentro do próprio processo, pelo que, e desde logo, se requer a Vª Exª que atento o exposto se decida revogar a Douta Decisão recorrida, constante do Acórdão que aqui se coloca em crise, na medida em que o ali decidido é ilegal e consubstancia violação da autoridade do caso julgado, pois, a questão já havia sido decidida de mérito, pela primeira instância, em decisão que não teve impugnação recursiva e assim transitou em julgado antes mesmo da decisão final.

13.      Acresce que, ainda que o Tribunal a quo considere que estamos perante um único contrato de mútuo, que nos termos da lei substantiva devia ter sido celebrado por escritura pública, tal não acarreta a conclusão retirada no Acórdão, nomeadamente, a invalidade do título, nem invalida a prossecução da instância executiva nos termos em que o foi, desde que provado o crédito dos recorridos, agora recorrente, como o foi.

14.       Apesar de o agora recorrido ter avançado várias decisões jurisprudenciais aquando da interposição do seu recurso para a Relação, na defesa da sua tese, a verdade é que elencaram os agora recorrentes, em contra-alegações, muitas outras decisões jurisprudenciais - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no âmbito do processo 268/12.0TBMGD-A.P1.S1, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no âmbito do processo 3150/13.0TBGMR-A.G1V, Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no âmbito do processo 371/07.8TBMAI-A.P1, Acórdão desta Relação proferido no âmbito do processo6322/11.8TBLRA-A.C1, Acórdão desta Relação proferido no âmbito do processo 2707/13.3TJCBR-A.C1, Acórdão desta Relação proferido no âmbito do processo 169/10.6TBCSC-B.C1, Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo 467-13.7TCFUN-A.L1-6 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no âmbito do processo 07B4427 – que vão e defendem sentido bem diverso.

15.      No entanto, contrariamente a este vastíssimo espólio jurisprudencial, veio o Tribunal da Relação, enquanto Tribunal de recurso, decidir no sentido daqueles, considerando seguir a jurisprudência que entendemos nós ser minoritária, sumariando, nos seguintes termos: “ O cheque, mero quirógrafo, não constitui título executivo quando para o negócio subjacente à sua subscrição a lei exija a celebração de escritura pública, sendo este nulo por falta de forma”.

16.       Decisão esta que o Tribunal recorrido fundamentou apenas em pouco mais de uma página completa.

17.      Por isso, não se podem os recorrentes conformar com tal decisão, na medida em que surge em contradição com a jurisprudência maioritária, como se disse e, ainda, contra o sentido defendido e fixado pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, número 3/2018, proferido por este Supremo Tribunal que estabeleceu a seguinte uniformização: «O documento que seja oferecido à execução ao abrigo do disposto no artigo 46.º, n.º 1, alínea, c), do Código de Processo Civil de 1961 (na redacção dada pelo Decreto -Lei n.º 329 -A/95, de 12 de Dezembro), e que comporte o reconhecimento da obrigação de restituir uma quantia pecuniária resultante de mútuo nulo por falta de forma legal goza de exequibilidade, no que toca ao capital mutuado».

18.       De facto, a questão colocada neste Acórdão Uniformizador, é em tudo idêntica à colocada nos presentes autos e, consiste em saber se estando o negócio jurídico subjacente ao escrito particular dado à execução afectado de invalidade formal, esta acarreta a inexequibilidade daquele. Decidindo-se que não, como, aliás, também e, humildemente, defendemos.

19.      Até porque, nos presentes autos, do título apresentado na execução – cheque – resulta o reconhecimento expresso, claro e inequívoco, da existência de uma obrigação contratual para o executado, decorrente de um contrato de mútuo que o mesmo confessou, sem qualquer reparo, haver celebrado com os exequentes.

20.      Ainda que se parta do pressuposto que se trata, como consideraram as instâncias anteriores, de apenas um contrato de mútuo e não de vários, no valor de 50.000 euros, como consta aposto no referido cheque, e que tal contrato seria nulo por não revestir a forma legal exigida de escritura pública, tal não acarreta, por si só, a consideração errada de que o vício de forma redunda na falta de título executivo.

21. E assim como bem decidido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência supra referido, que procurou estabelecer uma unidade nas decisões jurisprudenciais, “constatada a nulidade do negócio subjacente ao título executivo apresentado e sendo esse vício do conhecimento oficioso, tal título pode valer de fundamento, não para o cumprimento específico do contrato, mas para a restituição do que houver sido prestado, como consequência legal da nulidade, nos termos do art. 289.º, n.º 1, do CC. Daí que o título não possa valer, designadamente, para exigir os juros que tenham sido estipulados no contrato, por este ser nulo, mas apenas os juros de mora, à taxa legal desde a citação para a acção executiva, por força do que dispõem os arts. 805.º, n.º 1, e 806.º do mesmo código.”

22.      Por isso, nos presentes autos, não se pode olvidar, à semelhança do referido no Acórdão uniformizador supra citado, que o cheque apresentado como título prova, por si só e depois com a confissão expressa do seu autor, a própria realidade do mútuo, pois o mesmo exprime a confissão extrajudicial desse facto, nos termos dos artigos 352.º, 355.º, n.º 1, 358.º, n.º 2, e 376.º, n.ºs 1 e 2, do CC, o que comporta o reconhecimento, pelo mesmo, de uma obrigação pecuniária, o que aliás o autor e emissor do cheque/documento reconheceu e confessou, em juízo, quando prestou declarações de parte.

23.      Assim, atento o reconhecimento expresso, por parte do executado, de que contraiu perante os exequentes empréstimo de quantia igual à aposta no cheque, a obrigação em causa é determinada e reconhecida em documento que o executado assinou e entregou aos credores, consubstanciando o referido cheque um reconhecimento expresso de dívida, o que acarreta, em caso de incumprimento, a restituição do capital mutuado – exactamente o que é peticionado pelos exequentes -.

24.      E como bem decidiu este Tribunal na fundamentação do Acórdão de Uniformização 3/2018: “Ainda que a pretensão formulada por um exequente não seja juridicamente fundamentada na restituição por força da declaração de nulidade, o efeito prático por esta atingido é idêntico ao por ele visado, excepto se, porventura, tiver pedido o pagamento de juros remuneratórios, que, como se viu, não pode ser atendido.”

25.      Ou seja, ainda que os exequentes não formulassem a restituição do dinheiro mutuado à luz do instituto da nulidade, a verdade é que o efeito prático é o mesmo, razão pela qual sempre é de considerar válida a instância executiva.

26.       Ademais a decisão de considerar válido o título executivo em nada prejudicou o direito do executado que teve a possibilidade a oportunidade de rebater a dívida, como fez, em primeira instância, provando o pagamento parcial do valor aposto no cheque e assim do mutuo (mesmo que inválido ou nulo por vício de forma) contraído perante os exequentes, seus credores.

27.       Ora como bem decidido no Acórdão 3/2018 com assento integral nos presentes autos: “A exequibilidade do título em que o executado confessa ter recebido uma certa quantia por força de um contrato nulo por falta da forma legalmente imposta, se é a solução que melhor se conforma com o interesse do legislador na actuação do aludido princípio da economia processual, também não molesta as garantias de defesa daquele: o acesso imediato à acção executiva, assim facultado, não impede que o devedor tenha a possibilidade de infirmar o certificado de garantia da existência do direito conferido pelo título apresentado, questionando a existência do direito exequendo, dado que o executado pode, relativamente aos títulos extrajudiciais, fundamentar a sua oposição em qualquer meio de defesa admissível no processo declarativo – arts. 816.º do anterior CPC e 731.º do actual”

28.       Pelo que deve ser julgada procedente a presente revista e, atenta a contradição expressa entre o Acórdão recorrido e o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 3/2018, ser revogada a decisão agora recorrida, constante do Douto Acórdão, considerando-se válida a instância executiva e assim se decidindo em conformidade e de acordo com o que já antes está fixado e decidido, nomeadamente, em sede de Sentença da primeira instância.

29.      Caso não se entenda ser de acolher a apreciação do presente recurso, como revista, dita, normal, sempre se terá se apreciar e analisar a presente questão, á luz da forma processual de recurso de revista excepcional, na medida em que, o Acórdão recorrido, surge em sentido diverso do trilhado e palmilhado por outras instâncias, nomeadamente, por esta instância superior que já proferiu decisões díspares e contrárias à ora recorrida e, concretamente, ao proferido e decidido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 3/2018 e proferido no âmbito do Processo 1181/13.TBMCN -A.P1.S1.

30.       No Acórdão-fundamento/Uniformizador de Jurisprudência foi proferido o seguinte sumário: «O documento que seja oferecido à execução ao abrigo do disposto no artigo 46.º, n.º 1, alínea, c), do Código de Processo Civil de 1961 (na redacção dada pelo Decreto -Lei n.º 329 -A/95, de 12 de Dezembro), e que comporte o reconhecimento da obrigação de restituir uma quantia pecuniária resultante de mútuo nulo por falta de forma legal goza de exequibilidade, no que toca ao capital mutuado».

31.       Logo, no caso deste Acórdão, sumariou-se e considerou-se que a referida decisão tinha força obrigatória no sentido de uniformizar que ainda que de um documento dado à execução esteja subjacente um contrato de mútuo nulo por falta de forma legal, o mesmo, não deixa de ter exequibilidade, no que concerne ao capital mutuado.

32.       Ora situação idêntica é a que foi retratada nos presentes autos: O executado pediu emprestado aos exequentes determinadas quantias que lhe mutuaram na totalidade 50000 euros, quantia esta constante no cheque que o executado entregou aos exequentes, mútuo este que nos termos da Lei é nulo por não revestir a forma legal de escritura pública.

33.      Mas, dos autos resultou igualmente que o executado reconheceu o mútuo em causa, apenas se defendendo que pagou a quase totalidade da dívida, embora só haja provado ter feito uma pequena parte, mas, assumiu e reconheceu que devolveu aos credores parte da quantia mutuada.

34.       Pelo que, bem decidiu a primeira instância logo em sede de despacho saneador ao considerar: “ que o embargante não põe em causa a existência do mútuo mas tão-somente a forma como o mesmo foi celebrado, afigura-se-nos, salvo o devido respeito por opinião contrária, que se apresentaria como absolutamente desnecessária, constituindo até um abuso de direito da parte do embargante, pretender que os exequentes propusessem previamente uma ação declarativa para reconhecimento de um mútuo relativamente ao qual emitiu e entregou o cheque dado em execução para assegurar o seu pagamento”. – Decisão esta que o executado não impugnou.

35.       Por isso e assim, entendem os agora recorrentes que, caso não seja revogada a decisão objecto de recurso à luz da revista, dita, normal, sempre terá de ser a mesma decidida e apreciada em revista excepcional, na medida em que o Acórdão proferido nos presentes autos pela Relação de Coimbra se encontra em contradição expressa com o dito pelo Acórdão Uniformizador nº 3/2018 referido, devendo, portanto e à luz deste, até porque já o é de Uniformização, ser revogada a decisão incerta no Acórdão da Relação de Coimbra e do qual se recorre nesta instância, considerando-se e decidindo-se, também nos presentes autos, que: O documento oferecido à execução pelos exequentes ainda que comporte o reconhecimento da obrigação de restituir uma quantia pecuniária resultante de mútuo nulo por falta de forma legal goza de exequibilidade, no que toca ao capital mutuado.

36.       E, assim, mantendo válida a instância executiva, se revogue a douta decisão do acórdão recorrido, por violação, entre outras, das normas constantes dos pontos anteriores destas conclusões e, consequentemente, se reponha a decisão de primeira instância, por ser a correcta, adequada e justa.

Nestes termos, decidindo-se como se requer, devem Vªs Exªs considerar procedente a revista apresentada e nessa medida revoguem a decisão recorrida por ser errada, ilegal e contrária ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 3/2018, e assim,

FARÃO VªS EXªS, A DEVIDA JUSTIÇA.”

O executado/embargante contra-alegou pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.

O recurso foi admitido como de revista, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, modo de subida e efeito que foram mantidos pelo Relator no despacho liminar.
           Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
           Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, as questões que importa dirimir consistem em saber:
1. Se o Tribunal da Relação podia ter conhecido da exequibilidade do título no acórdão recorrido;
2. Em caso afirmativo, se o título apresentado à execução é válido.

II. Fundamentação


1. De facto

No acórdão recorrido foram dados como provados os factos que já haviam sido dados como provados na sentença e que são os seguintes:

A) Os exequentes são portadores de um cheque com o número ..., sacado sobre o Banco ..., entregue pelo executado aos exequentes, assinado pelo executado e à ordem do exequente marido, datado de 31 de Dezembro de 2015, no montante de 50.000,00 euros (cinquenta mil euros).

B) O cheque foi emitido pelo executado, com excepção da data nele aposta, para garantia do valor de um empréstimo que os exequentes fizeram ao executado e mulher, a pedido destes, em 19.05.2010, no montante de € 50.000,00.

C) Apesar do cheque ter sido emitido apenas pelo executado marido, o empréstimo foi solicitado aos exequentes pelo executado e pela sua mulher.

D) O mencionado cheque não foi apresentado a pagamento.

E) O executado, para pagamento do empréstimo aludido em B), no ano de 2013 e nos meses de Fevereiro, Abril e Julho de 2015 transferiu para a conta do Banco ..., n.º ..., do embargado BB, a quantia total de € 11.000,00 (onze mil euros).

F) No mês de Fevereiro do ano de 2016, o embargante, para pagamento do empréstimo aludido em B) entregou aos embargados a quantia de 2000 €, através de transferência bancária, para conta dos mesmos na Caixa Geral de Depósitos.

G) Em datas anteriores, à do empréstimo aludido em B), os embargados já haviam emprestado dinheiro aos embargantes, da mesma forma, e o embargante e sua mulher pagaram o cheque que lhes passaram.

No mesmo acórdão foi, ainda, considerado o seguinte teor do requerimento executivo:

“1.º Os exequentes são donos e legítimos portadores e possuidores de um cheque emitido e entregue pelo executado e mulher aos exequentes, assinado pelo executado e à ordem do exequente marido, datado de 31 de Dezembro de 2015, (Cfr. Doc. nº 1 que se anexa).

2.º Ora do referido cheque, considerado título executivo nos termos do art. 703.º n.º1 al. c) do CPC, resulta reconhecida a dívida do executado e sua mulher a favor dos exequentes no montante de 50.000,00 euros (Cinquenta mil euros) e como efectivamente assim foi pretendido, acrescida dos respectivos juros de mora à taxa legal civil, desde a data da respectiva emissão até efectivo e integral pagamento.

3.º O cheque datado de 31 de Dezembro de 2015, no montante de 50.000,00 euros (Cinquenta mil euros), foi emitido para pagamento do valor de vários empréstimos que os exequentes foram fazendo ao executado e mulher, a pedido destes e no decorrer dos anos de 2011 a 2014 e que ficaram de liquidar até ao final do ano de 2015, tendo para o efeito o executado emitido, assinado e entregue este cheque com o número ... aos exequentes.

4.º Apesar do cheque ter sido emitido apenas pelo executado marido, a verdade é que os valores emprestados foram entregues ao executado e à sua mulher, enquanto casal, para estes fazerem face a encargos do agregado familiar de que ambos fazem parte, pelo que é a presente dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges, nos termos do art. 1691.º n.º 1 alíneas a) e b) do Código Civil.

5.º Ocorre que, na data do pagamento, os exequentes deslocaram-se ao Banco e aí foram informados que o executado e sua mulher não possuíam depositadas quantias e ou saldo para o pagamento desse valor, pelo que, decidiram não o apresentar a pagamento e, pese embora, disso hajam dado conhecimento ao executado e mulher e após, os haverem interpelado, por mais do que uma vez, para que procedessem ao pagamento dos valores em dívida e titulada pelo cheques em questão, a verdade é que o executado e sua mulher, nem na data do vencimento do cheque e acordada entre ambos, nem até à presente data, procederam ao pagamento da dívida que possuem para com os exequentes, não tendo estes apresentado o cheque a pagamento uma vez que mesmo depois da informação bancária supra, o executado e sua mulher lhes diziam que seria devolvido por falta de provisão, comprometendo-se porém a efectuar o pagamento a breve trecho, o que não se veio a verificar.”

2. De direito

2.1. Da exequibilidade do título/caso julgado

Tendo os embargos sido deduzidos a 6 de Fevereiro de 2017 (cfr. fls. 5), aos recursos interpostos das decisões neles proferidas aplica-se o Código de Processo Civil (CPC) aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho (cfr. art.ºs 6.º, n.º 4 e 8.º, ambos deste diploma), e, concretamente, o regime estabelecido para os recursos no processo de declaração (cfr. art.º 852.º do CPC).

A decisão sobre a excepção de inexequibilidade do título executivo foi proferida no despacho saneador dos embargos e o embargante impugnou-a no recurso de apelação sobre a sentença final (fls. 64, v.º).

O recurso do despacho saneador que “sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa”, deve ser interposto por via de apelação autónoma imediata (art.º 644.º, n.º 1, al. b), do CPC). Apenas nos casos de não decidir do mérito da causa e de absolver o réu ou algum dos réus da instância (e não se reconduzir a algum dos casos previstos no n.º 2 do mesmo preceito), deve ser interposto por via de apelação interposta da decisão final (art.º 644.º, n.º 3, do CPC).

Os embargados defenderam, na resposta ao recurso de apelação, que aquela decisão, proferida no despacho saneador, tinha conhecido do mérito da causa dos embargos, e que, não tendo sido interposta apelação autónoma, a decisão havia transitado em julgado ao tempo em que foi interposta apelação final.

Contrariamente, o Tribunal da Relação decidiu que “a decisão respetiva no saneador não transitou em julgado. Não sendo caso que caiba nos nº 1 e 2 do art. 644º do Código de Processo Civil (CPC), tendo os embargos prosseguido para o conhecimento do mérito, aquela decisão é impugnada no recurso da decisão final, como o foi”.

Apreciando:

Depreende-se da fundamentação sumária extractada que o acórdão recorrido entendeu não constituir o mérito da causa dos embargos a questão relativa à inexequibilidade do título.

Porém, a nosso ver, erradamente. Expliquemos.

Na interpretação do que vem a ser o mérito da causa, deparamo-nos desde logo com a seguinte dificuldade: “ao invés do que dispunha o art. 691.º, n.º 2, do CPC 1961 (anterior à reforma de 2007), o CPC de 2013 não contém qualquer norma que delimite o conceito de decisão que incide sobre o “mérito da causa”, o qual é decisivo não apenas para a aferição da admissibilidade do recurso de apelação, como ainda para efeitos de admissibilidade do recurso de revista, nos termos do art. 671.º, n.º 1” – Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5.ª Edição, págs. 205 e 206.

Acrescenta este autor que “Na falta dessa definição, revela-se importante a intervenção do elemento histórico para concluir que conhece do mérito da causa o despacho saneador (mesmo sem pôr termo ao processo, nos termos da al. a),) que julga procedente ou improcedente algum ou alguns dos pedidos relativamente a algum ou alguns dos pedidos relativamente a todos ou a algum dos réus ou julga procedente ou improcedente alguma excepção peremptória, como a caducidade, a prescrição, a compensação, a nulidade ou a anulabilidade”.

Os embargos de executado visam, na sua procedência, a extinção, total ou parcial, da execução (art.º 732.º, n.º 4, do CPC), pelo que o pedido a formular pelo embargante é o da extinção da execução, como o foi no caso em concreto.

Ao julgar o pedido de extinção da execução, o tribunal atém-se aos fundamentos esgrimidos pelo embargante que, no caso de a execução ter por base um título que não uma sentença, podem ser tanto os especificados no art.º 729.º do CPC como os invocados em processo de declaração (art.º 731.º do CPC).   

Dentre eles, contam-se os relativos à relação de direito processual e os relativos à relação de direito material, justificativa da emissão do título dado à execução, entre as partes.

À luz, pois, da finalidade e do pedido dos embargos de executado, insere-se no mérito da causa, rectius, no mérito da causa dos embargos, todo o fundamento que, independentemente da sua natureza, substantivo ou processual, tem potencialidade abstracta para, a ser julgado procedente, fazer extinguir a execução.

Seguindo este entendimento, a invalidade ou inexequibilidade do título executivo, que compromete a manutenção e determina a extinção da acção executiva, insere-se no mérito da causa (art.ºs 703.º e 729.º, n.º 1, al. a), ambos do CPC).

Donde, o despacho saneador que decidiu tal questão devia ter sido impugnado em recurso de apelação autónoma e não em recurso de apelação final.

Ao ser impugnado no recurso da decisão final, o recurso do despacho saneador que decidiu aquela questão é intempestivo, estando vedado ao tribunal recorrido conhecer, nessa parte, do recurso, incumbindo logo ao relator verificar essa circunstância obstativa do seu conhecimento (art.ºs 644.º, n.º 1, al. b), 652.º, n.º 1, al. b) e 655.º, todos do CPC).

Impõe-se, assim, revogar o acórdão recorrido na parte em que conheceu de tal questão, repristinando a decisão da 1.ª instância.

A idêntica solução se chega no caso de se considerar que outro deve ser – o que não se concede, sob pena de a causa de embargos não ter mérito na hipótese em que vêm deduzidas apenas, por exemplo, excepções dilatórias, o que não faz qualquer sentido – o critério para aferir as questões relativas ao mérito da causa, qual seja respeitarem unicamente à relação subjacente ou de direito material justificativa da emissão do título.

Neste caso, não se pode deixar de relembrar que, no requerimento executivo, os exequentes alegaram serem portadores de um cheque emitido pelo executado para garantia do pagamento de vários mútuos celebrados entre as partes no valor total de 50.000 euros e que a execução era fundada nesse título ao abrigo do disposto no art.º 703.º, n.º 1, al. c), do CPC.

Perante tal alegação, o embargante, sob o título da questão “Inexistência ou inexequibilidade do cheque, enquanto título executivo, como mero quirógrafo, enquanto documento particular assinado pelo devedor”, defendeu  expressamente que:
1. O título executivo dado à execução era um cheque-quirógrafo e por isso os exequentes alegaram no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente, como exigido pelo disposto no art.º 703.º, n.º 1, al. c), segunda parte, do CPC (art.ºs 1.º a 3.º da petição de embargos);
2. A causa da obrigação consubstanciada no cheque dado à execução era um mútuo no valor de 50.000 euros (art.º 5.º da petição de embargos);
3. À data da emissão do cheque, o mútuo de 50.000 euros exigia escritura pública ou documento particular, o que não foi observado e determina a invalidade do negócio (art.ºs 7.º a 10.º da petição de embargos);
4. A invalidade do negócio afecta a validade e exequibilidade do cheque (art.ºs 10.º a 25.º da petição de embargos).

Como se pode ver, os factos constitutivos da inexequibilidade do título situam-se, estritamente, na relação contratual de mútuo estabelecida entre as partes, alegada pelos exequentes e contraditada pelo embargante quanto à sua validade formal, fundamento contaminador da validade e exequibilidade do cheque oferecido como título executivo.

Assim vistas as coisas, o fundamento é a invalidade formal da relação subjacente; o efeito é a invalidade e inexequibilidade do título executivo. 

Não há, pois, como defender que a questão não tem a ver com o mérito da causa, se restritivamente entendida como a relação substantiva de natureza contratual recortada pela causa de pedir alegada no requerimento executivo.

Portanto, e em suma, ao estribar a inexequibilidade do título na nulidade formal da relação subjacente, está-se no domínio do mérito da causa, seja qual for o sentido que se lhe dê: se entendido como a questão ou questões cuja procedência determina a extinção da execução, pedido e fim dos embargos, então a inexequibilidade do título tem esse alcance e configura mérito da causa; se entendido como questão ou questões que não se ficam pela mera relação processual mas que colhem o seu verdadeiro fundamento na relação substantiva de direito material emergente (relação cambiária ou cartular) ou subjacente à emissão do título (relação subjacente ou de valuta), então a nulidade formal do mútuo como fundamento da invalidade do cheque emitido em garantia, como título de crédito e como título executivo, configura, igualmente, o mérito da causa, para efeito de sobre o despacho saneador que a conheceu dever recair recurso de apelação autónoma e não recurso de apelação final.

Em qualquer dos casos, é insusceptível de sindicância no recurso da decisão final – como erradamente o foi – pelo Tribunal da Relação.

Neste sentido já decidiu este Supremo Tribunal em caso idêntico, no acórdão de 03-02-2005, Revista n.º 4009/04, 7.ª Secção, Relator: Araújo de Barros, assim sumariado:

“I - O caso julgado visa essencialmente a imodificabilidade da decisão transitada e não a repetição do juízo contido na sentença: não se pretende que os tribunais doravante confirmem ou ratifiquem o juízo contido na sentença transitada, sempre que a questão por ela julgada volte a ser posta, directa ou indirectamente, em juízo; o que essencialmente se exige, em nome do caso julgado, é que os tribunais respeitem ou acatem a decisão, não julgando a questão de novo.

II - Se no despacho saneador proferido em embargos de executado, que transitou em julgado por falta de impugnação, se decidiu que o título dado à execução era dotado de exequibilidade, ficou definitivamente assente a validade e exequibilidade do título que serviu de base à execução, não podendo o recorrente questionar no recurso de apelação, ainda que com diverso fundamento, a sua qualidade, validade e exequibilidade….”

Trata-se, portanto, de extrair o efeito positivo do caso julgado ou da verdadeira autoridade do caso julgado formado com o trânsito em julgado do despacho saneador, na parte em que decidiu a questão da exequibilidade do título.

Como se sabe, esta figura radica nos art.ºs 619.º, n.º 1, e 621.º, ambos do CPC, dispondo o primeiro que “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”; e o segundo que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).

E tem a ver com a existência de relações de prejudicialidade entre objectos processuais.

A autoridade de caso julgado significa que, decidida com força de caso julgado material uma determinada questão de mérito, não mais poderá ela ser apreciada numa acção subsequente, ou no próprio processo, quer surja a título principal, quer se apresente a título prejudicial, e independentemente de aproveitar ao autor ou ao réu.

Assim, em primeiro lugar, essa imutabilidade ou indiscutibilidade da decisão judicial definitiva impede que a questão que foi objecto da decisão proferida e inimpugnável (ou não tempestiva e adequadamente impugnada) possa voltar a ser, ela própria, na sua essencial identidade, recolocada à apreciação do tribunal.

“Quando se torna definitiva, por já não ser susceptível de reclamação nem de recurso ordinário, quer nenhuma impugnação tenha tido lugar nos prazos legais, quer se tenham esgotado os meios de impugnação efectivamente utilizados, transita em julgado (art. 628) e extingue a instância (art. 277-a). Forma-se então o caso julgado, só formal (com efeitos apenas no processo concreto) quando a sentença tenha sido de absolvição da instância e simultaneamente formal e material (com efeitos dentro e fora do processo) quanto tenha sido de mérito”[3].

É este o caso dos autos.

Tendo sido apreciada a questão da (in)exequibilidade do título, por decisão transitada em julgado, não podia a mesma voltar a ser discutida, neste processo, como foi.

Por tudo o exposto, o acórdão recorrido não podia ter conhecido da inexequibilidade do título.


2.2. Da validade do título executivo

A resposta negativa à primeira questão logicamente prejudica o conhecimento da segunda questão.

Ainda assim, e caso a primeira questão recebesse resposta positiva, sempre entenderíamos como válido o título dado à execução pelas razões que, à guisa de sumário, aqui se deixam elencadas:
1. Os exequentes alegaram apresentar como título executivo um cheque ao abrigo do disposto no art.º 703.º, n.º 1, al. c), do CPC;
2. Este preceito consagra como títulos executivos os cheques-títulos de créditos e os cheques-quirógrafos, sendo necessário, quanto a estes, que os factos constitutivos da relação subjacente, caso não resultem do título, sejam alegados no requerimento executivo;
3. O embargante enquadrou-o como cheque-quirógrafo, o que não pode decorrer do facto de os exequentes terem alegado no requerimento executivo os factos que justificaram a sua emissão, mas antes da verificação de algum obstáculo juridicamente relevante à sua qualificação como título de crédito;
4. Neste particular, o cheque junto ao requerimento executivo contém todas as indicações necessárias à sua qualificação como tal – art.º 1.º da LUCH – e os prazos para apresentação a pagamento (oito dias após a data da emissão, sendo que em concreto a data dele constante é de 31-12-2015 e não foi apresentado a pagamento, cf. art.º 5.º do requerimento executivo) – art.º 29.º da LUCH – e para exercício da acção cambiária (seis meses contados do termo do prazo para apresentação a pagamento, sendo que a acção foi proposta a 22-06-2016) são prazos de prescrição e não de caducidade – cf. art.º 298.º, n.º 2, do Código Civil (CC) e Assento do STJ de 12 de Junho de 1962;
5. A prescrição não é de conhecimento oficioso – art.º 303.º do CC – e o embargante não a invocou;
6. Como tal, o cheque apresentado como título executivo é um título de crédito no sentido próprio;
7. Por isto, o cheque goza, entre outras, da característica da autonomia, o que significa do mesmo emergir, sem mais, a obrigação cambiária do obrigado pagar a quantia nele titulada, no momento do vencimento, ao portador;
8. Ainda assim, o sacador pode opor ao sacador as excepções relativas à relação subjacente ao cheque por se estar no domínio das relações imediatas – art.º 22.º da LUCH – no que se conta a invalidade formal do contrato de mútuo concretamente celebrado entre as partes;
9. Neste caso, convém referir que a nulidade do contrato de mútuo não é um nada jurídico, porque dela resulta a obrigação de o executado restituir aos exequentes a quantia prestada de 50.000 euros (com dedução dos valores já pagos) – art.º 289.º, n.º 1, do CC.
10. A quantia a restituir por força de um contrato de mútuo nulo ou de um contrato de mútuo válido é, no que respeita ao capital, idêntica, pelo que não ofende o sentimento geral de justiça transmutar o fim visado com a emissão do cheque – de reembolso de um mútuo válido para restituição de um mútuo inválido – quando o montante aposto no cheque é idêntico nos dois casos;
11.  A discussão ou polémica jurisprudencial tem versado fundamentalmente sobre cheques-quirógrafos, precisamente porque não geram obrigações senão quando apoiados na relação subjacente, o que não acontece no caso dos verdadeiros cheques;
12. O STJ já decidiu no AUJ n.º 3/2018, de 12 de Dezembro de 2017, por unanimidade, que, “O documento que seja oferecido à execução ao abrigo do disposto no artigo 46.º, n.º 1, alínea, c), do Código de Processo Civil de 1961 (na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), e que comporte o reconhecimento da obrigação de restituir uma quantia pecuniária resultante de mútuo nulo por falta de forma legal goza de exequibilidade, no que toca ao capital mutuado”.
13. O cheque não substancia mera ordem de pagamento ao banqueiro mas reconhecimento de dívida de valor pelo obrigado perante o titular[4];
14. Da similitude de um cheque e de uma declaração de reconhecimento de dívida, sempre a fundamentação daquele AUJ deve aplicar-se, por argumentos de maioria de razão e de segurança jurídica, ao cheque que titule contrato de mútuo nulo.

Procede, pois, a revista, devendo o Tribunal da Relação conhecer da questão, suscitada no recurso de apelação - reapreciação da matéria de facto -, implicitamente tida como prejudicada pela solução dada à questão da inexequibilidade do título (art.ºs 679.º e 665.º, n.º 2, ambos do CPC).

Sumariando em jeito de síntese conclusiva:
1. O despacho saneador em que se decidiu a excepção da inexequibilidade do título executivo deve ser impugnado em recurso de apelação autónoma e não no recurso da apelação final, por decidir do mérito da causa, quer se entenda que se trata de uma questão processual, quer de uma questão de direito material subjacente à emissão do título.
2. Decidida no despacho saneador, transitado em julgado, a questão da inexequibilidade do título, não pode a mesma questão voltar a ser discutida em sede de sentença final, por força do caso julgado formado.
3. Pode servir de base à execução um cheque não só enquanto título de crédito em sentido próprio, mas também como mero quirógrafo, quando, neste caso, forem alegados no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente.
4. A nulidade do mútuo por inobservância da forma legalmente prescrita não retira a exequibilidade ao cheque que o titula.

III. Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em julgar o recurso de revista procedente e em consequência:
a) Revogar o acórdão recorrido, repristinando o despacho saneador na parte em que decidiu julgar improcedente a questão da inexequibilidade do título executivo;
b) Ordenar que o processo volte ao Tribunal da Relação de Coimbra para conhecimento da questão suscitada no recurso de apelação, implicitamente prejudicada pela solução dada àquela questão.

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Custas desta revista pelo recorrido.

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Lisboa, 19 de Fevereiro de 2019

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[1] Do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Juízo de Execução de Viseu.
[2] Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. Garcia Calejo
[3] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, pág. 748.
[4] Cfr. Acórdão do STJ de 15/11/2017, processo n.º 262/14.6TBCMN-A.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.