Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A2620
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOREIRA CAMILO
Descritores: CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
DIVÓRCIO
BENS COMUNS DO CASAL
SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
Nº do Documento: SJ200811180026201
Data do Acordão: 11/18/2008
Votação: MAIORIA COM 2 VOTOS DE VENCIDO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
1ª – A fixação de uma data de cessação da coabitação para efeitos patrimoniais do divórcio tem por escopo evitar que um dos cônjuges seja prejudicado pelos actos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar sobre valores do património comum.
2ª – Tal fixação visa, assim, essencialmente as relações dos cônjuges, ou de qualquer deles, com terceiros, nomeadamente, evitar que um dos cônjuges possa vir a ser responsabilizado por dívidas contraídas pelo outro, bem como permitir que aos bens adquiridos ou rendimentos auferidos por cada um deles não tenha aplicação o regime da comunicabilidade, não ficando a fazer parte do património comum (regimes da comunhão de adquiridos e da comunhão de bens).
3ª – Na comunhão conjugal existe um património colectivo, ou seja, um património com dois sujeitos que do mesmo são titulares e que globalmente lhes pertence, sendo um dos traços característicos de tal património autónomo o facto de nenhum dos seus membros poder pedir a sua divisão enquanto não cessar a causa determinante da sua constituição.
4ª – Cada um dos cônjuges tem apenas direito a uma quota ideal do património do casal, pelo que só com a partilha subsequente ao divórcio se vai concretizar em bens certos e determinados.
5ª – Apesar da fixação pelo tribunal da data da cessação da coabitação para a produção dos efeitos patrimoniais do divórcio, os bens comuns conservam esta sua característica, não passando a ser considerados bens em regime de compropriedade.
6ª – Tendo o aqui Autor saído da casa de morada de família e aí permanecendo sua mulher, aqui Ré, não mais sendo reatada a vida em comum, não tem aquele (que nem sequer alega se ter oposto a tal situação) direito a ser compensado por aquela em termos do valor locativo do prédio.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I – Nas Varas de Competência Mista de Sintra, AA, em acção com processo ordinário, intentada contra sua ex-mulher BB, pediu que, com a procedência da acção, se decida:
“I) Ser a R. condenada a pagar ao A. a quantia de 19.500.000$00 (dezanove milhões e quinhentos mil escudos), como sua dívida ao A. relativa ao uso do prédio comum, sito à Rua da ...., lote ..., Algueirão, Mem-Martins, equivalente a 50% do valor global das rendas vencidas desde Outubro de 1988 a Outubro de 2001, acrescida de juros legais, contados desde a data da citação até integral pagamento.
II) Ser, ainda, a R. condenada a pagar mensalmente ao A. a quantia de 125.000$00 (cento e vinte e cinco mil escudos), como retribuição pelo uso do referido prédio, seja ou não a título de arrendamento, desde Novembro de 2001 até à efectivação da partilha.
III) Se assim se não considerar, deve a R. ser condenada ao pagamento do valor global das rendas vencidas, desde Outubro de 1988 até Outubro de 2001, relativa ao uso do citado bem imóvel, e vincendas à razão mensal de 250.000$00 (duzentos e cinquenta mil escudos), devidas ao património comum indiviso”.

Para fundamentar a sua pretensão, alega, em síntese, o seguinte:
O Autor e a Ré casaram um com o outro, sem convenção antenupcial, no dia 25 de Maio de 1974.
Por sentença proferida em 30 de Setembro de 1999, transitada em julgado no dia 21 de Outubro de 1999, foi decretado o divórcio de ambos, tendo-se decidido que os efeitos patrimoniais do divórcio se retrotraíam ao dia 5 de Outubro de 1988, data em que cessara a coabitação entre os cônjuges.
Do dissolvido casal existem diversos bens a partilhar, objecto de acção de inventário para partilha consequente a divórcio, apensa à respectiva acção de divórcio.
A casa de morada de família era no prédio urbano sito à Rua da ..., lote 14, inscrito na matriz sob o artigo 6129, da freguesia de Algueirão – Mem Martins, prédio esse integrado no património comum do casal.
O Autor suportou exclusivamente com bens próprios diversos encargos com o património indiviso, nomeadamente, com o imóvel já indicado e outro prédio urbano que identifica.
O Autor não usufrui de nenhum dos prédios do património comum.
O valor mensal do arrendamento do prédio da Rua da ..... é, no mínimo, de 250.000$00.
A quota de 50% a que o Autor tem direito, enquanto comproprietário, está, pois, prejudicada à razão de 125.000$00 por mês.
Desde 5 de Outubro de 1988, decorreram já 156 meses, o que perfaz um total de 39.000.000$00 de rendas vencidas, das quais 19.500.000$00 devidos ao Autor.
Quanto às rendas vincendas, deve a Ré pagar mensalmente ao Autor a quantia de 125.000$00 pelo uso do referido imóvel, use ou não a faculdade que lhe é conferida pelo nº 1 do artigo 1793º do Código Civil.
Os referidos montantes devem ser considerados dívidas da Ré ao Autor.
Não se tratando de “dívidas do casal”, são estas exigíveis desde já, não operando a moratória de acerto em partilha, são, pois, dívidas apenas da responsabilidade da Ré.
Ainda que assim se não considerasse, tendo sido decidido que os efeitos patrimoniais do divórcio se retrotraíriam ao dia 5 de Outubro de 1988, sempre seria inegável a separação patrimonial entre Autor e Ré na data da contracção das referidas dívidas.
Assim, nesta data, vigorava entre estes o regime de separação de bens, o que sempre se subsumiria na previsão da parte final do nº 1 do artigo 1697º do Código Civil, tornando, assim, desde logo exigíveis estas dívidas.
Se não se considerarem as referidas rendas frutos do bem compropriedade de Autor e Ré, sempre se dirá que estas rendas só podem ser consideradas frutos do património comum indiviso.

Contestou a Ré, limitando-se a arguir a ineptidão da petição inicial, pedindo a sua absolvição da instância.

Houve réplica.

Foi proferida decisão, que declarou não ocorrer a excepção dilatória da nulidade do processo, por ineptidão da petição inicial, e que, por considerar que a acção adequada à pretensão do Autor seria a acção de prestação de contas, entendeu, com base em erro na forma processual utilizada pelo Autor, ser de anular todo o processo, tendo absolvido a Ré da instância, decisão que foi revogada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, após recurso de agravo do Autor.

Voltando os autos à 1ª instância, foi proferido despacho saneador-sentença, onde se julgou a acção improcedente, absolvendo-se a Ré do respectivo pedido.

Após apelação do Autor, foi, na referida Relação, proferido acórdão, segundo o qual se julgou improcedente o recurso, confirmando-se, em consequência, a sentença recorrida.

Tendo o Autor requerido uma aclaração do acórdão, foi, em conferência, indeferida tal pretensão.

Ainda inconformado, veio o Autor interpor o presente recurso de revista, o qual foi admitido.

O recorrente apresentou alegações, formulando as seguintes conclusões:
1ª – Para que se possa considerar que houve uma privação efectiva do uso do imóvel, não é necessário que a recorrida tivesse manifestado de uma forma concludente a sua oposição a uma qualquer solução de utilização ou rendibilização do imóvel que lhe tivesse sido apresentada pelo recorrente.
2ª – O facto de a recorrida, mesmo após o decretamento do divórcio, ter continuado a residir na casa de morada de família como se, de facto, fosse plena proprietária do bem em causa, por si só, é facto suficiente para se poder concluir pela impossibilidade de o ora recorrente poder também ele us ufruir de todas as vantagens económicas facultadas pelo citado imóvel.
3ª – À cautela e sem conceder, pelo menos desde a data em que a Ré foi citada para os termos da presente acção, não mais pode alegar o desconhecimento de que o recorrente se opunha à utilização exclusiva que a mesma vinha fazendo do citado imóvel.
4ª – O intentar da presente acção é manifestação notória da pretensão do Autor, ora recorrente, de fazer afectar ao seu património as vantagens proporcionadas pelo imóvel em causa.
5ª – É, inequivocamente, esse o significado do segundo pedido formulado a final da petição inicial, quando aí foi peticionada a condenação da Ré ao pagamento mensal da quantia de PTE 125.000$00, actualmente EUR 623,50, como retribuição pelo uso do referido prédio, seja ou não a título de arrendamento, desde Novembro de 2001 até à efectivação da partilha.
6ª – Pelo que, mesmo que se considere que não está provado nos autos que a recorrida se tenha oposto a qualquer solução a adoptar entre os dois comproprietários quanto à utilização ou rentabilização do imóvel em causa, ainda assim sempre se deverá considerar como data relevante para o início da privação do uso do imóvel por parte do recorrente, a data em que a recorrida foi citada para a presente acção, isto porque desde essa data que a recorrida sabia inequivocamente estar a privar o outro consorte do uso ou fruição do citado imóvel e que o recorrente se opunha a tal situação.
7ª – O Tribunal recorrido não fez, assim, uma correcta interpretação e aplicação do art. 1406º, nº 1, do Código Civil.
8ª – O ora recorrente discorda igualmente do entendimento perfilhado no acórdão recorrido, segundo o qual não houve qualquer alteração de causa de pedir em sede de réplica por supostamente o ora recorrente não ter alegado factos concretos e objectivos que preenchessem todos os requisitos do enriquecimento sem causa.
9ª – Contrariamente ao que é dito pelo Venerando Tribunal a quo, o ora recorrente, quer na sua petição inicial, quer na sua réplica, alegou factos concretos relativamente a todos os requisitos do regime do enriquecimento sem causa, os quais se encontram previstos no artigo 473º do Código Civil.
10ª – No caso dos autos, houve uma deslocação patrimonial, sendo que a vantagem patrimonial da recorrida consistiu em nada ter pago ao recorrido pelo uso exclusivo (e sem o acordo do recorrente), de um bem que não lhe pertencia na totalidade, mas apenas em parte.
11ª – Sendo a recorrida comproprietária de apenas 50% do imóvel sito na Rua da ....., da qual teve o uso exclusivo desde 1988, e não pagando qualquer quantia por esse uso, a recorrida enriqueceu, no período compreendido entre 5 de Outubro de 1988 e 29 de Novembro de 2004, em metade do seu valor locatício, causando um igual e correspondente empobrecimento do recorrente.
12ª – Não existe tão-pouco causa para o enriquecimento da recorrida, porquanto não existiu qualquer causa para a deslocação patrimonial, dado que o enriquecimento não teve qualquer justificação legal ou contratual.
13ª – Se alguma dúvida houvesse quanto a ausência de acordo, ou existência de condescendência por parte do ora recorrente, quanto ao uso e fruição exclusiva do imóvel por parte da recorrida, tal dúvida não é razoável a partir do momento em que a recorrida foi citada para a presente acção, na qual o Autor, ora recorrente, manifestou de forma incontroversa e notória a pretensão de fazer afectar ao seu património as vantagens proporcionadas pelo imóvel em causa.
14ª – O enriquecimento da recorrida foi suportado pelo correspondente empobrecimento do Autor, que sendo comproprietário em 50% da casa se viu privado quer do uso, quer da percepção de qualquer lucro pelo facto do uso pertencer exclusivamente a outrem.
15ª – O acórdão recorrido não fez uma correcta interpretação e aplicação do artigo 273º do C.P.C. e, consequentemente, ao não ter conhecido da questão do enriquecimento sem causa, por ter entendido que se tratava de uma questão nova, violou o artigo 660º, nº 2, do C.P.C., porquanto, como vimos atrás, esta questão não foi suscitada pelo recorrente apenas no seu recurso de apelação, mas já antes em sede de réplica.
16ª – Em todo o caso, contrariamente ao entendimento que parece resultar da leitura do acórdão recorrido, in casu quer a petição inicial, quer a réplica apresentada pelo recorrente, continham todos os factos necessários à aplicação da figura do enriquecimento sem causa, nos termos atrás expostos, estando, assim, reunidos todos os requisitos para a aplicação do enriquecimento sem causa.

A recorrida não contra-alegou.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – Nas instâncias foram dados como provados os seguintes factos:
1. Por sentença de 30.09.1999, transitada em julgado em 21.10.1999, foi decretado o divórcio entre o Autor e a Ré.
2. Os mesmos casaram em 25.05.1974.
3. Teve-se por provado na sentença referida em 1. que o Autor deixou o lar conjugal em 05.10.1988 e que, desde a separação, a Ré habita na casa de morada de família, sita na Rua da ....., lote ..., no Algueirão, e o Autor na moradia sita na Rua de ......, ..../..., em Mem Martins.
4. O divórcio foi decretado com base na separação de facto dos cônjuges por seis anos consecutivos e inexistência de propósito de ambos de voltar a coabitar, sem elementos para declarar a culpa de qualquer deles.
5. Na mesma sentença, foi julgada cessada a coabitação entre os cônjuges a partir do dia 05.10.1988, a essa data retrotraindo os efeitos patrimoniais do divórcio.
6. Na 1ª Conservatória do Registo Predial de Sintra, sob o nº 35123, encontra-se descrito um prédio urbano sito na Rua de ....., nºs ..../..., da freguesia de Algueirão-Mem Martins.
7. Por apresentação de 19.06.1979, foi inscrita a aquisição deste prédio, por compra, a favor de AA, casado no regime de comunhão de adquiridos com BB (ora Autor e Ré).
8. Na 1ª Conservatória do Registo Predial de Sintra, sob a ficha nº 465, da freguesia de Algueirão-Mem Martins, encontra-se descrito um prédio urbano sito na Rua da ...., a que corresponde o lote 14.
9. Por apresentação de 02.12.1987, foi inscrita a aquisição deste prédio, por compra, a favor de AA, casado com BB, no regime de comunhão de adquiridos (ora Autor e Ré, respectivamente).
10. A casa de morada de família do dissolvido casal era no prédio mencionado em 8., que a Ré ocupa.
11. O valor mensal no mercado de arrendamento do prédio mencionado em 8. é de 250.000$00.

III – 1. A questão essencial aqui a dirimir consiste em saber se a Ré – que, após a saída do Autor, seu marido, do lar conjugal, se manteve a habitar a casa de morada de família, que era bem comum do casal – terá de compensar aquele pela ocupação da casa, em termos de valor locativo do imóvel, desde a data do termo da vida em comum, tendo em conta que, aquando do divórcio entre ambos, se declarou essa data como a da cessação da coabitação entre os cônjuges também para efeitos patrimoniais.

As instâncias deram resposta negativa a tal questão.

Na sentença proferida na 1ª instância, depois de se referir que o prédio sito na Rua da ....., lote 14, é bem comum do casal, pode ler-se:
“A respectiva administração ordinária cabe a qualquer dos cônjuges (art. 1678º, nº 3 do Cód. Civil), não prejudicando este entendimento o facto de os efeitos patrimoniais do divórcio que foi decretado, em 30/9/1999, terem retrotraído a 5/10/1988.
Tal imóvel constitui a casa de morada de família e nela a Ré passou ou ficou a habitar após a separação do casal.
Sem prejuízo de a administração do património comum do dissolvido casal não se confundir com a situação de compropriedade, as regras desta são aplicáveis à comunhão de outros direitos, conforme dispõe o art. 1404º do Cód. Civil, neste se incluindo os decorrentes da “comunhão que se estabelece entre os cônjuges, após a dissolução da sociedade conjugal e enquanto se não faz a partilha”, conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 2ª Ed., vol. III, pág. 350.
Deste entendimento decorre a inexistência da obrigação de indemnizar por parte do administrador do bem que integra o património comum, face aos demais contitulares do direito, atento o disposto no art. 1406º do Código Civil, sendo certo que no caso nem tão pouco foi alegado que a Ré tenha privado o Autor de exercer o uso ou posse do mesmo imóvel, o que ele também não alegou que tivesse querido fazer, o que se reconduz à improcedência da acção.
Um diferente entendimento, designadamente o que foi perfilhado pelo Acórdão do S.T.J. de 25/3/2004, in CJSTJ, 2004, T. 1º, pág. 145, de que o ex-cônjuge que detenha a administração de bens comuns do casal está obrigado a prestar contas ao outro ex-cônjuge, dissolvido que seja o casamento, considerando-se como receita o valor da utilização do bem comum, desde que daí resultem vantagens económicas para o utilizador, está-nos, naturalmente, vedado, face ao teor do Acórdão que foi proferido no presente processo, na medida em que tal importaria uma diferente forma de processo”.

Para se chegar à mesma solução, escreveu-se, a dado passo, no acórdão ora recorrido:
“Portanto, a partir dessa data cessou a comunhão conjugal e surgiu o regime da compropriedade entre as partes nesta acção, nos termos do art.º 1404º do C. Civ., até à efectivação da partilha dos bens. Os direitos dos comproprietários sobre os bens comuns são qualitativamente iguais, mesmo que quantitativamente possam ser diferentes (art.º 1403º, nº 2, do C. Civ.).
No tocante ao uso da coisa comum, na falta de acordo, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, desde que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito (art.º 1406º, nº 1, do C. Civ.).
No caso dos autos, o Autor, ora recorrente, alega que pretende ser ressarcido pela privação do uso de um imóvel integrado no património comum do casal dissolvido. Todavia, não se prova que alguém, concretamente a Ré, o tenha privado de usar também o imóvel em causa ou o tenha obrigado a deixar o lar conjugal (cf. facto nº 3). Sendo tal imóvel comum, sujeito ao regime jurídico da compropriedade, como se viu, os seus donos exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular e participam separadamente nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas (art.º 1405º, nº 1, do C. Civ.).
Por sua vez a administração da coisa também é conjunta, como nas sociedades civis, nos termos dos art.s 985º e 1407º do C. Civ.. No caso vertente, à falta de convenção em contrário, a administração pertenceria portanto a ambos os comproprietários, tal como durante o casamento em relação aos bens comuns (art.º 1678º, nº 3, do C. Civ.). Porém, tendo a Ré continuado na casa, que foi a de morada de família, se ela exercia a administração sozinha, então administrava bens próprios e bens alheios, constituindo estes a quota do A., e estava por isso obrigada a prestar contas dessa administração ao ora Recorrente. Mas não esta providência que o A. aqui vem pedir.
Ora, no caso presente, não estando alegados, e muito menos provados, factos demonstrativos de o comproprietário ter pretendido exercer os seus direitos sobre o prédio e disso ter sido ilicitamente impedido pela Ré, não pode o mesmo vir agora exigir o respectivo equivalente pecuniário a título de indemnização. O simples facto de a Ré residir no prédio, só por si, não pode ser considerado automaticamente impeditivo de o A. usufruir do citado imóvel. Embora o Recorrente não pode ser obrigado a voltar a coabitar com a Recorrida, também não está demonstrado que esta se tenha oposto a qualquer solução a adoptar entre os dois comproprietários no sentido da utilização ou da rendibilização do imóvel, de modo a que o A. pudesse dele usufruir também.
(...).
O Recorrente, nas suas conclusões recursórias, tenta socorrer-se do enriquecimento sem causa para, subsidiariamente, salvar o seu pedido. Todavia, na petição inicial, o A. não fundou a sua pretensão em tal instituto, sendo certo que tinha o ónus de alegar e provar os factos integradores de todos os requisitos do enriquecimento sem causa (art.ºs 342º, nº 1, e 473º do C. Civ.) e, desde logo, o da ausência de causa justificativa (cf. Pires de Lima – A. Varela, C. Civ. Anot., 1º vol., 2ª ed., p. 401). O ora Recorrente apenas se referiu a esta fonte de obrigações na réplica, não podendo ignorar que tal articulado serve unicamente para o A. responder à matéria da excepção deduzida pela Ré na contestação (art.º 502º, nº 1, do CPC).
Trata-se portanto de uma questão nova que não foi, nem tinha de ser, apreciada em primeira instância, e por isso não pode este Tribunal de recurso dela se ocupar (art.s 676º, nº 1, e 690º, nº 1, do CPC). São novas todas as questões que não tenham sido primeiro suscitadas, apreciadas e decididas no tribunal a quo ou aquelas que tenham sido excluídas do âmbito do recurso por delimitação expressa ou por omissão de recurso principal ou subordinado. Na verdade, os recursos destinam-se a corrigir erros (in judicando ou in procedendo) da decisão impugnada e não a decidir novidades ou questões-surpresa apresentadas nas alegações, sob pena de supressão de um grau de jurisdição (...)”.

2. Desde já – e se bem que não possa relevar para a solução da presente acção –, diremos que a declaração feita no processo de divórcio pelo Senhor Juiz de que os efeitos do divórcio para efeitos patrimoniais se retrotraíam à data da cessação da coabitação entre os cônjuges, ou seja, a 05.10.1988, é completamente despropositada.

Na verdade, e segundo o nº 1 do artigo 1789º do Código Civil, “Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges”.
“Se a falta de coabitação entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio se retrotraiam à data, que a sentença fixará, em que a coabitação tenha cessado por culpa exclusiva ou predominante do outro” – nº 2 do mesmo artigo.
“Os efeitos patrimoniais do divórcio só podem ser opostos a terceiros a partir da data do registo da sentença” – seu nº 3.

Temos, assim, que esta retroacção dos efeitos patrimoniais do divórcio à data da cessação da coabitação só pode ser declarada havendo culpa no divórcio, podendo constituir um benefício para o cônjuge que não é culpado ou é menor culpado na cessação da coabitação dos cônjuges.
Uma tal pretensão, deduzida pelo cônjuge culpado ou principal culpado, terá de ser desatendida.

Tendo o divórcio entre os aqui Autor e Ré (com a mesma qualidade processual na acção de divórcio) sido decretado sem culpas, não podia fazer-se retroagir os efeitos patrimoniais do divórcio à data da cessação da coabitação, comprovada nos autos.

3. Vejamos agora qual o significado de a lei estabelecer uma determinada data para os efeitos patrimoniais do divórcio.

Em relação ao nº 1 do artigo 1789º, refere RODRIGUES BASTOS (Notas ao Código Civil, vol. VI, 1998, pág. 227) que “esta regra tem especialmente em vista evitar que qualquer dos cônjuges, na pendência do processo, tome medidas pecuniárias susceptíveis de prejudicar o outro cônjuge, qualquer que seja o regime de bens do casamento”.

No mesmo sentido, apontam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (Código Civil Anotado, vol. IV, 1987, pág. 561), quando dizem que “a manifesta intenção da lei, quanto a este primeiro aspecto, é a de evitar que um dos cônjuges seja prejudicado pelos actos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar, desde a proposição da acção, sobre valores do património comum” (cfr., no mesmo sentido, Pereira Coelho, Reforma do Código Civil, pág. 47).

Temos, assim, que o escopo do nº 1 do artigo 1789º é não permitir que, durante o processo de divórcio, qualquer dos cônjuges pratique actos com reflexo negativo no património comum que prejudiquem o outro.

Daqui se pode inferir que a fixação de uma data para a produção dos efeitos do divórcio, no tocante às relações patrimoniais entre os cônjuges, visa essencialmente as relações dos cônjuges, ou de qualquer deles, com terceiros, nomeadamente, evitar que um cônjuge possa vir a ser também responsabilizado por dívidas contraídas pelo outro (registe-se que são dívidas comuns do casal, da responsabilidade de ambos os cônjuges, as dívidas contraídas, perante terceiros, durante a vigência do casamento, na proporção de metade para cada um deles – artigos 1691º, a), e 1730º, nº 1, do Código Civil), bem como permitir que aos bens adquiridos ou rendimentos auferidos por cada um dos cônjuges não se aplique o regime da comunicabilidade (regimes da comunhão de adquiridos e da comunhão de bens – cfr. artigos 1724º e 1732º do Código Civil), não ficando a fazer parte do património comum.

Logo, qualquer negócio que um dos cônjuges faça após a data tida como a do início da produção dos efeitos patrimoniais do divórcio só a ele responsabiliza, nada tendo o outro a ver com isso (por exemplo, se se tratar da aquisição de um bem, este será um bem próprio do adquirente, independentemente do regime de bens do casamento).
De qualquer forma, os bens que ambos conjuntamente possuíam mantêm a natureza de bens comuns até à partilha, a fazer por acordo extrajudicial ou por inventário judicial, requerido ao abrigo do artigo 1404º do Código de Processo Civil.
Não perdem essa qualidade, passando, como se diz no acórdão recorrido e defende o recorrente – em nossa opinião, mal – a ser considerados como bens em regime de compropriedade.

Efectivamente, na comunhão conjugal existe um património colectivo, ou seja, um património com dois sujeitos que do mesmo são titulares e que globalmente lhes pertence, sendo um dos traços característicos de tal património autónomo o facto de cada um dos seus membros não poder pedir a sua divisão enquanto não cessar a causa determinante da sua constituição.
Essa massa patrimonial não se reparte entre os cônjuges como na compropriedade ou comunhão do tipo romano: antes, como na antiga comunhão de tipo germânico, pertence-lhes em bloco e só em bloco.
Os bens comuns constituem uma massa patrimonial, à qual a lei, tendo em vista a sua especial afectação, concede um certo grau de autonomia, e pertence aos dois cônjuges, podendo dizer-se que ambos são titulares de um único direito.
Marido e mulher não têm qualquer fracção de direito que lhes corresponda individualmente e de que, como tal, possam dispor, como, de forma individual, não podem dispor em face do património comum por acto inter vivos.
Trata-se de um património que pertence em comum a duas pessoas, mas sem se repartir entre elas por quotas determinadas, como na compropriedade: enquanto esta é uma comunhão por quotas, aquele é uma comunhão sem quotas.
Um património autónomo pertence em bloco ao correspondente conjunto das pessoas: individualmente nenhum dos sujeitos tem direito a qualquer quota ou fracção; o direito sobre a massa patrimonial em causa cabe ao grupo no seu conjunto. Daí que nenhum dos membros da colectividade, titular do património colectivo, possa alienar uma quota desse património ou possa requerer a divisão, enquanto não terminar a causa geradora do surgimento do património colectivo (sobre este ponto concreto, cfr., por exemplo, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. I, págs. 224 a 226, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, págs. 235 e seguintes, e Heinrich Ewald Hordster, A Parte Geral do Código Civil Português, págs. 190 a 199).
Este património comum pressupõe o vínculo conjugal, o qual tem as suas próprias formas de extinção.
Dissolvido o vínculo conjugal, o património comum converte-se em comunhão ou compropriedade do tipo romano, podendo, então, qualquer dos consortes dispor da sua quota ideal ou requerer a divisão da massa patrimonial através da partilha.
É uma situação semelhante à sucessão mortis causa, ou seja, a uma herança, e é entendimento pacífico que esta, antes da partilha, constitui uma universitas juris, um património autónomo, com conteúdo próprio. Até à partilha, os direitos dos herdeiros recaem sobre o conjunto da herança; cada herdeiro apenas tem direito a uma parte ideal da herança e não a bens certos e determinados (cfr. acórdão deste STJ de 17.04.1980, in BMJ 296º-298).
Como escreveu Rabindranath Capelo de Sousa (Lições de Direito das Sucessões, pág. 185), citado no referido acórdão, “nos casos em que haja lugar à partilha da herança, segundo a opinião dominante, o domínio e posse sobre os bens em concreto da herança só se efectivam após a realização da partilha, uma vez que até aí a herança indivisa constitui um património autónomo nada mais tendo os herdeiros do que o direito a uma quota-parte do património hereditário”.
O mesmo é o pensamento do Prof. Pereira Coelho (Direito das Sucessões, 2ª ed., 1966-1967), também aí citado, quando esclarece que “não se trata de uma vulgar compropriedade entendida como participação na propriedade de bens certos e determinados. Pelo contrário, contitularidade do direito à herança significa tanto como direito a uma parte ideal, não de cada um dos bens de que se compõe a herança, mas sim da própria herança em si considerada”.

A partilha assume, assim, a característica de um negócio certificativo, um negócio que se destina a tornar certa uma situação anterior.
Cada um dos ex-cônjuges, e voltando à situação do divórcio, já tinha direito a uma quota ideal do património do casal: com a partilha, esse direito vai concretizar-se em bens certos e determinados.
No fundo, esse direito a bens determinados que existe depois de efectuada a partilha é o mesmo direito indeterminado que antes existia, apenas modificado no seu objecto.
Daí que a partilha não tenha efeito translativo ou constitutivo, revestindo-se antes de um carácter declarativo.

4. Decorrendo de todo o exposto que, com a cessação da coabitação e tendo em conta a errada declaração do Senhor Juiz de que os efeitos patrimoniais do divórcio se retrotraíam a essa data, os bens então existentes mantiveram a sua qualidade de bens comuns, não passando a ser considerados bens em compropriedade (aliás, poderá mesmo dizer-se que, se Autor e Ré passaram a ser comproprietários dos bens – quanto a imóveis, resulta dos autos que, além da casa de morada de família, existe um outro prédio urbano –, na proporção de 50% cada um, a partir de então, não se vislumbraria a necessidade de correr um inventário para partilha desses bens).

Como vimos, o prédio urbano aqui em causa era a casa de morada de família do casal.

O legislador teve um particular cuidado com este “bem”.
Daí que, no caso de divórcio por mútuo consentimento, haja necessidade de apresentar um acordo sobre o destino da casa de morada de família (cfr. artigo 1775º, nº 2, do Código Civil e 1419º, nº 1, f), do Código de Processo Civil/CPC).

Com a saída do Autor do lar, ali ficou a viver a Ré.

Segundo o nº 1 do artigo 1673º do Código Civil, “Os cônjuges devem escolher de comum acordo a residência da família, atendendo, nomeadamente às exigências da sua vida profissional e aos interesses dos filhos e procurando salvaguardar a unidade da vida familiar”.

Refere Salter Cid (A Protecção da Casa de Morada da Família no Direito Português, Almedina, Coimbra-1996, págs. 153 e 154) o seguinte:
“A separação de facto – entendida como manifestação de ruptura da comunhão de vida que o casamento deve visar, e que constitui a sua essência –, em si mesma, não tem por efeito o de desqualificar uma habitação como residência da família (e, consequentemente, como casa de morada da família). Para tanto, é necessário que, a par dessa separação, exista (tenha existido) um acordo entre os cônjuges no sentido daquela desqualificação, ou que a própria separação traduza a existência de um tal acordo (cfr. art. 217º, nº 1). Ora, se o importante, neste aspecto, é – como parece ser – assegurar que um dos cônjuges não possa, por si só – sem o acordo do outro ou decisão judicial –, desqualificar a residência em causa, provado que seja terem ambos perdido o interesse nessa qualificação, desaparece – deve desaparecer – a garantia legal da sua subsistência.
No fundo, e em resumo, o interesse atendível de, pelo menos, um dos cônjuges na qualificação ou na não desqualificação de uma habitação como residência da família funciona como pressuposto subjectivo duma e doutra”.

Tendo o aqui Autor deixado, em 05.10.1988, de habitar a casa de morada de família, esta manteve essa sua qualidade, tendo ali permanecido a aqui Ré.

Dir-se-á que, tendo o casal dois filhos, que, então, seriam menores, dado que o casamento dos aqui Autor e Ré ocorreu em 25.05.1974, tendo aqueles, respectivamente, 24 e 19 anos de idade (cfr. certidão de fls. 11), é mesmo de admitir que a Ré ali tenha ficado a viver na companhia dos filhos.

Encontrando-se o casal separado de facto, a Ré, apesar da protecção que a nossa lei procura dar à casa de morada de família, não tinha ao seu alcance qualquer meio de recurso a tribunal para consolidar o seu direito a ocupar essa casa.

Efectivamente, só perante a propositura de uma acção de divórcio é que a Ré teria a possibilidade legal de lhe ver judicialmente reconhecido o direito a, sem interferência de outrem (neste caso, seu marido), utilizar a casa.

Na verdade, e no tocante ao divórcio e separação litigiosos, estabelece o nº 7 do artigo 1407º do Código de Processo Civil que “Em qualquer altura do processo, o juiz, por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, poderá fixar um regime provisório (...) quanto à utilização da casa de morada da família; para tanto poderá o juiz, previamente, ordenar a realização das diligências que considerar necessárias”.

Em termos de atribuição definitiva da casa, tal só poderá suceder após o trânsito em julgado da decisão que decrete o divórcio (ou a separação judicial de pessoas e bens).

Segundo o nº 1 do artigo 1793º do Código Civil, “Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”.
“O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem” – nº 2 do mesmo artigo.

Temos, assim, que o tribunal pode atribuir, a título de arrendamento, a casa de morada de família, segundo um regime próprio, seja ela bem comum do casal ou própria do outro cônjuge.
A todo o tempo, um dos dois interessados pode requerer ao tribunal a atribuição da casa de morada de família, em regime de arrendamento.

Trata-se de uma inovação surgida com o Decreto-Lei nº 496/ 77, de 25 de Novembro, em vigor desde 01.04.1978 (cfr. seu artigo 176º), estando o incidente regulado actualmente no artigo 1413º do CPC.

Para o efeito, o juiz convoca os interessados para uma conferência, visando uma tentativa de conciliação, e, não havendo acordo, decidirá depois de proceder às diligências que reputar como necessárias e, se for caso de atribuição do direito ao arrendamento a favor de um dos cônjuges ou ex-cônjuges, determinará, além do mais, o valor da renda a pagar pelo arrendamento.
Quer a atribuição do direito ao arrendamento, quer o quantum da renda, serão determinados de harmonia com o que o referido artigo 1793º prescreve, isto é, “considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”.
A renda a fixar não deve, pois, atender, sempre e essencialmente, aos valores do mercado, devendo antes considerar a situação do caso concreto.

De qualquer forma, a fixação da renda, atendendo aos factores referidos, não deve andar “muito longe do valor da renda condicionada” (cfr. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, vol. I, 2ª ed., pág. 664).

O interessado a quem a casa é atribuída passa a ser arrendatário, passando a pagar o montante da renda ao seu ex-cônjuge (ou cônjuge, caso se esteja perante uma situação de separação judicial de pessoas e bens), se se estiver perante casa própria deste, ou metade da renda, se estivermos perante casa que é bem comum do casal.

Como decorre do nº 2 do artigo 1793º, independentemente de o arrendamento ficar sujeito às regras do arrendamento para habitação, o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.

Este regime de arrendamento é, pois, especial e pode ser requerido até à partilha.

Em relação a esta possibilidade de atribuição de arrendamento, e sendo a casa um bem comum do casal, temos que, se na partilha o arrendado for adjudicado ao cônjuge a quem foi atribuído o direito ao arrendamento, consolida-se a posição de arrendatário e senhorio na mesma pessoa, pelo que tal confusão dá lugar, forçosamente, à extinção do arrendamento; no caso de ser adjudicado ao outro cônjuge, fica este como senhorio de seu ex-cônjuge (ou cônjuge, se estivermos perante uma separação judicial de pessoas e bens).

Segundo Salter Cid (obra citada, pág. 26), “a expressão “casa de morada da família” é, no sentido comum imediato das palavras que a compõem, o edifício destinado a habitação, onde reside um conjunto de pessoas do mesmo sangue ou ligadas por algum vínculo familiar”.

5. Postos estes princípios, imaginemos a seguinte situação:

Aquando da propositura da acção de divórcio pelo aqui Autor, a aqui Ré requeria, ao abrigo do citado artigo 1407º, nº 7, do CPC, a fixação de um regime provisório para utilização da casa de morada de família.
Tendo ela sempre permanecido na casa, após a separação do casal, facilmente se intui que tal pretensão seria atendida pelo Senhor Juiz.
Passaria a Ré a habitar a casa com fundamento numa decisão judicial, sem ter de pagar qualquer contrapartida a seu marido, pois, em regimes provisórios de utilização de casa comum, tem-se entendido não ser de fixar a obrigação de qualquer pagamento ao outro cônjuge, precisamente por se tratar da casa de morada de família, bem comum do casal.

Não viu a Ré qualquer necessidade de recorrer a tribunal para o efeito, pois não se vislumbra dos presentes autos que alguma vez o aqui Autor se tenha oposto a que ela (certamente na companhia dos filhos do casal) ali permanecesse.

É pertinente colocar aqui a seguinte questão:
Se o tivesse feito e o tribunal lhe tivesse concedido esse direito, poderia ser reconhecido ao aqui Autor o direito a ser compensado pela ocupação feita pela Ré até à data da decisão que fixou o regime provisório, tendo em conta a errada declaração do Senhor Juiz no sentido da retroacção dos efeitos patrimoniais do divórcio?

A resposta, em nossa opinião, só pode ser uma: não podia a Ré ser condenada a compensar seu ex-marido pela ocupação da casa por esse período de tempo.

Se assim é, como pode agora o recorrente pretender ser compensado pela ocupação – completamente lícita, diga-se – anterior da casa por parte de sua então mulher?

Seria uma solução incongruente.

Aliás, há que não esquecer que, aquando da separação do casal, mantendo-se o dever de assistência (cfr. artigos 1675º e 2015º do Código Civil), poderá ter sucedido que a Ré só não tenha intentado uma acção de alimentos contra seu marido pelo facto de, ocupando a casa de morada de família, não vislumbrar necessidade na fixação de uma prestação alimentar a cargo de seu marido, o que poderia ser diferente se ela tivesse ido viver para uma casa que tomasse de arrendamento ou que adquirisse com empréstimo bancário.

Não faria qualquer sentido que, podendo a aqui Ré requerer, até à partilha, a atribuição da casa a título de arrendamento, segundo a metodologia que a própria lei consagra, lhe pudesse ser aqui imposta a obrigação de compensar seu ex-marido pelo uso que, com toda a legitimidade, fez da mesma e, além do mais, através de um critério de fixação do montante sujeito a regras totalmente diferentes das que a lei estabelece para a referida hipótese de arrendamento.

De qualquer forma, há que realçar que o próprio Autor sempre teve ao seu alcance a utilização da casa de morada de família, pois esta só se extingue com a partilha.

É óbvio que, em algumas situações – que nada têm a ver com a dos presentes autos –, poderá suceder que, com a separação dos cônjuges, estes façam um acordo no sentido da desqualificação da casa de morada de família, ou que a própria separação traduza a existência de um tal acordo.

Daí que Salter Cid, a fls. 153 e 154 da obra citada, em nota de rodapé, diga, citando Pereira Coelho:
«“(...) se, também de comum acordo, os cônjuges resolvem separar-se, deixando um e outro a casa de morada da família (...)”, esta “deixa de existir como tal”. Porquê? Seguindo a linha de raciocínio do A., porque essa casa deixou de ser a residência da família. E o mesmo poderá acontecer, parece-nos, ainda que um dos cônjuges tenha permanecido na habitação em causa; basta que tenha havido um acordo (expresso ou tácito) no sentido de tal residência ter passado a ser, somente, a habitação daquele cônjuge que nela permaneceu – não será o caso se os cônjuges decidiram separar-se apenas temporariamente».

Se o ora recorrente não estava interessado na manutenção da situação, aquando do seu pedido de divórcio, poderia ter requerido a atribuição a ele próprio da casa, em termos de regime provisório (cfr. citado artigo 1407º, nº 7, do CPC), ou, após o trânsito em julgado do divórcio do casal, requerer, ao abrigo do disposto no artigo 1793º do Código Civil, o direito ao seu arrendamento.

Aliás, e resultando dos autos que o inventário para partilha dos bens comuns do dissolvido casal foi requerido pelo aqui Autor, até poderá ainda suceder, caso a partilha não esteja ainda efectuada, que qualquer dos ex-cônjuges (logo, não só a aqui recorrida) possa requerer o direito à utilização da casa, nos termos do indicado artigo 1793º, dado que, ao contrário do que poderá pensar-se, a casa de morada de família aqui em causa só perde tal característica com a partilha do acervo patrimonial de ambos.

Se assim é, como poderá aceitar-se, como pretende o recorrente, que sua ex-mulher o compense pelo uso que a mesma fez, no exercício de um direito próprio (completamente legítimo, portanto), da casa de morada de família?

De todo o exposto decorre que não pode a Ré ser condenada a pagar metade do valor locativo da casa que vem ocupando desde que seu então marido saiu do lar conjugal, como veio o Autor peticionar.

6. Estando assente que o regime, após a separação do casal, não é o da compropriedade, diremos, no entanto, que, mesmo que assim se entendesse (posição do acórdão recorrido e do recorrente), nunca se poderia atribuir ao Autor a pretendida indemnização.

Segundo o nº 1 do artigo 1405º do Código Civil, “Os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular; separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas e nos termos dos artigos seguintes”.

Refere Jacinto Bastos, em anotação a este artigo 1405º (Notas ao Código Civil, 1997, pág. 169) que “A segunda parte do nº 1 formula o princípio geral de que, na falta de outra convenção ou de disposição legal em contrário, os comproprietários, singularmente considerados, adquirem, na proporção da respectiva quota, as vantagens da coisa, e suportam, na mesma medida, os encargos respectivos. As vantagens compreendem tanto os aumentos de valor da coisa em si mesma, como os seus proventos e os tesouros nela encontrados. (...). Os proventos são utilidades que provêm da coisa, regularmente e sem prejuízo da sua substância (frutos), ou mesmo irregularmente e com perda de substância”.

Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. III. 1972, pág. 322) referem:
“Relativamente aos frutos civis, por isso que derivam de relações de natureza creditória e se trata, em regra, de prestações divisíveis, nada impede que, na sequência da regra da proporcionalidade fixada pelo artigo 1405º e em conformidade com o disposto no artigo 534º, qualquer dos consortes possa reclamar do terceiro devedor a quota parte que lhe compete, ou apropriar-se dela quando receba a prestação integral”.

Prescreve o nº 1 do artigo 1406º do Código Civil que “Na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito”.

Voltando a Pires de Lima e Antunes Varela (obra citada, pág. 323), podemos ler:
“O artigo 1406º trata do uso da coisa comum, sendo o uso, como utilização directa da coisa ou como aproveitamento imediato das aptidões naturais dela, conceito distinto da fruição, que visa fundamentalmente a utilização da coisa como instrumento de produção (de frutos, proventos, etc.): cfr. artigo 1305º.
Quanto à fruição, no que concretamente se refere à possibilidade de utilização da coisa como fonte de vantagens, o artigo 1405º, nº 1, consagra a regra da proporcionalidade (em relação à quota de cada comproprietário). Relativamente ao uso, o artigo 1406º admite o princípio da solidariedade: a cada um dos comproprietários, seja qual for a sua quota, é lícito servir-se dela, utilizá-la na totalidade e não apenas em parte. Se a coisa comum for um caminho de passagem, um couto de caça ou um lago onde se pesca, a qualquer dos comproprietários é lícito, em princípio, passar, caçar ou pescar, em qualquer momento, as vezes que entender, contanto que não infrinja os regulamentos aplicáveis”.

Aplicando estes princípios legais ao caso sub judice e aceitando ser de aplicar as regras da compropriedade – o que, como já vimos, rejeitamos inteiramente –, facilmente se conclui que também por aqui não pode a Ré ser condenada a pagar ao Autor qualquer compensação pelo uso que continuou a fazer da casa de morada de família após a saída dele do lar conjugal.

Desde logo, porque não se demonstra que tenha havido qualquer acordo em sentido contrário (cfr. citado artigo 1406º, nº 1), o que significa que a Ré (como o Autor) poderia servir-se da coisa comum (a casa).

Por outro lado, e sendo certo que os comproprietários exercem, em conjunto, os direitos que pertencem ao proprietário singular (cfr. artigo 1305º e citado artigo 1405º, nº 1, do Código Civil), o Autor não alegou, e, como é óbvio, não provou, que tivesse sido impedido de lá viver, de também usar a casa de morada de família.
Facilmente se pode inferir dos autos, nomeadamente, do facto de ter sido o aqui Autor a deixar o lar conjugal, não mais lá voltando a viver, que ele aceitou tacitamente a situação, com ela se conformando.

Aliás, há que não esquecer que, como resulta da factualidade provada, o aqui Autor passou a viver na moradia sita na Rua de Fanares, 24/26, em Mem Martins, também bem comum do casal, a partilhar entre os cônjuges, se bem que alegue, na petição inicial, que a mesmo é inabitável e, pelo endereço que aí apresenta, já não seja essa a sua morada.

Desconhece-se, assim, qual a duração do tempo em que ali viveu, usufruindo também, sem nada pagar a sua mulher, de um bem comum de ambos.

7. Decorre de tudo o que foi já explanado que não estamos aqui perante qualquer situação de enriquecimento sem causa, pelo que este pedido de compensação, a título subsidiário, também não pode proceder, pois não ocorrem os requisitos de tal instituto.

Segundo o nº 1 do artigo 473º, “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”
“A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou” – nº 2 do mesmo artigo.

Da factualidade provada não se demonstra a ocorrência de qualquer dos requisitos assinalados.

Sendo assim, e a considerar-se ter havido omissão de pronúncia por parte da Relação, relativamente a esta questão (no acórdão de fls. 187 e 188, que recaiu sobre o pedido de aclaração formulado pelo recorrente, a Relação acabou por emitir pronúncia sobre essa questão, considerando não existir factualidade conducente à aplicação do instituto do enriquecimento sem causa), tal nulidade, prevista no artigo 668º, nº 1, d), 1ª parte, do CPC (cfr. artigos 716º e 732º), fica agora sanada.

8. Por último, teremos de reconhecer que poderão surgir situações sensivelmente idênticas em que a solução a dar não coincida com aquela que aqui perfilhamos.

Suponhamos esta hipótese:
Com a separação de um casal, um dos cônjuges mantém-se a habitar a casa de morada de família, bem comum do casal, enquanto que o outro cônjuge se vê na necessidade de ir ocupar uma outra casa, adquirida por empréstimo bancário ou tomada de arrendamento.
Este segundo cônjuge passa a ter de suportar um novo encargo, traduzido no pagamento de uma prestação mensal para juros e amortização do empréstimo ou para pagamento de uma renda.
Ocupando o primeiro cônjuge uma habitação sem qualquer pagamento e tendo o segundo de proceder a um pagamento pela utilização de outra casa que teve necessidade de arranjar, não nos repugna admitir que, aquando da partilha dos bens comuns do casal, possa haver um acerto de contas, nomeadamente, através da reclamação de um crédito por parte do segundo cônjuge, sobre o acervo patrimonial a partilhar, não sobre o outro cônjuge.

Só que esta situação não é a dos presentes autos, pelo que continuamos a entender que aqui a solução correcta é a que perfilhamos.

9. Infere-se, assim, do exposto que não colhem as conclusões do recorrente, tendentes ao provimento do recurso, pelo que o acórdão recorrido terá de manter-se, embora com fundamentação não totalmente coincidente.

IV – Do exposto podemos extrair as seguintes conclusões:
1ª – A fixação de uma data de cessação da coabitação para efeitos patrimoniais do divórcio tem por escopo evitar que um dos cônjuges seja prejudicado pelos actos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar sobre valores do património comum.
2ª – Tal fixação visa, assim, essencialmente as relações dos cônjuges, ou de qualquer deles, com terceiros, nomeadamente, evitar que um dos cônjuges possa vir a ser responsabilizado por dívidas contraídas pelo outro, bem como permitir que aos bens adquiridos ou rendimentos auferidos por cada um deles não tenha aplicação o regime da comunicabilidade, não ficando a fazer parte do património comum (regimes da comunhão de adquiridos e da comunhão de bens).
3ª – Na comunhão conjugal existe um património colectivo, ou seja, um património com dois sujeitos que do mesmo são titulares e que globalmente lhes pertence, sendo um dos traços característicos de tal património autónomo o facto de nenhum dos seus membros poder pedir a sua divisão enquanto não cessar a causa determinante da sua constituição.
4ª – Cada um dos cônjuges tem apenas direito a uma quota ideal do património do casal, pelo que só com a partilha subsequente ao divórcio se vai concretizar em bens certos e determinados.
5ª – Apesar da fixação pelo tribunal da data da cessação da coabitação para a produção dos efeitos patrimoniais do divórcio, os bens comuns conservam esta sua característica, não passando a ser considerados bens em regime de compropriedade.
6ª – Tendo o aqui Autor saído da casa de morada de família e aí permanecendo sua mulher, aqui Ré, não mais sendo reatada a vida em comum, não tem aquele (que nem sequer alega se ter oposto a tal situação) direito a ser compensado por aquela em termos do valor locativo do prédio.

V - Nos termos expostos, acorda-se em negar a revista, confirmando-se, em consequência, embora com diferente fundamentação, a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 18 de Novembro de 2008

Camilo Moreira Camilo (Relator)
Moreira Alves (Vencido nos termos do projecto que como relator inicial elaborei e aqui anexo.)
Alves Velho (Vencido conforme declaração que junto)
Urbano Dias
Paulo Sá