Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1944/11.0TBPBL.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: CONSUMIDOR
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
ALIUD PRO ALIO
CADUCIDADE
Data do Acordão: 10/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DO CONSUMO - VENDA DE BENS DE CONSUMO E DAS GARANTIAS A ELA RELATIVAS.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES.
Doutrina:
- A. Varela, Sampaio da Nora e Miguel Bezerra, Manual de Processo Civil, 184.
- Baptista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, 391.
- Carneiro de Frada, O Direito, n.º 121.º, 469.
- Manuel de Andrade, NEPC, 384.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, anotação ao artigo 917.º.
- Romano Martinez, O Cumprimento Defeituoso, em Especial na Empreitada e na Compra e Venda, 1.ª edição, 245 e seguintes.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 762.º, N.º1, 837.º, 917.º, 921.º, N.º4.
DECRETO-LEI N.º67/2003, DE 8-4: -ARTIGO 5.º-A.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 16.3.2011, PROCESSO N.º 558/03.2TVPRT.P1.S1;
-DE 29.5.2014, PROCESSO N.º 1092/10.0TBLSD-G.P1.S1, COM TEXTO DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
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ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE 4.12.1996, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA I-A DE 30.1.1997.
Sumário :
1 . Tendo uma sociedade comercial adquirido um produto para uso no âmbito da sua atividade, não beneficia do regime próprio dos direitos do consumidor.

2 . O artigo 917.º do Código Civil abrange também as ações indemnizatórias.

3 . Mas não os casos em que o devedor presta aliud pro alio.

4 . Para estabelecer a distinção entre cumprimento defeituoso e aliud pro alio há que lançar mão da ideia de identidade da prestação.

5 . Alegando a autora que a ré lhe havia fornecido “não o pretendido [e acordado] auto-nivelante, mas uma argamassa fluída”, cede o mínimo de identidade para a subsunção na figura do cumprimento defeituoso.

6 . Se decorreram os prazos para que remete aquele artigo 917.º, mas não os próprios do incumprimento e a ré impugna o facto referido no número anterior, não pode conhecer-se da caducidade no despacho saneador.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1 . AA, LDA, instaurou a presente ação declarativa contra:

BB, LDA.


Alegou, em síntese, que:

No exercício da sua atividade adquiriu à Ré e esta forneceu-lhe auto-nivelante para ser aplicado numa obra que ela, autora, tinha adjudicado na Alemanha;

Esclareceu-a dessa finalidade e pagou-lhe o preço acordado de €20.290,49 em 12/10/2010;

Uma vez aplicado no pavimento a que se destinava, o produto vendido levantou, fissurou, manchou e descarificou, do que a ré foi imediatamente informada;

Contactada a fabricante esta a informou-a de que na realidade não lhe foi fornecido um auto-nivelante mas antes uma argamassa fluida;

Do referido resultaram para ela os prejuízos que detalhadamente refere.


Pediu, em conformidade:

A condenação da ré apagar-lhe €137.390,49 acrescidos de juros de mora desde a citação até efetivo pagamento.


Contestou esta, invocando, além do mais, a caducidade do direito que a autora pretende fazer valer.


E requereu a intervenção acessória provocada de CC Portugal, S.A., na qualidade de fabricante do produto.


Admitida esta intervenção, contestou a interveniente, invocando também a caducidade.


A autora Replicou a A. pugnando pela improcedência da exceção.



2 . Na audiência prévia foi proferido saneador-sentença, no qual se julgou tal exceção procedente e, em consequência, se absolveu a Ré do pedido.



3 . Apelou a autora e o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu nos seguintes termos:


“Pelo exposto, na procedência da apelação, revogam a decisão recorrida, e, em função disso, julgam improcedente a excepção de caducidade suscitada pela Ré, determinando o prosseguimento da acção com a tramitação que lhe couber.”


Tendo sido elaborado o seguinte sumário:

“1. Convencionado num contrato de compra e venda a entrega pelo vendedor de um produto “auto-nivelante”, mas vindo a concluir-se ter sido efectivamente fornecido um produto diverso do ali acordado – “argamassa fluida” – não pode o comprador socorrer-se da tutela do regime da venda de coisas defeituosas dos art.ºs 913 e seguintes do C. Civil.

2. Não é em tal hipótese aplicável o regime de caducidade das acções fundadas em venda de coisa defeituosa, mas apenas o regime geral do cumprimento das obrigações.”



4 . Pede revista a ré.

Conclui as alegações do seguinte modo:


I. O Tribunal de 1.ª instância julgou correctamente, de acordo com as peças processuais e prova documental e demais processado existente nos autos, a matéria de facto dada como assente.

II. A matéria de facto dada como assente não foi alterada pelo Acórdão recorrido.

III. In casu, perante a factualidade trazida aos autos e dada como assente, nunca se poderia aplicar o regime do incumprimento da obrigação previsto nos artigos 483.° e 798.° do Código Civil.

IV. O regime do incumprimento da obrigação apenas foi invocado pela Recorrida em sede de motivação do recurso de apelação.

V. Em violação dos princípios da estabilidade da instância assente na fixação da causa de pedir e do pedido, nos termos do disposto nos artigos 259.°; 260.° e 264.° do Código de Processo Civil.

VI. Pelo que, o prazo aplicável nos presentes autos não é o prescricional previsto no art. 498.° do Código Civil, mas o de caducidade previsto no artigo 917.° do Código Civil, de seis meses para a compra e venda de coisa defeituosa.

VII. Por maioria de razão, não é também aplicável a culpa presumida no artigo 798.° do Código Civil em virtude da Recorrida ter cumprido com a sua obrigação contratualizada.

VIII. Sendo aplicável o regime da compra e venda defeituosa.

IX. Nem os seus pressupostos se verificam, atento o disposto no artigo 483.° do Código Civil e a matéria de facto dada como assente.

X. O Tribunal de 1.ª instância interpretou e aplicou correctamente os ditames e dispositivos legais aplicáveis.

XI. E, subsumiu correctamente os factos ao direito aplicável.

XII. Assim, deveria o Tribunal recorrido ter confirmando na íntegra a decisão recorrida.

XIII. Ao não decidir assim, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 913.° a 922.° do Código Civil e 259.°; 260.° e 264.° do Código de Processo Civil.

Termos em que e por tudo o mais que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve conceder-se a revista, revogando-se o douto acórdão recorrido e ficando a valer a sentença da 1. ª instância.



Não houve contra-alegações.



5 . Ante as conclusões das alegações, há que tomar posição sobre se:

Estamos perante um caso de cumprimento defeituoso, valendo o prazo de caducidade da instauração da ação a ele atinente;

Estamos antes perante um caso de incumprimento, não havendo lugar a caducidade relativa a instauração da ação.



6 . Para a decisão a tomar há que ter em conta a seguinte matéria factual que nos chega:


a) Em finais de Setembro de 2010, a Autora “AA, Lda”, porque tinha necessidade de aplicar numa construção na Alemanha que lhe havia sido adjudicada, sobre um pavimento de cerca de 50.000 m2 de betão já existente, um auto-nivelante, dirigiu-se ao estabelecimento da Ré “BB, Lda”, sito na sua sede, na Estrada Nacional n.º 1, em ….

b) Para o efeito, esclareceu que o pretendido auto-nivelante era para aplicar sobre um pavimento em betão já existente e que teria de suportar 10 toneladas por m2.

c) A Ré aceitou e referiu que após contactar o seu fornecedor (a chamada “CC Portugal, S.A.”) lhe entregava o auto-nivelante Kerabuild R-4 Flow, com o esclarecimento que o mesmo tinha de ser aplicado com uma espessura mínima entre 8 mm e 10 mm para suportar o peso de 10 toneladas o m2.

d) A Autora aceitou adquirir tal produto, tendo, em 12 e 26 de Outubro de 2010, pago à Ré o valor global de 20.290,49 € pelo produto Kerabuild R-4 Flow.

e) A Autora enviou à Ré a carta cuja cópia consta de fls. 18 (aqui dada por integralmente reproduzida), datada de 10 de Novembro de 2010, da qual consta, além do mais, “Serve o presente para informar que o autonivelante da CC fornecido por vós para a nossa obra que estamos a executar na Alemanha, apresenta graves defeitos depois de aplicado (…). Conclusão, o autonivelante foi aplicado conforme as vossas normas e exigências e o resultado está à vista. O pavimento, mesmo sem suportar pesos está todo fissurado e levantado, o que não deveria acontecer, dado que o autonivelante por norma não fissura. Contudo as reparações que efectuámos à posterior estão igualmente a fissurar. O nosso cliente exige que seja substituído todo o pavimento, uma vez que depois de reparado este fica às manchas e fissurado (…). Informamos que o produto não utilizado será devolvido e terá que ser posteriormente creditado à AA, Lda”.

f) A petição inicial da Autora foi remetida a este Tribunal, por transmissão electrónica de dados, no dia 9 de Setembro de 2011.



7 . O conceito de consumidor não é unívoco.


Como escrevemos no Acórdão deste Tribunal (com os mesmos relator e um dos os adjuntos), de 29.5.2014, processo n.º 1092/10.0TBLSD-G.P1.S1, com texto disponível em www.dgsi.pt:

 “Em sentido lato consumidor será aquele que “adquire, possui ou utiliza um bem ou um serviço, quer para uso pessoal ou privado, quer para uso profissional” (Calvão da Silva, A responsabilidade do Produtor, 58).

Em sentido estrito, não abrangerá a utilização para necessidades profissionais.

A Lei n.º 24/96 define no artigo 2.º, n.º1, consumidor como “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.”

Já o Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14.2 define consumidor, para efeitos deste normativo, como “a pessoa singular que atue com fins que não se integrem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.

Este Decreto-Lei transpôs a Diretiva n.º 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho, de 25.10.2011, que, no artigo 2.º, define, para efeitos dela mesma:

“Consumidor: qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue com fins que não se incluam no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional;

Profissional: qualquer pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue, incluindo através de outra pessoa que actue em seu nome ou por sua conta, no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional.”

É manifesto que todos estes textos legais conferem ao conceito de consumidor o sentido estrito.”


No presente caso, a aquisição teve lugar por parte duma sociedade comercial para uso no âmbito da sua atividade.


Há, logo à partida, portanto, que afastar o regime próprio dos direitos do consumidor, não interessando aqui o disposto no artigo 5.º-A do Decreto-Lei n.º67/2003, de 8.4.



8 . O artigo 917.º do Código Civil dispõe que a ação de anulação por simples erro caduca no prazo de seis meses decorridos sobre a denúncia, com uma especificidade relativa ao n.º2 do artigo 287.º, que aqui não importa.

A letra deste preceito reporta-se apenas aos casos de ação de anulação por simples erro.

Mas, face ao artigo 921.º, n.º4, mal se compreenderia que não abrangesse os casos de ações que visem a reparação ou substituição da coisa (assim, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, anotação àquele artigo 917.º).

Nessa conformidade foi proferido por este Tribunal o Acórdão Uniformizador de 4.12.1999, publicado no Diário da República I-A de 30.1.1997 do seguinte teor:

“A acção destinada a exigir a reparação de defeitos de coisa móvel vendida, no regime anterior ao Decreto-Lei n.º 267/94,de 25.10, estava sujeita à caducidade nos termos previstos no artigo 917.º do Código Civil.”   

Interpretando-se assim o preceito, não se encontraria justificação plausível para deixar de fora as ações indemnizatórias. Ficaria a indemnização sujeita ao prazo de prescrição geral de vinte anos, com inerente e intensíssima diversidade quanto aos demais modos de tutela do comprador.


Valem aqui, na verdade, os argumentos que se expenderam no Acórdão deste Tribunal de 16.3.2011, processo n.º 558/03.2TVPRT.P1.S1, com texto disponível no referido sítio (também com os mesmos relator e um dos adjuntos):     


 “Assim, Romano Martinez (ob. cit., 413) escreve:

“De facto, não se compreenderia que o legislador só tivesse estabelecido um prazo para a anulação do contrato, deixando os outros pedidos sujeitos a prescrição geral de vinte anos (artigo 309.º); por outro lado, tendo a lei estatuído que, em caso de garantia de bom funcionamento, todas as acções derivadas do cumprimento defeituoso caducam em seis meses (artigo 921.º, n.º4), não se entenderia muito bem porque é que, na falta de tal garantia, parte dessas acções prescreveria no prazo de vinte anos; além disso, contando-se o prazo de seis meses a partir da denúncia, e sendo esta necessária em relação a todos os defeitos (artigo 916.º), não parece sustentável que se distingam os prazos para o pedido judicial; por último, se o artigo 917.º não fosse aplicável, por interpretação extensiva, a todos os pedidos derivados do defeito da prestação, estava criado um caminho para iludir os prazos curtos.”

Por sua vez, Calvão da Silva (Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança, 4.ª ed., 77), escreve:

“Na verdade, seria incongruente não sujeitar todas as acções referidas à especificidade do prazo breve para agir que caracteriza a chamada garantia edilícia desde a sua origem, pois, de contrário permitir-se-ia ao comprador obter resultados (referidos aos vícios da coisa) equivalentes, iludindo os rígidos e abreviados termos de denúncia e caducidade. Ora, em todas as acções de exercício de faculdades decorrentes da garantia, qualquer que seja a escolhida, vale a razão de ser do prazo breve (cfr., também, o n.º2 do artigo 436): evitar no interesse do vendedor, do comércio jurídico, com vendas sucessivas, e da correlativa paz social a pendência por período dilatado de um estado de incerteza sobre o destino do contrato ou cadeia negocial e as dificuldades de prova (e contraprova) dos vícios anteriores ou contemporâneos à entrega da coisa que acabaria por emergir se os prazos fossem longos, designadamente se fosse de aplicar o prazo geral da prescrição (artigo 309.º)…”

No mesmo sentido se pronunciando, Mota Pinto em O Direito, 121.º, 292 (em estudo conjunto com Calvão da Silva), Menezes Leitão (Direito das Obrigações, III, 126) e Armando Braga (A Venda de Coisas Defeituosas no Código Civil, A Venda de Bens de Consumo, 47).

Outrossim, tem sido abundante – ainda que não uniforme – a orientação deste Tribunal neste sentido: Ac.s de 24-4-91 no BMJ 406-634, de 12-1-94 no BMJ, 433-531, de 3-4-98, no BMJ 476-393, de 25.2.1993, na CJ/STJ, 1993 1.º, 154 e, em www.dgsi.pt, os Ac.s de 6.11.2007, processo n.º 07A3440 (este com referência expressa à indemnização pelo interesse contratual positivo), de 7.5.2009, processo n.º 09B0057 e de 2.11.2010, processo n.º6473/06.0TBALM.L1.S1.”



9 . Aqui chegados, surge outra questão de interesse para o presente caso, qual seja a de saber se os prazos do artigo 917.º, assim entendidos, se reportam apenas ao cumprimento defeituoso ou alcançam os casos em que o devedor presta aliud pro alio.

Romano Martinez, com a autoridade que se necessariamente se tem de considerar no que concerne a estas matérias, escreve:

“O regime do cumprimento defeituoso, estabelecido nos artigos 913.º e seguintes do Código Civil, vale tanto no caso de ser prestada coisa devida, mas esta se apresentar com um defeito, mas também para as hipóteses em que foi prestada coisa diversa da devida (o chamado aluid)”.

Não cremos, todavia, que se possa ir tão longe.

A figura do aliud pro alio vem de muito longe na história das instituições jurídicas.

Face aos artigos 762.º, n.º1 e 837.º do dito código, integra uma situação de incumprimento. Deu mesmo aso à estatuição ressalvante relativa às dações, em cumprimento ou pro solvendo.

O cumprimento defeituoso é ignorado na parte geral das obrigações, levando a que o intérprete se tenha de socorrer da figura da “venda de coisas defeituosas” (artigo 913.º e seguintes).

Mal se compreenderia, por isso, que se estendesse um regime de caducidade relativo a tal venda aos casos de prestação de coisa diversa, quando a lei, na parte geral relativa ao cumprimento e incumprimento nada dispôs nesse sentido. A satelitização do aliud pro alio pelo cumprimento defeituoso é inaceitável.

Estamos, deste modo, com Calvão da Silva ( ob. cit., 22) ao afirmar que, “se a coisa entregue for diversa da convencionada melhor se falará de aliud pro alio a cair no regime de incumprimento e não no do cumprimento defeituoso…”

E com Carneiro de Frada (O Direito, n.º 121.º, 469), quando escreve:

“Desde logo, pode o quid efectivamente entregue pelo vendedor divergir na sua identidade daquele que foi objecto do contrato. (Assim, por exemplo, A compra a B 1t de centeio, e este entrega-lhe 1t de cevada). Prestou-se aqui um aliud pro alio que não vale como cumprimento do contrato. A situação resolve-se segundo o regime geral do incumprimento negocial.”



10 . Alcançado o entendimento de que o regime de caducidade é específico do cumprimento defeituoso, não valendo para os casos de prestação diversa (abstraindo, claro, dos casos em que se verifiquem os requisitos das dações), emergem as dúvidas sobre a linha fronteiriça entre as figuras.

Tais dúvidas são explanadas por Romano Martinez (O Cumprimento Defeituoso, em Especial na Empreitada e na Compra e Venda, 1.ª edição, 245 e seguintes) em termos que aqui não importa desenvolver. Tanto mais que, como refere, Baptista Machado, ali citado, “a distinção entre cumprimento defeituoso e prestação de coisa diversa é tarefa irrealizável por via geral e abstracta” (Pressupostos da Resolução por Incumprimento, 391).

Neste mar de dúvidas, orientamo-nos pela ideia de identidade, já referida por Carneiro de Frada. Se a prestação realizada não se identificar minimamente com a devida, estaremos perante um caso de incumprimento.

Se tiver lugar uma identificação, ainda que mínima, a divergência entre o devido e o prestado já determina que se fale de cumprimento defeituoso.



11 . No presente caso, a autora sustenta que a ré a informou de que a CC, SA lhe havia fornecido “não o pretendido auto-nivelante, mas antes uma argamassa fluída” (artigo 21.º da petição inicial).

Este texto pode levantar algumas dúvidas de interpretação, mas conjugando-o com o teor da réplica vemos claramente que sustenta que não lhe foi fornecido auto-nivelante e antes uma massa fluída, a qual corresponde a realidade diferente.

Cede, aqui, a nosso ver, o mínimo de identidade que nos permita o afastamento da prestação diversa e inerente integração no cumprimento defeituoso.

Só que, o conhecimento das exceções perentórias não assenta necessariamente na versão apresentada pela autora. O seu conhecimento, na fase do saneamento, só é permitido ao juiz quando disponha já de segurança factual na parte que interessa (cfr-se Manuel de Andrade, NEPC, 384 e A. Varela, Sampaio da Nora e Miguel Bezerra, Manual de Processo Civil, 184)

Ora, a ré não aceita a versão da contraparte. Impugna aquele artigo 21.º (artigo 6.º da contestação) e sustenta sempre (cfr-se os artigos 15.º a 17.º, 20.º a 27.º, 32.º e 37.º da contestação) que se tratou de auto-nivelante.

Nesta fase processual existe, assim, controversiedade sobre os factos preclusores ou integrantes daquele mínimo de identidade.

Com repercussão no regime de caducidade ou ausência dele.

Pelo que há que relegar o conhecimento da exceção respectiva.  



12 . Face ao exposto, em provimento parcial da revista, revoga-se o acórdão recorrido determinando-se que se relegue para momento ulterior o conhecimento da mesma exceção.

Custas a final.


Lisboa, 8.10.2015


João Bernardo (Relator)

Oliveira Vasconcelos

Fernando Bento