Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
224/06.7GAVZL.C1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: ACORDO NEGOCIADO DE SENTENÇA
PROIBIÇÕES DE PROVA
Data do Acordão: 04/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Área Temática:
DIREITO CONSTITUCIONAL - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - PROVA - INQUÉRITO - JULGAMENTO / AUDIÊNCIA / PRODUÇÃO DA PROVA - RECURSOS.
Doutrina:
- Anabela Rodrigues, Celeridade e Eficácia-Uma opção politico criminal Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria.
- Batista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 58 e segs..
- Claus Roxin, Derecho Procesal Penal, p. 101 e segs..
- Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal Coimbra, Almedina, 1996, p. 65 e seg..
- Figueiredo Dias, Acordos Sobre a Sentença em Processo Penal, Conselho Distrital do Porto da O.A., Colecção Virar de Página, 2011, pp. 28, 38, 47, 51, 54.
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa”, Anotada I Volume 4ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 525 segs..
- Maia Costa, o relatório do Observatório Permanente de Justiça intitulado A justiça Penal – Uma reforma em avaliação, datado de 2009. Intervenção nas II Jornadas de Direito Penal dos Açores sob o lema "Acordos sobre Sentença Penal".
- DELMAS-MARTY, Mireille (dir.) “Procesos penales de Europa. Alemania, Inglaterra y Gales, Bélgica, Francia e Italia” (Traducción de Pablo Morenilla Alard). Págs 661-695 . Ed. EDIJUS. Zaragoza, 2000.
- Fernando Mantovani, Sobre la perenne necesidad de la codificacion Revista Electronica de Ciencia Criminal 1/99.
- José Souto de Moura, Acordos em Processo Penal, disponível em www.pgdlisboa.pt .
- Kurt Madlener, Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, p. 663.
- Óscar Daniel Ludeña Benítez, Artículos Doctrinales: Derecho Procesal Penal Breves reflexiones sobre la justicia penal negociada en el Derecho Español Noticias Jurídicas Fevereiro de 2008.
- Paulo Pinto Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal 4ª Edição, Lisboa Universidade Católica Editora pp. 329, 335 e segs..
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PROCURADORIA-GERAL DISTRITAL DE COIMBRA, MEMORANDUM DE 18 DE JANEIRO DE 2012.
PROCURADORIA-GERAL DISTRITAL DE LISBOA, ORIENTAÇÃO Nº 1/2012, DE 13-01-2012, DISPONÍVEL EM WWW.PGDLISBOA.PT .
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Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 16.º, N.º3, 126.º, N.º1, 280.º, 281.º, 344.º, 391.º-A, 392º, 420.º, 426.º, 431.º, 436.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 72.º, N.º1, AL. E).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 18.º, N.ºS 1 E 2, 25.°, N.º1, 26.°, N.º1, 27.°, N. 1, 32, N.º8, 34.º, N.ºS 2 E 4.
Legislação Estrangeira:
CODICE PROCEDURA PENALE: - ARTICOLO 444 (2003).
STPO.: - 153 II.
Referências Internacionais:
CEDH: - ARTIGO 6.1.
Jurisprudência Estrangeira:
CROWN COURT: - DECISÃO SOANES, 1948; CASO COWARD, 1979. TRIBUNAL DE RECURSO NO CASO HOLLINTONG AND EMMMENS, DE 1986.
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL ALEMÃO: - NSTZ 87, 419.
Sumário :


I - O direito processual penal português não admite os acordos negociados de sentença .

II - Constitui uma prova proibida a obtenção da confissão do arguido mediante a promessa de um acordo negociado de sentença entre o Ministério Publico e o mesmo arguido no qual se fixam os limites máximos da pena a aplicar.
Decisão Texto Integral:

                                  

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


            AA, arguido nos autos acima identificados, veio interpor recurso da decisão que o condenou nas seguintes penas:

            - como (co-)autor material de oito crimes de dano simples, previstos e punidos pelo art. 212º, nº 1, do Código Penal (na redacção vigente na data da prática das infracções, anterior à redacção que lhe foi conferida pela Lei nº 59/2007, de 04-09), em oito penas de 8 (oito) meses de prisão;

            - como (co-)autor material de três crimes de atentado à segurança de transporte rodoviário, previstos e punidos pelo art. 290º, nº 1, al. d), do Código Penal (na redacção vigente na data da prática das infracções, anterior à redacção que lhe foi conferida pela Lei nº 59/2007, de 04-09), em três penas de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
            Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas nestes autos, e das penas parcelares aplicadas no processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, nº 50/06.3GAOFR, do Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira de Frades foi o arguido condenado na pena de única de 13 (treze) anos e 2 (dois) meses de prisão.

            As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da respectiva motivação de recurso onde se refere que

1ª - O arguido não praticou 8 (oito) crimes de dano simples, mas 1 (um) crime continuado de dano simples, cuja moldura penal abstracta é de pena de prisão até três anos ou pena de multa;

2ª - As penas parcelares impostas ao ora recorrente são excessivas e devem ser reduzidas para medidas que se aproximem dos respectivos limites mínimos.

3ª  - A pena única resultante do cúmulo jurídico deverá, consequentemente, ser reformada e substancialmente reduzida.

4ª - O douto acórdão viola os artigos 30°, 40°, 71°, 77° e 78°, todos do Código Penal.

Respondeu o Ministério Publico referindo que

1.         Os factos pelos quais o recorrente foi condenado não integram a prática, para além do mais, de um único crime continuado mas sim de oito crimes de dano simples.

2.         Na realidade, o facto de o recorrente e o outro arguido terem continuado na posse da placa de sinalização com que praticaram todos os crimes não constitui uma situação em que se verifique a perduração do meio apto a realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa.

3.         Para que isso acontecesse, teríamos que estar perante uma situação em que esse objecto fosse determinante, essencial para a prática dos crimes em causa; ora, in casu, se os estragos não tivessem sido provocados com essa placa de sinalização, tê-lo-iam sido com um pau, um ferro, uma pedra, outra placa de sinalização, etc.

4.         De igual forma, consideramos que a circunstância de os arguidos terem continuado a circular no motociclo em que seguiam e se terem deparado com mais automóveis, não criou a possibilidade de alargamento do âmbito da sua actividade criminosa, para que isso pudesse acarretar a considerável diminuição da culpa do agente necessário que estivéssemos perante situações em que lhe fosse efectivamente difícil resistir àquela possibilidade de prática de um novo crime com a qual ele não estava a contar.

5.         Ora, é perfeitamente evidente que os arguidos, ao continuarem a circular em vias públicas, se iriam cruzar com mais veículos automóveis. Não há aqui nenhum factor surpresa nem que acarrete a tentação de praticar mais crimes. A entender-se assim, cada vez que alguém assaltasse ou vandalizasse uma viatura, a partir daí poderia fazê-lo a todas as demais que encontrasse nessa noite e cometeria apenas um crime continuado. Em cidades como Lisboa ou Porto, tal poderia acarretar um verdadeiro "massacre" a centenas de viaturas.

6.         O processo de escolha das penas e de determinação das medidas concretas das mesmas encontra-se exemplarmente descrito na decisão recorrida e não nos merece qualquer censura.

7.         Na realidade, se a decisão recorrida teve em conta, por um lado, os elementos indicados pelo recorrente, teve também, como não podia deixar de o fazer, os antecedentes criminais dos arguidos, as circunstâncias concretas em que foram praticados os factos, a ilicitude dos mesmos e o dolo dos arguidos.

                Termina concluindo que as penas, tanto parcelares como a pena única, se mostram correctamente determinadas.

A Exª Srª Procuradora Geral Adjunta emitiu proficiente parecer no qual se referiu que:

          O arguido AA foi julgado no Tribunal Judicial de Vouzela por acórdão cuja leitura foi agendada para 9/7/2012 sem a presença dos arguidos, e que veio a ser depositada sem que tenha sido assinado “pelos elementos do Tribunal Colectivo” ao contrário do que consta na acta de fls. 1069, parecendo que até “faz parte dessa acta” (fls. 1094).

            O arguido foi notificado no Estabelecimento Prisional em 17/7/2012 e interpôs recurso no dia 31/7/2012 (fls. 1102 e sgts).

            O processo esteve parado até 28/9/2012 (cerca de 2 meses) e nesse dia foi notificado o Ministério Público, que respondeu em 18/10/2012 (fls. 1148).

O recurso veio a ser admitido por despacho de 24/10/2012 (fls. 1158).

            Depois das notificações e respostas aos ofícios efectuadas todas em 30/10/2012, o recurso/processo só foi remetido ao Tribunal da Relação de Coimbra em 4 de Janeiro de 2013 e certamente por ter sido recebido um ofício/insistência muito urgente do TEP de Coimbra (fls. 1165).

            Parece-nos que quer o depósito de um acórdão condenatório sem ter sido assinado, quer estes quatro meses (2+2) que o processo esteve inexplicavelmente parado com arguido preso à ordem de outro processo e com pedidos sucessivos de informação do TEP, sem que se vislumbre qualquer razão deverá ser “transmitido” às entidades competentes, o que promovemos. 

                        O arguido AA interpôs recurso do acórdão não datado nem assinado proferido no Tribunal Judicial de Vouzela pelos Mmos Juízes de Circulo e em que foi condenado na pena única de 13 anos e 2 meses de prisão por autoria de 8 crimes de dano, 3 crimes de atentado à segurança de transporte, e ainda por autoria de dano com violação, de roubo, coacção sexual e sequestro a que foi condenado no proc. 50/06.3 GAOFR no tribunal do Oliveira de Frades.

            O arguido/recorrente AA inconformado com esta condenação vem impugná-la defendendo que não cometeu 8 crimes de dano, mas apenas um crime continuado de dano simples, que as penas parcelares são excessivas devendo ser reduzidas a penas próximas dos limites mínimos e por isso o cúmulo dever ser reformulado e substancialmente reduzido por terem sido violados os artºs 30º. 40º, 71º, 77º e 78º do CP.

            O acórdão condenatório bem como o início da fundamentação do recurso do arguido após leitura atenta leva-nos a considerar que se levantam questões que deverão ser do conhecimento oficioso e que poderão levar à anulação da decisão recorrida, preliminarmente, ao conhecimento do recurso interposto pelo arguido AA, o que iremos suscitar.

1- O julgamento ocorreu no dia marcado – 25/6/2012 e apesar de ambos os arguidos, AA e BB estarem acusados de três crimes de atentado à segurança e transporte (artº 290º nº 1 do CP, na redacção em vigor em 2006) crime este punível com a pena de 1 a 8 anos de prisão, previamente às declarações dos arguidos, pelo Mmo Juiz Presidente foi aceite a hipótese dos arguidos confessarem de forma integral e sem reservas, “no âmbito de um acordo a consensualizar com o MºPº quanto às penas aplicáveis”. 

1.2 Esta proposta foi formalizada pelo M.P. aceite pelos Mmos Juízes que passaram à produção de prova (declaração do arguido) após os mesmos serem notificados nos termos dos artºs 342º e 343º nº 1 do CPP.   

Após as confissões dos arguidos, o M.P. e um dos mandatários prescindiram da prova testemunhal.

1.3 O Sr. Juiz Presidente logo de seguida, ainda antes das alegações finais proferiu um despacho “com vista à rectificação do cúmulo jurídico entre as penas a aplicar e as aplicadas … com nota de trânsito em julgado…”

            Esta acta que consta a fls. 949 e sgts suscita as seguintes nulidades:

            A- A confissão integral e sem reservas p. no artº 344º nº 1 não é susceptível de ser aplicada aos arguidos devido à excepção p. no nº 2 al. c) da mesma disposição legal.

            B- Ainda que fosse possível a verificação desta confissão, o Tribunal tinha de decidir o ter ou não lugar a produção de prova e em que medida, o que não se verificou, conforme dispõe o nº 4 do artº 344º do CPP..

            C- Este “acordo” entre o M.P. e os arguidos sobre a medida das penas não se encontra legalmente previsto nem no direito penal nem no direito constitucional.

            No caso de confissão integral e sem reservas dos factos imputados na acusação que integram pena superior a 5 anos de prisão, o artº 344º do CPP não proíbe a dispensa de produção de prova quanto aos factos confessados, mas apenas estabelece que tal confissão não a implica necessariamente, cabendo ao tribunal decidir, em sua livre convicção, sobre se, e em que medida, relativamente a esses factos, deve ter lugar a produção de prova (ac. STJ de 6 de Janeiro de 1999, proc. 1304/98 – 3, SASTJ, nº 27,65). 

            Se relativamente aos crimes de danos poderia não haver necessidade da produção de prova, já em relação aos outros crimes - atentado à segurança de transporte será imprescindível, segundo nos parece pois de tal comportamento resultaram acidentes, conforme resulta dos factos provados.

            Estavam notificados para o julgamento de 25/6/2012, 17 testemunhas…

            2- A continuação do julgamento ocorreu no dia 9/7/2012 e apesar de constar na acta (fls. 1069) que foi comunicado ao MºPº e aos Mandatários dos arguidos que o acórdão se encontrava elaborado em conformidade, “de seguida foi proferido o seguinte”: acórdão que termina na última folha da acta assinado apenas pela escrivã auxiliar que lhe fez a revista integral (fls. 1094).

            2.1 Este acórdão nos termos do artº 372º nº 2 do CPP tem de ser assinado por todos os juízes.

            2.2 O acórdão na fundamentação sobre a matéria de facto relativamente aos crimes já referidos – atentado à segurança de transporte, nos pontos 6 a 9 refere que os factos descritos são embates em veículos que se despistaram e cujos ocupantes e condutores viram a vida e a integridade física colocada em perigo, sem especificamente estes factos serem fundamentados.

            2.2.1 Neste tipo de crime, quanto ao arguido/recorrente AA que não era condutor, mas apenas ocupante do ciclomotor (?) poder-se-á questionar se o mesmo é co-autor do crime, pois a única fundamentação da sua co-autoria é a referência a Paulo Pinto de Albuquerque no seu comentário ao Código Processo Penal, fls. 824.

            2.2.2 A convicção do Tribunal quanto à matéria de factos resume-se às declarações dos arguidos e aos documentos e relatórios periciais, o que constitui uma insuficiência da fundamentação de facto e de direito.

2.2.3 Na determinação da medida da pena pela autoria dos crimes é longamente exposto um princípio que terá sido defendido por Figueiredo Dias, mas que neste momento já o não faz nestes moldes – aceitação de acordos propostos pelos sujeitos processuais em audiência de julgamento, para simplificar e conferir maior celeridade aos processos.

            2.2.3.1 Independentemente do teor deste principio, não estando previsto legalmente não se verifica qualquer fundamento nem para o suscitar nem para o aplicar.

            Além do mais nem se percebe como se invoca a celeridade para este processo quando os factos ocorreram em 2006 e o processo até tem 5 volumes…

            3- Finalmente depois de estabelecida a medida da pena por cada um dos crimes, até de acordo com as medidas propostas pelo M.P. em audiência, não foi determinada a pena única resultante deste concurso porque inexplicavelmente (contra o expressamente previsto no artº 78º do CP) apenas por razões de “celeridade processual como defende Paulo Pinto de Albuquerque” foi decidido fazer entrar neste concurso as penas parcelares aplicadas no acórdão de 9 de Junho de 2009, transitado em julgado em 15/9/2009.

            3.1 O conhecimento superveniente do concurso p. no artº 78º do CP só se pode verificar se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes o que só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação também transitou em julgado (nºs 1 e 2).

          Todas estas questões referentes ao julgamento e depois no próprio acórdão são, como já referimos susceptíveis de serem oficiosamente conhecidas por tornarem nulos quer o julgamento quer o acórdão condenatório do arguido AA, o que também deverá ser aplicado ao co-arguido BB (artº 402º nº 2 al. a) do CPP).

            Assim e por tudo isto parece-nos que previamente ao conhecimento do recurso interposto pelo arguido AA, poderá/deverá ser anulado o acórdão proferido no Tribunal de Vouzela devido às ilegalidades e omissões constantes na decisão condenatória e as que a antecederam, por ter sido violado o disposto nos artºs 78º nº 1 e 2 do CP, 118º nº 1 al. f) 344º nº 3 al. c), 372º nº 2, 374º nºs 2 e 3 al. e), 375º nº 1, 379º nº 1 als. a), b) e c) do CPP.            

                                       Os autos tiveram os vistos legais

                                                              *

                                                  Cumpre decidir.

Em sede de decisão recorrida encontra-se provada a seguinte factualidade:

1. No dia 1 de Novembro de 2006, cerca das 4 horas, os arguidos BB e AA circulavam na localidade de Cambra, Vouzela, no ciclomotor de marca “AGP 125”, de cor azul e branca, que ostentava a matrícula ...-TO, posteriormente rectificada para a matrícula ...-TO, de acordo com o livrete respectivo, conduzido pelo arguido BB, sem que fosse possuidor de licença de condução ou outro documento que o habilitasse a conduzir o mesmo, o que sabia ser obrigatório por lei, e, quando se cruzaram com o veículo ligeiro de mercadorias, de marca “Mitsubishi”, modelo “L200”, com a matrícula ...-CN, pertencente a CC, que se encontrava estacionado em frente à residência deste, na via pública, o arguido BB aproximou-se daquele veículo e, em acto contínuo, o arguido AA, que não utilizava capacete, munido de uma placa de sinalização de caça (apreendida a fls. 112 dos autos), suportada num ferro, arremessou-a contra o vidro pára-brisas do referido veículo, partindo-o, o que provocou prejuízos no valor de € 229,17 (documento de fls. 207 dos autos);

2. Após, e ainda na localidade de Cambra, Vouzela, cerca das 4 horas do mesmo dia, quando os arguidos se cruzaram com o veículo ligeiro de passageiros, de marca “Volvo”, modelo “440”, com a matrícula ....-BA, pertencente a DD, que se encontrava estacionado em frente à residência desta, na via pública, o arguido BB aproximou-se daquele veículo e, em acto contínuo, o arguido AA, munido de uma placa de sinalização de caça (apreendida a fls. 112 dos autos), suportada num ferro, arremessou-a contra o vidro traseiro do referido veículo, partindo-o, o que provocou prejuízos no valor de € 458,43 (documentos de fls. 243 a 246 dos autos);

3. Ainda na localidade de Cambra, Vouzela, cerca das 4 horas do mesmo dia, quando os arguidos se cruzaram com o veículo ligeiro de passageiros, de marca “Fiat”, modelo “Punto”, com a matrícula ...-DX, pertencente a EE, que se encontrava estacionado em frente à residência deste, na via pública, o arguido BB aproximou-se daquele veículo e, em acto contínuo, o arguido AA, munido de uma placa de sinalização de caça (apreendida a fls. 112 dos autos), suportada num ferro, arremessou-a contra o vidro traseiro do referido veículo, partindo-o, o que provocou prejuízos no valor de € 301,85 (documento de fls. 201 dos autos);

4. Já na localidade de Cambra de Baixo, Vouzela, em data e hora que não foi possível concretizar, mas situada entre as 23 horas e 30 minutos do dia 31-10-2006 e as 8 horas e 30 minutos do dia 01-11-2006, quando os arguidos se cruzaram com o veículo ligeiro de passageiros, de marca “Seat”, modelo “Toledo 1M”, com a matrícula ...-NI, pertencente a FF, que se encontrava estacionado em frente à residência deste, na via pública, o arguido BB aproximou-se daquele veículo e, em acto contínuo, o arguido AA, munido de uma placa de sinalização de caça (apreendida a fls. 112 dos autos), suportada num ferro, arremessou-a contra o vidro pára-brisas do referido veículo, partindo-o e amolgando o tejadilho, o que provocou prejuízos no valor de € 559,63 (documentos de fls. 261 e 262 dos autos);

5. Após, ainda na localidade de Cambra de Baixo, Vouzela, em data e hora que não foi possível concretizar, mas situada na noite de 31-10-2006 para 01-11-2006, quando os arguidos se cruzaram com o veículo ligeiro de mercadorias, de marca “Citroën”, modelo “AX”, com a matrícula ...-HC, pertencente a GG, que se encontrava estacionado em frente à residência desta, na via pública, o arguido BB aproximou-se daquele veículo e, em acto contínuo, o arguido AA, munido de uma placa de sinalização de caça (apreendida a fls. 112 dos autos), suportada num ferro, arremessou-a contra o vidro pára-brisas do referido veículo, partindo-o e amolgando o tejadilho, o que provocou prejuízos no valor de € 559,63 (documentos de fls. 261 e 262 dos autos);

6. Chegados à localidade de Caveirós de Baixo, Vouzela, cerca das 4 horas e 20 minutos do dia 01-11-2006, quando os arguidos se cruzaram com o veículo ligeiro de passageiros, de marca “Volkswagen”, modelo “Golf”, com a matrícula ...-PQ, pertencente a HH, que circulava no sentido oposto (Oliveira de Frades – A25), conduzido por este, e onde se faziam transportar II, JJ e LL o arguido BB guinou para a sua esquerda, aproximando-se daquele veículo, o que obrigou HH a desviar o seu veículo para a direita, quase provocando o despiste do mesmo, e em acto contínuo o arguido AA, munido de uma placa de sinalização de caça (apreendida a fls. 112 dos autos), suportada num ferro, arremessou-a contra o vidro pára-brisas do referido veículo, partindo-o e amolgando o tejadilho, o que provocou prejuízos no valor de € 429,82 (documentos de fls. 187 e 188 dos autos);

7. Os arguidos prosseguiram a marcha e chegados à E.N. nº 333-3, sobre a Ponte do Rio Alfusqueiro, em Pés de Pontes, Cambra, Vouzela, cerca das 4 horas e 30 minutos do dia 01-11-2006, cruzaram-se com o veículo ligeiro de passageiros, de marca “BMW”, modelo “525 TDS”, com a matrícula ...-HV, pertencente a MM, que circulava no sentido oposto (Paredes Velhas - Oliveira de Frades), conduzido por este, quando o arguido BB guinou para a sua esquerda, aproximando-se daquele veículo, o que obrigou MM a desviar o seu veículo para a direita, quase provocando o despiste do mesmo, e em acto contínuo o arguido AA, munido de uma placa de sinalização de caça (apreendida a fls. 112 dos autos), suportada num ferro, arremessou-a contra o vidro pára-brisas do referido veículo, partindo-o e amolgando a coluna da porta do lado esquerdo, o que provocou prejuízos no valor de € 650 (documentos de fls. 194 a 197 dos autos);

8. A placa de sinalização de caça ficou caída no local e os arguidos colocaram-se em fuga, tendo deixado a estrada e entrado num caminho de terra

batida;

9. Chegados à localidade de Sobreiro, Pinheiro de Lafões, cerca das 4 horas e 50 minutos do dia 01-11-2006, os arguidos cruzaram-se com o veículo ligeiro de passageiros, de marca “Renault”, modelo “Clio”, com a matrícula ...-LE, pertencente a NN, conduzido por OO, que circulava no sentido oposto (Campia – Pinheiro de Lafões), onde se faziam transportar PP, QQ e RR, quando o arguido BB guinou para a sua esquerda, aproximando-se daquele veículo, altura em que o arguido AA, munido do suporte da placa de sinalização (apreendida a fls. 112 dos autos), bateu no pára-brisas do veículo ligeiro partindo-o, o que originou a perda de visibilidade do condutor OO e consequentemente o despiste do veículo ligeiro, fazendo peão na estrada e entrando na berma, tendo o mesmo batido com o peito no volante e com a cabeça no pára-brisas partido;

10. A conduta dos arguidos provocou prejuízos no valor de €500,00;

11. Os arguidos actuaram de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito conseguido de causar estragos nos veículos dos ofendidos, conforme descrito nos pontos anteriores, sabendo que os mesmos não lhes pertenciam e que, actuando desse modo, agiam contra a vontade dos seus proprietários, resultado aquele que representaram e quiseram;

12. Os arguidos actuaram de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que não estavam a cumprir as regras estradais, circulando na faixa de rodagem da esquerda, não observando as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que eram capazes de adoptar, e que deviam ter adoptado, colocando em perigo os veículos acima descritos, bem como a vida e integridade física dos seus condutores e passageiros, que circulavam nos mesmos, o que quiseram;

13. Os arguidos actuaram de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que ao arremessar a placa de sinalização suportada num ferro da forma descrita nos pontos anteriores poderiam provocar acidente, colocando em perigo os veículos acima descritos, bem como a vida e integridade física dos seus condutores e passageiros, que circulavam nos mesmos, o que representaram e quiseram;

14. O arguido BB agiu deliberada, voluntária e conscientemente, sabendo que não podia conduzir um ciclomotor sem ser portador da respectiva licença de condução, o que, não obstante, fez, mais sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei;

15. Sabiam os arguidos que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal;

            16. O arguido BB é solteiro, mas tem uma companheira e duas filhas, que se encontram à guarda da mãe;

17. O arguido BB completou o 7º ano de escolaridade;

18. O arguido BB é servente de carpinteiro de profissão, mas encontra-se actualmente preso em cumprimento de pena de prisão;

19. O arguido AA é casado, tendo um filho com 18 anos de idade;

20. O arguido AA completou o 6º ano de escolaridade;

21. O arguido AA é carpinteiro de profissão, mas encontra-se actualmente preso em cumprimento de pena de prisão;

22. O arguido BB foi condenado, por sentença proferida no processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 49/02.9GBTND, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Tondela, datada de 16-03-2004, e transitada em julgado no dia 22-04-2004, numa pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 5, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3º, nº 1, do D.L. nº 2/98, de 03-01, cometido no dia 15-12-2002;

23. A pena de multa referida no ponto anterior foi declarada extinta, pelo respectivo cumprimento/pagamento;

24. O arguido BB foi condenado, por acórdão proferido no processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, nº 50/06.3GAOFR, do Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira de Frades, datado de 27-05-2009, e transitado em julgado no dia 15-06-2009, nas seguintes penas:

- pena de 2 anos e 10 meses de prisão, pela prática de um crime de dano com violência, previsto e punido pelo art. 214º, nº 1, al. a), do Código Penal;

- pena de 2 anos de prisão, pela prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo art. 210º, nº 1, do Código Penal;

- pena de 2 anos de prisão, pela prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo art. 210º, nº 1, do Código Penal;

- pena de 1 ano de prisão, pela prática de um crime de coacção, previsto e punido pelo art. 154º, nº 1, do Código Penal;

- pena de 7 anos de prisão, pela prática de um crime de violação, previsto e punido pelo art. 164º, nº 1, do Código Penal;

- pena de 4 anos de prisão, pela prática de um crime de coacção sexual, previsto e punido pelo art. 163º, nº 1, do Código Penal;

- pena de 1 ano de prisão, pela prática de um crime de sequestro, previsto e punido pelo art. 158º, nº 1, do Código Penal;

25. No processo e decisão referidos no ponto anterior, o arguido BB foi condenado na pena única de 10 anos de prisão;

26. O arguido BB encontra-se actualmente a cumprir a pena de prisão referida no ponto anterior;

27. O arguido AA foi condenado, por sentença proferida no processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 411/04.2GTVIS, do Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira de Frades, datada de 08-04-2005, e transitada em julgado no dia 26-04-2005, numa pena de 30 dias de multa, à taxa diária de € 7,50, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292º do Código Penal, cometido no dia 31-08-2004;

28. A pena de multa referida no ponto anterior foi declarada extinta;

29. O arguido AA foi condenado, por acórdão proferido no processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, nº 50/06.3GAOFR, do Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira de Frades, datado de 27-05-2009, e transitado em julgado no dia 15-06-2009, nas seguintes penas:

- pena de 2 anos e 10 meses de prisão, pela prática de um crime de dano com violência, previsto e punido pelo art. 214º, nº 1, al. a), do Código Penal;

- pena de 2 anos de prisão, pela prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo art. 210º, nº 1, do Código Penal;

- pena de 2 anos de prisão, pela prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo art. 210º, nº 1, do Código Penal;

- pena de 1 ano de prisão, pela prática de um crime de coacção, previsto e punido pelo art. 154º, nº 1, do Código Penal;

- pena de 7 anos de prisão, pela prática de um crime de violação, previsto e punido pelo art. 164º, nº 1, do Código Penal;

- pena de 4 anos de prisão, pela prática de um crime de coacção sexual, previsto e punido pelo art. 163º, nº 1, do Código Penal;

- pena de 1 ano de prisão, pela prática de um crime de sequestro, previsto e punido pelo art. 158º, nº 1, do Código Penal;

30. No processo e decisão referidos no ponto anterior, o arguido AA foi condenado na pena única de 10 anos de prisão;

31. O arguido AA encontra-se actualmente a cumprir a pena de prisão referida no ponto anterior;

32. No acórdão referido nos pontos 24. e 29. consideraram-se provados os seguintes factos:

I - No dia 2 de Abril de 2006, cerca da 01H00, os arguidos saíram da povoação de Caramulo e dirigiram-se no motociclo do arguido BB, que este conduzia, até uma zona de pinhal conhecida por ser frequentada por casais de namorados, próxima do campo de futebol de Oliveira de Frades e sita nas imediações do caminho que liga a povoação de Fradinho a Oliveira de Frades, concelho e comarca de Oliveira de Frades.

II - Tinham combinado ir até ali espreitar casais de namorados e forçar as mulheres que aí encontrassem a manter com eles relações sexuais de cópula.

Muniram-se previamente de luvas, um gorro e uma máscara, para utilizarem nas eventuais abordagens que efectuassem, por forma a não serem reconhecidos, munindo­-se também de uma lanterna e de um pau grosso cada um.

III - Aí chegados, cerca da 01H30, os arguidos imobilizaram o seu motociclo e, depois de colocarem na cabeça os disfarces que traziam com eles (um gorro o arguido BB e uma máscara o arguido AA), que apenas tinham aberturas na zona dos olhos e da boca, deitaram a mão aos paus de que se haviam munido e embrenharam-se na mata por um caminho de terra batida, onde depararam com o veículo automóvel Fiat Punto, de matrícula ...-GB, pertencente ao ofendido SS, em cujo interior ele se encontrava com a sua namorada TT, decidindo, então, de comum acordo, abordar os ocupantes desse veículo.

IV - Assim concertados e conjugando esforços, os arguidos abeiraram-se então desse veículo, um pelo lado da porta do condutor e outro pelo lado da do ocupante, tendo, de imediato, o arguido AA acendido a lanterna que trazia consigo, projectando o foco para o interior do veículo.

O ofendido SS, que se encontrava ao volante desse veículo, ainda tentou fugir, accionando a ignição do mesmo e engrenando a marcha-atrás.

Apercebendo-se disso, os arguidos, com o propósito de causar danos nessa viatura e de amedrontar e assustar os ofendidos, levando-os a imobilizar o seu veículo, desferiram várias pancadas nos vidros desse veículo com os paus que traziam consigo, com o que partiram os vidros laterais do lado do condutor e estilhaçaram o vidro pára-brisas, causando-lhe estragos cuja reparação importou em 1653,44 euros.

Ainda assim, o ofendido SS logrou recuar o seu veículo cem a duzentos metros, até que o mesmo se imobilizou numa ravina, de que não mais sairia pelos seus próprios meios.

V - Apercebendo-se disso, os arguidos aproximaram-se de novo desse veículo, ainda munidos daqueles paus, deparando então com os seus ocupantes juntos um ao outro e já no exterior, amedrontados e assustados.

O arguido AA ordenou-lhes então que pousassem no chão os seus telemóveis, ordem que eles cumpriram, intimidados pela violência da abordagem de que haviam acabado de ser vítimas e convencidos da inutilidade de qualquer resistência, convencimento esse reforçado ainda, no caso do ofendido SS, em virtude de se ter apercebido que o arguido AA levava a mão ao interior do blusão, junto ao peito, dando a entender que aí deteria algum objecto com que os pudesse agredir, eventualmente uma arma.

E logo o arguido AA deitou a mão a esses telemóveis, metendo-os ao bolso.

Esses telemóveis, ambos de marca Samsung, modelo X640, tinham, pelo menos, o valor de 50.00 euros cada um (o do SS, com o n.º ... e daTT, com o n.º ...).

VI - Já na posse dos telemóveis, o arguido AA ordenou àTT que se despisse, reiterando a ordem quando esta lhe perguntou para que queria que o fizesse.

Por temer que a sua integridade física fosse molestada ou até que a sua vida corresse perigo se não obedecesse, vista a violência da aludida abordagem, a ofendida TT puxou a camisola para cima ficando com o peito descoberto, uma vez que não trazia soutien, e baixou a saia, ficando calçada.

De imediato, esse arguido, munido de um telemóvel, direccionou o mesmo para a ofendida, fazendo menção de a fotografar.

VII - De seguida, depois de ambos os arguidos terem conferenciado em voz baixa no sentido de concretizarem o propósito de manter relações sexuais com a ofendidaTT, o arguido AA, visando deixar o arguido BB com esta, afastou-se daquele local cerca de cem metros, na companhia do ofendido SS, que forçou a acompanhá-lo a pretexto de que iam buscar um tractor para rebocar o veículo dele.

Assim que ficou a sós com a ofendida, o arguido BB perguntou-lhe se queria ter relações sexuais com ele, tendo ela respondido que não.

Perante esta recusa dela, o arguido BB foi-lhe dizendo que se o não fizesse “algo de mal lhe aconteceria a ela e ao namorado”, o que acabou por a levar a não resistir aos propósitos do arguido, intimidada como também já estava pela violência da abordagem feita pelos arguidos e convencida da inutilidade de qualquer resistência.

Ainda recusou, todavia, despir as cuecas, o que de pouco lhe valeu, pois o arguido BB baixou então as calças dele e, após obter erecção e, de frente para ela, desviou-­lhe então as cuecas por forma a destapar-lhe a vagina, introduzindo-lhe então completamente o pénis erecto na vagina, aí o friccionando até estar prestes a ejacular, momento em que o retirou para o exterior da vagina e ejaculou para o chão.

VIII - Cerca de vinte a trinta minutos depois de se ter afastado desse local com o ofendido SS, o arguido AA regressou com este para junto deles.

Foi então a vez de este arguido ficar com a ofendidaTT enquanto o arguido BB se afastava, pelo menos a cem metros dali, levando consigo o ofendido SS, sempre a pretexto de irem buscar um tractor para rebocar o dito veículo.

Assim que ficou a sós com a ofendida, o arguido AA tentou também ele manter cópula com a ofendida, dizendo-lhe que queria ter relações com ela, ao que ela respondeu que não queria.

Apesar da oposição desta, o arguido, encontrando-se de frente para ela, levantou-lhe as saias, encostou o seu corpo ao dela, abriu as suas calças, puxou o pénis para o exterior, encostando-o também ao corpo da ofendida, designadamente à zona vulvar desta, e tentou introduzir-lhe, por duas vezes, o pénis na vagina, desviando-lhe para o efeito as cuecas e tacteando-lhe a vulva com a mão, não conseguindo tal introdução por não ter logrado obter erecção suficiente.

Também desta feita a ofendida não opôs maior resistência aos propósitos do arguido com receio do mal que os arguidos lhe poderiam fazer a ela e ao namorado, intimidada como continuava pela violência da abordagem feita pelos arguidos e convencida da inutilidade de qualquer resistência.

IX - Quinze a vinte minutos depois de dali ter saído, o ofendido SS - este sempre mantido quieto e perto desse arguido por força do receio que lhe foi infundido pela ameaça dos paus que os arguidos empunhavam e pela violência da sua abordagem ­regressou para junto do local onde se encontrava a ofendida TT, tendo-se os arguidos ausentado igualmente em direcção ao seu motociclo, pondo-se em fuga, abandonando naquele local os ofendidos, levando com eles e fazendo seus os referidos telemóveis.

X - Entre a abordagem aos ofendidos e o momento em que os arguidos ali os abandonaram, decorreu, pelo menos, 1 hora, período ao longo do qual os ofendidos estiveram privados da sua liberdade de se locomoverem livremente.

XI - Os arguidos agiram sempre de forma deliberada, livre e consciente, no intuito de provocar estragos no veículo do ofendido SS, de privarem os ofendidos na respectiva liberdade ambulatória e de acção, de se apropriarem dos seus telemóveis, de levarem a ofendida TT a despir-se, e de com ela manterem relações sexuais.

Sabiam que ao abordá-los da forma descrita - exibindo e utilizando os paus de que se encontravam munidos e valendo-se da sua superioridade física em relação ao casal de ofendidos - a sua conduta era adequada a fazer os ofendidos temer pela sua vida e integridade física, assim os privando da sua liberdade ambulatória e de acção e os determinando a cumprir todas as suas ordens, como vieram efectivamente a conseguir.

Sabiam que ao obrigarem a ofendida TT a despir, pelo menos parte da roupa, actuavam contra a vontade desta.

Também sabiam que ao terem relações sexuais de cópula ou outros actos de cariz sexual com ela, o faziam com recurso à força, mediante intimidação e contra a vontade dela, atentando contra a sua liberdade de determinação sexual.

Também sabiam que foi da mesma forma - com recurso à força, mediante intimidação e contra a vontade deles - que provocaram os mencionados estragos no veículo do ofendido SS, fizeram seus os referidos telemóveis, levaram a ofendida TT a despir, pelo menos parte da sua roupa e privaram os ofendidos referidos da liberdade de se locomoverem livremente.

Sabiam que esse veículo e esses telemóveis não lhes pertenciam.

Os arguidos agiram sempre de comum acordo, em conjugação de iniciativas e de esforços.

Sabiam que as respectivas condutas não eram permitidas e eram punidas por lei”;

33. No acórdão referido nos pontos 24. e 29. consideraram-se ainda provados os seguintes factos:

“XIII - O arguido AA à data dos factos vivia em casa dos pais em Monteteso, Caramulo.

Trabalhava há 4 anos numa carpintaria, em Oliveira de Frades, auferindo mensalmente 700.00 euros.

Tem um filho com 14 anos de idade, que se encontra a estudar no 9° ano, o qual vive com a mãe, operária fabril, e os pais do arguido, na residência destes.

Para além da relação amorosa que mantinha com a mãe do seu filho, o arguido tinha uma outra companheira em Oliveira de Frades, com quem dividia, durante a semana, uma renda de casa, no montante de 250.00 euros.

Possui como habilitações literárias o 6° ano.

O arguido BB, à data dos factos, trabalhava em Viseu, na construção civil, auferindo em média 700.00 euros, vivia com os pais em casa destes, com a sua

companheira e um filho de 1 ano de idade. Para além deste filho, o arguido tem agora um outro de cinco meses, fruto da mesma relação amorosa; a sua companheira trabalha num lar de idosos, auferindo mensalmente 500 euros.

Ambos os arguidos têm efectuado um comportamento prisional positivo.

São tidos pelos que os conhecem e com eles convivem como pessoas trabalhadoras e humildes”;

34. Os arguidos admitiram, em audiência de julgamento, a prática dos factos de que vinham acusados, de forma espontânea, integral e sem reservas.

                                                         ***

- Convicção do Tribunal quanto à matéria de facto - Funda-se esta no conjunto da prova produzida em audiência, salientando-se os seguintes aspectos:

1. Os arguidos prestaram declarações, confessando a prática das condutas de que eram acusados de forma espontânea, integral e sem reservas, descrevendo os actos que cometeram, e as respectivas consequências, de forma clara e credível. Estas confissões revelaram-se sérias e credíveis, merecendo ser validadas pelo Tribunal.

Os arguidos caracterizaram ainda os seus modos de vida e as respectivas condições pessoais.

2. Sustentando a factualidade provada, foi ponderado o conteúdo de vários dos documentos e relatórios periciais juntos aos autos, nomeadamente os constantes de fls. 107, 109, 112, 116, 117, 120, 123, 126, 129, 131 a 133, 135, 187 a 193, 196, 197, 201, 202, 204, 207, 244 a 246, 261, 262, 303, 304, 306, 330, 572 a 677, 917 a 924, e o junto no decurso da audiência de julgamento, que mereceram credibilidade.

3. Para terminar, saliente-se que nenhum outro meio probatório - que permitisse alterar a factualidade provada ou sustentar a factualidade não provada - foi produzido, requerido ou sequer referenciado em audiência de julgamento.

Em sede de determinação da medida da pena refere a decisão recorrida que:

            3. Por acordo expresso pelos sujeitos processuais na audiência de julgamento, vertido na respectiva acta, consensualizaram-se as seguintes molduras penais, que o Tribunal Colectivo considerou ajustadas às infracções cometidas, e às finalidades da punição que no caso concreto se fazem sentir:

- pena de prisão até 8 meses para cada um dos crimes de dano;

- pena de prisão até 2 anos e 6 meses para cada um dos crimes de atentado à segurança de transporte rodoviário;

- pena de prisão até 8 meses para o crime de condução sem habilitação legal.

            A formação e admissibilidade legal deste acordo tem sido defendida por alguma doutrina, mormente por Figueiredo Dias, na sua recente obra “Acordos Sobre a Sentença em Processo Penal”[1], desde que se reúnam os seguintes pressupostos:

            - confissão da prática do crime pelo arguido (“conditio sine qua non do acordo sobre a sentença”, segundo Figueiredo Dias[2]);

            - poder/dever do Tribunal de sindicância da credibilidade da confissão - salvaguarda do princípio de que o acordo nunca poderá prejudicar os princípios da investigação judicial e de descoberta da verdade material;

- acordo restringe-se aos limites máximo, e eventualmente mínimo, da pena a aplicar, desembocando numa moldura concreta da pena;

            - colocação da possibilidade, ou mesmo vinculação, a penas de substituição;

            - colocação da possibilidade de extensão do acordo quanto a penas acessórias;

            - manutenção da decisão final do Tribunal, dentro dos limites consensualizados, por respeito ao princípio da culpa - “ao Tribunal, e só a ele, pertence ponderar todas as circunstâncias do caso que relevam para a culpa e a prevenção e, em função delas, encontrar o exacto quantum de pena”, como refere Figueiredo Dias[3].

            - publicitação do acordo, que deve constar da acta;

            - proibição de prova dos elementos do processo negocial na hipótese de o acordo fracassar;

            - intervenção no acordo de todos os sujeitos processuais;

            - proibição da renúncia prévia ao direito de recurso;

            - acordo deve ser obtido até ao início da produção de prova, após as declarações do arguido;

            - cumprimento de todos os actos processuais legalmente prescritos, incluindo a prolação de sentença, a qual “deve ser elaborada com pleno respeito pelos princípios, regras e normas gerais do Código de Processo Penal” – Figueiredo Dias[4].

            Suscita-se, assim, a possibilidade de, por esta via consensual, se simplificar e conferir maior celeridade ao processo penal português, sem se afectar os seus fundamentos constitucionais, nem sequer o respectivo modelo.

De facto, muito embora não exista regulamentação legal processual específica, é certo que a obtenção deste tipo de acordos não é proibida por lei, podendo mesmo encontrar sustentáculo legal no regime do art. 344º do C.P.P.

Além disso, esta via negocial permitirá, nos moldes acima propostos, dar cumprimento ao princípio constitucional do Estado de Direito, ao propiciar uma maior agilização, celeridade e economia processuais (cfr. art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa). Nas palavras de Figueiredo Dias[5], “o Estado de Direito só pode realizar-se quando se torne seguro que o agente criminoso será, no quadro das leis vigentes, perseguido, sentenciado e punido em tempo razoável com uma pena justa. Por isso um processo penal funcionalmente orientado constitui uma exigência irrenunciável do Estado de Direito”.

Este alargamento do âmbito do espaço de consenso no processo penal português responde ainda às exigências do princípio constitucional da tutela judicial efectiva (art. 20º da C.R.P.), mediante a plena realização do princípio do favorecimento do processo.

Não admira, assim, que esta nova via consensual venha progressivamente a obter a adesão doutrinal, e mesmo jurisprudencial, salientando-se a sua consagração na recente orientação nº 1/2012, da Procuradoria Geral Distrital de Lisboa, de 13-01-2012[6], a que se associou o Procurador Geral Distrital de Coimbra no seu memorando de 19-01-2012[7]. Veja-se ainda a posição (de acolhimento) expressa pelo Juiz Conselheiro José Souto de Moura, na sua recente monografia ”Acordos em Processo Penal”[8].

            Desta forma, concordando com a essência da doutrina acima exposta, e comungando dos mesmos objectivos e valores de celeridade, simplificação e economia processuais, mas não abdicando dos princípios constitucionais da legalidade e da investigação e da descoberta da verdade material, aderimos à solução consensual proposta, considerando ser de aceitar o acordo proposto pelos sujeitos processuais na audiência de julgamento, por cumprir todos os apontados pressupostos.

Manterá, pois, este Tribunal a sua liberdade de julgamento, embora respeitando os moldes do acordo consensualizado.

I

            Surge o presente recurso na sequência da consagração pela decisão recorrida dum instituto não contemplado na lei processual penal, enveredando por caminhos de inovação cujo  respaldo na letra, ou no espirito, importa averiguar.

            Tal decisão não surge isolada no panorama jurídico e antes se inscreve num movimento no qual é apresentada como paradigma de renovação e de avanço, ao encontro de uma justiça restaurativa que, para alguns, deve nortear o direito penal.

Tentando historiar a corrente inovadora, apologética dos acordos negociados, encontramos na sua génese a obra de Figueiredo Dias intitulada  “Acordos sobre a sentença em processo penal-O Fim do Estado de Direito ou um Novo Principio” [9]  à que se seguiram, pelo menos, duas decisões judiciais[10].

  Paralelamente tiveram lugar duas orientações do Ministério Publico que, fundamentando-se na citada obra e, também, nos novos caminhos abertos por aquela prática judiciária, vieram transformar os acordos negociados como um item a nortear a actuação dos respetivos agentes. Lateralmente, promoveram-se as II Jornadas de Direito Penal dos Açores subordinadas ao tema dos acordos sobre a sentença penal.

            Neste introito permitimo-nos salientar, para que conste em face uma posterior avaliação pelo legislador, que a questão para cuja resolução somos convocados não reside na bondade do instituto em face das finalidades últimas do direito penal, mas única, e exclusivamente, averiguar se aquela inovação tem, ou não, apoio legal

 
II
O desenho genérico do novo instituto, e do procedimento que lhe deveria estar associado, consta das conclusões de documento oriundo da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa (Orientação 1/2012) onde se indica a seguinte orientação para os respectivos Magistrados:

1-Afiram, a nível local, da receptividade à celebração de acordos sobre a sentença em matéria penal, com os senhores magistrados judiciais;

2-Na hipótese de obtenção de reacção positiva, concebam previamente os procedimentos indicativos a adoptar, sem prejuízo das adaptações que os casos concretos exigirão;

3-Concretizado qualquer acordo, seja o mesmo comunicado à Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, com menção sintética dos procedimentos utilizados,deforma a facilitar a partilha de boas práticas e a favorecer a dinamização da utilização do instituto noutras comarcas.

A argumentação da Procuradoria-Geral de Lisboa, para além das referências auto elogiosas a todos aqueles que se aventurarem pelos novos caminhos[11], centra-se no decantado fundamento da celeridade, e economia processual, a exigir o apelo aos instrumentos de consenso. Em seu entender na vantagem duma solução de consenso, envolvendo a adesão de todos os sujeitos processuais - Juiz, Ministério Público, arguido e, embora com posição específica, do assistente -, não cria o risco, que existirá noutras soluções unilaterais, de aumento sistémico da litigiosidade processual; na vantagem da utilização deste mecanismo que será visível nos casos em que o arguido não teria intenção de confessar os factos, mas decide fazê-lo perante a possibilidade de obter uma "atenuação negociada" da pena.

Neste sentido argumenta o mesmo documento que esta atenuação, que consubstancia a principal motivação ao acordo do ponto de vista do arguido, é materialmente justificada pela valoração do comportamento processual do agente após a prática dos factos (art. 72.°, 1, ai. e), do CP). No fundo, seria, argumenta a Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, uma formalização do que ocorre já hoje quando o Juiz, antes de interrogar o arguido em audiência, o adverte dos seus direitos e menciona que as suas declarações nunca o poderão desfavorecer, mas podem ser consideradas a seu favor.

O acordo teria assim subjacente um juízo de prognose dos sujeitos processuais sobre a pena que previsivelmente seria aplicada caso o acordo não fosse concluído, de forma a ser perceptível o "benefício" associado à nova postura processual do arguido.
Tal prognose deveria implicar uma avaliação sintética, factualmente sustentada nos
autos, de elementos relevantes para a determinação da sanção.

Joga-se aqui, adianta ainda a mesma orientação, com uma eventual alteração da "estratégia processual" do arguido que pode atribuir à solução vantagens de celeridade processual. Na realidade, face à confissão do arguido, pode prescindir-se da restante prova, nos termos legais, acelerando claramente a obtenção de uma decisão final no processo. O próprio agendamento do julgamento por parte do juiz poderia ter em conta a celeridade que assim se imprimiria à diligência.

Perfilhando tal orientação da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa também a sua congénere do Distrito Judicial de Coimbra alinhou pelo mesmo diapasão[12]. Aqui, todavia, a fundamentação foi um pouco mais além, apelando ao direito comparado e louvando-se, tal como Figueiredo Dias, na excelência dos Juízes alemães que consagraram o instituto dos acordos negociados durante largos anos sem o arrimo da lei.

Refere a mesma orientação, no plano do direito comparado, que deixando de lado institutos de maior impacte como a"plea bargaining", sem o qual o sistema americano soçobraria ao peso da sua dimensão, poderemos achar referentes próximos no "patteggiamento" italiano3 e na "Verstânãigung"alemã4. Além da "guilty plea" britânica e da "conformidad" espanhola5.

O "patteggiamento", traduzido na "applicazione áella pena su richiesta àelle parti", evoluiu de uma lei (de 1981) de escassa aplicação para uma outra (de 1988) que ampliou o seu campo de intervenção e logra hoje mais satisfatória aceitação no norte que no sul de Itália6. Ele permite não apenas economizar a fase de "abattimento" (audiência de julgamento) como também a fase de impugnação, muitas vezes utilizada com fins dilatórios, devido à"inapelabilidade da sentença surgida do acordo das partes".

No sistema alemão as "absprachen" (acordos, ajustes) foram durante largo tempo utilizadas pelos tribunais sem sustentáculo legal expresso. Muito criticadas pela doutrina, acabaram por obter algum reconhecimento por parte do Tribunal Constitucional Federal em1987. Foi a razão prática que se impôs: as "absprachen" tornaram-se instrumento imprescindível para o alívio do sistema judiciário, incapaz de responder com a celeridade e a economia exigíveis à enorme carga de solicitações das sociedades modernas. "Mesmo num país como a Alemanha, senhor de abundantes recursos económicos", os Ministros da Justiçados "Lãnder", reunidos em Conferência em 2004, chamaram a atenção para que "a justiça penal trabalha nas margens da sua capacidade de resistência. Só em 4 de Agosto de 2009 foi produzida uma lei que consagrou tais acordos no parágrafo 257 C do Código de Processo Penal (StPO). Lei essa que quer os detractores quer os partidários das "absprachen" são unânimes em considerar "a mais importante reforma do StPO desde a sua entrada em vigorem 1879", já que produzindo uma verdadeira mudança de paradigma faz coexistir no processo penal alemão um procedimento clássico e um procedimento negociado10. Rigorismos dogmáticos levaram a que, visando evitar a impressão de que se podiam fazer assentar os fundamentos de um julgamento penal num acordo de natureza quase contratual, se tivesse rejeitado a designação tradicional de "absprachen" em favor de "Verstandigung"("entendimentos" ).

Em termos de fundamentação concreta no direito português esgrime esta orientação com os artigos 72° e 73° do Código Penal que no seu entender são fundamento bastante para a sentença negociada. Fornece, nomeadamente, os critérios
de atenuação da pena (contrapartida necessária da colaboração do arguido, espelhada na confissão).

Com uma breve alusão a outro instrumento de direito premial que é a redução a metade da taxa de justiça (art° 344°, n° 2, c)) este documento acaba por concluir, de forma assertiva que o texto legal poderá ser melhorado uma vez que o intérprete nacional, confinado a estremo positivismo, anseia sempre por mais explicitude e frequentemente confunde os planos legal e regulamentar do processo. Mas é indubitável que temos já mais base jurídica do que os alemães tiveram até 2009.

Assim, fundamentalmente, a questão que nos convoca é saber se, com base na actual redacção do Código de Processo Penal, é válido um acordo com o arguido mediante o qual o mesmo confessará em julgamento a prática dos factos constantes da acusação/pronúncia ficando o limite máximo da pena aplicável previamente determinado e mantendo o tribunal o poder, não só de avaliar a credibilidade da confissão, como de determinar a pena concreta, dentro dos limites estabelecidos no acordo. Tal questão é analisada, e respondida afirmativamente, por Figueiredo Dias invocando que:

a) A confissão do arguido é o pressuposto essencial do acordo, omo mecanismo legal já existente para simplificar e conferir celeridade ao processo penal;

b) Em conformidade, a base legal para o acordo reside precisamente no art. 344.° do Código de Processo Penal (confissão);

c) O tribunal mantém integralmente o poder/dever de aferir a credibilidade da confissão (art. 344.°, 3, ai. b), do CPP);

d) No acordo não pode constar a pena em concreto, mas apenas os seus limites, pelo menos, o seu limite máximo. O autor admite que determinadas circunstâncias poderão justificar o estabelecimento de um limite mínimo, embora tal não seja condição de validade do acordo;

e) A margem entre o limite máximo e o mínimo, a funcionar como uma moldura concreta da pena no âmbito da qual o tribunal decide a pena concreta a aplicar, não pode ser tão elevada que perca qualquer efeito delimitador da pena;

f) Caso o limite máximo da pena o permita, admite-se a inclusão no acordo de vinculação a determinadas penas de substituição;

g) Admite-se acordo sobre sanções acessórias ou perda de bens, este último desde que não implique um juízo de perigosidade do agente. Não se admite acordo sobre medidas de segurança;

h) O acordo obtido deverá constar da acta, em nome da publicidade do processo e consequente legitimidade da decisão; caso o acordo não seja obtido,não pode nenhum elemento do processo negocial ser tido em consideração no julgamento(proibição de prova);

i) O acordo deverá ter a intervenção do arguido, do Ministério Público e do Juiz, devendo ainda intervir o assistente, caso exista. Neste último caso,o autor discute se a sua intervenção deverá ser vinculativa, optando por responder afirmativamente face ao quadro legal actual, defendendo, de jure condendo, solução contrária;

j)   Não pode estabelecer-se no acordo uma renúncia prévia ao direito de recurso;

k) O acordo deverá ser obtido, salvo casos excepcionais, até ao início da produção da prova, após declarações do arguido. Admite até, com maiorescautelas,a viabilidade do acordo ser obtido ainda na fase de inquérito.

Para o mesmo autor trata-se de uma questão sensível, contrariando quadros culturais instalados, sobretudo quando defendida sem qualquer intervenção do legislador. O mesmo esclarece que, apesar de ser um tema que já o ocupava anteriormente, só após o legislador alemão ter decidido regular o instituto é que entendeu dar publicidade ao seu pensamento.

Saliente-se que um dos pontos fundamentais no argumentário das orientações que, encabeçadas pelo Ilustre Professor, advogam a validade do acordo negociado é a clarividência da jurisprudência alemã pois que, apesar de apenas em 2009 ter sido publicada legislação sobre a matéria, o certo é que tais acordos foram reconhecidos, e aceites, pelos tribunais durante os últimos de 30 anos, apesar do vazio legal e da frequente crítica da doutrina.

Sugere-se em tal argumentação que os Juízes portugueses tenham o espirito de ousadia dos seus congéneres alemães, iniciando um percurso idêntico, e tendo em conta que a lei portuguesa, embora não prevendo estes acordos, não os proíbe, pelo que se pede que se comece a sua aplicação na vida judiciária nacional.

III

A equação da questão que nos é proposta, que não pode ser reduzida a um mero apelo a convicções voluntaristas e implica um aprofundar de algumas das razões expostas.

Assim, antes do mais, debrucemo-nos um pouco sobre o invocado exemplo germânico. Na verdade, o tribunal constitucional alemão (NStZ 87, 419,) admitiu a existência de acordos em processo penal e, nomeadamente, com base na existência de uma confissão. Para tal fundamentou-se nos artigos 1, 2 e 3, da Constituição alemã, mas ressalvando que, por tal forma, não poderiam ser ultrapassados o princípio da Investigação, o princípio da culpa e o princípio igualdade, assim como a liberdade de vontade. De acordo com o mesmo Tribunal tais formas de procedimento negocial seriam admissíveis sempre que as vantagens derivadas da confissão também fossem permitidas, mesmo sem o acordo, e fossem razoáveis

Depois de muitos esforços, alguns contraditórios, o Supremo Tribunal Federal  tentou harmonizar alguns princípios rectores do processo penal com os referidos acordos. O mesmo tribunal partiu do pressuposto de que a admissibilidade destes estava dependente dos seguintes requisitos:

1. O principio da investigação deve ser salvaguardado. Por conseguinte, o tribunal não pode, por exemplo, chegar a uma decisão baseado apenas na confissão prestada no âmbito do acordo. Deve examinar a sua credibilidade e, se for o caso, incorporar outros elementos de prova.

2.O principio nemo tenetur deve ser salvaguardados na pratica dos acordos.

3. O princípio da publicidade deve ser observado. Por conseguinte, o acordo deve constar da decisão e examinado em julgamento.

4. O princípio da imediação não pode ser lesado. Portanto, é inadmissível que o tribunal faça uma promessa vinculante sobre a medida da pena a impor pois que ante uma tal antecipação da sentença o tribunal já não poderia extrair a decisão da totalidade do julgamento. Em contrapartida o tribunal pode estabelecer um limite máximo da pena que o vincula e sem o qual o arguido nunca concordaria com o acordo pois que este não lhe traria qualquer vantagem

5. O princípio da culpa deve ser respeitado. Consequentemente, o tribunal não pode pagar uma confissão com uma atenuação da pena encontrada bem abaixo do limite proporcional da culpa. Sem embargo, a confissão é a razão fundamental para a atenuação da pena valendo mesmo quando não é induzida pela contrição e arrependimento, mas por razões tácticas para obtenção de uma sentença mais favorável, pois que, mesmo aqui, o arguido assume a responsabilidade do seu acto e favorece um dos fins do processo que é a paz jurídica.

6. O princípio do procedimento leal deve ser sempre observado. Como tal o tribunal está vinculado ao limite máximo da pena por ele estabelecida. No entanto, quando posteriormente se demonstram circunstâncias que elevam a culpa para um patamar mais grave o tribunal excepcionalmente deve poder exceder o limite máximo fixado para a pena, em atenção ao princípio da culpa. Mas, neste caso, o tribunal deve advertir o arguido dessa possibilidade.

Tal situação é um compromisso tolerável porquanto o arguido conhecia desde o início as circunstâncias que elevavam a sua culpa e, ao omiti-las, pretendeu um benefício injustificado

7-Não existe renúncia do direito ao recurso[13]

O caminho seguido pela jurisprudência foi formatado legalmente em Agosto de 2009 (Urteilsabsprechen).

Todavia, o percurso seguido pelos acordos negociados no direito alemão não foi tão linear quanto uma leitura superficial pretende induzir. Sobre as vicissitudes das decantadas Absprechen nos dá notícia Kurt Madlener[14], já antes da sua consagração legal no direito alemão, referindo que, outro instrumento para abreviar processos e assim diminuir a carga de trabalho da Justiça são as Absprachen que tiveram origem na jurisprudência e são muito criticadas. O seu objectivo é obter um acordo tendente a simplificar e, assim, encurtar o processo, prescindindo-se, por exemplo, de certas provas se o arguido confessar, eliminando-se em contrapartida da confissão certos pontos da acusação e, inclusive, limitando-se a pena a ser imposta. Na Alemanha, esse procedimento é utilizado muitas vezes em grandes processos de delinquência económica, porém a sua aplicação no dia-a-dia é tanta que se trata, sem dúvida, de uma das técnicas processuais mais importantes para abreviar os processos penais.

Além das críticas que são tecidas pelos especialistas, há também uma crítica popular muito generalizada, pois a opinião pública tem tendência a considerar que se trata de um instrumento para favorecer os ricos e poderosos e salvá-los de penas drásticas que talvez houvessem merecido. Esta crítica alimenta-se cada vez que aparece nos meios de comunicação um caso que chama a atenção, como recentemente o da Sociedade Mannesmann, no qual entre os arguidos figurava o Presidente do Deutsche Bank e outras personalidades importantes da economia alemã.

A prática dessas Absprachen desenvolveu-se nas últimas três décadas sem amparo legislativo. Alguns autores consideram-nas como uma prática contra legem, porém, o Tribunal Supremo tem-nas aceitado, mas com certas cautelas. Aqueles que estão a favor distinguem algumas vezes a Absprache do deal. Com a palavra inglesa de deal designam os acordos que se fazem secretamente, sem o controlo público característico do processo penal, os quais não aparecem nas actas do processo e que são suspeitos de concessões de vantagens ilegais a determinados arguidos. Por Absprache entende-se o acordo que respeita o entendimento do BGH no acórdão supra citado.

Há, porém, uma insatisfação generalizada com esta prática sem suporte legal e, por isso, vários projectos de lei foram elaborados e apresentados a fim de serem encaminhados ao parlamento. …….Porém, é pouco provável que essa lei faça com que a discussão termine. De um lado, não existe acordo sobre os detalhes de sua formulação, e, por outro lado e mais importante ainda, alguns críticos recusam as Absprachen por razões de princípio, independentemente dos detalhes de uma regulamentação legal.

Os argumentos são muito variados, porém geralmente concentram-se no princípio básico do processo penal, que tem como finalidade determinar a verdade material dos factos e aplicar, sob esse fundamento, a lei para que se faça Justiça. Alguns recordam que em processos políticos, por exemplo, o tema decisivo pode ser a verdade histórica de um povo, e que esta não pode ser substituída pelo acordo entre os operadores do processo. Outros argumentam que a possibilidade de um acordo entre os operadores do processo pode anular as garantias do arguido. Por exemplo, pode ocorrer que o advogado ou o agente do Ministério Público ou o juiz queiram evitar estudar autos de um processo muito volumoso, talvez com milhares e milhares de páginas, com dezenas de discos duros de computadores apreendidos pela polícia, o que é frequente em processos da delinquência económica, e apresentem a possibilidade de um acordo ao seu cliente, pensando menos na situação deste e mais na sua. Outro aspecto é que o cliente talvez não se sinta livre no que se refere à aceitação de uma proposta, pois teme que, caso insista no seu direito a ter um processo penal completo, possa sofrer uma atitude pouca amistosa por parte das autoridades.

Seja como for, na actualidade existem os acordos, em conformidade com a jurisprudência do BGH, e no futuro certamente também serão feitos, mas sob fundamento legal, pois a opinião maioritária considera as Absprachen um instrumento imprescindível de agilização na situação actual da Justiça alemã.

…..Por tudo isto, não é surpreendente que a 4." secção criminal do Bun­desgerichtshof, na decisão supra citada, referindo-se ao art. l53.oa StPO, tenha dito que acordos entre os que tem Participação no processo penal não são totalmente estranhos ("nicht vollig fremd") ao processo penal alemão. Considerando isso, a expansão da possibilidade das Absprachen parece lógica, porém talvez lamentável.

Tal procura de consensos no processo, maximizada pelos acordos negociados, estendeu-se, referindo Delmas Marty que a expressão de “justiça consensualizada”, ou “Justiça contratada”, está em desenvolvimento no âmbito do direito comparado europeu. Na era do dissenso a Justiça negociada pretende favorecer o consenso, ou pelo menos o acordo.

            A origem deste tipo de Justiça no âmbito do Direito Penal pode-se situar no movimento de transformação que caracterizou o direito penal desde os anos 70, depois do declinar da reabilitação e do desmoronamento do Estado intervencionista. Uma solução negociada dos conflitos parece uma solução aceite mais facilmente do que algo imposto. A justiça negociada aparece vinculada à mediação, especialmente aos programas de mediação entre delinquentes e vítimas que se desenvolvem em Franca e Inglaterra.

Com isto confunde-se a tradicional classificação do direito penal no direito público, introduzindo no mesmo elementos do direito privado. Para mencionada autora a igualdade de armas nestes procedimentos é uma ficção e, por outro lado, a justiça negociada não é muito transparente, escapando ao “controle democrático” da imprensa. A vítima é descartada do debate, carece de voz, não pode invocar os seus direitos. [15]

Como afirma Barona Vilar a negociação no direito penal também produz uma serie de incongruências, e de incompatibilidades, com os fins e funções do direito penal dado que, por um lado, coloca em causa o jus puniendi estatal e, por outro, questiona as teorias da pena, omitindo que, através da procura do consenso, se estão a desvirtuar os princípios da determinação e individualização da pena. Igualmente há que ter em atenção que a vítima fica praticamente à margem da negociação o que implica uma ruptura com as suas expectativas de Justiça.

A justiça negociada encontra sua expressão mais acabada nos procedimentos de plea bargaining ou de guilty plea que se conhecem desde há muito nos Estados Unidos e que certos autores não têm dúvidas em qualificar de verdadeiros contratos. No modelo americano de guilty plea, o oferecimento da declaração de culpabilidade está precedido dum plea bargaining. Os termos da negociação podem incidir sobre a pena ou sobre os factos imputados.

            Estes procedimentos, afirma Óscar Daniel Ludeña Benítez, fizeram hoje entrada triunfal no direito europeu. A Recomendação do Conselho de Ministros de Europa de 17 de setembro de 1987, sugere expressamente o procedimento de guilty plea para acelerar a justiça.[16]

 

Num breve deambular pelo direito comparado, e no que toca ao direito processual penal inglês, há que destacar também, segundo Delmas Marty, a chamada negociação sobre os factos imputados ou plea bargaining. Esta pode realizar-se em qualquer momento do processo.

            Segundo a fase em que se realize os intervenientes são distintos. Na fase policial, intervém a polícia e o acusado. Quando intervém o Ministério Publico, isto é, o “Crown Prosecution Service” pode haver negociação entre o arguido e o Procurador. Na fase intermedia, e em audiência, perante o Magistrates´ Court o arguido e o Ministério Publico participam no plea bargaining.

 Perante o Crown Court, coloca-se a questão da intervenção do juiz na negociação. As decisões mais antigas referem que é necessária a aprovação prévia do Juiz (decisão Soanes, 1948). Sem embargo, as decisões mais recentes, aceitam que o Procurador não solicite a aprovação judicial prévia (caso Coward, 1979).

O guilty plea implica um desconto na pena, que, em função das circunstâncias, e sobretudo, do momento da declaração de culpa, podendo chegar até um terço da pena aplicável. As razões invocadas para justificar esta diminuição da pena que, em certa medida, provoca a erosão do princípio da proporcionalidade da sanção são, como refere a doutrina, a economia dos recursos da justiça e, em certos casos, a protecção de testemunhas, que, assim, evitam as situações traumatizantes.

É importante que o reconhecimento da culpa se produza o mais cedo possível, antes da instrução da causa. Como referia o Tribunal de Recurso  no caso Hollintong and Emmmens, de 1986” the earlier the plea the higher the discount”.

No direito processual alemão, a disposição multilateral sobre o processo tem três vertentes. Na primeira, uma vez iniciado o processo, o tribunal pode, a instância do Ministério Publico, interromper o exercício da acção penal nos casos do 153 II StPO (pequena delinquência com o consentimento do acusado) ou de atentado contra a segurança do Estado (153e II StPO). A segunda vertente consiste no arquivamento sob condição:-o artigo 153ª StPO regula o arquivamento sob condição por iniciativa do Ministério Publico ou do tribunal, com o consentimento do arguido. Na lei prevê-se a reparação do dano, a entrega duma soma de dinheiro a favor de um organismo de interesse público ou do Estado ou o cumprimento de prestações de interesse general, como o pagamento duma pensão.

A terceira vertente é a da conciliação, obrigatória e anterior á abertura da audiência, quando os processos se iniciam em virtude de querela privada.

            Por seu turno o direito italiano fundamenta-se nos ordenamentos anglo saxões.

Para obter um juízo abreviado o arguido, com o consentimento do Ministério Publico, pode solicitar que o juízo tenha lugar na audiência preliminar.[17]

O fim perseguido pelo sistema de negociação é acelerar o processo tendo em atenção as numerosas condenações da Itália pelo TEDH por violação da duração razoável do processo, com fundamento no art. 6.1 de la CEDH.

No denominado “patteggiamento”, e para as infracções punidas com cinco anos de prisão como máximo, o arguido e Ministério Publico pedem ao Juiz que imponha pena sobre a qual encontraram um acordo. Impõe-se a pena reduzida, sem que a redução possa ser superior a um terço. Em contrapartida o arguido renuncia ao direito de contraditar os termos formulados pela acusação e a interpor recurso.

Segundo Amodio o legislador italiano quis afastar-se do sistema europeu continental e aproximar-se da common law. Por tal forma pretendeu atacar a lentidão dos procedimentos; a duração excessiva, e injustificada, da prisão preventiva e a limitação do direito de defesa.

No patteggiamiento italiano, o mais parecido com o plea bargaining, há que ter em conta que o Juiz na mesma sentença em que determina a liberdade controlada ou a pena pecuniária, declara extinto o procedimento por aplicação das sanções substitutivas solicitadas pelo arguido. Em consequência, esta decisão assume uma natureza composta dado que, por um lado, se trata de una sentencia absolutória (pela extinção do procedimento) e, por outro, é condenatória (por conter uma sanção de carácter penal, ainda que substitutiva).

No direito processual português foi evidente no Código de Processo Penal de 1987 o propósito de conjugar a eficiência a escolha dos meios adequados para a efetivar. Com efeito, logo no preâmbulo pode ler-se, no nº 8: “Mesmo no contexto de uma apresentação sumária, não pode deixar de sublinhar-se outra das motivações que esteve na primeira linha dos trabalhos de reforma: a procura de uma maior celeridade e eficiência na administração da Justiça penal. Importa, contudo, prevenir que a procura da celeridade e da eficiência não obedeceu a uma lógica puramente economicista de produtividade pela produtividade. A rentabilização da realização da Justiça é apenas desejada em nome do significado direto da eficiência para a concretização dos fins do processo penal: realização da justiça, tutela de bens jurídicos, estabilização das normas, paz jurídica dos cidadãos. A eficiência é, por um lado, o espelho da capacidade do ordenamento jurídico e do seu potencial de prevenção, que, sabe-se bem, tem muito mais a ver com a prontidão e a segurança das reações criminais do que com o seu caráter mais ou menos drástico. A imagem de eficiência constitui, por outro lado, o antídoto mais eficaz contra o recurso a modos espontâneos e informais de autotutela ou ressarcimento, catalizadores de conflitos e violências dificilmente controláveis. Mas a eficiência – no sentido de redução das cifras negras e das desigualdades a que elas obedecem - pode também valer como a garantia da igualdade da lei em ação, critério fundamental da sua legitimação material e, por isso, da sua aceitação e interiorização coletiva.” 

            As opções forma bem patentes e explicitadas pelo legislador, nomeadamente a distinção de tratamento entre a criminalidade grave e a pequena criminalidade, enquanto “realidades claramente distintas quanto à sua explicação criminológica, ao grau de danosidade social e ao alarme coletivo que provocam”; e a correlativa linha de demarcação entre o “espaço de conflito”, correspondente à criminalidade grave, e o “espaço de consenso”, reservado para a pequena criminalidade.

            Esta procura de consenso aparece com soluções inovadoras, como a confissão livre e sem reservas, com dispensa de produção subsequente de prova; o arquivamento do processo em caso de dispensa de pena; a suspensão provisória do processo; o processo sumaríssimo; e ainda, de alguma forma, a atribuição pelo Ministério Público ao tribunal singular de competência para julgamento de crimes que, em princípio, cabiam ao tribunal coletivo.

            Numa visão simplista da panóplia processual formulada pelo legislador em alternativa ao processo comum encontramos:- arquivamento em caso de dispensa de pena, previsto no art. 280º, aplicável pelo Ministério Público no inquérito, e pelo Juiz de Instrução Criminal na instrução, se o processo for por crime relativamente ao qual se encontrar prevista na lei a possibilidade de dispensa de pena;- suspensão provisória do processo, prevista no art. 281º, aplicável se o crime for punível com pena de prisão até 5 anos, e verificando-se certos pressupostos, pelo Ministério Público no inquérito, e pelo Juiz de Instrução Criminal na instrução;- processo sumaríssimo, previsto no art. 392º, aplicável se o crime for punível com pena de prisão até 5 anos;- processo abreviado, previsto no art. 391º-A, aplicável se o crime for punível com prisão até 5 anos e as provas da prática do crime forem “simples e evidentes”;- confissão integral e sem reservas do arguido, prevista no art. 344º, que implica a renúncia à produção da prova relativa aos factos e a passagem imediata à determinação da pena, se o arguido não dever ser absolvido por outros motivos;- competência do tribunal singular para o julgamento de crimes puníveis com pena superior a 5 anos de prisão, se o Ministério Público entender que não deve ser aplicada em concreto pena superior a essa medida (art. 16º, nº 3).

            Uma das questões que então se suscita é a de saber se, antes de recorrer a instrumentos que vão muito além da letra da lei e da intenção do legislador, e, consequentemente, sem suporte normativo, não seria mais prudente utilizar devidamente as potencialidades contidas no catálogo de medidas alternativas existentes.

            Na verdade, como refere Maia Costa, o relatório do Observatório Permanente de Justiça intitulado A justiça Penal – Uma reforma em avaliação, datado de 2009, constata que, apesar das sucessivas reformas, as formas especiais de processo não registam alterações muito significativas quanto à sua utilização, sendo predominantemente utilizadas nos crimes contra a segurança dos transportes. Resultados idênticos se verificam quanto à suspensão provisória do processo.

            Nos dados das estatísticas criminais, relativas aos anos de 2005 a 2010, só a suspensão provisória do processo sobe continuamente. Mesmo assim, em 2010, último ano de que há dados, para um total de 77.911 inquéritos acusados, só 10.352 foram suspensos provisoriamente. Do total de acusados só 5.358 o foram em processo sumaríssimo, e 4.644 em processo abreviado; e o art. 16º, nº 3 do CPP, só foi utilizado 9.644 vezes.

            Conclui-se, na esteira do mesmo Autor, que o processo comum continua a ser a forma privilegiada, massivamente utilizada, de tramitação em processo penal. [18]

III

            Depois deste breve excurso sobre a evolução da negociação de acordos em processo penal importa que se alinhem algumas das razões que levam a discordar dos caminhos seguidos pela decisão recorrida.

Em primeiro lugar importa precisar que a resposta á questão proposta é a que resulta de uma interpretação da lei processual penal, e dos princípios que lhe assistem, e não em visões voluntaristas daquilo que se entende como adequado para as finalidades de uma determinada política criminal. Na verdade, como se afirmou, não está agora em causa a bondade das opções orientadas para soluções de consenso, ou para uma justiça negociada apresentada como solução alternativa, uma vez que esta deve ser decidida exclusivamente no diálogo do legislador com a sua perspectiva sobre a forma de atingir as finalidades do direito penal.

Aqui, e agora, o que se pretende é única, e exclusivamente, saber se a lei processual penal vigente respalda o acordo negociado de sentença constante da decisão recorrida, e isto sem ter em conta considerações sobre a invocada ousadia jurídica e o fulgor interpretativo de todos aqueles que entendem que é tempo de inovar.

A resposta a esta questão é, quanto a nós, frontalmente negativa pois que a letra e os actuais princípios que norteiam o processo penal não suportam uma interpretação que proclama a validade dos acordos negociados de sentença.

             

 Na verdade, perante o mesmo Código, e as mesmas normas que agora são invocadas como fundamentadoras da pretendida inovação, já referia Anabela Rodrigues que a opção do processo penal português por ideias como o consenso não foi fruto ocasional ou de uma intenção desesperada de atacar estrategicamente problemas característicos do nosso tempo, como a lentidão da justiça ou a massificação de determinadas formas de delinquência. Esta opção foi-se sedimentando, com a consciência de que "a tentativa de consenso deve ser levada tão longe quanto possível, para o que importa melhorar sensivelmente as estruturas de comunicação entre os sujeitos e as diferentes formas processuais"

O que não significa que o processo penal fique inteiramente nas mãos das partes. Nem o processo penal se estrutura em termos de consensualidade absoluta, nem isso seria tão-pouco desejável: ou seja, nem a aplicação da pena pode, por princípio, depender da aceitação do condenado, nem o roubo do conflito que o consenso postula pode ir tão longe que se corra o risco de que a redução da complexidade em que se analisa dê azo, paradoxalmente, a um processo inquisitorial.

……O consenso de que se trata liga-se a uma solução razoável dos conflitos, tendo em conta o valor argumentativo das pretensões a dirimir e não a bargaining. O acordo das partes em processo de negociação não pode fundar por si só nem a verdade nem a validade da decisão judicial que o assume. Problema primeiro da verdade consensual é o do acto de aceitação e, em concreto, o das condições necessárias e suficientes para que se possa falar de uma aceitação racional. Com efeito, cabe perguntar o que pode ter a ver com a existência ou inexistência de um facto, com a verdade, o consenso baseado em considerações de carácter táctico-processual, por exemplo, a aceitação de uma oferta razoável de pena por parte de um juiz. Nas palavras de Schreiber, para se poder, em rigor, falar de consenso, a "decisão terá de emergir como resultado de uma interpenetração de posições contrastantes e, por isso, aceitável por todos ou parte dos intervenientes. Quando é possível proceder a uma discussão conjunta do problema, em estilo dialógico, ganha-se em informação e alargam-se os horizontes. E aumentam as oportunidades de se encontrar uma decisão mais acertada e susceptível de superar a situação real subjacente bem como as hipóteses da sua aceitação, mesmo por aqueles que vêm a ser atingidos pela sanção". ….

Neste contexto, a liberdade para negociar é mais ilusória do que real. Longe de contribuírem para a igualdade das partes, estes processos negociados reforçam a desigualdade, já que "o contrato é também o instrumento privilegiado de domínio do forte sobre o fraco". Um problema crucial em todos os sistemas que conhecem este tipo de justiça negociada é o da qualidade da defesa e das possibilidades que o arguido tem de beneficiar de um advogado de qualidade. Análises levadas a efeito mostram que "são as partes mais preparadas e armadas que negoceiam melhor". Para um amplo sector da doutrina todas as fórmulas de justiça contratual (plea bargaining, pattegiamento etc.), o "prémio" que se oferece ao arguido para o incentivar a que renuncie ao processo comum não tem correspondência, nem com a gravidade do crime - já que este não se torna menos grave pelo facto de a sua repressão ser muito mais expedita -, nem tão pouco com exigências de prevenção especial, porque a renúncia do arguido ao processo comum não reflecte qualquer adaptação social, mas apenas um desejo geral de rapidamente "ajustar as suas contas" com a justiça.

Também a prevenção geral positiva tal como a entendemos, ligada à gravidade da lesão ou perigo de lesão do bem jurídico é posta em causa. Mais é uma séria determinação da medida da pena que sai ferida.[19]   [20]

Mas, sendo assim, questionamo-nos de como é possível extrair da mesma realidade concreta uma consequência lógica e, simultaneamente, pretender-se que a mesma significa exactamente o seu contrário. Dito por outra forma não se vislumbra como legitimar os acordos negociados em face de uma lei processual penal que sempre se orientou em sentido diverso.

É certo que, com Figueiredo Dias, podemos ser conduzidos a ligar a temática do acordo negociado e o regime processual penal da confissão integral, e sem reservas, do art. 344 do nosso Código de Processo Penal ao instituto dos acordos sobre a sentença (pag.28 da obra citada).Porém, essa dimensão da consensualidade nunca esteve, perto ou longe, da forma como se equacionou a relevância da confissão pois que, como refere na mesma obra, a preocupação que deu base à proposta que, nos inícios de 1985, e que o mesmo Ilustre Professor levou à consideração da Comissão de Reforma, e de onde haveria de resultar o art. 344.° do Código de Processo Penal vigente, face ao texto actual, dispunha adicionalmente que uma confissão integral e sem reservas poderia, por si mesma, constituir fundamento de atenuação especial da pena. A discussão da Comissão que recaiu sobretudo sobre esta possibilidade de atenuação conduziu em definitivo à sua eliminação; enquanto o restante do regime da confissão em audiência foi aceite praticamente sem controvérsia.

Adianta o mesmo Autor que, no seu pensamento, o significado era de grande relevo para uma simplificação e aceleração do processo, de qualquer processo penal; na parte sobretudo em que dispunha que "a confissão integral e sem reservas implica: renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e consequente consideração destes como provados».

   É exactamente esse o sentido que continuamos a atribuir à confissão tal como configurada no artigo 344 do CPP. Na verdade, o direito processual português não dá qualquer protecção à expectativa do arguido que confessa em relação à sua pena, sendo certo que a concessão da atenuação especial da pena tem uma justificação político-criminal pelo facto de o arguido revelar espírito de colaboração com a justiça e poupar as vítimas a uma vitimização secundária e o Estado a gastos acrescidos de tempo e dinheiro.  

Contudo, como refere Paulo Pinto de Albuquerque, essa benesse só deve ser oferecida se o arguido confessar integralmente, e sem reservas, logo no início da audiência, não quando o Ministério Público já tenha feito prova da acusação, a vítima já tenha sido submetida à vitimização secundária e o Estado já tenha gasto tempo e dinheiro com a produção da prova da culpa do arguido. [21] 

Sendo certo que não se vislumbra razão para a invocada legitimação do acordo negociado com apelo à confissão, tal como esta se configura no Código de Processo Penal, igualmente é certo que a orientação seguida na decisão recorrida ofende princípios fundamentais inscritos na Constituição e regras que são nucleares em qualquer sistema jurídico
A ausência de qualquer suporte legal que permita esclarecer sobre o procedimento adequado para o pretendido acordo negociado conduz a um processo singular no qual, em lugar da norma geral e abstracta válida para todos os cidadãos, se assinala a necessidade de aferir, a nível local, da receptividade à celebração de acordos sobre a sentença em matéria penal, com os senhores magistrados judiciais e, na hipótese de obtenção de reacção positiva, concebam previamente os procedimentos indicativos a adoptar, sem prejuízo das adaptações que os casos concretos exigirão-(PGDL Procuradoria Geral Distrital de Lisboa (Orientação 1/2012);

Temos assim a apologia de uma prática de construção de determinadas regras procedimentais que parte do concreto e casuístico para a tentativa de ordenamento mais geral o que colide frontalmente com a forma de aparecimento da Lei num Estado de Direito. A natureza genérica e abstracta da lei perde agora solidez, transformando-se numa dispersão de procedimentos consoante a latitude a longitude.

A possibilidade de existência de um acordo negociado constituirá, assim, um epifenómeno que pode, ou não, acontecer consoante a comarca, ou o distrito judicial, em que decorre o processo, numa clara violação de princípios que informam o processo penal como o da lealdade ou a própria Constituição como o da igualdade.

            Como afirmava Pascal “Verdade aquém dos Pirenéus, mentira além!”

Por outro lado o acordo negociado consubstancia a procura de um patamar superior na senda de uma justiça restaurativa. Tal caminho, válido em sede de direito a constituir, encerra virtualidades, mas também elementos importantes de fractura com princípios que informam o nosso processo penal.

Assim,

é evidente nos sistemas processuais penais a existência de uma relação de tensão entre os princípios de legalidade e da oportunidade, um norteado pelas concepções absolutas da pena e o outro animado pelas ideias utilitárias próprias das correntes preventivas.

Na verdade, o princípio da legalidade obriga a acusação pública a actuar e a intervir em qualquer processo para pedir a condenação de quem cometeu qualquer infracção à lei penal. Por sua vez o princípio de oportunidade consubstancia o poder que se reconhece aos organismos com o objectivo de exercício da acção penal de a desencadear, ou não, de acordo com certas limitações quando se tratar de condutas presumivelmente puníveis, em atenção a situações conjunturais; às circunstâncias que rodeiam os factos ou á postura negocial dos sujeitos processuais, de tal forma que o processo penal assume característica de um processo de partes com o sequente poder de disposição.

Consequentemente, é também diferente a maneira como as legislações acolhem o princípio de oportunidade e os institutos que o compreendem: seja de maneira regulada —em sequência do qual o Ministério Público só pode suspender, interromper ou renunciar á perseguição penal quando se reúnam determinados pressupostos ou condições, com controle judicial—, ou de forma ampla ou livre —como o norte-americano ou o inglês, que seria melhor denominar como acusação entregue á discrição do órgão encarregue da perseguição penal, isto é, quando os casos e as condições para decidir sobre o exercício ou abstenção da acusação se deixam ao libre arbítrio do Ministério Publico.

Para a teoria clássica do processo penal o objeto principal do mesmo está conformado por uma determinada relação de direito penal que tem a génese num facto considerado como delito e que se desenvolve entre o Estado e o individuo ao qual se imputa o mesmo facto com a finalidade de lhe ser aplicada a lei penal. Como esta finalidade é de natureza pública inferem-se dois princípios: o da não disponibilidade do objeto do processo e o da imutabilidade do objeto do processo.

Não obstante, em virtude da crescente privatização do processo penal, também o denominado princípio de consenso das partes próprio do processo civil —mas não do penal- ganha terreno nos direitos penais positivos e entre a doutrina. As manifestações de este princípio, e da sua natureza, são diversas: por vezes, o consenso produz-se em relação a um determinado tópico da actuação; pense-se, a título de exemplo, na figura das estipulações probatórias, na sequência das quais o Ministério Publico e a defesa se colocam de acordo para “aceitar como provados alguns dos factos ou das suas circunstâncias”. Noutras hipóteses, figura-se a possibilidade de recorrer a mecanismos não jurisdicionais, nem de natureza punitiva, para resolver o conflito, isto é, alude-se às chamadas “soluções alternativas” ao processo jurisdicional —por exemplo, os mecanismos de justiça restaurativa. Todavia, também existem os consensos que se apresentam no interior do processo penal, mediante os quais os sujeitos processuais podem chegar a um acordo sobre a forma procedimental a que se submeterá o tema penal ou, incluso, a respeito do seu conteúdo fáctico e jurídico-penal.

Se for assumido como critério de classificação o objecto, ou matéria, a respeito da qual versa o acordo, são possíveis dois tipos de consensos: um, sobre o ritual procedimental em virtude do qual se aceita uma forma abreviada, ou simplificada, de processo, cujo efeito jurídico-processual é a produção de um resultado conformador do procedimento para o conseguir mais célere, para suprimir uma fase processual ou provocar uma redução no debate em julgamento —por exemplo através da supressão da prática de produção de prova— como sucede nos ordenamentos português, italiano o espanhol. O outro, apresenta-se sobre o mérito do processo, seja de índole fáctica ou jurídica, e envolve a disposição sobre o objeto do processo e, desse modo, sobre a lei penal substantiva, com o que fica por precisar o conteúdo da decisão judicial que, justamente por tal facto, deixa de ser jurisdicional para se converter num acto homologatório jurisdicional.  

A assunção dos acordos negociados de sentença representa, assim, um momento decisivo, eventualmente necessário, mas que deve ser assumida com a consciência de que o mesmo representa uma ruptura com alguns dos arquétipos do processo penal

Argumentar-se que tal ruptura á assumida pelo legislador na sequência daquilo que se passa em termos de direito comparado e do regime da confissão nos termos do artigo 344 do CPP, é um passo demasiado grande para ser dado sem suporte numa vontade do legislador afirmado sem margem para dúvidas.

            Particularmente ajustadas á situação vertente as palavras de Batista Machado quando refere que a segurança é, pois, uma das exigências feitas ao Direito - pelo que, em última análise, representa também uma tarefa ou missão contida na própria ideia de Direito. A exigência de segurança pode, porém, conflituar com a exigência de justiça.  Justiça e segurança acham-se numa relação de tensão dialéctica.

Como conhecimento prévio daquilo com que cada um pode contar para, com base em expectativas firmes, governar a sua vida e orientar a conduta, a segurança jurídica aparece-nos sob a forma de "certeza jurídica". Para esta concorrem desde logo as leis formuladas em termos claros e precisos, que não deixem margem a ambiguidades de interpretação nem a lacunas e que, portanto, evitem o recurso a conceitos indeterminados e a cláusulas gerais. …. Em resumo, pois, a certeza jurídica pede que a regra de direito seja uma prescrição de carácter geral formulada com uma precisão suficiente para que os seus destinatários a possam conhecer antes de agir. [22]

            A transposição dos acordos negociados em processo penal não é, assim, suportada pela certeza e segurança que está inscrita na norma qualquer que seja a forma como esta seja interpretada 

         Tal insegurança transparece na ausência de uma definição legal dos contornos que devem nortear o acordo e que vão desde a decantada avaliação de credibilidade da confissão pelo juiz que, ou é reduzido a uma figura de mero tabelião, ou tem de recorrer aos únicos elementos factuais ao seu dispor que os são elementos do inquérito com ultrapassagem do acusatório. Como refere Souto Moura a valorização da prova do inquérito passaria portanto a ser permitida ao juiz, e ainda que só ao serviço da credibilidade da confissão. Estaremos perante uma violação do princípio da acusação?

Colocar-se-á ainda, neste caso de dúvidas do juiz, a questão de saber qual a forma que essa investigação deverá assumir. Normalmente, desenrolar-se-á oral e sumariamente na própria audiência, mas não está excluído que, por exemplo, tenha que proceder-se a exames sobre a imputabilidade do arguido, duvidosa aos olhos do juiz. 

A final, interessa é que o tribunal forme livremente uma convicção sobre o acontecido, em termos de verdade processualmente válida. Verdade que será sempre o resultado de uma combinação entre o real acontecido, a facticidade, e as exigências de garantir os direitos das pessoas, designadamente do arguido.[23] 

            Obtida a confissão do arguido, passar-se-á, em termos de consenso das partes ao estabelecimento de um limite superior para a moldura penal que o tribunal se comprometerá a não ultrapassar. Para o arguido, a contrapartida ou vantagem que advirá da sua confissão, cifrar-se-á pois no estabelecimento de um limite máximo da moldura, ou mesmo de uma sub-moldura, a usar para a determinação da pena concreta.

Porém, em termos da pretendido acordo negociado fica sem resposta questões menorizadas, mas nem por isso com menos relevância. e que vão desde a situação dos comparticipantes, quando apenas alguns confessarem, até á admissibilidade do acordo se forem imputados vários crimes em concurso que podem englobar, ou não, crimes puníveis com penas cujo limite máximo seja superior a cinco anos.

Fazendo, ainda, apelo às palavras daquele autor a homologação dos acordos negociados de sentença parece ter esquecido a máxima, segundo a qual, o que não consta do processo não existe. E o que consta do processo está lá, só, porque a lei impõe ou permite que esteja.

Por seu turno o apelo a um processo “funcionalmente orientado” dizendo tudo caba por nada significar na construção de uma figura sem suporte legal. Na verdade todo o direito penal adjectivo, por definição, tem que estar “funcionalmente orientado”, já que sempre e só ao serviço da realização da justiça penal.

Particularmente apropriadas para encerrar este capítulo nos parecem as palavras de Fernando Mantovani quando refere que um dos principais dilemas da Ciência Penal moderno é, sem dúvida, a descodificação e recodificação.

            De facto, afirma o mesmo Autor, ou se entende que, como parece assumido por alguns autores, e parece confirmar certas práticas descodificadoras legislativas, que a complicada idade-moderna pelo seu dinamismo, a multiplicidade e complexidade dos problemas que surgem de tempos em tempos bem como o " estatismo "multiplicador de leis e intervencionistas, e por e por paternalismo autoritário, nos detalhes da vida e trabalho das pessoas têm marcado a crise da codificação penal…….     Ou não nos resignamos e tentamos combater a ideia de que a desordem e a insegurança jurídica não são apenas uma fase histórica transitória, aguda, mas são destinados a caracterizar de forma estável crônicas, modernos sistemas jurídicos. Então, em conjunto com as soluções de fundo, inimagináveis sem uma opção favor de civilidade (recuperando o consenso sobre valores fundamentais, existenciais, numa sociedade cada vez mais controversa e conflitual) há também o recurso de racionalização do Direito Penal.[24]

 

 Termos em que se entende que o acordo negociado em que se fundamenta a sentença proferida não tem fundamento legal.

III

No caso vertente os arguidos manifestaram a sua disposição para confessar de forma integral e sem reservas os factos de que vêm acusados no âmbito de um acordo a consensualizar com o Ministério Publico.

Esta entidade apreciou os factos e na hipótese de os arguidos confessarem proclamou os limites máximos das penas abstractas por se mostrarem justas e adequada

Os arguidos e seus Mandatários declararam aceitar nos seus precisos termos as molduras abstratas propostas pelo MP.

Pelo Juiz Presidente, após deliberação, foi proferido despacho no qual, perspetivando a manifestada intenção dos arguidos de confessarem os factos de que vinham acusados, a natureza destes, e as condições pessoais de cada um dos arguidos, incluindo os seus antecedentes criminais, o Tribunal Coletivo considerava adequadas e proporcionais, considerando os ilícitos e a personalidade dos arguidos demonstrada, as molduras penais abstratas consensualizadas.

            De seguida, e após os arguidos terem declarado prescindir da leitura da acusação, foi por estes dito que desejavam prestar declarações.

Os arguidos declararam pretender confessar integralmente e sem reservas os factos que lhes são imputados. Pelo Sr. Juiz Presidente foi-lhes perguntado se o faziam de livre vontade e fora de qualquer coacção, bem como se propunham fazer uma confissão integral e sem reservas, ao que os mesmos responderam afirmativamente.

Fundamentando a convicção do Tribunal quanto à matéria de facto refere-se que esta se fundamenta no conjunto da prova produzida em audiência, salientando-se que os arguidos prestaram declarações, confessando a prática das condutas de que eram acusados de forma espontânea, integral e sem reservas, descrevendo os actos que cometeram, e as respectivas consequências, de forma clara e credível. Estas confissões revelaram-se sérias e credíveis, merecendo ser validadas pelo Tribunal.

                        O recurso interposto é de um dos arguidos negociantes que considera defraudadas as suas expectativas negociais.

            A síntese delineada tem um significado preciso: os arguidos confessaram na expectativa de um acordo relativo á pena que lhes iria ser aplicada.

         Sucede que tal acordo e qualquer limite da pena que lhes fosse noticiado era ilegal e não permitido pelo Código de Processo Penal.

A confissão operada no caso vertente tem na sua génese a promessa de uma vantagem que não é legalmente admissível.

Dispõe o nº1 do artigo 126 do CPP (Métodos proibidos de prova) que são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas. Por seu turno o número 2 do mesmo normativo refere que são ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:

e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível.

 Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada I Volume 4ª edição, Coimbra, Coimbra Editora 2007 pag 525 seg.) aceitando-se como principio que é no direito processual penal que vão convergir as virtudes, e defeitos, constitucionais é, sem dúvida, no artigo 32 da Constituição da República Portuguesa que ganham corpo os princípios materiais do processo criminal ou de constituição processual criminal.

 Assumindo uma configuração de verdadeiras "garantias de processo criminal" as denominadas "proibições de prova" constituem concretizações processuais de direitos fundamentais - e não meros limites à actividade dos órgãos de polícia criminal e das autoridades judiciárias - como o direito à integridade pessoal, o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar e o direito à liberdade, consagrados nos artigos 25.°, nº1, 26.°, nº1, e 27.°, nº 1, respectivamente, da Constituição. Em última instância, está em causa a tutela de direitos pessoais que se reconduzem à dignidade da pessoa humana - princípio transversal da ordem jurídica com raiz na consciência colectiva.

            Prescreve o nº8 do referido artigo 32 da Constituição da Republica, que são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. Por tal forma se convoca a nulidade qualquer prova que tenha sido obtida em contravenção com aqueles direitos de dignidade constitucional e se comina a impossibilidade de tais elementos serem valorados no processo. Estamos perante o núcleo essencial das proibições de prova que veio a conformar e determinar o legislador ordinário ao consagrar, no artigo 126 do Código de Processo Penal, os denominados métodos proibidos de prova.

Todavia, é nítido o diferente recorte que assumem, no preceito citado, e em termos de tonalidade ético-normativa, a proibição de provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa da integridade física, ou moral, das pessoas em relação àquelas que têm por fundamento a intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. Se, na primeira hipótese, estamos perante uma proibição absoluta, insusceptível de qualquer concessão, pois que está em causa o próprio núcleo dos direitos de personalidade, já no segundo caso é a própria norma -ao referir os casos ressalvados na lei- que admite a compressão de direitos constitucionais, porquanto tal é razoável e admissível, numa lógica de proporcionalidade, e exigido pelo próprio interesse do Estado no funcionamento da justiça penal.

            As proibições de prova dão lugar a provas nulas (artigo 32, nº 8, da Constituição da República).Porém, a nulidade das provas proibidas obedece a um regime próprio, distinto da nulidade insanável e da nulidade sanável. Trata-se de um regime complexo, que distingue dois tipos de proibições de provas consoante atinjam a integridade física e moral da pessoa humana ou a privacidade da pessoa humana.

Refere Paulo Pinto Albuquerque (Comentário ao Código de Processo Penal 4ª Edição, Lisboa Universidade Católica Editora  pag 335 e seg):” a nulidade da prova proibida que atinge o direito à integridade física e moral previsto no artigo 126, nº 1 e 2 do CPP é insanável; a nulidade da prova proibida que atinge os direitos à privacidade previstos no artigo 126, nº 3 é sanável pelo consentimento do titular do direito. A legitimidade para o consentimento depende da titularidade do direito em relação ao qual se verificou a intromissão ilegal. O consentimento pode ser dado ex ante ou ex post facto. Se o titular do direito pode consentir na intromissão na esfera jurídica do seu direito, ele também pode renunciar expressamente à arguição da nulidade ou aceitar expressamente os efeitos do acto, tudo com a consequência da sanação da nulidade da prova proibida. Em síntese, o artigo 126, nº 1 e 2, prevê nulidades absolutas de prova e o nº 3 prevê nulidades relativas de prova.

            Podemos sintetizar, dizendo que a interdição de prova é absoluta no caso do direito à integridade da pessoa e relativa nos restantes casos, devendo ter-se por abusiva a intromissão quando efectuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial (art. 34°-2 e 4), quando desnecessária, desproporcionada ou quando aniquiladora dos próprios direitos (art. 18°-2 e 3). 

            O facto de existir no processo prova que se encontra contaminada pela violação das regras de proibição do nº1 ou nº3 do Código de Processo Penal só tem consequências directas caso a mesma prova seja invocada como fundamento da convicção do juiz sobre os factos que determinam a sua decisão, quer esta seja a decisão final, quer se reconduza a uma decisão interlocutória. Caso a violação se verifique sem que desse facto sejam extraídas quaisquer consequências a nível de fundamentação decisória a constatação da existência de uma violação de regras de proibição de prova não tem efeitos processuais relevantes.

A nulidade resultante da indevida valoração de prova proibida é agora, e após a última reforma processual, fundamento de recurso da decisão ou da sentença em que está inscrita e por tal motivo. Sobre as suas consequências existe divergência:-para Costa Andrade (Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal Coimbra, Almedina, 1996 pag 65 e seg.) importa distinguir os casos em que a valoração proibida do meio de prova constitua o único suporte probatório sobre que assenta a sentença condenatória. Hipótese em que tanto a pertinência do recurso como o sentido da sua decisão - sic absolvição do arguido - se afiguram inescapáveis.  No extremo oposto, mas igualmente lineares, são as situações em que a irrelevância causal da valoração da prova proibida aparece claramente exposta. Então a invocação da proibição de prova, a não determinar a rejeição do recurso (art. 420.° do CPP) não será em qualquer caso, e só por si, bastante para pôr em causa a decisão recorrida. O mesmo deverá ser o tratamento dos casos em que a nulidade devida à proibição de prova deva considerar-se sanada por exclusão da ligação entre o vício e a sentença. Tal sucederá, por exemplo, quando o recurso aos processos hipotéticos de investigação permite seguramente alcançar o mesmo resultado probatório.

Porém, o normal será que a prova proibida concorra, como no caso vertente com uma pluralidade de meios admissíveis. Neste caso, e na perspectiva de Costa Andrade, acentua-se a natureza aleatória da tentativa de identificar e segmentar o peso que o meio de prova, atomisticamente considerado, terá tido na convicção do julgador. Assim, adianta o mesmo Autor (ibidem pag 66) só pela via da revogação da decisão se poderá assegurar a reafirmação contrafáctica das normas violadas e a actualização do respectivo fim de protecção. O que terá de fazer-se, na sua perspectiva, prevenindo-se o perigo de a convicção sobre a responsabilidade criminal do arguido, entretanto lograda - e para a qual contribuiu, a seu modo, o meio proibido de prova - ter já operado uma reinterpretação cognitiva do significado e da valência probatória dos meios sobrantes e legítimos de prova. Conclui, assim, que a renovação da prova motivada pelas proibições de valoração suscita, exigências a que, por princípio, só através do reenvio (arts. 426.°, 431.° e 436.° do CPP) se poderá dar resposta ajustada.

Importa distinguir situações distintas pois que a hipótese de reenvio se dirige aos casos em que não é possível julgar a causa pela existência de um dos vicio do artigo 410. Ora, na hipótese de ser declarada a proibição de prova, não está em causa o vicio que afecta a matéria de facto, a necessitar de um adequado esclarecimento, mas sim o expurgar do vicio que afecta a mesma decisão o que tem, em principio, por consequência a emissão de uma nova sentença pelo tribunal recorrido, mas expurgada do vicio apontado (conf. Paulo Pinto de Albuquerque Comentários pag 329).

Porém, se a prova agora considerada proibida puder ser novamente produzida, mas agora em condições de legalidade, então a solução passa necessariamente pela aplicação das regras do reenvio pois que só através da sua aplicação é possível a reposição da verdade material com a ressalva do respeito dos direitos do arguido.

É exactamente essa a hipótese vertente pelo que nos termos do artigo 426 e seguintes se declara existe uma prova proibida consubstanciada na confissão dos arguidos nos sobreditos termos e se determina o reenvio do processo para novo julgamento que tem por finalidade a supressão de tal vício   

Sem custas.

Santos Cabral (Relator)

Oliveira Mendes

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[1] Conselho Distrital do Porto da O.A., Colecção Virar de Página, 2011.
[2] Obra citada, p. 47.
[3] Obra citada, p. 51.
[4] Obra citada, p. 54.
[5] Obra citada, p. 38.
[6] Disponível em www.pgdlisboa.pt.
[7] Disponível em www.oa.pt.
[8] Disponível em www.pgdlisboa.pt.
[9] Coleção Virar de Página Edição do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados
[10] Comarca de Ponta Delgada e a presente.
[11] “Soluções inovadoras, sustentadas doutrinariamente” “inovação e audácia que se estriba na segurança do pensamento do mais conceituado penalista português”  “trata-se de uma solução reconhecidamente inovadora, nunca anteriormente experimentada e que contraria determinados quadros mentais correntes”.
[12] Memorandum de 18 de Janeiro de 2012
[13] Confrontar Claus Roxin  Derecho Procesal Penal pag 101 e seg

[14] Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias pag 663

[15] DELMAS-MARTY, Mireille (dir.) “Procesos penales de Europa. Alemania, Inglaterra y Gales, Bélgica, Francia e Italia” (Traducción de Pablo Morenilla Alard). Págs 661-695 . Ed. EDIJUS. Zaragoza, 2000.

[16] Artículos Doctrinales: Derecho Procesal Penal Breves reflexiones sobre la justicia penal negociada en el Derecho Español Noticias Jurídicas Fevereiro de 2008

[17] Codice Procedura Penale - articolo 444 Applicazione della pena su richiesta
 1. L'imputato e il pubblico ministero possono chiedere al giudice l'applicazione, nella specie e nella misura indicata, di una sanzione sostitutiva o di una pena pecuniaria, diminuita fino a un terzo, ovvero di una pena detentiva quando questa, tenuto conto delle circostanze e diminuita fino a un terzo, non supera cinque anni soli o congiunti a pena pecuniaria.
(2003)

[18] Intervenção nas II Jornadas de Direito Penal dos Açores sob o lema "Acordos sobre Sentença Penal"
[19] Celeridade e Eficácia-Uma opção politico criminal Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria
[20] Refere a mesma Autora que em França, a Commission Justice Pénale et Droits de I'Homme subordinou estas reformas a uma "revisão profunda da ajuda judiciária em matéria penal". Para além disso, há muitas vezes um décalage cultural entre as partes, que pesa sobre a negociação e que contribui para a desigualdade penal. Nos Estados Unidos, onde a prática da bargainng é generalizada, a população reclusa pertence às camadas mais pobres e às minorias étnicas mais desfavorecidas. A igualdade de armas que é uma condição necessária do contraditório, é um dos maiores obstáculos a esta justiça negociada.
[21] Comentários ao Código de Processo Penal
[22]Introdução ao Direito e ao discurso legitimador pág. 58 e seg
[23] Acordos em Processo Penal –A propósito da obra “Acordos sobre a Sentença em Processo Penal”
[24] Sobre la perenne  necesidad de la codificacion Revista Electronica de Ciencia Criminal 1/99