Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B835
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NEVES RIBEIRO
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
INSOLVÊNCIA
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
CRÉDITO LABORAL
Nº do Documento: SJ200505050008357
Data do Acordão: 05/05/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 1607/03
Data: 07/14/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário : 1. Em caso de execução, singular ou colectiva, o crédito hipotecário ou penhoratício reclamado, deve ser graduado com precedência relativamente aos créditos, também reclamados, dos trabalhadores, provenientes de salários, subsídios de Férias e de Natal, e de indemnizações resultantes da antiguidade na empresa executada.
2. O Fundo de Garantia Salarial assegura aos trabalhadores o pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho, ficando sub-rogado nos privilégios creditórios dos trabalhadores, contra o executado, devedor, segundo o disposto nos artigos 1º e 6º do Decreto-Lei n.º 219/99, de 15 de Julho.
Decisão Texto Integral: Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:
1. Por sentença de 7 de Março de 1998, transitada em julgada, foi declarada a falência da A, com sede no Concelho de Coruche.
A acção foi proposta em 23 de Setembro de 1993.
Vários credores reclamaram os seus créditos sobre a massa falida, particularmente - no que ao caso agora interessa - vários trabalhadores, por salários, subsídios de Férias e de Natal, e por indemnizações de antiguidade; e a "B", S.A., (doravante B), por créditos e juros, garantidos por hipoteca e penhor.

2.A sentença graduou primeiro, todos os créditos dos trabalhadores; e só depois, os da B. (Fls. 3496/3497).
A Relação de Évora, na parte substancial, manteve a graduação, embora com pequenas alterações que poderiam afectar os créditos dos trabalhadores, no que respeita aos créditos por indemnizações de antiguidade (fls. 3930).
Nem a sentença, nem o acórdão recorrido fundamentaram a graduação.
3. Tanto a B, como os trabalhadores pedem revista do acórdão.
A B, por entender que os seus créditos hipotecários e penhoratícios e devem ficar graduados antes dos créditos dos trabalhadores, independentemente de terem natureza salarial ou não.
Os trabalhadores (em diferentes grupos), por entenderem que os seus créditos são prioritários sobre os da B - sejam de salários, de subsídios (Férias e Natal), sejam de indemnizações por antiguidade na empresa.
4. Em palavras simples, a questão é esta: se os créditos da B, relacionados como verba n.º 212 (hipoteca sobre três automóveis, para garantia de 25.000.000$00; e doze penhores sobre certas máquinas e mercadorias, para garantia de 2.056.000.000$00) ficam à frente, ou atrás, dos créditos por salários e indemnizações dos trabalhadores.
É o que vamos tentar saber, de forma abreviada, nos números seguintes:

5. Os créditos dos trabalhadores gozam de privilégio geral, mobiliário e imobiliário, sobre os bens apreendidos para a massa falida, conforme dispõem as Leis n.ºs 17/86, de 14 de Junho, e 96/01, de 20 de Agosto.
O problema que vem colocado ao Tribunal não é novo. E tem sido um problema largamente debatido, na jurisprudência (mesmo constitucional) e na doutrina.
São conhecidas as posições sobre a matéria, posições e fundamentos que os recorrentes, cada a seu modo, também identificam.
A questão, em outros termos, reverte-se à extensão da eficácia dos privilégios concedidos por lei, em benefício dos trabalhadores, face ao direito de terceiros com garantia real sobre os bens apreendidos para a execução colectiva, sobre os quais aqueles privilégios possam também incidir, por força da lei que os instituiu.

6. A Constituição da República limita-se a dizer que «os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei». (Artigo 59 n. 3).
Ora, as leis atributivas dos privilégios não resolvem o conflito de prioridades nas ordenações dos créditos concorrentes. Nem o Código Civil (artigos 749º, 750º e 751º, entre outros) dá ao conflito resposta inequívoca, como tem sido reconhecido pela doutrina, e também pela jurisprudência, quer do Tribunal Constitucional, quer deste Supremo Tribunal de Justiça. (1)
Postos assim os dados da lacuna, diremos que a solução que se afigura mais equilibrada, é a que se sustenta no seguinte (2) :
É fundamental que se estabeleça a diferença entre privilégios gerais e privilégios especiais, à semelhança do Código Civil italiano (artigo 2746), que, entre outros, foi fonte do nosso, no aspecto em apreço.
E não tanto que se insista na diferença, entre privilégios mobiliários e privilégios imobiliários.
O que vale por dizer que, a lacuna da lei deve preencher-se, conforme ao artigo 10º do Código Civil, com a formulação de uma disposição coincidente com a do artigo 749º do Código Civil, que rejeita a possibilidade de privilégios imobiliários gerais.
Estes são figuras desconhecidas do nosso direito civil.
Os privilégios imobiliários são sempre especiais, isto é, recaem sobre bens certos e determinados do devedor ou de terceiros, afectos à garantia da divida. (Artigos 751º, 669º e 717º, para exemplificar).
Com o que se quer dizer que, o artigo 12º da Lei n.º 17/86, (créditos de salários), e o artigo 4º, 1, alínea b), da Lei n.º 96/01 (créditos relativos a indemnização por antiguidade na empresa), são referenciados a privilégios gerais, não constituindo verdadeiros direitos reais de garantia sobre coisa certa e determinada, como é da natureza do direito real de garantia (de gozo, de aquisição ou de preferência).
Ora, sendo gerais (não circunscritos ou delimitados, para não dizermos indeterminados), cedem perante os direitos reais de garantia de terceiros - estes sim - circunscritos, delimitados, individualizados sobre bens concretos. (3)
Não são verdadeiros direitos reais, no sentido tradicional e técnico da definição. Apenas existe algo de parecido com a eficácia própria dos direitos reais, enquanto o titular do privilégio geral possa gozar de preferência na execução - singular ou colectiva - relativamente a credores comuns do devedor, desde que os bens onerados pertençam ao património deste, ao tempo da penhora ou da apreensão para a massa falida. (4)
7. Não fazia sentido nenhum que, o credor estivesse garantido pelo seu crédito anterior, contando legitimamente com a correspondente segurança (porventura só com base nela financiou), vendo-se, depois, confrontado com o reconhecimento legal de um privilégio, sem limites temporais e oculto (5) que lesasse de surpresa, e porventura irremediavelmente, a protecção da sua confiança ou da sua legítima expectativa naquela segurança pressuposta. Parece racional que, entre a obscuridade de um privilégio, e a clareza de outro, ambos sobre a mesma coisa, a melhor interpretação do Direito, vá pela certeza da transparência.
Se assim não fosse, a solução poderia envolver, segundo doutrina e jurisprudência mais atentas, ofensa ao princípio ínsito ao Estado de Direito, previsto pelo artigo 2º da Constituição da República. (6)
A ser assim, e num horizonte de análise mais amplo - observemos - ninguém financiaria o crescimento da economia, com grave prejuízo para a iniciativa privada que a Constituição também estimula (artigo 61º-1e 2).
É certo que os créditos dos trabalhadores, principalmente os resultantes do seu trabalho (os salários, os subsídios complementares...) são fonte de riqueza, enquanto remuneração do seu trabalho, como factor de produção e forma originária de aquisição de propriedade; (7) e factor ainda natural, de crescimento e desenvolvimento de qualquer Sociedade.
Daí que devam beneficiar, por razão de natural Justiça Social, da máxima dignidade de protecção.
Esta afirmação leva à justificação do reconhecimento de mecanismos legais de garantia para compensação de créditos laborais, tendo em consideração o equilíbrio de ponderação o dito horizonte, sem afectação do normal funcionamento das garantias reais das obrigações e das causas legítimas de preferência, estabelecidas pelo artigo 604º do Código Civil, a favor dos credores especialmente garantidos.
Mecanismos esses que se revêem no Fundo de Garantia Salarial, criado pelo Decreto-Lei n.º 219/99, de 15 de Junho, o qual assegura aos trabalhadores o pagamento dos créditos emergentes de contratos de trabalho, ficando sub-rogado nos privilégios creditórios dos trabalhadores (artigos 1º e 6º).
Actualmente, mais cauteloso e redutor, mas menos impreciso, previne o artigo 377º, 1, alínea b) do Código de Trabalho, que o privilégio imobiliário especial incide sobre os bens imóveis do empregador, nos quais o trabalhador preste a sua actividade.
O que quer dizer que, o legislador foi agora mais cauteloso predefinindo a incidência especifica do privilégio imobiliário especial.
Mesmo assim, uma solução que não estará isenta de dificuldades em muitos casos de aplicação concreta, relativa a locais de trabalho.
Mas sempre se encaminhou por uma solução menos imprecisa - dizíamos - do que as Leis 17 e 96, acima referidas!
8. Termos em que, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, se revoga o acórdão recorrido, devendo os créditos reclamados pela B, garantidos por hipoteca e por penhor, serem graduados com precedência em relação aos créditos dos demais recorrentes, até à confluência das importâncias que garantem.
Custas pelos recorrentes, à excepção da B.

Lisboa, 5 de Maio de 2005.
Neves Ribeiro.
Araújo Barros.
Oliveira Barros.
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(1) As fontes de informação mais completa que encontrámos, quer de doutrina, quer de jurisprudência, encontram-se no acórdão do S.T. J. de 12 de Junho de 2003, revista n.º1550/03 (Relator Santos Bernardino).
(2) E que subscrevemos no acórdão de 27 de Junho, indicado na nota seguinte.
(3) Foi também este caminho seguido pelo acórdão de 27 de Junho de 2002, publicado na Col. de Jurisprudência, Ano X, Tomo II -2002 - páginas 146/147. No mesmo sentido o recente acórdão desta secção, de 13 de Janeiro de 2005, proferida na revista n.º 4398/04, Conselheiro Salvador da Costa.
É também o que, entre outros, sustenta o Professor Menezes Cordeiro, Manual do Direito de Trabalho páginas 741.
(4) Professor Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9º edição, páginas 908.
(5) A este propósito e de forma insuspeita, escreveu o Professor Antunes Varela, relativamente à proibição estabelecida pelo artigo 8º do diploma que aprova o Código Civil «que é preciso neste ponto apontar a verdadeira raiz do mal e ter coragem de arrancá-lo, como nefasto escalracho do solo da nossa legislação» - Revista de Leg. e Jurisp. Ano 123º, págs. 35.
(6) A questão já foi levantada em 1987/1988, pelo aqui relator, na primeira edição de «O Estado nos Tribunais (intervenção cível do MºPª, em 1ª instância», págs. 111/113, a propósito dos, então, privilégios das Caixas de Previdência, DL n.º103/80.
(7) Segundo o artigo 567º e segs. do Código Civil anterior, que o Professor Pires de Lima tratou nas suas Noções Fundamentais de Direito Civil, 2º volume, 4ª edição, págs. 55/56.