Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05S2138
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES CADILHA
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
DESPEDIMENTO NULO
ABUSO DE DIREITO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Nº do Documento: SJ200511160021384
Data do Acordão: 11/16/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7364/04
Data: 02/16/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - É de qualificar como contrato de trabalho o contrato celebrado entre um médico e uma entidade seguradora em vista à prestação de actos cirúrgicos e de acompanhamento clínico de sinistrados de acidentes de trabalho pelos quais essa entidade é responsável, quando se constata que o clínico exercia a sua actividade nas instalações da ré ou em local por esta disponibilizado, praticava um horário de trabalho pré-definido, auferia uma retribuição ainda que em parte variável, encontrava-se integrado numa estrutura hierárquica e obedecia às ordens e instruções fornecidas pela respectiva chefia, e estava ainda sujeito a um controlo de pontualidade e assiduidade, bem como a um regime de férias anuais que conferia o direito ao pagamento da remuneração certa.
II - Neste contexto, assume um diminuto relevo o nomen juris dado pelas partes ao contrato e o não exercício de actividade em exclusividade, bem como certos desvios detectados quanto ao regime retributivo, como sejam o modo de quitação, a não inclusão do trabalhador nas folhas de remunerações enviadas para a segurança social e o não pagamento de subsídios de férias ou de Natal;
III - Não incorre em abuso de direito o trabalhador que só após a denúncia do contrato operada pela entidade empregadora vem discutir judicialmente a natureza jurídica da relação contratual em causa, para efeito de impugnar a decisão unilateral de extinção do contrato e reclamar os correspondentes créditos laborais;
IV - A reintegração do trabalhador resultante do reconhecimento judicial da ilicitude do despedimento constitui uma obrigação de prestação de facto infungível, pelo que é admissível a condenação da entidade patronal em sanção pecuniária compulsória, nos termos previstos no artigo 829º-A do Código Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1. Relatório.

"A", com os sinais dos autos, intentou a presente acção emergente de contrato de trabalho contra B - Companhia de Seguros, S. A., com sede em Lisboa, pedindo que se declare que o vínculo estabelecido com ré, a partir de 15 de Junho de 1993, era de contrato individual de trabalho e que a denúncia por esta efectuada, com efeitos a partir de 31 de Dezembro de 2000, corresponde a um despedimento ilícito, e que a ré seja condenada, por via disso, na reintegração no seu posto de trabalho, no pagamento de retribuições em dívida e de diferenças salariais correspondentes a férias, subsídios de férias e de Natal, já vencidos e não pagos antes do despedimento.

O autor pediu ainda a condenação da ré numa sanção pecuniária compulsória de 100.000$00 por cada dia de atraso no cumprimento da decisão que venha a reconhecer o direito à reintegração no posto de trabalho.

Em sentença de primeira instância, a acção foi julgada procedente, reconhecendo-se que o vínculo existente entre as partes é caracterizável como contrato de trabalho e que o despedimento operado pela ré foi ilícito e, consequentemente, condenando-se a ré a readmitir o autor ao seu serviço e a pagar-lhe a quantia de 162.354,01 €, a título de retribuições em dívida, acrescida de juros de mora à taxa legal. A sentença condenou ainda a ré no pagamento da sanção pecuniária compulsória, por cada dia de incumprimento da decisão de reintegração, como vinha peticionado, mas cujo valor foi fixado em 200€.

A ré interpôs recurso de apelação em que, para além das questões de qualificação do contrato e da aplicação da sanção compulsória, invocou também que o autor, ao propor a acção, agiu com abuso de direito.

O Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente o recurso, confirmando inteiramente o julgado, e é contra essa decisão que se insurge agora a ré, mediante recurso de revista, formulando, na sua alegação de recurso, as seguintes conclusões:

1ª O douto acórdão ora em recurso, na busca de indícios que lhe permitissem qualificar a relação contratual que vigorou entre as partes, sobrevalorizou alguns aspectos da prestação do A., não dando a devida relevância a outros que igualmente mereciam ponderação, como sejam os preliminares do contrato; a designação expressa do documento que titula o contrato como sendo de prestação de serviços; a independência económica do A. em relação à Ré; a actividade do A. para terceiros, fora da prestação a que se vinculou à Ré; a execução consensual do contrato; a emissão de recibos verdes; o gozo de férias remuneradas só pela parte fixa da retribuição, sem direito a subsídio nem retribuição pelas cirurgias; a natureza meramente acessória e instrumental do local da prestação e dos meios e equipamentos utilizados pelo A.; a responsabilização, em exclusivo, do A. pelo tratamento e acompanhamento dos sinistrados que tinha seu cargo, entre outros, são tudo elementos de que se extrai a natureza não subordinada do contrato.

2ª Por outro lado, não teve em conta que a utilização pelo A. de infra-estruturas disponibilizadas pela Ré, como sejam posto clínico, bloco operatório do Hospital da Ordem Terceira, impressos e instrumentos, bem como o pessoal de apoio, paramédico e de escritório não resultou de uma imposição unilateral da Ré mas sim das condições livremente ajustadas com o A., em todo o caso meramente acessórias e instrumentais da prestação do A.
3ª Bem como que as instruções ou ordens de serviço que lhe eram conferidas referiam-se apenas a questões burocráticas e ao modo de funcionamento interno dos serviços, ou ainda com critérios de apreciação técnico-científica da observação e tratamento dos sinistrados, com vista à sua uniformização e sem prejuízo da autonomia técnica própria do desempenho profissional do A. nada tendo a ver com a disciplina ou a forma da prestação de trabalho.
4ª Não se encontrando o A. sujeito a uma estrutura hierarquizada, salvo na estrita medida dos procedimentos burocráticos a observar, tendo absoluta autonomia no desempenho da sua actividade médica, tudo circunstâncias que bem demonstram que a prestação a estava vinculado não era a sua disponibilidade para a Ré em certas horas de certos dias, mas sim a observação, tratamento e cura clínica dos sinistrados que lhe eram indicados pela Ré, sendo urna prestação de resultado, típica do contrato de prestação de serviços.

5ª Por isso, o douto acórdão julgou o contrato dos autos como sendo subsumível nos artigos 1152° do Código Civil e l° da LCT, quando se integra na disciplina do artigo 1154° do Código Civil, pelo que, tratando-se a relação contratual entre A. e Ré de um contrato de prestação de serviços e não de um contrato de trabalho, não lhe é aplicável a disciplina do Decreto-Lei nº. 64--A/89, nomeadamente a dos seus artigos 3º, n.º 1, 9°, 10°, 12° e 13°, pelo que podia a Ré proceder à sua livre denúncia, sem que seja devida ao A. a reintegração ou indemnização, pelo que deverá ser revogada.
6ª Acresce que indiciando os autos que nos preliminares e durante a execução do contrato o A. sempre encarou o seu vinculo à R. como de prestação de serviços, não pode agora ver atendida a sua pretensão por constituir um manifesto abuso de direito, na modalidade do «venire contra factum proprium», que o artigo 334º do Código Civil não permite.
7ª Em todo o caso, a reintegração do A. é um mero efeito do trânsito em julgado da decisão que, nesse sentido, possa vir a ser proferida, ficando as partes automaticamente -vinculadas a todos os deveres e direitos emanentes da relação contratual, como seja, desde logo, o pagamento das retribuições que, no caso, são na ordem dos € 5.500,00 mensais, não havendo lugar á aplicação de sanção pecuniária compulsória ou, se assim se não entender, deverá esta ser reduzida para valores mais consentâneos com a equidade, alvitrando-se quantia não superior a € 50,00, com o que se fará Justiça!
Contra-alegou o autor, sustentando o bem fundado da decisão recorrida, e neste Supremo Tribunal de Justiça, a Exma Procuradora-Geral adjunta emitiu parecer no sentido de ser negada a revista, por considerar que a factualidade dada como assente permite qualificar a relação existente entre as partes como contrato de trabalho subordinado, e que o autor, ao exigir judicialmente os direitos que correspondem a essa qualificação jurídica, não incorre em abuso de direito. Por outro lado, a mesma magistrada entende que se encontram preenchidos os requisitos previstos no n.º 1 do artigo 829-A do Código Civil para efeito da condenação da ré na sanção pecuniária compulsória, pelo que, também nessa parte, considera que o recurso não merece provimento.

Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Matéria de facto.

As instâncias deram como assente a seguinte factualidade:

1. O A. foi contratado, em 15.06.93, pelo Grupo de Seguradoras constituído pela Companhia C, S.A., D Companhia de Seguros, S.A., E, S,A. e E Seguradora, S.A.
2. Da fusão das Seguradoras referidas em 1., ocorrida em 1995, resultou a ... - Companhia de Seguros, S.A., a qual alterou a sua denominação, em 1997, para B - Companhia de Seguros, S.A., ora R.
3. A R. é uma sociedade comercial que se dedica à Indústria de Seguros.
4. O A. é médico e exerce a sua actividade como médico-cirurgião da especialidade de Ortopedia.
5. A contratação do A. pela R. visou a prestação da actividade clínica do A. no Posto Clínico da R., sito na Av. da República, n° 50-C, em Lisboa, para tratamento de sinistrados por acidentes de que a R. é responsável e ainda a prestação pelo A. da actividade cirúrgica a que adiante se referirá.
6. A R. formalizou a contratação do A., em 15.06.93, através de um escrito denominado de "Contrato de Prestação de Serviço", de que foi junto cópia a fls. 28.
7. Em execução do contrato, cumpria ao A. prestar, nas instalações de que a R. dispunha para o efeito, a actividade de médico-cirurgião da especialidade de Ortopedia para tratamento dos sinistrados da R.
8. Competia ao A. observar o sinistrado, mandar efectuar os convenientes exames e análises, fazer diagnósticos, prescrever o tratamento adequado, certificar da necessidade e possibilidade de proceder à intervenção cirúrgica, observar periodicamente o sinistrado, verificando se o processo de cura evoluía com normalidade, manter actualizada a ficha do sinistrado nela indicando os tratamentos prescritos, os resultados obtidos e eventualmente as operações realizadas. Para além disso, o A. elaborava relatórios médicos de situações clínicas dos sinistrados e determinava e registava, relativamente a cada sinistrado, o tipo de incapacidade temporária e a prevista incapacidade definitiva.
9. O A. era responsável pelos sinistrados que lhe eram distribuídos pelos competentes Serviços da R., cumprindo-lhe assegurar o acompanhamento de cada sinistrado desde a primeira observação até à alta.
10. No Posto Clínico de Lisboa, o A. e demais médicos ortopedistas da R. trabalhavam nos horários constantes do mapa junto a fls. 157, cujo teor se dá por devidamente reproduzido para todos os efeitos legais, em termos de cobrir, de segunda-feira a sexta-feira, o período de funcionamento do mesmo Posto, que era das 08H45 às 12H45 e das 13H45 às 16H45, sendo sábado e domingo dias de descanso.
11. Desde 15.06.93 até 19.09.99, o A. estava obrigado a cumprir, no Posto Clínico da R. em Lisboa, 7 horas de trabalho por semana, distribuídas pelo seguinte horário: duas tardes por semana, das 13H45 às 16H45, e uma tarde por semana, das 13H45 às 14H45.
12. Desde 20.09.99 até 31.12.2000, a prestação do trabalho semanal do A., no dito Posto Clínico, aumentou de 7 horas para 10 horas por semana, a pedido da R., distribuídas pelo seguinte horário: duas tardes por semana, das 13H45 às 16H45, e uma manhã, das 8H45 às 12H45.
13. Fora das horas de trabalho semanais indicadas nos n.ºs anteriores, o A. desempenhava a sua actividade profissional noutros locais.
14. Cumpria ao A. operar e acompanhar os sinistrados da R. internados no Hospital da Ordem Terceira que lhe estivessem distribuídos.
15. A R., no Hospital da Ordem Terceira, tinha o direito de utilização do Bloco Operatório em dias certos da semana por ela contratados com o mesmo Hospital.
16. Por força desse acordo, a R. tinha também, no aludido Hospital, o direito de utilização de camas, de equipamentos (material cirúrgico, aparelhos, objectos diversos e demais instrumentos de trabalho) que nas operações aos sinistrados da R. o A. utilizava e do respectivo pessoal para-médico, de enfermagem e auxiliar.
17. Ao longo da execução do contrato, A. e R. acordaram num período certo, em cada semana, para, no Bloco Operatório que a R. tinha ao seu dispor no mencionado Hospital, o A. operar os sinistrados da R.
18. Esse período foi habitualmente a tarde de 5.ª feira, tendo de recorrer a mais uma tarde noutro dia da semana, quando o número de doentes ou a premência do seu tratamento assim o exigia.
19. A R. assegurava ao A. o apoio do pessoal para-médico, de enfermagem, auxiliar e administrativo, tanto no Posto Clínico de Lisboa, situado na Av. da República, n.º 50-C, como no Hospital da Ordem Terceira, situado na R. Serpa Pinto, n.º 7, em Lisboa.
20. A parte certa da contrapartida mensal do A. foi estabelecida, em 15.06.93, em 168.000$00, tendo sido posteriormente aumentada, em 01.01.95, para 176.400$00 e, em 01.01.96, para 184.340$00.
21. Nos termos do ajuste, o A. recebia ainda da R. a parte variável da contrapartida mensal, para cujo cômputo estavam estabelecidas as seguintes regras:
- Nas cirurgias artroscópicas do joelho a quaisquer sinistrados da R., fossem ou não de acidente de trabalho, a R. pagava o trabalho do A., até Julho de 2000, quando actuasse como cirurgião, como segue:
a) Na cirurgia artroscópica diagnóstica - 45.000$00;
b) Na cirurgia artroscópica terapêutica - 70.000$00;
- Nas operações a sinistrados de acidentes de trabalho, quando o A. actuava como ajudante de outro cirurgião, a R. pagava o trabalho do A. a 600$00 o "K" (sendo que o "K" é uma unidade de conta estabelecida em tabela da Ordem dos Médicos);

- Nas operações a sinistrados por acidentes não considerados como de trabalho, a prestação do A., actuando como cirurgião, era sempre remunerada, por cada cirurgia, a 600$00 o "K".
22. A partir de 1 de Setembro de 1999, o A. aumentou, a pedido da R. , a carga horária semanal de 7 horas para 10 horas, ao mesmo tempo que a R. impôs ao A. a baixa da sua remuneração horária para metade, passando a pagar-Ihe, como parte certa da retribuição mensal, apenas 121.560$00 (40h x 3.039$00/h).
23. Ao mesmo tempo, a R. passou a pagar a 600$00 o "K", a partir de 1 de Setembro de 1999, em todas as cirurgias (incluindo aos acidentados de trabalho), vindo este regime a ser aplicado às cirurgias artroscópicas a partir de Agosto de 2000.
24. No Posto Clínico da R., o A. tinha como superior hierárquico directo, o Médico-Chefe dos Serviços Clínicos do Posto Médico da R. em Lisboa, acima do qual se encontrava o Director Clínico, domiciliado no Porto.
25. Dessa chefia, o A. recebia ordens e instruções sobre o modo como o serviço devia ser cumprido.
26. A R. empregava no aludido Posto Médico de Lisboa, além do Médico-Chefe, 11 Médicos, entre os quais se contava o A., dois Fisioterapeutas, dois Técnicos de Radiologia, uma Enfermeira-Chefe, duas Enfermeiras, duas Auxiliares e pessoal de apoio administrativo.
27. O A. dava indicações técnicas de tratamento ao pessoal para-médico e de enfermagem que trabalhava na R.
28. O A. teve sempre um gabinete próprio, com um armário, no dito Posto Médico da R., o qual era utilizado por outros médicos, fora do horário do A.
29. A R. fornecia-lhe uma bata (com um crachá da R.), que o A. tinha de vestir enquanto se encontrasse a prestar a sua actividade no Posto Clínico da R.
30. As chefias hierárquicas da R. emitiam ordens de serviço e instruções dirigidas a todos os médicos, incluindo o A., sobre os métodos de procedimento burocrático e o modo de funcionamento dos serviços em geral, e da Estrutura Clínica da R., em especial.
31. As exigências feitas pela R. quanto ao modo como o A. devia exercer a sua actividade médico-cirúrgica aos sinistrados daquela eram idênticas às impostas aos outros médicos que também exerciam a sua actividade no posto médico da R. em Lisboa.
32. Em caso de atraso ou de falta ao serviço, cumpria ao A. dar uma justificação do atraso ou da falta ao Médico-Chefe.
33. As faltas do A. e restantes médicos eram depois comunicadas ao responsável pela gestão administrativa do Posto Médico da R. de Lisboa, Sr. F, que decidia se as mesmas eram ou não descontadas na respectiva retribuição.
34. Nenhuma intervenção cirúrgica a sinistrados distribuídos ao A. podia ser por ele realizada, sem ser previamente determinada ou autorizada, por escrito, pela hierarquia da R..
35. Ao A. só era permitido submeter à apreciação superior o acto cirúrgico por ele preconizado relativamente a sinistrado da R. .
36. Só o Médico-Chefe tinha competência para autorizar a realização do acto cirúrgico proposto pelo A..
37. Pela execução do trabalho contratado, a R. pagou ao A., ao longo do contrato, as seguintes retribuições globais anuais:
- em 1993 (de 15/06/93 a 31/12/93), 1.739.720$00 (parte certa: 980.000$00 + parte variável: 759.720$00);
- em 1994, 3.987.460$00 (parte certa: 2.016.000$00 + parte variável: 1.971.460$00);
- em 1995, 3.912.800$00 (parte certa: 2.116.800$00 + parte variável: 1.796.000$00);
- em 1996, 4.026.100$00 (parte certa: 2.212.080$00 + parte variável: 1.814.020$00 );
- em 1997, 4.966.080$00 (parte certa: 2.212.080$00 + parte variável: 2.754.000$00);
- em 1998, 7.576.010$00 (parte certa: 2.107.240$00 + parte variável: 5.468.770$00);
- em 1999, 4.762.900$00 (parte certa: 1.438.570$00 + parte variável: 3.324.330$00);
em 2000, 11.932.880$00 (parte certa: 1.458.720$00 + parte variável: 10.474.160$00).
38. Os montantes antes referidos a título de "parte certa" destinaram-se a remunerar o trabalho prestado pelo A. no Posto Médico da R. nos períodos antes referidos sob os n.ºs 10. a 12. e 22., bem como as operações que o A. realizou, até 31.08.99, no Hospital da Ordem Terceira a sinistrados de acidente de trabalho.
39. Os montantes referidos em 36. a título de "parte variável" destinaram-se a remunerar, além das artroscopias aos acidentados de trabalho realizadas no Hospital da Ordem Terceira, o trabalho dos actos cirúrgicos regularmente realizados pelo A. no mesmo Hospital aos demais sinistrados da R. (não acidentados de trabalho) e, a partir de 01.09.99, em todas as cirurgias (incluindo aos acidentados de trabalho).
40. Por imposição da R., o A., até Outubro de 1994, entregou-lhe regularmente os chamados "recibos verdes", contra os pagamentos que a R. ia efectuando tanto da parte certa como da parte variável da retribuição do A..
41. A partir de Novembro de 1994, a R. passou a pagar ao A. as quantias antes mencionadas a título de "parte certa" através de transferência bancária, emitindo a R. um documento que denominava de "recibo de remuneração", como o que foi junto por cópia a fls. 29, e continuando a exigir que o A. lhe entregasse "recibos verdes" contra o pagamento das quantias referidas a título de "parte variável", respeitante a operações cirúrgicas.
42. Para além dos médicos que emitiam "recibos verdes", existiam outros que eram pagos através de folhas de férias.
43. Foi acordado que o A. gozaria 22 dias úteis de férias anuais que, logo no 1° trimestre de cada ano civil, eram inseridas no mapa da programação geral de férias dos médicos dos Serviços Clínicos do Posto Clínico da R. em Lisboa.
44. Durante o período do gozo de férias anuais, a R. só pagava ao A. o valor correspondente à parte certa da sua retribuição mensal.
45. O A. e os demais médicos da R. tinham que alterar as datas em que, de acordo com a sua conveniência pessoal, pretendiam gozar férias, se essas datas não conviessem à R..
46. A R. nunca pagou ao A. qualquer importância a título de subsídio de férias ou de Natal.
47. A R. não incluía o A. nas folhas de remunerações para a Segurança Social.
48. A R. denunciou o contrato do A. por carta de 30.11.2000, com efeitos a partir de 31 de Dezembro de 2000, de que foi junta cópia a fls. 30.
49. No âmbito da exploração e ramo de seguros de acidentes de trabalho, a Ré está obrigada a prestar cuidados médicos e cirúrgicos a sinistrados.
50. Para o tratamento e acompanhamento dos sinistrados até à alta, a Ré dispunha de postos médicos, no Porto e em Lisboa.
51. Os postos clínicos funcionavam em articulação com a secção administrativa de acidentes de trabalho da Ré.
52. Para além do acompanhamento no posto médico, através de consultas, tratamentos, prescrições, etc., alguns sinistrados necessitavam de intervenções cirúrgicas e tratamento, às vezes, mediante internamento hospitalar.
53. Era o A. quem determinava o período de internamento dos sinistrados sujeitos a intervenções cirúrgicas, embora sujeito a controlo por parte do médico chefe;
54. ... determinava as datas de algumas consultas dos sinistrados, nomeadamente as segundas consultas;
55. ... e determinava algumas altas, sendo que, relativamente a outras, o fazia sujeito às instruções da R.
56. A Ré mantinha com o Hospital da Ordem Terceira um acordo para a utilização das instalações, equipamento cirúrgico e outros meios, como bloco operatório, instrumentistas, camas, etc.
57. Cabia ao A. marcar a data e hora de algumas intervenções cirúrgicas a que procedia no Hospital da Ordem Terceira, limitando-se o mesmo, em regra, a sugerir tais datas.
58. Normalmente, o A. informava o Hospital, ou a enfermeira-chefe do posto clínico da R., do que iria necessitar para a realização das cirurgias.
59. O A. permanecia nas instalações do Hospital da Ordem Terceira durante o tempo por si utilizado na operação dos sinistrados e, para além disso, durante o tempo necessário para proceder à preparação dos sinistrados para as cirurgias e observar os sinistrados internados.
60. O Hospital da Ordem Terceira facturava à R. o custo pela utilização de meios humanos e de equipamento necessários à realização de cirurgias ali efectuadas aos sinistrados da R., designadamente pelo A.
61. No posto médico da Ré de Lisboa, o pessoal paramédico, de enfermagem, auxiliar e administrativo encontrava-se subordinado ao Médico-Chefe, tal como o A. e os restantes médicos que exerciam a sua actividade profissional naquele Posto Médico.
62. O pessoal de saúde limitava-se a executar as prescrições clínicas que o A. determinasse e o pessoal administrativo geria os processos de sinistro, instruindo-os com elementos elaborados pelo A. ou facultando-lhe os elementos históricos, quando este deles necessitasse.
63. Eram os serviços administrativos que distribuíam ao A. os processos dos sinistrados que lhe ficavam afectos.
64. Os médicos que a R. reconhecia como pertencentes ao quadro da empresa beneficiavam de regalias contratuais dos trabalhadores de seguros.
65. A retribuição do A. referente às intervenções cirúrgicas era imputada aos respectivos processos de sinistro.

3. Fundamentação de direito.

A questão central que integra o objecto do presente recurso cinge-se à determinação da natureza do vínculo jurídico que ligava o autor e a ré B, relativamente à actividade de médico-cirurgião que aquele desempenhava no âmbito da prestação de cuidados médicos que a ré assegurava a sinistrados de acidentes de trabalho pelos quais era responsável, sendo que a caracterização como contrato de trabalho subordinado ou de prestação de serviços é determinante para avaliar a legalidade da denúncia efectuada pela a ré, com efeitos a partir de 31 de Dezembro de 2000.

Esta, como as questões de abuso de direito e sanção pecuniária compulsória que são também suscitadas no recurso, foram ainda recentemente analisadas por este Supremo Tribunal numa situação que igualmente respeitava à actividade prestada por um médico-cirurgião a favor da B, em condições em tudo similares à dos presentes autos, e em que veio a concluir-se com toda a evidência pela improcedência do recurso (acórdão de 21 de Setembro de 2005, revista n.º 1702/05).

E não se vê razão agora para alterar o assim decidido, em consonância, aliás, com o entendimento já unanimemente expresso pelas instâncias.

O que avulta no enunciado definitório do contrato de prestação de serviços, que consta do artigo 1154º do Código Civil, é a referência do objecto do contrato ao resultado do trabalho, por contraposição à actividade subordinada que caracteriza o contrato de trabalho e que no essencial se traduz na subordinação do trabalhador à autoridade e direcção do empregador - artigos 1º da LCT e 10º do Código do Trabalho (por todos, Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 11ª edição, Coimbra, pág. 137).

Porém, como vem sendo repetidamente afirmado, a extrema variabilidade das situações concretas - em certa medida resultante do carácter informal do contrato de trabalho - dificulta muitas vezes a subsunção dos factos na noção de trabalho subordinado, implicando a necessidade de, frequentemente, se recorrer a métodos aproximativos, baseados na interpretação de indícios. A integração numa ou outra das categorias contratuais poderá assim resultar de um mero juízo de aproximação ou semelhança, que terá de ser formulado no contexto geral e em face de todos os elementos de informação disponíveis, a partir de uma maior ou menor correspondência com o conceito-tipo (entre muitos, os acórdãos 22 de Fevereiro e de 26 de Setembro de 2001, nos Processos n.ºs 3109/00 e 1809/01).

No caso dos autos, o juízo de globalidade inclina-se para a qualificação do contrato em causa como contrato de trabalho.

Nesse sentido aponta a circunstância de o autor exercer a sua actividade nas instalações da ré ou em local por esta disponibilizado (n.ºs 7 e 14 a 18 da matéria de facto), praticar um horário de trabalho, correspondente a 7 horas por semana, depois alterado para 10 horas por semana, distribuídas por tempos de serviço previamente fixados (n.ºs 10 a 12), ter direito a uma retribuição certa, complementada por uma parte variável, mas fixada segundo critérios pré-definidos (n.ºs 20 a 23), encontrar-se integrado numa estrutura hierárquica e sujeito às ordens e instruções fornecidas pela respectiva chefia (n.ºs 24, 25, 30, e 34 a 36 ), e estar ainda sujeito a um controlo de pontualidade e assiduidade, que implicava que tivesse de justificar as suas faltas ou atrasos (n.ºs 32 e 33), bem como a um regime de férias anuais que conferia o direito ao pagamento da remuneração certa (n.º 43 e 44).

Todos estes elementos, reportando-se ao momento organizatório do trabalho, como também aos aspectos retributivos, apontam com clareza para o carácter de subordinação jurídica da relação laboral.

Neste contexto, assume um diminuto relevo o nomen juris dado pelas partes ao contrato e o não exercício de actividade em exclusividade, bem como certos desvios detectados quanto ao regime retributivo, como sejam o modo de quitação (a emissão de recibos verdes sobre todos os componentes da retribuição e, mais tarde, apenas sobre a parte variável) e a circunstância de o autor não ter sido incluído nas folhas de remunerações enviadas para a segurança social e não ter auferido os subsídios de férias ou de Natal (n.ºs 7, 13, 40, 41, 46 e 47).

Como se sabe o nomen juris não é decisivo na qualificação da relação jurídica, que deverá antes ser estabelecida em função de elementos materiais de diferenciação que se encontrem patentes na execução do contrato, sendo que esse, como outros elementos formais da relação de trabalho subordinado (como sucede em matéria de regime fiscal, retributivo ou de segurança social), são muitas vezes definidos por meras razões de conveniência e não representam um suporte declarativo inequívoco no sentido da escolha de um certo tipo contratual.

Por outro lado, nada obsta que um trabalhador se encontre sujeito a um regime de trabalho a tempo parcial e, complementarmente, preste a sua actividade profissional em benefício de outras entidades, sendo de resto essa uma situação comum no domínio da prestação de cuidados médicos. Podendo dizer-se, nesta perspectiva, que o autor não está numa situação de absoluta dependência económica da ré, isso não é, contudo, relevante para a caracterização da relação contratual, visto que o que interessa é que subsistam certos elementos característicos (incluindo os aspectos retributivos) que permitam integrar a situação concreta num tipo de contrato de trabalho subordinado.

4. Tudo o que vem de dizer-se também explica que não possa considerar-se verificado o abuso de direito.

Se nem sempre é fácil a distinção entre um contrato de trabalho e um contrato de prestação de serviços e se esta terá de ser obtida, por vezes, através de meros juízos de aproximação, e se também é frequente a discrepância entre a vontade declarada e a vontade real das partes quanto à natureza da relação jurídica que se pretende instituir, bem se compreende que se não possa imputar ao autor o exercício ilegítimo de um direito apenas por ter pretendido, por via da presente acção, alterar a qualificação jurídica atribuída ao contrato existente entre as partes. Compreende-se, neste contexto, que o trabalhador não tenha uma percepção clara ab initio da sua situação contratual e possa encontrar-se inibido, até por efeito da sua posição de dependência económica relativamente à entidade beneficiária dos serviços prestados, de fazer valer os seus direitos ainda durante a vigência do contrato.

Por outro lado, importa ter presente que o abuso de direito, conforme o previsto no artigo 334º do Código Civil, implica que o "titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito", o que pressupõe que actue em termos clamorosos ofensivos da moralidade ou da justiça.

É patente que o estado de dúvida ou de errónea convicção sobre a verdadeira qualificação jurídica do contrato não preenche esses requisitos e não impede que o autor venha a reagir judicialmente apenas no momento em que a sua posição contratual é posta em causa pela entidade empregadora, verificando-se, de resto, que essa possibilidade se encontra expressamente salvaguardada pelo artigo 38º da LCT, que justamente estipula que os créditos laborais resultantes do contrato de trabalho apenas se considerem prescritos decorrido o prazo de um ano após a cessação do contrato.

5. Não tem também qualquer fundamento a pretendida inaplicabilidade ao caso as sanção pecuniária compulsória.

Como se ponderou no citado acórdão de 21 de Setembro de 2005, a reintegração do trabalhador não opera automaticamente por efeito da pronúncia condenatória, mas exige um comportamento positivo da ré, e que só esta, enquanto entidade empregadora, poderá adoptar. E não está excluído que ela pretenda protelar a execução do julgado, pelo que, tratando-se de uma obrigação de prestação de facto infungível, tem plena aplicação ao caso o disposto no artigo 829-A do Código Civil.

E face à dimensão económica da ré, que constitui facto notório, e à relevância do direito que está em causa, o montante fixado para a sanção compulsória apenas poderá pecar por defeito.

4. Decisão

Em face do exposto, acordam em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 16 de Novembro de 2005
Fernandes Cadilha,
Mário Pereira,
Maria Laura Leonardo.