Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04A2070
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PONCE DE LEÃO
Descritores: DESPORTO
VIOLÊNCIA
OMISSÃO
Nº do Documento: SJ200407060020706
Data do Acordão: 07/06/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1050/02
Data: 02/12/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Questões a resolver para os efeitos do artigo 660, n.º 2, são apenas as que contendem directamente com a substanciação da causa de pedir ou do pedido, não se confundindo quer com a questão jurídica quer com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor às quais o tribunal não tem de dar resposta especificada.
II – Na interpretação do artigo 12.º do DL n.º 270/89, de 18 de Agosto, há que atender ao facto de estarmos perante uma enunciação exemplificativa das normas de conduta a adoptar com vista à obtenção do fim visado: a prevenção e controlo das manifestações de violência associada ao desporto – artigo 1.º do mesmo DL.
III – Assim, a Federação Portuguesa de Futebol, ao não ter imposto - como lhe incumbia enquanto entidade organizadora da Final da Taça de Portugal, por força do artigo 12.º, n.º 1, do citado DL - todas as medidas especiais de segurança reconhecidamente adequadas à situação concreta – tratava-se de um jogo de alto risco, num Estádio cujas condições não foram pensadas para as exigências de segurança que os tempos actuais impõe - violou aquela previsão legal, nomeadamente, por não ter aplicado as medidas de vigilância e controlo adequadas, nem efectuado o obrigatório controlo efectivo no acesso, de modo a impedir a introdução de objectos susceptíveis de possibilitarem actos de violência, como eram os “very light” que o réu D detinha em seu poder.
IV - Por força da violação do referido normativo, a respectiva omissão é ilícita.
V- A ré Federação Portuguesa de Futebol, aquando da realização da Final da Taça de Portugal de 1996, ao não impor a adopção de um sistema de controlo individual das entradas eficaz que permitisse a detecção de material perigoso, como os “very light”; nem impor a existência de um sistema de controlo por câmaras de vídeo que permitisse a imediata detecção e expulsão de indivíduos com condutas perigosas, não actuou com a diligência exigível e que veio a adoptar em 1997, à qual uma entidade com as suas responsabilidades na segurança dos eventos, se julgaria obrigada, até em face das situações que internacionalmente se têm vivido.
VI – Por não ter actuado com a diligência a que uma pessoa razoável e ordenada (o bom pai de família) se julgaria obrigada, tal violação, é também culposa.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1.1. "A", por si e em representação de seus filhos menores, B e C, veio propor acção com processo ordinário, contra D e Federação Portuguesa de Futebol, pedindo a condenação solidária destes no pagamento da indemnização de 70.030.000$00, acrescidos de juros legais desde a citação até integral pagamento, sendo 50.000.000$00, a título de danos não patrimoniais e 20.030.000$00, a título de danos patrimoniais, tendo, para tanto e em resumo, alegado que:
· São, respectivamente, viúva e filhos de E, falecido no dia 18 de Maio de 1996, por ter sido mortalmente atingido por um “very light” disparado pelo réu D, quando ambos assistiam, no Estádio Nacional, em Oeiras, à final da Taça de Portugal disputada entre o Sporting Clube de Portugal e o Sport Lisboa e Benfica;
· O espectáculo foi organizado pela ré FPF, que emitiu os respectivos bilhetes de ingresso, recaindo sobre si o dever de classificar o jogo como sendo de alto risco, assegurando o policiamento do recinto desportivo, bem como as medidas de controle indispensáveis, designadamente, impedindo a entrada no recinto de inúmero material perigoso, como o pirotécnico;
· Porém, tal não aconteceu, o que veio a permitir a consumação do homicídio, perante a passividade organizativa da ré que omitiu os deveres de cuidado que lhe competiam;
· A própria ré o reconheceu na final de 1997, adoptando um conjunto de medidas de segurança mais exigentes, muito embora o jogo não tivesse o risco do realizado na final de 1996, designadamente, providenciando um sistema de vigilância vídeo; houve duas barreiras policiais e os espectadores foram revistados individualmente, o que não acontecera em 1996 e as claques foram separadas do público em geral.
1.2. Devidamente citados, apenas a R., FPF contestou, por excepção, invocando a sua ilegitimidade e, por impugnação, alegando, em síntese, que classificou o jogo como sendo de “alto risco” e, por esse motivo, em cumprimento do disposto no artigo 2.º, n.º 1 do Decreto-Lei nº 238/92, de 29 de Outubro, requisitou ao Comando da PSP/GNR o policiamento considerado necessário para o efeito, razão pela qual, nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada.
Termina pedindo que a excepção seja julgada procedente, com a consequente absolvição da instância ou, caso assim não se entenda, que a acção seja julgada improcedente, com a necessária absolvição do pedido.
1.3. Replicaram os autores, respondendo à matéria da excepção.
1.4. Foi proferido despacho saneador, tendo sido julgada improcedente a deduzida excepção de ilegitimidade e ainda seleccionados os factos assentes e os que constituiriam a base instrutória, os quais foram objecto de reclamação, parcialmente atendida, nos termos do despacho de fls. 318.
1.5. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal, tendo-se procedido ao registo da prova testemunhal produzida.
1.6. Finda a audiência, foi proferida a decisão sobre a matéria de facto controvertida, que faz fls. 344 a 350 verso, não tendo as partes formulado qualquer reclamação sobre a mesma.
1.7. Foram dados como provados os factos seguintes:
1 - Em 18.5.96 faleceu E, de 36 anos de idade, no estado de casado com a 1.ª Autora A;
2 - Os 2.ºs e 3.ºs AA., B e C, são filhos da 1.ª A. e do falecido E, tendo nascido, respectivamente, a 14.6.81 e 11.12.87;
3 - Em 18.5.96, o E deslocou-se ao Estádio Nacional, na Cruz Quebrada, em Oeiras, para assistir à final do jogo de futebol da Taça de Portugal, a disputar entre as equipas do Sporting Clube de Portugal e do Sport Lisboa e Benfica;
4 - Para tanto adquiriu o respectivo ingresso emitido pela 2.ª ré e ocupou no estádio o lugar que lhe competia, situado no sector 17, do topo norte, entre os adeptos do Sporting Clube de Portugal;
5 - Por sua vez, o 1.° réu deslocou-se, igualmente, ao Estádio Nacional para assistir ao referido jogo, ocupando um lugar nas primeiras filas do sector 17, topo sul, junto dos adeptos do Sport Lisboa e Benfica, mais precisamente junto da claque “No Name Boys”, ou seja, do lado oposto àquele em se encontrava o E;
6 - Os referidos sectores encontram-se distanciados um do outro cerca de 200 metros;
7 - Antes do início do jogo, sensivelmente na ocasião em que alguns pára-quedistas largados de helicóptero faziam a sua aproximação ao relvado, o 1.° réu disparou um “rocket”, tipo “very ligth”, que detinha em seu poder, na direcção da parte superior do sector 17, reservado aos adeptos sportinguistas e que já na altura se encontrava repleto de pessoas;
8 - Tal “rocket” descreveu uma trajectória em arco, indo cair acima das bancadas, sobre umas árvores situadas a cerca de 230 metros de distância e junto das instalações sanitárias que se sobrepõem àquelas bancadas, provocando um incêndio nas referidas árvores, que foi bem visível a todos os ocupantes do estádio;
9 - Após o início do jogo, cerca de dez minutos decorridos sobre o mesmo, a equipa benfiquista marcou o seu primeiro golo;
10 - Nessa ocasião o 1° réu lançou do mesmo local onde se encontrava um segundo “rocket”, mas numa trajectória tensa e quase em linha recta, que sobrevoou o terreno de jogo e pistas, indo embater directamente no corpo do E, que se encontrava no local acima indicado;
11 - Face à violência do impacto e à explosão da carga propulsora do “rocket”, que atingiu cerca de 600° centígrados dentro do corpo do E, sofreu este ferida perfuro-contundente na região para-external esquerda, situada 14 cm. abaixo do plano horizontal que passa pelos ombros, tendo o orifício aberto um diâmetro de sete centímetros com eixo maior horizontal, com os bordos queimados e com visualização de tecidos moles no interior;
12 - Tal impacto originou laceração da traqueia, lobos pulmonares direitos queimados com pólvora ardente, hemorragias sub-endocardias, laceração dos arcos posteriores das 6ª e 8ª costelas direitas e da espessura da musculatura intercostal, congestão meningo-encefálica, queimaduras da musculatura peitoral direita e asfixia por intoxicação por monóxido de carbono, lesões que por si só ou associadas, foram causa da morte antes mencionada;
13 - Por decisão penal proferida em 13.2.98, transitada em julgado, o 1° réu foi condenado como autor de um crime de homicídio com negligência grosseira;
14 - A 2ª ré foi a entidade organizadora do jogo de futebol em causa, classificando o mesmo de “alto risco” e competindo-lhe solicitar e assegurar o policiamento do recinto desportivo respectivo;
15 - Antes do jogo, as claques do Sporting e do Benfica partiram do Terreiro do Paço e aí foi disparado, por um elemento da claque do Benfica não identificado, um “very light”;
16 - As autoridades policiais que estavam no local tiveram conhecimento do “lançamento do 1° rocket”;
17 - Com autorização da 2ª ré, uma carrinha da claque benfiquista teve facultado o ingresso no recinto;
18 - A qual - carrinha - da claque benfiquista não foi revistada pelos agentes da PSP que estavam no local e a acompanharam;
19 - O Estádio Nacional não tinha um sistema de controle vídeo de vigilância e a revista feita à entrada do Estádio pelos agentes da PSP consistia na mera apalpação, não abrangendo todos os espectadores, desde logo, pela falta de torniquetes nas entradas do mesmo recinto;
20 - Para a preparação do jogo da final da Taça de Portugal, mais concretamente no dia 8.5.96, a ré, FPF, reuniu com os responsáveis pela organização do evento, onde estiveram os representantes da FPF, da Associação de Futebol de Lisboa, do Estádio do Jamor, da PSP de Oeiras, do Batalhão de Trânsito da GNR e dos Bombeiros de Linda-a-Pastora;
21 - Na véspera do jogo verificou-se nova reunião, em que participaram representantes da FPF, da Edilidade de Lisboa, da AFL, do Sporting Clube de Portugal, do Sport Lisboa e Benfica, representantes das respectivas claques, da PSP e da GNR, com a finalidade de pacificar os ânimos entre os vários intervenientes no jogo da final da Taça de Portugal;
22 - As reuniões em causa tiveram por finalidade a estatuição e adopção de todas as medidas de segurança que o evento implicava, nomeadamente, encontros com as claques dos clubes intervenientes, número de agentes da PSP e da GNR, separação de claques e forma de controle dos espectadores;
23 - As despesas de policiamento no ano de 1995 foram de 3.637.685$00 e no ano de 1996 foram de 7.379.350$00;
24 - As claques dos clubes intervenientes na final da Taça de Portugal de 1996 foram acompanhadas pelas forças policiais ficando em sectores separados e vigiados, cada uma, por quinze agentes policiais;
25 - Na entrada do Estádio Nacional estava prevista uma revista obrigatória, ao mesmo tempo que o espectador deveria mostrar o bilhete de ingresso no estádio e, numa segunda barreira, o bilhete seria inutilizado e podia haver uma segunda revista, a título aleatório;
26 - As claques dos clubes intervenientes na final da Taça de Portugal de 1996 foram devidamente acompanhadas pelas forças policiais ficando em sectores separados e rodeados por forte dispositivo de segurança;
27 - Para a final de 1997 da Taça de Portugal, a entidade responsável pelo Estádio Nacional, o Instituto dos Desportos, providenciou a instalação, a título experimental, dum sistema de vigilância - sistema esse de vídeo;
28 - Além disso e visando impedir a introdução dentro do recinto desportivo de objectos susceptíveis de possibilitar actos de violência foi assegurada a formação de duas barreiras policiais de controle das entradas, onde cada espectador foi individualmente revistado e controlado, através de detectores de metais;
29 - Além disso e com o objectivo de separar as claques das equipas participantes do público em geral, foram, então, erguidas duas vedações;
30 - Face às equipas participantes em 1997 – “Boavista F.C.” e “Sport Lisboa e Benfica”, quando comparadas com as equipas participantes em 1996 – “Benfica” e “Sporting” -, o risco de ocorrência de incidentes era menor em 1997 do que em 1996, por força do maior ambiente de hostilidade entre as claques de 1996;
31 - Em 1997, verificou-se um reforço de policiamento, tendo os gastos, quanto a este aspecto, sido de 10.266.598$00;
32 - No total foram mobilizados cerca de oitocentos efectivos da PSP e da GNR, estando dentro do recinto onde o jogo se realizou, entre seiscentos e setecentos agentes da PSP;
33 - Com a organização da final da Taça de Portugal de 1996, a 2.ª ré teve uma receita de duzentos e doze milhões, oitocentos e sessenta e um mil, quatrocentos e vinte e nove escudos, depois de deduzido o IVA e despesas no valor de quarenta e cinco milhões, quatrocentos e vinte e sete mil e dezassete escudos;
34 - À data da sua morte o E era um homem saudável, trabalhador e com grande alegria de viver;
35 - Anualmente auferia um rendimento, proveniente da sua actividade por conta própria na construção civil, de cerca de 1.000.000$00;
36 - Além de auxiliar terceiros, nos seus tempos livres, em obras que estes realizassem na região onde vivia;
37 - E afectando cerca de 2/3 dos seus proventos no suporte económico do agregado familiar constituído pelos AA.;
38 - A. A aufere cerca 62.800$00 mensalmente, como auxiliar de acção educativa;
39 - Ao tempo da sua morte o E vivia com os AA., numa propriedade dos herdeiros de Alexandre de Almeida, que lhe era facultada contra a prestação de serviços de vigilância e manutenção da mesma;
40 - Além de utilizarem a habitação, o E e os AA. podiam cultivar a quinta adjacente, assim se abastecendo de cereais e legumes, e tendo até uma pequena criação de porcos, galinhas, coelhos e um bezerro, para proveito e utilização própria;
41 - Com a morte do E, os AA. deixaram de poder prestar os serviços que vinham sendo prestados na propriedade;
42 - O que os obrigou a abandonar a mesma, deixando de contar com os meios de abastecimento e subsistência que ali detinham;
43 - Vendo-se forçados a ir habitar para a casa da mãe da A. A, sem possibilidade de cultivar terra ou manter quaisquer animais, situação que ainda hoje se mantém;
44 - Depois da morte de E, os AA. foram auxiliados materialmente pelo “Sporting Clube de Portugal” e tiveram o apoio de familiares, vizinhos e amigos;
45 - Com a morte de E, a Autora A viu-se forçada a enfrentar a vida sem o amparo e o carinho daquele com quem construíra o seu futuro;
46 - No ano lectivo de 1998/99, a A. B frequentou o 11º ano, na Escola Secundária Oficial da Mealhada;
47 - No ano lectivo de 1998/99, o C frequentou o 5° ano da Escola C+S da Mealhada;
48 - Os 2° e 3° AA. não exercem qualquer actividade remunerada;
49 - Só no início do ano lectivo de 1998/99, a Autora A teve de despender cerca de vinte e sete mil escudos - 27.000$00 - com os livros escolares da A. B e importância aproximada relativamente aos livros escolares do A. C;
50 - Com os passes para deslocação de casa para a escola cada um dos 2° e 3° AA. despende mensalmente dois mil escudos - 2.000$00;
51- O E participava intensamente da vida dos 2° e 3° AA., preocupando-se com o seu desenvolvimento emocional e educacional;
52 - Em consequência da morte do pai, os 2° e 3° AA. tornaram-se emocionalmente perturbados, tendo mesmo a A. B de receber apoio psiquiátrico;
53 - Os AA. tiveram conhecimento da morte do E através duma vizinha, que fora informada pelo seu marido, que se encontrava no Estádio Nacional com a vítima, a assistir à final da Taça de Portugal, telefonicamente;
54 - Foi para os AA. particularmente dolorosa tal notícia;
55 - O E faleceu às 16 horas e 35 minutos, do dia 18.5.96;
56 - O falecido E teve um sofrimento físico e moral elevado, em ambiente desconhecido, rodeado de centenas de pessoas em pânico e por um motivo que lhe era totalmente estranho;
57 - A 1ª A. despendeu 30.000$00 com as despesas de luto e funeral do E, tendo as restantes despesas sido suportadas pelo “Sporting Clube de Portugal.
1.8. Foi proferida a sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, com a condenação solidária dos RR. no pagamento aos AA. da indemnização de 30.030.000$00, sendo:
a)– 30.000$00 por danos patrimoniais e 30.000.000$00 por danos não patrimoniais, valor este a repartir em partes iguais por cada um dos autores, cabendo 10.000.000$00 a cada um;
b)– juros de mora, à taxa legal sobre o montante global da indemnização, desde a citação e até pagamento.

1.9. Inconformada, veio a ré FPF, interpor recurso de apelação, para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo os autores interposto recurso subordinado, também admitido como de apelação.

1.10. O Tribunal da Relação de Lisboa, viria a proferir o Acórdão de fls. 492 a 507, julgando totalmente improcedente a apelação principal deduzida pela 2.ª R. e considerando prejudicada a apelação subordinada interposta pelos AA..

1.11. Inconformados, AA. e R. interpuseram recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, invocando os AA. a existência de nulidade por omissão de pronúncia que veio a ser considerada procedente por Acórdão de fls. 597 a 603.

1.12. Em consequência, o Tribunal da Relação de Lisboa, proferiu o Acórdão que faz fls. 612 a 634, julgando improcedente o recurso independente interposto pela ré FPF, e parcialmente procedente o recurso subordinado interposto pelos autores A, B e C, e, em consequência, alterou a sentença recorrida, condenando, solidariamente, os réus D e FPF a pagarem aos autores a indemnização global de € 234.584,65 (47.030.000$00), sendo € 101.472,12 (7.000.000$00 + 10.000.000$00 + 3.333.333$00 + 10.000$00) à autora A e € 66.556,27 (5.000.000$00 + 5.000.000$00 + 3.333.333$00 + 10.000$00) a cada um dos autores B e C, quantias a que acrescem juros de mora desde a data da citação até pagamento, à taxa legal, como decidido na sentença recorrida. No mais, absolveu os réus do pedido.

1.13. Continuando inconformada, a ré FPF, interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal, tendo, atempadamente, apresentado as seguintes conclusões:
1ª) No dia 18 de Maio de 1996, realizou-se no Estádio Nacional o jogo de Futebol da final da Taça de Portugal entre o Sporting Club de Portugal e o Sport Lisboa e Benfica, organizado pela FPF, ao qual assistiram cerca de 50.000 espectadores, entre os quais o Sr. E e o 1° Réu deste processo, D, que logo no seu início lançou um rocket, tipo “very light”.
2ª) Passados cerca de 10 minutos após o inicio do jogo, o mesmo D lançou um segundo “very light” do sector 14, onde se encontrava, na direcção do sector 17, ocupado pelo espectador Sr. E, atingindo-o e provocando-lhe a morte.
3ª) Por tal conduta foi o 1° R. D julgado por decisão penal, transitada em julgado, tendo sido condenado por um crime de homicídio com negligência grosseira.
4ª) Para aquela Final da Taça de Portugal, a ora Recorrente:
- requisitou cerca de 800 elementos da P.S.P. e da G.N.R., reforçando quase no triplo o número de forças policiais erigido por lei;
- classificou o jogo de “alto risco”;
- a P.S.P. acompanhou e vigiou as claques dos clubes intervenientes nas deslocações até ao Estádio Nacional, localizando-as em sectores separados, ficando cada uma delas policiada por 15 elementos da P.S.P.;
- determinou-se que o controlo dos espectadores fosse, como foi, feito pelo contingente policial requisitado;
- previu-se uma revista obrigatória dos espectadores à entrada para o recinto desportivo, controlo esse a levar a cabo pelas forças policiais e que consistiria em mera apalpação dos espectadores, tendo sido prevista ainda uma segunda revista, a título aleatório, numa segunda barreira policial a quando da inutilização dos bilhetes de ingresso.
5ª) Apesar do reconhecimento da correcção de toda esta actuação, o acórdão sob recurso defendeu e decidiu que o comportamento da F.P.F. deveria ter ido mais longe, uma vez que as medidas preconizadas no artigo 12 n° 1 do Dec-Lei 270/89 são meramente exemplificativas.
6ª) Impunha-se-lhes, pois, que tivesse diligenciado pela neutralização do R. D logo que este lançou o 1º “very light” e que tivesse tomado medidas para averiguar se o autor daquele disparo tinha em seu poder mais material igual ou semelhante e impedir a sua eventual utilização, com recurso à sua expulsão, se fosse caso disso.
7ª) De acordo com a decisão ora recorrida, a omissão e passividade da F.P.F., traduzida na ausência das medidas constantes da conclusão anterior, perante o disparo do 1º “very light” pelo Réu D, é reprovável e censurável, face aos comandos dos artigos 12 nº 1 al. e) e 13 nº 2, ambos do Dec-Lei 270/89. (cf. artigo 20 destas alegações).
8ª) É que com a tomada de tais medidas ter-se-ia evitado, ainda segundo o Acórdão recorrido, o lançamento do 2º “very Iight”, este fatal para a produção do evento letal na pessoa do familiar dos A.A. (cf. artigo 21 das alegações).
9ª) Só que a ora Recorrente, F.P.F., não teve possibilidade de actuar e comportar-se da forma propugnada pelo douto acórdão sob recurso, precisamente porque nem a Recorrente nem os elementos das forças policiais conseguiram determinar e identificar, na altura, o autor do disparo do 1º “very light”, como ainda a identificação do autor do disparo do 2º “very light”. (cf. artigo 24 das alegações).
10ª) Tal identificação só foi possível dias mais tarde através de diligências de investigação levadas a efeito pela P.J., no âmbito de processo crime levantado. (cf. artigos 24 e 25 destas alegações).
11ª) A falta de identificação da autoria material de tais disparos consta da matéria de facto retratada na decisão da 1ª instância que não foi alterada, de qualquer forma, pelo douto acórdão sob recurso. (cf. artigos 24, 25, 26, 27 e 28 destas alegações).
12ª) A falta de identificação, no momento, da autoria material dos disparos dos “very lights” impedia a tomada de medidas, pela F.P.F., no sentido da neutralização do seu autor, da sua vistoria e da sua eventual expulsão do recinto do espectáculo. (cf. artigos 29, 30, 31 e 32 das alegações).
13ª) Daí que tal omissão não integre o conceito de culpa exigível para a verificação e existência de responsabilidade civil extra-contratual. É que tal conceito pressupõe que, nas circunstâncias concretas, o agente tivesse tido a possibilidade de actuar e comportar-se da forma propugnada pelo acórdão sob recurso - o que não aconteceu. (cf. artigos 18, 22, 23 e 33 destas alegações).
14ª) Por outro lado, a responsabilidade pela manutenção da ordem dentro do recinto pertencia, por inteiro, às forças policiais requisitadas para o efeito, como claro resulta do disposto no artigo 2º n° 2 do Decreto-Lei nº 238/92, de 29 de Outubro. (cf. artigos 34 e 35 destas alegações).
15ª) A requisição de forças policiais para manutenção da ordem dentro dos recintos desportivos irresponsabiliza as entidades organizadoras por essa manutenção e pelos eventos resultantes da sua alteração, nos precisos termos da disposição citada na conclusão anterior. (cf. 34 e 35 destas alegações).
16ª) De qualquer forma, as medidas cuja omissão o douto acórdão recorrido atribui à F.P.F., como forma de culpa, só poderiam ser levadas a efeito e ordenadas pelas forças policiais, dado a natureza de tais medidas, como limitadoras dos direitos individuais. É, aliás, o que resulta expresso do nº 2 do artigo 13º do Decreto-Lei nº 270/89 e como advém, ainda, dos artigos 174º e 251º do Código Processo Penal. (cf. artigos 36 e 37 destas alegações).
17ª) Nem, a título de comitente poderia a F.P.F. vir a ser responsabilizada por eventuais actos negligentes das Forças de Segurança Pública, visto inexistir entre estas entidades a necessária relação de dependência ou subordinação funcional. (cf. artigos 39, 40, 41, 42 e 43 destas alegações).
18ª) Acresce que as condutas omissivas atribuídas à Recorrente não integram, ainda, qualquer conceito de ilicitude. (cf. artigos 40, 45 e 46 destas alegações).
19ª) O douto acórdão sob recurso, ao qualificar como ilícita e culposa a actuação da ora Recorrente, ofendeu, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 483º e 487º nº 2 do Código Civil, o nº 2 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 238/92, de 29 de Outubro, os artigos 12º nº 1 al. e) e 13º nº 2 do Decreto-Lei nº 270/89 e os artigos 174º e 251º do Código Processo Penal.
20ª) A fixação dos montantes indemnizatórios pela decisão sob recurso não obedeceu ao critério de equidade, não tem em mente a situação económica dos lesantes e dos lesados e o grau de culpa com que aqueles actuaram. (cf. artigos 47 a 59 destas alegações).
21ª) A decisão sob recurso, atentos os critérios seguidos e os montantes indemnizatórios fixados, ofendeu os artigos 486º, 494º e 496º, todos do Código Civil.
Por outro lado e acessoriamente,
22ª) O douto acórdão sob censura não se pronunciou quanto às questões de ilicitude e culpa, tal como vinham caracterizadas pela decisão da 1ª instância questões essas que, por impugnação pela ora Recorrente, faziam parte do substracto do recurso de Apelação interposto. (cf. artigos 59, 60, 61, 62 e 63 destas alegações).
23ª) Tais questões, porque respeitantes aos elementos constitutivos da responsabilidade civil assacada à ora Recorrente, teriam e deveriam ser objecto de decisão e pronúncia pelo tribunal “a quo” (cf. artigo 62 das alegações).
24ª) Não se tendo pronunciado sobre tais questões, o douto acórdão recorrido deverá ser declarado nulo, por ofensa ao artigo 668º nº1 al. d) do Código Processo Civil.
Termina pedindo que:
a) Seja julgado nulo o douto acórdão recorrido, com as necessárias e legais consequências.
Se tanto não vier a ser o entendimento do tribunal “ad quem” deverá, então,
b) Conceder-se a Revista, revogando-se a sentença e o Acórdão recorrido que confirmou aquela, substituindo-se por outro que julgue, quanto à ora Recorrente, a acção improcedente nos termos que resultam da matéria de facto provada e da lei aplicável, absolvendo-a do pedido.
c) Revogar-se o douto acórdão recorrido no quanto indemnizatório fixado, mantendo-se a indemnização constante da sentença de 1ª. instância.
Foram apresentadas contra-alegações, onde se defendeu a bondade e manutenção do Julgado.
Os autos correram os vistos legais. Cumpre decidir.
Decidindo:
Como é sabido são as conclusões das alegações do recorrente que delimitam o objecto do recurso, pelo que o tribunal ad quem, exceptuadas as que lhe cabem ex officio, só pode conhecer as questões contidas nessas mesmas conclusões - artigos 684º nº 3 e 690º do Código Processo Civil.
2 - Questões a resolver
Conforme decorre do disposto nos artigos 684º, nº3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil (1), são as conclusões das alegações do recorrente que delimitam o objecto do recurso, pelo que, a este Supremo Tribunal, exceptuando as questões de conhecimento oficioso, apenas cabe conhecer das questões contidas nessas mesmas conclusões.
Desta sorte, são, na essência, três, as questões colocadas pela recorrente, a saber:
- Nulidade do acórdão por violação do disposto no artigo 668º, nº 1, alínea d) do Código Processo Civil;
- Erro de interpretação dos artigos 483º e 487º, nº 2, do Código Civil, do artigo 2º, nº 2 do Decreto-Lei nº 238/92, de 29 de Outubro, dos artigos 12º, nº 1, alínea e) e 13º, nº 2, do Decreto-Lei nº270/89, de 18 de Agosto e dos artigos 174º e 251º do Código Processo Penal;
- Violação dos critérios estabelecidos pelos artigos 486º, 494º e 496º, todos do Código Civil, para fixação dos montantes indemnizatórios.
2.1. Nulidade do acórdão por violação do disposto no artigo 668º, nº 1, alínea d) do Código Processo Civil.
Termina (2) o recorrente as respectivas alegações de recurso para este Supremo Tribunal – fls. 640 a 665 - invocando a existência de omissão de pronúncia que fere de nulidade o acórdão recorrido – conclusões 22 a 24.
Para tanto, invoca nos artigos 60 a 64 das alegações de recurso que “sobre o elemento da ilicitude da actuação da F.P.F., como pressuposto da responsabilidade extra-contratual que lhe foi imputada, o tribunal da 1ª instância circunscreveu-a à infracção dos artigos 28, 6, 11 e 15 da Lei 38/98, dado que a entidade organizadora não assegurara a existência de torniquetes na entrada do Estádio Nacional, nem implementara qualquer sistema vídeo de vigilância para dar cumprimento àquelas normas (ilicitude)”. Assim, considerou que “não tendo tomado tais medidas a F.P.F. actuou com culpa”, “por omissão daquelas medidas preventivas que teriam evitado o acto violento do R. D e, consequentemente, o dano causado ao familiar dos AA.”.
“No recurso de apelação interposto, a ora recorrente opôs-se tanto à invocada ilicitude (cf. artigos 16 a 36 das alegações de apelação e as conclusões 6 a 17) como à culpa atribuída (cf. artigo 37 a 50 das alegações do recurso de apelação e conclusões 18 a 26 ali expostas).
Contudo, o douto acórdão recorrido não se pronunciou sobre o que assim foi decidido na 1.ª instância e que constituía uma das bases e um dos fundamentos do recurso de apelação interposto. E tais bases e argumentos, a contrariar o decidido, não se circunscreveram a simples considerações ou juízos de valor ou à indagação, interpretação e apreciação de regras de direito. Trataram de elementos constitutivos da responsabilidade civil que veio a ser atribuída à ora recorrente”.
Compulsados os autos, verifica-se que não lhe assiste qualquer razão nesta invocação, não incorrendo o acórdão recorrido no apontado vício.
Efectivamente, o acórdão recorrido pronunciou-se proficientemente sobre as questões da ilicitude e da culpa, arvorando-as, juntamente com o nexo de causalidade, nas questões a apreciar no recurso interposto pela ré F, enquanto pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, causa de pedir na presente acção.
É certo que o acórdão não “dissecou” todos os argumentos usados a propósito quer na sentença de 1ª instância, quer nas alegações da recorrente. Mas também é consabido que não tinha que o fazer. (3)
De facto, a cominação desta nulidade decorre do incumprimento do comando contido no artigo 660º, nº 2, segundo o qual, “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja apreciação esteja prejudicada pela solução dada a outras”. (4)
O que são as questões suscitadas para este efeito, tem sido objecto de estudo, encontrando-se doutrinal e jurisprudencialmente fixado o respectivo conteúdo, no sentido de que as questões a resolver são apenas as que contendem directamente com a substanciação da causa de pedir ou do pedido, não se confundindo quer com a questão jurídica, quer com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor, às quais o tribunal não tem de dar resposta especificada.
Assim, as questões suscitadas pelas partes devem ser devidamente individualizadas, cumprindo, para tanto, apreciar não apenas o respectivo objecto e fundamento, como também quem a colocou (5), devendo “o juiz conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer. (6)
Delimitado o conceito, resta concluir que acórdão tratou - e bem - as questões suscitadas – a ilicitude e a culpa – não lhe cumprindo justificar a diferente fundamentação jurídica dos conceitos em apreço, efectuada relativamente à sentença de 1ª instância, nos termos em que a ré a colocou.
É que, “se, eventualmente o juiz, ao decidir das questões suscitadas, qualifica juridicamente mal uma determinada questão, aplica uma lei inapropriada ou interpreta mal uma lei que devia aplicar, haverá erro de julgamento, mas não nulidade por omissão de pronúncia”. (7)
Como se referiu supra, o acórdão da Relação começou por delimitar e enunciar as questões a decidir, o que fez, apreciando as questões da ilicitude, culpa e nexo de causalidade e decidindo de acordo com o entendimento que considerou mais adequado em face da factualidade assente.
Conclui-se, pois, que o acórdão da Relação de Lisboa não enferma da invocada nulidade por omissão de pronúncia, improcedendo, em consequência, as conclusões 22 a 24 das alegações de recurso.

2.2. Erro de interpretação dos artigos 483º e 487º, nº 2, do Código Civil, do artigo 2º, nº 2, do Decreto-Lei nº 238/92, de 29 de Outubro, dos artigos 12º, nº 1, alínea e) e 13º, nº 2, do Decreto-Lei nº 270/89, de 18 de Agosto e dos artigos 174º e 251º do Código Processo Penal.
Concluíram as instâncias que no caso sub judice a actuação passiva (omissiva) da FPF, foi ilícita e culposa, mostrando-se preenchidos todos os pressupostos da obrigação de indemnizar decorrente de responsabilidade civil extracontratual.
Pretende a FPF que não se verifica quer a culpa quer a ilicitude da omissão que lhe é imputada.
Para tanto, nos artigos 17 a 43 das respectivas alegações, invocou as razões de facto e de direito que entende fundamentarem a respectiva afirmação no tocante à ausência de culpa e, nos artigos 44 a 46, relativamente à inexistência de actuação ou omissão ilícitas, lavrando as necessárias conclusões de 1 a 19.
Cumpre apreciar e decidir.
A violência associada ao desporto não é um fenómeno novo.
Ao invés, existem referências históricas (8) que a permitem situar na antiguidade clássica, não sendo muito diferente do actual o comportamento violento adoptado pelos praticantes e espectadores quer no decorrer do espectáculo quer após o seu final.
Efectivamente, “a história do desporto na antiguidade encontra-se polvilhada de actos de violência” (9), referidos tanto a propósito dos jogos realizados em Roma, como nos Jogos Olímpicos da Antiguidade.
A primeira observação que nos ocorre em face desta constatação é a de que a evolução da civilização se faz, em regra, na continuidade, transportando consigo todas as características da natureza humana, ainda que com naturais mudanças...
Assim, este Supremo Tribunal de Justiça é, no início do século XXI, chamado a apreciar a morte de um espectador de um jogo de futebol, ocorrida no final do século XX, porventura sinal da referida continuidade.
E isto, apesar de todos os estudos que se vão realizando, das preocupações que ao nível mundial se têm acentuado no sentido do controlo essencialmente preventivo deste fenómeno e da legislação que especialmente nas últimas décadas tem tentado travar este fenómeno sociológico especialmente acentuado ao nível do Futebol (10).
Em Portugal, a primeira legislação relativa à violência nos recintos desportivos data de 30 de Agosto de 1980 – Decreto-Lei nº 339/80 – tendo sofrido as primeiras alterações menos de um ano depois, com a Lei nº 16/81, de 31 de Julho e veio a ser revogada pelo Decreto-Lei nº 61/85, de 12 de Março que, no essencial, manteve o regime inicial com enfoque preventivo e sancionatório.
Ocorreu, entretanto, o drama de Heysel.
Em resposta, os Estados membros do Conselho da Europa e os outros Estados pertencentes à Convenção Cultural Europeia, “preocupados com a violência e com os excessos dos espectadores por ocasião de manifestações desportivas, nomeadamente nos jogos de futebol e atendendo às consequências que daí decorrem surgindo como resposta implícita ao conjunto de causas que o provocaram” (preâmbulo), assinam a Convenção Europeia sobre a Violência Associada ao Desporto – Tratado nº 120 do Conselho da Europa – de 19 de Agosto de 1985, que Portugal aprovou para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 11/87, publicada na I série do Diário da República, de 5 de Setembro de 1987, preconizando várias medidas para prevenir e dominar a violência e os excessos dos espectadores, por ocasião dos jogos de futebol – artigo 1º.
De entre as medidas que as Partes se comprometeram a adoptar, referidas no respectivo artigo 3º destacamos as que mais ligação têm com o caso dos autos e que são as seguintes:
- Garantir a mobilização de forças da ordem suficientes para fazer face às manifestações de violência e aos excessos, quer nos estádios quer nas proximidades, e também ao longo das vias de acesso utilizadas pelos espectadores;
- Aplicar ou, se necessário, adoptar uma legislação na qual se imponham às pessoas reconhecidamente culpadas de infracções relacionadas com violência ou com excessos de espectadores penas adequadas ou, quando necessário, medidas administrativas apropriadas”;
- Encorajar a organização responsável e o bom comportamento dos adeptos e a designação entre estes de elementos encarregados de facilitar o controle e o esclarecimento dos espectadores durante os jogos e de acompanhar os grupos de adeptos que vão assistir a jogos disputados fora;
- Assegurar que a concepção e a estrutura dos estádios garantam a segurança dos espectadores, não facilitem a violência entre eles, permitam um controle eficaz da multidão, disponham de barreiras ou vedações adequadas e permitam a intervenção dos serviços de socorros e das forças da ordem;
- Separar eficazmente os adeptos rivais, colocando-os em blocos distintos;
- Garantir esta separação controlando rigorosamente a venda de bilhetes e tomando precauções especiais durante o período imediatamente anterior ao jogo;
- Expulsar dos estádios e dos jogos ou impedir o acesso aos desordeiros e às pessoas sob influência de álcool ou de droga;
- Dotar os estádios de um sistema eficaz de comunicação com o público;
- Assegurar controles de modo a impedir que os espectadores introduzam nos recintos desportivos objectos susceptíveis de possibilitar actos de violência, ou fogo de artifício ou objectos similares.
Na sequência da ratificação desta Convenção e visando - como se salienta no preâmbulo – tornar efectivas as medidas preconizadas pela Convenção Europeia, foi publicado o Decreto-Lei nº 270/89, de 18 de Agosto, que revogou o regime anterior, dotando o ordenamento jurídico de um novo conjunto de regras significativamente inovadoras que se traduzem em especiais medidas de segurança.
Assim, destacando também a parte que ora importa, dispõe o artigo 12º, nº 1 do citado Decreto-Lei que “quando se verifiquem indícios da provável ocorrência de distúrbios em determinados jogos, deverá a federação respectiva classificá-los como “jogos de risco” ou “de alto risco”, impondo aos clubes intervenientes medidas especiais de segurança adequadas à situação concreta, designadamente:
- O reforço do policiamento, quer em número de efectivos quer pela adopção de planos de actuação a concertar com as forças de segurança – alínea a);
- A separação dos adeptos rivais, reservando-lhes zonas distintas - alínea b);
- O controlo da venda de bilhetes, a fim de assegurar a referida separação – alínea c);
- A aplicação de medidas de vigilância e controlo, de modo a impedir o excesso de lotação em qualquer zona do recinto e assegurar que as vias de acesso estejam desimpedidas – alínea d);
- A adopção obrigatória de controlo no acesso, de modo a impedir a introdução de objectos proibidos ou susceptíveis de possibilitarem actos de violência – alínea e);
- O acompanhamento e vigilância de grupos de adeptos, nomeadamente nas deslocações para assistir a jogos disputados fora do recinto próprio – alínea f).
Sufragando o cariz preventivo que a legislação tem consagrado, foi publicada a Portaria nº 371/91, de 30 de Abril, regulamentando a vedação prevista no artigo 8º do referido Decreto-Lei.
Em 1993, o Decreto-Lei nº 144/93, de 26 de Abril, veio estabelecer o regime jurídico das federações desportivas, as condições de atribuição do estatuto de utilidade pública – artigo 1º - e a respectiva responsabilidade civil perante terceiros pelos actos ou omissões dos seus órgãos, nos mesmos temos em que os comitentes respondem pelos actos ou missões dos seus comissários – artigo 6º.
Este era o regime jurídico vigente em Portugal no dia 18 de Maio de 1996. Vejamos, pois, se dos factos provados, resulta ou não a existência de responsabilidade civil extracontratual por omissão, de dever por parte da FPF.
Importa, para tanto, recordar os factos que se mostram assentes, com interesse para a decisão do objecto do recurso, sendo certo que não existe razão para a respectiva alteração pelo Supremo Tribunal.
Temos, pois, que:
Em 18.5.96, E deslocou-se ao Estádio Nacional, para assistir à final do jogo de futebol da Taça de Portugal, a disputar entre as equipas do Sporting Clube de Portugal e do Sport Lisboa e Benfica;
Para tanto, adquiriu o respectivo ingresso emitido pela 2ª ré, F e ocupou no estádio o lugar que lhe competia, situado no sector 17, do topo norte, entre os adeptos do Sporting Clube de Portugal;
Por sua vez, o 1° réu, D deslocou-se, igualmente, ao Estádio Nacional para assistir ao referido jogo, ocupando um lugar nas primeiras filas do sector 17, topo sul, junto dos adeptos do Sport Lisboa e Benfica, mais precisamente junto da claque “No Name Boys”, ou seja, do lado oposto àquele em se encontrava o E;
Os referidos sectores encontram-se distanciados um do outro cerca de 200 metros;
Antes do início do jogo, sensivelmente na ocasião em que alguns pára-quedistas largados de helicóptero faziam a sua aproximação ao relvado, o 1° réu disparou um “rocket”, tipo “very ligth”, que detinha em seu poder, na direcção da parte superior do sector 17, reservado aos adeptos sportinguistas e que já na altura se encontrava repleto de pessoas;
Tal “rocket” descreveu uma trajectória em arco, indo cair acima das bancadas, sobre umas árvores situadas a cerca de 230 metros de distância e junto das instalações sanitárias que se sobrepõem àquelas bancadas, provocando um incêndio nas referidas árvores, que foi bem visível a todos os ocupantes do estádio;
Após o início do jogo, cerca de dez minutos decorridos sobre o mesmo, a equipa benfiquista marcou o seu primeiro golo;
Nessa ocasião o 1° réu lançou do mesmo local onde se encontrava um segundo “rocket”, mas numa trajectória tensa e quase em linha recta, que sobrevoou o terreno de jogo e pistas, indo embater directamente no corpo do E, que se encontrava no local acima indicado;
Face à violência do impacto e à explosão da carga propulsora do “rocket”, que atingiu cerca de 600° centígrados dentro do corpo do E, sofreu este ferida perfuro-contundente na região para-external esquerda, situada 14 cm abaixo do plano horizontal que passa pelos ombros, tendo o orifício aberto um diâmetro de sete centímetros com eixo maior horizontal, com os bordos queimados e com visualização de tecidos moles no interior;
Tal impacto originou laceração da traqueia, lobos pulmonares direitos queimados com pólvora ardente, hemorragias sub-endocardias, laceração dos arcos posteriores das 6ª e 8ª costelas direitas e da espessura da musculatura intercostal, congestão meningo-encefálica, queimaduras da musculatura peitoral direita e asfixia por intoxicação por monóxido de carbono, lesões que por si só ou associadas, foram causa da morte do E;
Por decisão penal proferida em 13.2.98, transitada em julgado, o 1° réu foi condenado como autor de um crime de homicídio com negligência grosseira.
Destes factos, resulta à evidência a existência do facto típico, ilícito e culposo, bem como o nexo de causalidade entre o crime praticado pelo 1º réu e o evento danoso – morte do E, dos quais decorre a respectiva obrigação de indemnizar, nos termos do artigo 483º do Código Civil, tudo sem necessidade de maiores justificações.
Esta evidência, porém, não ocorre no tocante ao comportamento omissivo imputado à 2ª ré como fundamento desta acção e da correlativa obrigação de indemnizar, carecendo, pois, de mais aprofundada análise.
Assim, a 2ª ré, FPF, foi a entidade organizadora do jogo de futebol em causa, classificando o mesmo de “alto risco” e competindo-lhe solicitar e assegurar o policiamento do recinto desportivo respectivo;
Antes do jogo, as claques do Sporting e do Benfica partiram do Terreiro do Paço e aí foi disparado, por um elemento da claque do Benfica não identificado, um “very light”;
As autoridades policiais que estavam no local tiveram conhecimento do “lançamento do 1° rocket”;
Com autorização da 2ª ré, uma carrinha da claque benfiquista teve facultado o ingresso no recinto e não foi revistada pelos agentes da PSP que estavam no local e a acompanharam;
O Estádio Nacional não tinha um sistema de controle vídeo de vigilância e a revista feita à entrada do Estádio pelos agentes da PSP consistia na mera apalpação, não abrangendo todos os espectadores, desde logo, pela falta de torniquetes nas entradas do mesmo recinto;
Para a preparação do jogo da final da Taça de Portugal, mais concretamente no dia 8.5.96, a ré, FPF, reuniu com os responsáveis pela organização do evento, onde estiveram os representantes da FPF, da Associação de Futebol de Lisboa, do Estádio do Jamor, da PSP de Oeiras, do Batalhão de Trânsito da GNR e dos Bombeiros de Linda-a-Pastora;
Na véspera do jogo verificou-se nova reunião, em que participaram representantes da FPF, da Edilidade de Lisboa, da AFL, do Sporting Clube de Portugal, do Sport Lisboa e Benfica, representantes das respectivas claques, da PSP e da GNR, com a finalidade de pacificar os ânimos entre os vários intervenientes no jogo da final da Taça de Portugal;
As reuniões em causa tiveram por finalidade a estatuição e adopção de todas as medidas de segurança que o evento implicava, nomeadamente, encontros com as claques dos clubes intervenientes, número de agentes da PSP e da GNR, separação de claques e forma de controle dos espectadores;
As claques dos clubes intervenientes na final da Taça de Portugal de 1996 foram acompanhadas pelas forças policiais ficando em sectores separados e vigiados, cada uma, por quinze agentes policiais;
Na entrada do Estádio Nacional estava prevista uma revista obrigatória, ao mesmo tempo que o espectador deveria mostrar o bilhete de ingresso no estádio e, numa segunda barreira, o bilhete seria inutilizado e podia haver uma segunda revista, a título aleatório;
No total foram mobilizados cerca de oitocentos efectivos da PSP e da GNR, estando dentro do recinto onde o jogo se realizou, entre seiscentos e setecentos agentes da PSP.
Da materialidade assente resulta claramente que, em cumprimento do disposto no supra referido artigo 12º do Decreto-Lei nº 270/89, a FPF classificou – e bem - o jogo de “alto risco”, adoptando, em conformidade, as várias medidas de segurança a que a matéria de facto alude, designadamente, solicitando e assegurando o policiamento com a mobilização de cerca de 800 efectivos (como estabelece o Decreto-Lei nº 238/92, de 29 de Outubro, que estabelece o regime de policiamento dos espectáculos desportivos), tendo realizado prévias reuniões preparatórias com representantes dos clubes envolvidos, das respectivas claques, da Polícia de Segurança Pública, do Batalhão de Trânsito da Guarda Nacional Republicana, dos Bombeiros, da Associação de Futebol de Lisboa, do Estádio do Jamor e da Câmara Municipal de Lisboa, tudo com vista à adopção das necessárias medidas de segurança que o evento impunha e a alínea a) do citado Decreto-Lei prevê.
No próprio dia do jogo, as claques foram acompanhadas no trajecto para o Estádio Nacional pelas forças policiais, ficando em sectores separados e vigiadas, cada uma, por 15 agentes da Polícia – cumprindo-se assim os comandos das alíneas b) e f).
Toda esta actuação da ré, como a própria realça, foi correcta e impunha-se.
Mas, terá esgotado todos os seus deveres ou, ao invés, podia e devia a FPF, em concreto, ter adoptado diversa conduta?
E esta é a principal questão colocada a este Tribunal.
Pretende a ré que a omissão que lhe é assacada pelas instâncias não lhe é imputável, por um lado, (elegendo apenas dois dos argumentos vertidos) porque à data não eram exigíveis torniquetes nem sistemas de vigilância por câmaras de vídeo no Estádio, tendo a decisão da 1ª instância aplicado indevidamente a Lei nº 8/97, de 12 de Abril que, então, não estava em vigor e, por outro lado, quanto ao acórdão da Relação, porque não era à Federação mas à Polícia que incumbia realizar a revista dos espectadores e detectar o autor do lançamento do primeiro rocket, o que não conseguiu fazer, situação que não é da sua responsabilidade já que não tem com as autoridades policiais qualquer relação de comissão.
Não assiste razão à ré nos argumentos expendidos, não sendo esse, em nosso entender, o sentido das decisões proferidas (o qual apenas vamos dilucidar por se tratar da interpretação que entendemos ser o fundamento da existência de conduta omissiva por parte da ré).
Na verdade, o legislador – certamente até para permitir que as entidades organizadoras de eventos desportivos, ponham ao dispor da segurança os melhores meios técnicos para assegurar o fim pretendido – optou no artigo 12º do Decreto-Lei nº 270/89, por uma enunciação exemplificativa das medidas de segurança a adoptar, que devem ser, designadamente, as ali referidas.
Podem, porém, ser outras as medidas a adoptar, já que incumbe à Federação impor aos clubes intervenientes medidas especiais de segurança adequadas à situação concreta – nº 1.
Acresce que, quer quanto à aplicação de medidas de vigilância e controlo (alínea d)), quer quanto à adopção obrigatória de controlo no acesso, de modo a impedir a introdução de objectos proibidos ou susceptíveis de possibilitarem actos de violência (alínea e)), o legislador não concretiza quais os meios técnicos a utilizar. Pretende apenas que o efeito seja obtido (talvez, por isso, a legislação actual, na senda evolutiva que, aliás, já enformara este diploma, concretize os meios técnicos).
Porém, os meios técnicos e humanos necessários para a concretização do “objectivo de prevenir e controlar as manifestações de violência associada ao desporto” – artigo 1º do citado Decreto-Lei, incumbem à entidade organizadora do evento desportivo, “in casu”, a FPF.
Por isso - apesar de ainda não estar em vigor a Lei nº 38/98, de 4 de Agosto - na final de 1997 da Taça de Portugal, foram efectivamente adoptadas medidas de segurança mais eficazes.
Assim, a entidade responsável pelo Estádio Nacional, o Instituto dos Desportos, providenciou a instalação, a título experimental, dum sistema de vigilância - sistema esse de vídeo;
Além disso e visando impedir a introdução dentro do recinto desportivo de objectos susceptíveis de possibilitar actos de violência foi assegurada a formação de duas barreiras policiais de controle das entradas, onde cada espectador foi individualmente revistado e controlado, através de detectores de metais;
Acresce ainda que, com o objectivo de separar as claques das equipas participantes do público em geral, foram, então, erguidas duas vedações e verificou-se um reforço de policiamento, tendo os gastos, quanto a este aspecto, sido de 10.266.598$00, quando as despesas de policiamento no ano de 1995 foram de 3.637.685$00 e no ano de 1996 foram de 7.379.350$00.
Todas estas medidas foram tomadas, apesar de, face às equipas participantes em 1997 – “Boavista F .C.” e “Sport Lisboa e Benfica”, quando comparadas com as equipas participantes em 1996 – “Benfica” e “Sporting” -, o risco de ocorrência de incidentes ser menor em 1997 do que em 1996, por força do maior ambiente de hostilidade entre as claques de 1996.
Tanto basta para afirmar que a FPF podia e devia ter tido em 1996, pelo menos, a actuação que caracterizou a final da Taça de 1997.
Efectivamente, como os factos relativos à organização desta final demonstram, existiu um manifesto reforço das medidas de segurança e, para tanto, não houve necessidade de qualquer alteração legislativa, precisamente porque as medidas então adoptadas decorrem da concretização prática do que vem disposto nas alíneas d) e e) do citado artigo 12º.
Tudo para vincar que, na final da Taça de 1996, considerando a tradicional rivalidade entre os clubes que iam disputar a Taça de Portugal, a FPF podia – como fez em 1997 – e devia – para efectiva concretização do disposto nas referidas alíneas – ter adoptado medidas de segurança mais eficazes, impondo e assegurando “medidas especiais de segurança adequadas à situação concreta”.
É que, como cristalinamente resulta de um juízo de prognose póstuma, é muito provável que, se tivesse sido assegurada a formação de duas barreiras policiais de controlo das entradas, onde cada espectador tivesse sido individualmente revistado e controlado, o D não tivesse consigo o “very light” que se tornou fatal para o E, (isto para a hipótese de o haver transportado consigo).
Tal revista, apesar de prevista na sequência das reuniões realizadas, (na entrada do Estádio Nacional estava prevista uma revista obrigatória, ao mesmo tempo que o espectador deveria mostrar o bilhete de ingresso no estádio e, numa segunda barreira, o bilhete seria inutilizado e podia haver uma segunda revista, a título aleatório) não veio a ser efectuada.
Isto porque, na Final da Taça de 1996, a revista feita à entrada do Estádio Nacional pelos agentes da PSP consistia na mera apalpação, não abrangendo todos os espectadores, desde logo, pela falta de torniquetes nas entradas do mesmo recinto.
Daqui resulta, portanto, que a omissão da colocação de torniquetes, medida adequada à eficácia do controlo no acesso, de modo a impedir a introdução de objectos proibidos ou susceptíveis de possibilitarem actos de violência, como ocorria com os “very lights”, então em voga, impediu um controlo eficaz das entradas.
Esta é a primeira omissão de relevo – salientada pela sentença de primeira instância – no comportamento da FPF a quem incumbia impor à entidade responsável pelo Estádio Nacional, a adopção de tais medidas especiais de segurança – artigo 12º, nº 1, do Decreto-Lei nº 270/89.
Acresce que apesar de antes do jogo, as claques do Sporting e do Benfica terem partido do Terreiro do Paço e aí ter sido disparado, por um elemento da claque do Benfica não identificado, um “very light” – facto que foi do conhecimento das autoridades policiais que estavam no local – num jogo classificado pela Federação como de “alto risco”, a mesma entidade autorizou que uma carrinha da claque benfiquista tivesse entrado no recinto, sem ter sido revistada pelos agentes da PSP que estavam no local e a acompanharam.
Estamos perante a segunda violação do disposto no artigo supra citado.
Para terminar a descrição dos comportamentos omissivos, temos que o Estádio Nacional não tinha um sistema de controle vídeo de vigilância, cuja implementação, mesmo a título experimental, como ocorreu em 1997, não foi imposta pela entidade organizadora do evento, que não a aplicou como “medida de vigilância e controlo”.
Aqui chegados fácil é demonstrar o bem fundado da argumentação do acórdão da Relação de Lisboa.
Bastaria a colocação de tal dispositivo para, ao invés do que ocorreu e a ré salienta nas respectivas alegações de recurso, ter sido possível detectar a pessoa que efectuou o primeiro disparo, expulsando-o do recinto desportivo, nos termos previstos no artigo 13º, nº 2 do referido Decreto-Lei.
De facto, ainda antes do início do jogo, sensivelmente na ocasião em que alguns pára-quedistas largados de helicóptero faziam a sua aproximação ao relvado, o 1° réu disparou um “rocket”, tipo “very ligth”, que detinha em seu poder, na direcção da parte superior do sector 17, reservado aos adeptos sportinguistas e que já na altura se encontrava repleto de pessoas; tal “rocket” descreveu uma trajectória em arco, indo cair acima das bancadas, sobre umas árvores situadas a cerca de 230 metros de distância e junto das instalações sanitárias que se sobrepõem àquelas bancadas, provocando um incêndio nas referidas árvores, que foi bem visível a todos os ocupantes do estádio.
No entanto, precisamente porque não existia o sistema de vigilância por câmaras de vídeo que em 1997 foi implementado e que o artigo 11º da Lei nº 38/98 agora impõe expressamente, a fim de permitir o controlo visual de todo o recinto desportivo, não foi detectado o autor do disparo.
É sabido que o anonimato permitido pelas multidões gera uma sensação de impunidade que o conhecimento de estar a ser controlado por câmaras atenua. O D, porém, sabendo que não tinha este controlo e protegido pelo anonimato e quiçá pela sensação de segurança que o facto de estar junto da claque “No Name Boys” favorecia, continuou a sua actuação.
Assim, após o início do jogo, cerca de dez minutos decorridos sobre o mesmo, a equipa benfiquista marcou o seu primeiro golo e, nessa ocasião o 1° réu lançou do mesmo local onde se encontrava um segundo “rocket”, mas numa trajectória tensa e quase em linha recta, que sobrevoou o terreno de jogo e pistas, indo embater directamente no corpo do E, que se encontrava no local acima indicado, matando-o.
É, pois, correcta a argumentação expendida no acórdão recorrido, quando refere que a ré não providenciou pela neutralização atempada do espectador que lançou o 1º “very light”, assim permitindo que fosse lançado o segundo. E não o fez porque, não tendo providenciado pela utilização de todos os meios técnicos ao seu alcance para garantir a segurança dos espectadores que haviam adquirido o respectivo ingresso (11), perante o facto consumado não teve meios para a detecção imediata da pessoa em causa, o que, em face do número de espectadores seria quase impossível.
Só que, ao invés do que a ré afirma, tal facto (bem como a inexistência de revista a todos os espectadores) não é de imputar ao comportamento da PSP, já que a responsabilidade por tal impossibilidade decorreu precisamente, como já se disse, do facto de não terem sido colocados os necessários dispositivos de segurança e tal omissão só pode ser imputada à ré que não criou as condições necessárias a uma eficaz actuação policial.
Ora, tal omissão configura, sem dúvida, uma violação do dever jurídico de
agir. “Repare-se, antes de mais, que se fala em dever jurídico e não pura e simplesmente em dever. A intenção é a de excluir, desde logo, da qualificação como ilícitas as omissões que se traduzem na violação de deveres não jurídicos, como os deveres meramente morais ou de cortesia. Por outro lado, fala-se em dever jurídico e não em dever legal. E isto porque o dever pode ser jurídico mas não ter por fonte imediata a lei”. (12)
Efectivamente, conforme decorre do disposto no artigo 486º do Código Civil, sob a epígrafe “Omissões”, “as simples omissões dão lugar à obrigação de reparar danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, (13) havia, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido”.
Assim sendo, dúvidas não restam de que as omissões podem ser fonte de responsabilidade civil, desde que se verifique a violação do dever jurídico de praticar o acto omitido, sendo esta a particularidade da verificação da respectiva ilicitude. (14)
Assente que para uma omissão violar ilicitamente direitos ou interesses juridicamente protegidos de terceiro, tem que existir violação da norma que imponha a prática da actividade omitida, poder-se-ia, numa análise mais superficial, pensar que, não estando expressamente consagrados na lei a imposição dos meios de segurança supra referidos, não se verificaria, afinal, a ilicitude da omissão.
Sem razão, porém.
De facto “a referência à lei como fonte do dever jurídico de agir não deve ser interpretada como designando restritivamente a lei civil, deve, pelo contrário, ser entendida no sentido amplo da ordem jurídica”, uma vez que se trata “da única posição conciliável com o princípio lógico da unidade da ordem jurídica”, sendo certo que, “onde o legislador não distingue não cabe ao intérprete distinguir”. (15)
Na interpretação do artigo 12º do Decreto-Lei nº 270/89, de 18 de Agosto, como referimos, temos de atender ao facto de estarmos perante uma enunciação exemplificativa das normas de conduta a adoptar com vista à obtenção do fim visado: isto é, a prevenção e controlo das manifestações de violência associada ao desporto – artigo 1º do mesmo Decreto-Lei.
Assim, a FPF, ao não ter imposto – como lhe incumbia enquanto entidade organizadora da Final, por força do artigo 12º, nº 1, do citado DL – todas as medidas especiais de segurança reconhecidamente adequadas à situação concreta – tratava-se de um jogo de alto risco, num Estádio cujas condições não foram pensadas para as exigências de segurança que os tempos actuais impõe - violou aquela previsão legal, nomeadamente, por não ter aplicado as medidas de vigilância e controlo adequadas nem efectuado o obrigatório controlo efectivo no acesso, de modo a impedir a introdução de objectos susceptíveis de possibilitarem actos de violência, como eram os “very light” que o réu D detinha em seu poder.
Por força da violação do referido normativo, a respectiva omissão é ilícita e, ao contrário do que a recorrente pretende, é também culposa.
Efectivamente, como bem salienta a recorrente nas respectivas alegações de recurso (18), “a culpa, numa conduta, só existe quando torna o agente pessoalmente digno de censura, fundada esta no facto de ter devido e ter também podido agir de outra forma, ou seja, do agente ter agido inconvenientemente, embora lhe tivesse sido possível, com o cuidado exigível, e diligência devida ou, com boa vontade, comportar-se em termos convenientes”.
De facto, “Culpa é um comportamento reprovado pela lei e esta reprova uma vontade maligna ou negligente do indivíduo.
O critério para apurar se há negligência é um critério objectivo ou abstracto, pois a lei quer que o agente atenda àquilo a que uma pessoa razoável e ordenada (o bom pai de família (16)) se julgaria obrigada nas circunstâncias dadas”. (17)
Assim sendo, em face do que já ficou dito, repete-se apenas o essencial para concluir que a ré FPF, aquando da realização da Final da Taça de Portugal de 1996, ao não impor a adopção de um sistema de controlo individual das entradas eficaz que permitisse a detecção de material perigoso, como os “very light”; nem impor a existência de um sistema de controlo por câmaras de vídeo que permitisse a imediata detecção e expulsão de indivíduos com condutas perigosas, não actuou com a diligência exigível que veio a adoptar em 1997, à qual uma entidade com as suas responsabilidades na segurança dos eventos, se julgaria obrigada, até em face das situações que internacionalmente se têm vivido.
Foi, infelizmente, necessário ocorrer a tragédia da morte do E, aos 36 anos de idade, para que fossem adoptadas medidas de segurança que, não sendo obviamente infalíveis contra actos de violência – nenhuma segurança, mesmo de Estado o é, como os acontecimentos recentes demonstram – cumpre, sem dúvida, os requisitos impostos pela razoabilidade do homem médio e que o legislador veio a consagrar expressamente como exigíveis.
Improcedem, portanto, as conclusões 1ª a 19ª, das alegações de recurso.

2.3. Violação dos critérios estabelecidos pelos artigos 486º, 494º e 496.º, todos do Código Civil, para fixação dos montantes indemnizatórios.
Pretende a ré que a fixação dos montantes indemnizatórios pela decisão sob recurso não obedeceu ao critério de equidade, não tem em mente a situação económica dos lesantes e dos lesados e o grau de culpa com que aqueles actuaram.
Afirma, para tanto, que o réu D é pobre, não tem quaisquer bens patrimoniais, encontra-se preso pela morte do Sr. E e é toxicodependente, situação que o acórdão não considerou, tendo apenas em mente a situação económica da ora recorrente;
Acresce que, a fixação dos montantes parcelares é tão incongruente que se valorizaram mais os danos não patrimoniais da viúva (7.000.000$00) que o próprio direito à vida do falecido (5.000.000$00) e, em igualdade com este direito à vida, foram avaliados os danos não patrimoniais dos filhos (5.000.000$00, para cada um), critérios que ofendem qualquer hierarquização dos direitos.
Conclui que os montantes fixados na 1.ª instância obedeceram a critérios equitativos e legais.
Porém, assim não ocorre.
Efectivamente, entende-se ser de confirmar o acórdão recorrido que fez correcta e adequada interpretação e aplicação quer dos factos assentes quer das disposições legais a eles respeitantes, pelo que, com ele se concorda, quer quanto à respectiva decisão, quer quanto aos seus fundamentos, aos quais se adere e para onde se remete ao abrigo do disposto nos artigos 726º e 713º, nº 5, do Código Processo Civil.
Aduzir-se-á apenas que, quanto aos montantes parcelares arbitrados – com excepção da indemnização pela perda do direito à vida que ficou manifestamente abaixo das que se vêm atribuindo e que podia ter sido arbitrada (18) em montante superior por se conter dentro do pedido global – são os mesmos absolutamente conformes quer aos factos provados quer à jurisprudência deste Supremo Tribunal (19) - não violando qualquer regra de equidade, designadamente, por desconsiderar a situação económica do lesante D.
De facto, apesar da provada situação económica do 1º R., os montantes arbitrados mostram-se conformes à perda sofrida pelos autores, nada havendo a alterar, até pela respectiva conformidade à jurisprudência relativa a casos análogos que mereceram tratamento idêntico, nos temos do artigo 8º, nº 3, do Código Civil.
Improcedem, desta forma, as conclusões 20º e 21º.

Termos em que ACORDAM os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em:
- julgar improcedente o recurso de revista interposto pela ré FPF;
- confirmar o acórdão recorrido;
Custas a cargo da recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Lisboa, 6 de Julho de 2004
Ponce de Leão
Afonso Correia
Ribeiro de Almeida
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(1) Diploma a que pertencerão todos os artigos doravante citados com a menção CPCivil.
(2) A respectiva apreciação será, porém, efectuada em primeiro lugar, uma vez que, em caso de procedência, prejudicaria as demais questões a apreciar, determinando a baixa do processo ao tribunal recorrido.
(3) Tem sido este o entendimento sufragado neste STJ, salientando-se exemplificativamente, dentre os vários acórdãos recentemente proferidos, o acórdão de 5 de Fevereiro de 2004, da 7.ª secção, revista n.º 4375/03, relatado pelo conselheiro Araújo Barros e disponível em www.dgsi.pt. e demais acórdãos aí citados.
(4) Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. III, pág. 247.
(5) Assim, Alberto dos Reis, a propósito do critério do reconhecimento do conceito, in “Código do Processo Civil anotado”, vol. V, pág. 54.
(6) José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pág. 306.
(7) Citado acórdão de 05.02.2004.
(8) Veja-se a “História da vida privada”, vol. I, Círculo de Leitores, 1989, págs. 37 e 38.
(9) José Manuel Meirim, in “A violência associada ao desporto”, BMJ 389.º - pág. 7.
(10) Efectivamente, seguindo este estudo (pág. 14), porque o futebol tem uma amplitude universal e características próprias, como a regularidade e previsibilidade dos jogos; os interesses económicos e de identificação social; a solenidade dos jogos mais importantes; o carácter espectacular e teatral e a existência de grandes massas anónimas, torna-se uma ocasião privilegiada para a exteriorização de certas lógicas sociais.
(11) Não se pode olvidar que os espectáculos de futebol geram largas receitas – veja-se a gerada pela Final da Taça de 1996 – razão pela qual, as entidades organizadoras não podem “poupar” nas despesas relativas à segurança de quem vai assistir ao espectáculo e, em consequência, o fomenta.
(12) Pedro Pitta e Cunha de Carvalho, in “Omissão e Dever de Agir em Direito Civil”, Coimbra, 1999, pág. 139 e segs.
(13) Entende Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 2.º vol., pág. 347, que “aparentemente, poderia, face a tal preceito, parecer que o delito omissivo requereria, na sua verificação, todos os requisitos geralmente previstos no artigo 483.º, n.º 1 e, ainda, a existência, legal ou convencional do dever de praticar o acto omitido. Mas não: porque entre os requisitos gerais, já se compreendia a violação; ora como pode uma omissão implicar violação, fora da existência de norma que mande praticar a actividade omitida?”.
(14) Assim, Pedro Pitta e Cunha, ob. e loc. cit., pág. 141.
(15) Autor, ob. e loc. cit., pág. 144 e 145.
(16) “O tipo médio e abstracto de diligência é o do bónus pater familias, isto é, do homem normal, de diligência média” - Vaz Serra, in “A culpa do devedor ou do agente”, in BMJ n.º 68, pág. 38.
(17) Vaz Serra, ob. e loc. cit., pág. 26.
(18) Não podendo agora ser alterada para montante superior uma vez que os autores não recorreram.
(19) Veja-se exemplificativamente o Acórdão de 28 de Maio de 2002, proferido no processo n.º 3636/02, relatado pelo signatário e disponível em www.dgsi.pt.