Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P901
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MAIA COSTA
Descritores: COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
VÍCIOS DO ART. 410º Nº 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
BURLA QUALIFICADA
ERRO
ENGANO
CRIME OMISSIVO
ACTOS CONCLUDENTES
MEDIDA CONCRETA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
CONDIÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: SJ20080618009013
Data do Acordão: 06/18/2008
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :

I - Na versão originária do CPP87, perante a inexistência de um recurso em sede de matéria de facto dos acórdãos do tribunal colectivo, o legislador criou o recurso de “revista alargada”, admitindo a ampliação dos poderes de cognição dos tribunais superiores, nos casos de recurso restrito à matéria de direito, ao conhecimento de certos “vícios” da decisão recorrida (insuficiência da matéria de facto, contradição insanável e erro notório na apreciação da prova), desde que resultantes do texto da mesma decisão, ou de nulidades que não devessem considerar-se sanadas (art. 410.º, n.ºs 2 e 3), visando compensar precisamente a inexistência de possibilidade de impugnação da matéria de facto e de alguma forma garantir, embora em limites muito estreitos, um segundo grau de jurisdição nesse âmbito.
II - Contudo, com a reforma legislativa de 1998 (Lei 59/98, de 25-08), que veio admitir, pela primeira vez no nosso sistema jurídico, o recurso em matéria de facto dos acórdãos finais do tribunal colectivo (para a Relação), o recurso de “revista alargada” para o STJ deixou de ter sentido quando previamente tiver sido interposto recurso da matéria de facto para a Relação, já que então fica plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição em matéria de facto.
III - Por isso, no sistema actual, a “revista alargada” justificar-se-á apenas quando a Relação funcionar como 1.ª instância; quando o recurso for interposto directamente para o STJ; ou quando os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP foram imputáveis à própria decisão da Relação. Na verdade, quando a Relação profere uma decisão nova em matéria de facto, alterando a da 1.ª instância, impõe-se o mesmo nível de controlo por parte do STJ sobre os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP.
IV - Os poderes de cognição do STJ abrangem ainda outras matérias que, contendendo com a matéria de facto, constituem inequivocamente matéria de direito. Compete a este Supremo Tribunal apreciar da legalidade das provas utilizadas (arts. 125.º e 126.º do CPP), do respeito pelo princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º) e seus limites (art. 163.º), do respeito pelo princípio in dubio pro reo. Com efeito, o STJ deverá apreciar se as provas utilizadas não constituem métodos proibidos de prova e se foram avaliadas, tendo em conta a fundamentação da matéria de facto, segundo os critérios estabelecidos legalmente, isto é, de acordo com a livre apreciação do julgador, limitada pelo especial valor de certos meios de prova (perícias científicas) e conjugada com as regras da experiência comum.
V - O STJ poderá ainda conhecer das nulidades (da sentença) previstas no art. 379.º do CPP, nomeadamente da inexistência de fundamentação, mas já não da suficiência (do grau de suficiência) desta, cuja análise arrastaria inevitavelmente o STJ para a discussão da própria matéria de facto, descaracterizando a natureza do recurso.
VI - O art. 10.º do CP faz equivaler, em geral, a omissão à acção, nos crimes de resultado. Mas a punibilidade do agente (aliás, omitente) depende da existência de um específico dever jurídico (não apenas ético) que o obrigue a agir, a evitar o resultado. O omitente, para ser punido, deve ocupar a posição de garante da não produção do resultado. Só esse dever jurídico de agir pode fundamentar a punição; doutra forma a punibilidade da omissão constituiria uma intromissão intolerável na esfera privada de cada um. Assim, o fundamento da punição da omissão reside na equivalência entre o desvalor da acção e o desvalor da omissão.
VII - Como crime de resultado (embora de resultado cortado), a burla admitirá, em princípio, a comissão por omissão. Contudo, dúvidas têm sido suscitadas sobre tal possibilidade, com fundamento no carácter de “execução vinculada” de que este tipo de crime se reveste. Ao exigir que o erro ou engano que determina a acção do ofendido seja astuciosamente provocado pelo agente, o legislador parece, numa primeira análise, ter excluído a possibilidade de omissão, aparentemente incompatível com a conduta activa que a descrição típica enuncia. Esse procedimento astucioso ou fraudulento faltará completamente quando a conduta imputável ao agente seja precisamente a falta de acção, ou, por outras palavras, o aproveitamento de um estado de erro do ofendido não provocado por actos “positivos” do agente.
VIII- Contudo, pode contrapor-se que, nesta hipótese de mero aproveitamento de um erro não provocado, a astúcia não deixará de estar presente (de forma negativa) na dissimulação, ocultação ou sonegação dolosa de informações determinantes para a formação de vontade do ofendido. E assim a questão estaria apenas em saber se o agente tem ou não a obrigação de informar correctamente o ofendido, ou seja, se tem ou não a posição de garante, consumando-se a burla por omissão no caso afirmativo.
IX - Neste sentido se tem pronunciado alguma doutrina: Maia Gonçalves (Código Penal Português, nota 4 ao art. 217.º), embora reconhecendo que a solução não é líquida nem pacífica, admite a omissão no crime de burla; Almeida Costa, mais desenvolvidamente, apoiado em extensa doutrina germânica, defende a mesma posição (Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, págs. 307-309).
X - Porém, este Autor distingue a omissão propriamente dita da prática da burla activamente, embora não por declarações expressas, mas sim por actos concludentes, que, segundo o mesmo, são as «condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas, a um critério objectivo – a saber, de acordo com as regras da experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes no sector de actividade –, se mostram adequadas a criar uma falsa convicção sobre certo facto passado, presente ou futuro».
XI - A idoneidade defraudatória deste tipo de actos não suscitará quaisquer dúvidas, assim como a sua equivalência às declarações expressas, desde que seja inequívoco o sentido ou significado dos aludidos actos concludentes, no contexto específico em que são praticados (aliás, a qualificação como “concludentes” traduz precisamente essa ideia).
XII - A distinção entre actos concludentes e omissão residiria em que, nos primeiros, o agente cria, assegura ou aprofunda o erro do ofendido, ao passo que na segunda o agente não pratica qualquer acto positivo, “limitando-se” a aproveitar-se do erro em que o ofendido já incorre, não o esclarecendo ou informando do mesmo.
XIII - Esta distinção tem uma importância capital, pois, na burla cometida através de actos concludentes, havendo uma acção por parte do agente, não há que indagar se ele tem o dever de garante, contrariamente ao que acontece com a omissão, em que só a existência e violação de um tal dever conduz à responsabilidade criminal.
XIV - Entre os actos concludentes inclui o mesmo Autor a realização de um contrato: «A assunção de uma obrigação contratual comporta, de forma concludente, o significado adicional de que o indivíduo se encontra na disposição de cumpri-la, pelo que, faltando esta última, se depara com um crime de burla». E precisa: «Assim, na órbita da conclusão de um contrato, se uma das partes se abstiver de declarar que não se encontra em condições de o cumprir, comete burla por actos concludentes, uma vez que a celebração de um negócio leva implicada a afirmação de que qualquer dos intervenientes tem a possibilidade de satisfazer as obrigações dele emergentes.»
XV - Este STJ tem assumido uma orientação jurisprudencial claramente em sentido convergente com a posição doutrinal exposta e defendida por Almeida Costa, admitindo que o crime de burla pode ser praticado não só por acção, como também por omissão, nos termos gerais previstos no art. 10.º do CP, e ainda que, na vertente activa, relevam não só as declarações expressas como também os actos concludentes, aceitando que dentro destes se podem enquadrar as condutas praticadas no domínio da negociação e da contratação que, violando as regras da boa-fé negocial, ocultem a (real) vontade, por parte do agente, de não cumprir a obrigação assumida (cf. Acs. de 29-02-1996, Proc. n.º 46740, de 22-05-2002, Proc. n.º 576/02 - 3.ª, de 20-03-2003, Proc. n.º 241/03 - 5.ª, de 27-04-2005, Proc. n.º752/05 - 3.ª, de 12-10-2006, Proc. n.º 4220/2006 - 5.ª, de 25-10-2006, Proc. n.º 2667/06 - 3.ª, e de 31-10-2007, Proc. n.º 3218/07 - 3.ª).
XVI - Resultando, em síntese, da factualidade assente pelo acórdão da Relação que:
- o arguido, agindo sempre em nome da sociedade G…, tinha celebrado, como locatário, um contrato de locação financeira sobre um determinado prédio rústico;
- posteriormente celebrou com a assistente um contrato-promessa de compra e venda, prometendo vender-lhe o referido prédio, ao qual previamente se deslocou acompanhado do gerente da assistente e do advogado desta;
- nunca o arguido referiu que o prédio estava sujeito àquele contrato de locação financeira e que, portanto, a firma por ele representada não era proprietária do mesmo;
- por conta do preço estipulado, o arguido recebeu PTE 47 500 000$00;
- cerca de dois meses depois da celebração do contrato-promessa, a assistente, que celebrou esse contrato na convicção de serem verdadeiras as disposições nele contidas, veio a saber que o prédio não era propriedade da firma representada pelo arguido;
- tentou então que o arguido celebrasse a prometida venda ou, ao menos, cedesse a sua posição no contrato de locação, mas o arguido inviabilizou tal negócio;
conquanto da mesma não conste quem tomou a iniciativa do negócio, nem como foram iniciados os contactos entre as partes, podemos concluir que a assistente outorgou o contrato-promessa de compra e venda na convicção de que o arguido representava a proprietária do prédio e que este, mesmo depois de se deslocar ao local com o promitente-comprador e o seu advogado, nunca o(s) esclareceu de que era apenas locatário financeiro do imóvel. Mais, o arguido sabia que o promitente-comprador estava a agir de boa-fé, ou seja, estava convencido de que ele representava a proprietária do prédio, tendo ocultado sempre que o verdadeiro proprietário era outro, facto que veio a ser conhecido pela assistente por outra fonte, já depois da celebração do dito contrato-promessa.
XVII - A indicada sucessão de actos – que patenteiam a má-fé negocial do arguido –, embora nunca envolvendo uma declaração expressa por parte do mesmo arrogando-se ou admitindo a qualidade de proprietário do prédio, constitui sem qualquer dúvida um conjunto de actos concludentes, pois deles a assistente, na sua boa-fé, só poderia depreender e concluir que o arguido era de facto o gerente da proprietária do prédio e, consequentemente, tinha poderes para o vender. Tais actos encerram uma idoneidade em tudo idêntica à das declarações expressas para enganar a assistente, isto é, para a manter na convicção errada de que o prédio pertencia à sociedade gerida pelo arguido.
XVIII - Aliás, o comportamento subsequente do arguido, inviabilizando qualquer hipótese de negociação e composição de interesses (nomeadamente com a transmissão da posição de locatário do prédio) e apropriando-se das diversas quantias recebidas por conta do contrato, é demonstrativo de que ele nunca realmente quis celebrar aquele negócio, mas apenas apropriar-se ilicitamente de valores através de engano ou erro da assistente. Acresce que foi o erro mantido pelo arguido que levou a assistente a celebrar o negócio e a entregar-lhe as quantias referidas.
XIX - Resulta, assim, que se mostram verificados os elementos típicos do crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º e 218.º, n.º 2, al. a), com referência ao art. 202.º, al. b), todos do CP, cometido por acção (e não por omissão): um prejuízo patrimonial motivado por erro astuciosamente provocado (por meio de actos concludentes) pelo agente.
XX - Perante o quadro factual descrito e considerando, ainda, que, o arguido, de 61 anos de idade, não tem antecedentes criminais, mostra-se adequada a pena de 3 anos de prisão fixada pela 1.ª instância.
XXI - Por outro lado, atendendo à ausência de antecedentes criminais, ao tempo decorrido desde a prática do crime (1999), encontrando-se o arguido a trabalhar e integrado socialmente, a ameaça da pena afigura-se suficiente para assegurar as finalidades da punição, devendo a pena fixada ser suspensa na sua execução.
XXII - Contudo, porque só o estabelecimento da reparação do dano provocado como condição dessa suspensão poderá garantir a eficácia desta pena substitutiva enquanto sanção penal, aquela deve ser condicionada ao pagamento de determinada quantia ao lesado, de cujo património saíram as quantias entregues por conta do pagamento do prédio em referência nos autos, num total de PTE 47 500 000$00. Como, porém, se provou que um dos cheques, no valor de PTE 10 000 000$00, foi emitido a favor da empresa I…, e que todos os restantes cheques, totalizando um valor de PTE 37 500 000$00, foram descontados pessoalmente pelo arguido, “revertendo o seu produto em seu exclusivo benefício”, deve ser este último valor o que integrará a condição da suspensão da pena.
XXIII - Por último, no que respeita ao prazo da suspensão, deve ser mantido o de 4 anos fixado pela 1.ª instância, pois, apesar de, segundo a versão actual do art. 50.º, n.º 1, do CP, esse prazo dever ser idêntico ao da medida da pena de prisão, disposição aparentemente mais favorável ao arguido, a aplicação do novo regime poderia dificultar o cumprimento da condição, sendo, pois, numa apreciação global, mais favorável ao arguido o regime estabelecido no art. 50.º, n.º 1, do CP na redacção anterior à Lei 59/2007, de 04-09.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. RELATÓRIO

AA foi condenado, pelo Tribunal Colectivo do 2º Juízo da Maia, como autor material de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217°, n° 1 e 218°, n° 2, alínea a), do Código Penal (CP), na pena de 3 anos de prisão, sendo igualmente condenado no pagamento à assistente e demandante civil BB-Imobiliária e Construção, SA da quantia de 47 500 000$00, sendo a pena suspensa pelo período de 4 anos, com a condição de indemnizar a assistente dessa quantia, no prazo de 3 anos.
Foi também julgado parcialmente procedente o pedido cível formulado pela assistente, sendo o arguido condenado a pagar-lhe a quantia de 47 500 000$00 e a demandada CC, Lda a pagar a quantia de 75 000 000$00.
O arguido interpôs recurso para a Relação do Porto, impugnando a matéria de facto e a matéria de direito. A Relação deu provimento ao recurso, alterando a matéria de facto e absolvendo o arguido, julgando ainda improcedente o pedido cível, dele absolvendo consequentemente o arguido e a demandada.
Desse acórdão recorre a assistente BB – Imobiliária & Construção, SA, que formula as seguintes conclusões:

a) O douto acórdão da Relação do Porto viola as normas da lei processual penal atinentes à produção da prova em sede de recurso, nomeadamente, os artigos 127° e 410°, n° 2 do Código de Processo Penal.
b) Não tendo apresentado nenhuma razão pertinente, fundada e relevante para alterar a matéria de facto, nos termos em que o fez, a Relação do Porto violou aberta e frontalmente o artigo 127° do Código de Processo Penal.
c) Deve, por isso, considerar-se como válida e definitivamente adquirida a matéria de facto dada como provada pelo douto acórdão do Tribunal Colectivo da Maia.
d) Nestes termos, deve condenar-se o arguido AA como autor de um crime de burla qualificada, (artigos 217° e 218°, n° 2, b) do Código Penal), nos precisos termos em que o fez o Tribunal de primeira Instância.
e) Mesmo depois das correcções da matéria de facto impostas pelo douto acórdão da Relação, será sempre forçoso continuar a condenar o mesmo arguido pelo crime de burla qualificada: se não por acção, ao menos e seguramente, por omissão, nos termos dos artigos 217° e 218°, conjugados com o artigo 10°, n° l do Código Penal.
f) A não se entender assim, será forçoso condenar o mesmo arguido pelo crime de abuso de confiança, nos termos do artigo 205°, n° 4, b) do Código Penal.
g) Em conformidade com o decidido em primeira Instância, deve outrossim considerar-se procedente o pedido civil apresentado pela recorrente, condenando-se o arguido AA e a sociedade demandada “CC, Lda.” ao pagamento da indemnização a seu tempo arbitrada.
O arguido respondeu nos seguintes termos:
1. Para que o STJ possa conhecer de qualquer dos vícios previstos no n° 2 do artigo 410° do CPP, é necessário que esses vícios resultem do próprio texto da decisão recorrida, sem o auxílio ou consulta de quaisquer outros elementos constantes do processo.
2. Não tendo sido invocado pela recorrente que resulte do texto da decisão recorrida qualquer dos vícios elencados no n° 2 do artigo 410° do CPP inexiste fundamento para que possa ser tal decisão censurada quanto à alteração da matéria de facto por si introduzida.
3. E resultando da própria apreciação da recorrente que a decisão recorrida faz sentido, é intrinsecamente consistente e compaginável com as regras da experiência, não se mostra sequer verificável qualquer de tais vícios nem violado o disposto nos artigos 410°, n° 2 e 127° do CPP.
4. Não consta dos factos provados qualquer razão ou circunstância que se subsuma a qualquer hipótese da qual derive para o recorrido qualquer dever jurídico que ultrapasse a conduta provada e lhe impusesse comportamento diferente do ponto de vista da valoração jurídico-criminal.
5. E deles não constam também quaisquer que permitam preencher a factualidade típica do crime de burla restando, nesta matéria, remeter por inteiro para o teor da própria decisão recorrida.
6. Dos factos provados igualmente não constam quaisquer que permitam concluir que ao arguido tenha sido entregue pela recorrente coisa móvel por título não translativo de propriedade da qual este se haja ilegitimamente apropriado.
7. Confirmando-se a decisão penal, nada há a alterar também no que ao pedido cível se decidiu, que assenta coerentemente nos factos provados.
8. A decisão recorrida não violou qualquer preceito substantivo, devendo ser confirmada, negando-se inteiro provimento ao recurso.
Por sua vez, o sr. Procurador-Geral Adjunto na Relação disse:
No seu recurso a assistente defende que o acórdão proferido no tribunal da Relação do Porto ofendeu as regras da experiência ao alterar a matéria de facto dada como provada no tribunal de primeira instância e ofendeu as normas dos artigos 217º e 205º, ambos do Código Penal por não ter considerado preenchidos os elementos típicos dos crimes aí previstos de burla e abuso de confiança.
No tribunal de primeira instância foi dado como provado que o arguido, com a intenção de obter benefício ilegítimo e com a intenção de prejudicar a assistente BB prometeu vender a esta, representada por DD, um prédio relativamente ao qual ocultou que não pertencia à firma que ele arguido representava, a CC, Lda, e que estava registado a favor da instituição financeira Imoleasing.
Para mais facilmente convencer a assistente BB que a firma por si representada, a CC, Lda, era a proprietária do prédio o arguido apresentou-se, perante o DD, acompanhado de um advogado que constituiu seu mandatário, mas que sabia ser amigo e advogado das empresas daquele DD.
O seu esquema ou artifício fraudulento teria consistido em afirmar contra a verdade, ser proprietário do prédio prometido vender ou, pelo menos em ocultar que o prédio estava registado a favor da Imoleasing e em, para melhor induzir o DD a aceitar o contrato promessa e a entregar-lhe dinheiro, fazer-se acompanhar pelo referido advogado aproveitando do bom relacionamento deste com a promitente compradora.
Considerou o tribunal da Relação que o tribunal de instância, ao dar como provado que o arguido, ao apresentar-se perante o DD, representante da assistente, o fez com intenção de melhor o enganar sobre a propriedade do imóvel contrariava as regras da experiência já que, por um lado a intervenção de um advogado, pessoa esclarecida e avisada relativamente à intervenção em negócios, nunca poderia corresponder, à luz da experiência comum, a uma intenção de ocultar a propriedade do imóvel, a não ser que se desse como provado que o próprio advogado estaria em conluio com o arguido.
Por outro lado estando em causa um contrato de compra e venda que permanece eficaz e válido entre as partes, este facto conflitua com a intenção de causar prejuízo.
Em conformidade, decidiu o tribunal da Relação alterar a matéria de facto provada nesta parte e deu como não provados os factos constantes da matéria de facto provada no acórdão da primeira instância, designadamente, sob os números 5 e 6.
Consequentemente absolveu o arguido da prática do crime de burla por se não verificar o necessário artifício fraudulento e a intenção de prejudicar, elementos essenciais ao preenchimento do tipo.
A evidência da razão que assiste aos Exmos senhores Desembargadores que subscreveram o acórdão agora recorrido dispensa melhores comentários.
Seria de todo irrazoável pensar que alguém, querendo enganar outrem sobre o conteúdo de um contrato, se servisse da colaboração de um advogado sem afirmar a conivência deste no artifício enganoso ou acreditando o agente que seria capaz de enganar o próprio advogado.
Alega agora a recorrente que, a não se dar como provada a actuação positiva do arguido no sentido do engano que lhe provocou, sempre teria de ser considerado que o engano foi provocado pela atitude passiva do arguido como resultou provado no ponto 9 do acórdão da primeira instância.
Foi dado como provado naquele ponto 9 que “Nunca o arguido referiu a DD que sobre o aludido prédio incidia o mencionado contrato”.
Não cuidamos de discutir aqui se o crime de burla poderá consumar-se tomando o agente uma atitude nativa face ao engano da vítima, o que nos parece não poder acontecer já que se não vê como nesse comportamento passivo se concretizaria o nexo causal entre o engano e o engenho enganoso, sendo esse nexo causal, que se concretiza no termo “provocou”, utilizado pelo legislador no artigo 217º do Código Penal essencial à integração do crime de burla.
De qualquer forma também não estaria demonstrada a intenção de prejudicar.
O contrato promessa de compra e venda é um contrato sinalagmático na medida em que dele resultam direitos e obrigações para ambas as partes e que estas consideram correspondentes em valor — arts. 424º e 830º , ambos do Código Civil.
Uma parte obriga-se a vender e a outra obriga-se a comprar determinada coisa pelo preço combinado.
Do contrato resultam efeitos que disciplinam o cumprimento do contrato ou o seu incumprimento e igualmente se impõem a ambas as partes.
Porque nenhuma das partes pode invocar o carácter alheio do bem prometido alienar, o contrato de compra e venda de bem alheio é válido entre partes - art. 892º do CC.
O contrato de leasing admite a cessão da posição contratual com a única exigência da comunicação à entidade credora e a anuência desta.
Por outro lado, sendo as obrigações que do contrato resultam idênticas em valor ou, pelo menos aceites como tal e sendo uma das consequências normais do contrato o não cumprimento, com os seus efeitos próprios, não se vê donde possa resultar para a assistente prejuízo não previsto pelo eventual não cumprimento.
Por aqui se vê que não é possível, na situação relatada no acórdão recorrido, ainda que não fosse alterada a matéria de facto relativa ao engenho enganoso, consubstanciar a prática do crime de burla previsto no artigo 217º do Código Penal.
É com alguma surpresa que vemos defender a prática do crime de abuso de confiança relativamente à apropriação da prestação entregue por uma das partes à outra no contrato-promessa de compra e venda.
As prestações entregues pelo promitente-comprador constituem sinal ou princípio de pagamento e passam a pertencer à parte que as recebe.
Embora o recebimento do sinal importe para quem recebe a obrigação de eventual restituição em dobro – artigo 442º do CC – só o incumprimento culposo poderá originar a devolução.
Só a obrigação de devolução do sinal poderia motivar que se pudesse pensar em eventual inversão do título de posse pela apropriação.
No caso o contrato mantém-se válido porque não foi denunciado e não foi invocado o incumprimento, nem foi exigida a devolução do sinal.
Inexiste, assim, a demonstração do elemento apropriação que pudesse suscitar a condenação pela prática do crime de abuso de confiança previsto no artigo 205º, por a apropriação ser um dos seus elementos essenciais.
Não merece provimento o recurso interposto pela assistente BB pelo que deve ser-lhe negado provimento.

Neste Supremo Tribunal de Justiça (STJ), a sra. Procuradora-Geral Adjunta, pronunciou-se sobre o recurso pela forma seguinte:

Do douto acórdão proferido e depositado, em 07.11.2007, no Tribunal da Relação do Porto (fls. 820 e segts.), que apreciou o recurso do acórdão do Colectivo do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Maia que concedeu provimento ao recurso do arguido absolvendo-o, veio interpor recurso agora para o Supremo Tribunal de Justiça o Assistente BB - Imobiliária & Construção, S.A. (fls. 858 e segts.). O MºPº através do Sr. Procurador-Geral Adjunto, respondeu, defendendo o decidido.
O acórdão absolutório foi proferido em recurso pelo Tribunal da Relação do Porto em processo em que o arguido AA havia sido condenado por autoria de um crime de burla qualificada nos termos dos artigos 217º, nº 1 e 218º, nº 2 al. a) do C. Penal, a 3 anos de prisão, suspensa na sua execução sob condições.

QUESTÃO PRÉVIA:
Temos muitas dúvidas sobre a legitimidade pela Assistente BB - Imobiliária & Construções, S.A., para recorrer deste Acórdão do Tribunal da Relação, por ser uma entidade, uma pessoa colectiva.
Podem-se constituir assistentes no processo penal, segundo dispõe o nº 1 do art. 68º do C.P.P. também as entidades a quem leis especiais confiram esse direito ou entidades de quem dependa a queixa ou a acusação particular.
Por um lado o crime denunciado e pelo qual foi condenado o arguido na 1ª instância o de burla qualificada do art. 218º, que não depende de queixa.
Por outro as entidades que poderão constituir-se assistente, estão previstas expressamente v.g. Património Cultural (Lei 13/85) Associação de Defesa do Ambiente e Lei 10/87, Associação Antiracista, Lei 20/96, Direito de Acção Popular das Mulheres, Lei 95/88, Acção Popular, Lei 83/95.
Parece-nos, assim, ser irrecorrível o Acórdão da Relação do Porto porque a BB- Imobiliária & Construção, S.A., não se poderia constituir assistente, nos termos do art. 68º do C.P.P. e esta impossibilidade suscita-nos algumas/muitas dúvidas sobre a legitimidade da mesma Assistente para recorrer do Acórdão - absolutório do Ministério Público (art. 401º e Ac. TRP de 9/7/97, C.J., 1997, 4, 230) pois, também como demandante civil não tem legitimidade para recorrer da parte criminal.
Mas se tal não for entendido então parece-nos que o recurso interposto pela Assistente poderá/deverá ser rejeitado, por improcedência porque para o Supremo Tribunal de Justiça só são admissíveis recursos sobre questões de direito conforme dispõe o art. 434º do C.P.P.
1- A Assistente no seu recurso, vem impugnar como resulta das conclusões, que segundo jurisprudência do Supremo Tribunal demarcam e limitam o conhecimento do recurso, quase exclusivamente matéria de facto para poder concluir que a matéria de facto dada como provada na 1ª instância é válida e definitiva e por isso integra o crime de burla qualificada p. e p. pelos arts. 217 e 218º, nº 4 b). Mas também conclui que se se mantiverem apenas os factos dados como provados no Acórdão do Tribunal da Relação, então estes integram, se não foi por acção por omissão, o crime de burla qualificada ou então o crime de abuso de confiança do art. 205º, nº 4 al. b) do C.P.
Constitui jurisprudência constante e pacífica deste Supremo Tribunal a orientação segundo a qual, no recurso para o S.T.J. das decisões finais do tribunal colectivo já apreciadas pelo Tribunal da Relação, está vedada a arguição dos vícios da sentença previstos nas als. a) a c) do nº 2 do art. 410º do C.P.P., posto que se trata de questão de facto, ou seja, de questão que não se contém nos poderes de cognição do S.T.J., sendo de rejeitar o recurso na parte em que são arguidos vícios previstos no nº 2 daquele preceito, bem como no segmento em que se impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto” (Ac. STJ de 28/2/07, P. 4698/06, 3º sec.).
2- Restam, pois, as questões de direito que a Assistente pretende defender - os factos dados como provados no acórdão absolutório da 1ª instância fundamentam a responsabilidade criminal do arguido AA pelo crime de burla ou pelo crime de abuso de confiança.
Após a modificação da decisão em recurso, o Tribunal da Relação do Porto fixou a matéria de facto (fls. 846 e segs.).
2.1.- O arguido, como sócio gerente da CC, Lda, acordou, por escrito de 30/4/99 com DD, em representação da BB- Imobiliária & Construção, S.A. prometendo vender o prédio - armazém e logradouro … descrito…, pelo preço de 96.500.000$00, por conta dos quais recebeu 5.000.000$00, como sinal e princípio de pagamento, cheque emitido por DD a favor do arguido.
Posteriormente recebeu 7.500.000$00 emitido por DD a favor do arguido e também 25.000.000$00 de igual modo. Todos estes cheques foram descontados pelo arguido. O DD emitiu ainda a 23/6/1999 um cheque de 10.000.000$00 a favor da Imoleasing, que recebeu.
Quem elaborou o contrato foi o dr. EE, na qualidade de advogado de DD, com documento que ele próprio obteve, e o arguido só se limitou a assinar o contrato, 2 meses depois a Assistente apurou que o próprio arguido não era titular do direito de propriedade do prédio e a CC Lda. apenas tinha um contrato de locação financeira imobiliária, com a Imoleasing Sociedade de Locação Financeira Imobiliária, S.A. proprietária do prédio.
A CC, Lda e a BB, Imobiliária & Construções, Lda. não trocaram entre si quaisquer quantias. A demandante civil insistiu junto do arguido e da CC, Lda no sentido de realizar a prometida compra e venda, sem sucesso e o representante legal da demandante tal como esta agiram de boa fé e a prática do arguido levar à impossibilidade do contrato-promessa.
No crime de burla p. no art. 217º C.P.. objectivamente, o agente, com intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo (para si ou outrem), induz outra pessoa em erro, fazendo, com que ela pratique actos que lhe causem a si ou a terceiros, prejuízos patrimoniais.
O crime de burla pode também substanciar um delito de intenção, tendo o agente de actuar com a intenção de enriquecimento, dando-se a consumação com o prejuízo patrimonial da vítima, mesmo que não se efective o enriquecimento.
E também integra um delito de “execução vinculada”, tendo de se traduzir na utilização de um meio enganoso criando astuciosamente e que induz outra pessoa num erro, levando esta a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios (A.M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do C.P. fls. 275 e segsts.)
A Assistente não tem dúvidas que a matéria fáctica que foi fixada pelo tribunal da Relação, não integra o crime de burla, no tipo objectivo do ilícito e coloca a hipótese de se verificar o crime de burla por omissão.
Para que se possa defender o disposto no nº 1 do art. 217º admite como possível a burla por omissão, é necessário que sejam preenchidos os requisitos gerais do art. 10º do C.P. e o agente se encontre investido num “dever de garante” pela não verificação do resultado, sem que se tenha por relevante que a actual versão do nº 1 do art. 217º não se refere ao “aproveitamento” e porque, como já acima dissemos integra a execução vinculada (também Comentário Conimbricense, fls. 307 (Ac. do S.T.J., 27/4/05, P. 752/05, 3º sec.).
De qualquer modo, independentemente das interpretações doutrinais ou jurisdicionais, não foram dados como provados factos que demonstrem que o arguido AA agiu com dolo directo, necessário ou eventual e por isso não resulta, sem dúvida alguma, que lhe possa se atribuída a autoria do crime de burla ou de abuso de confiança.
Assim parece-nos que o Acórdão absolutório do tribunal da Relação do Porto será irrecorrível por falta de legitimidade da Assistente, ou se assim não for entendido que deverá ser negado provimento ao recurso interposto pela Assistente BB - Imobiliária Construção, S.A. do Acórdão da Relação do Porto que absolveu o arguido AA.

Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (CPP), nada foi dito pelas partes.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Coloca a recorrente três questões:
a) Violação dos art. 127º e 410º, nº 2 do CPP, porque a Relação modificou a matéria de facto sem ter apresentado nenhuma razão fundada e relevante;
b) Integração dos factos, mesmo após a modificação a que a Relação procedeu, no crime de burla qualificada dos arts. 217º e 218º do CP, se não por acção, ao menos e seguramente, por omissão;
c) A não ser assim, subsunção dos mesmos factos ao crime de abuso de confiança do art. 205º, nº 4, b) do CP.
Previamente, porém, há que apreciar a questão da irrecorribilidade do recurso, por falta de legitimidade da assistente, questão suscitada pelo Ministério Público (MP) neste STJ.
Não tem pertinência a questão prévia. Na verdade, a assistente BB é a ofendida, já que titular do interesse protegido com a incriminação, e, como tal, tem direito a constituir-se assistente, nos termos da al. a) do nº 1 do art. 68º do CPP. De qualquer forma, o caso julgado formal que se formou sobre a sua admissão como assistente impede o reexame da questão. A legitimidade da assistente para recorrer resulta evidentemente do disposto na al. b) do nº 1 do art. 401º do CPP.
Posto isto, analisemos as questões suscitadas pela recorrente.

Falta de fundamentação da modificação da matéria de facto

Pretende a recorrente que seja considerada válida e definitivamente adquirida a matéria de facto assente na 1ª Instância, porque, em seu entender, a Relação não apresentou razões relevantes e fundamentadas para as alterações que operou na matéria de facto.
Revestindo o presente recurso a natureza de recurso de direito, importa delimitar com precisão os poderes de cognição do STJ no domínio do controlo da matéria de facto.
Recorde-se que, na versão originária do CPP de 1987, perante a inexistência de um recurso em sede de matéria de facto dos acórdãos do tribunal colectivo, o legislador criou o recurso de “revista alargada”, admitindo a ampliação dos poderes de cognição dos tribunais superiores, nos casos de recurso restrito à matéria de direito, ao conhecimento de certos “vícios” da decisão recorrida (insuficiência da matéria de facto, contradição insanável e erro notório na apreciação da prova), desde que resultantes do texto da mesma decisão, ou de nulidades que não devessem considerar-se sanadas (art. 410º, nºs 2 e 3), visando o legislador compensar precisamente a inexistência de possibilidade de impugnação da matéria de facto e de alguma forma garantir, embora em limites muito estreitos, um segundo grau de jurisdição nesse âmbito.
Contudo, com a reforma legislativa de 1998 (Lei nº 59/98, de 25-8), que veio admitir, pela primeira vez no nosso sistema jurídico, o recurso em matéria de facto dos acórdãos finais do tribunal colectivo (para a Relação), o recurso de “revista alargada” para o STJ deixou de ter sentido quando previamente tiver sido interposto recurso da matéria de facto para a Relação, já que então fica plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição em matéria de facto. Por isso, no sistema actual, a “revista alargada” justificar-se-á apenas quando a Relação funcionar como 1ª instância ou quando o recurso for interposto directamente para o STJ. E ainda numa terceira hipótese: quando os vícios do nº 2 do art. 410º foram imputáveis à própria decisão da Relação. Na verdade, quando a Relação profere uma decisão nova em matéria de facto, alterando a da 1ª instância, impõe-se o mesmo nível de controlo por parte do STJ sobre os vícios do art. 410º, nº 2. Esta é a jurisprudência uniforme do STJ. (1)
Mas os poderes de cognição do STJ abrangem obviamente outras matérias que, contendendo com a matéria de facto, constituem inequivocamente matéria de direito. Compete, efectivamente, ao STJ apreciar da legalidade das provas utilizadas (arts. 125º e 126º do CPP), do respeito pelo princípio da livre apreciação da prova (art. 127º) e seus limites (art. 163º), do respeito pelo princípio in dubio pro reo. O STJ deverá, pois, apreciar se as provas utilizadas não eram métodos proibidos de prova e se foram avaliadas, tendo em conta a fundamentação da matéria de facto, segundo os critérios estabelecidos legalmente, isto é, de acordo com a livre apreciação do julgador, limitada pelo especial valor de certos meios de prova (perícias científicas), e conjugada com as regras da experiência comum. É este controlo externo que está reservado ao STJ.
É estritamente dentro destes limites, insiste-se, que o STJ pode exercer o seu controlo, pois essas questões constituem matéria de direito.
Poderá ainda conhecer das nulidades (da sentença) previstas no art. 379º do CPP, nomeadamente da existência de fundamentação. Contudo, um aspecto importa clarificar: só a inexistência (ou insuficiência grosseira, manifesta ou notória) de fundamentação pode ser objecto de censura por parte do STJ, pois só essa nulidade integra matéria de direito. O controlo da suficiência (do grau de suficiência) da fundamentação arrastaria inevitavelmente o STJ para a discussão da própria matéria de facto, descaracterizando inevitavelmente a natureza do recurso.
Postas estas considerações genéricas, consideremos agora a matéria de facto estabelecida pela 1ª Instância:

A sociedade “BB – Imobiliária e Construção, S.A.” tem por objecto a compra e venda de imóveis e a revenda dos adquiridos para esse fim e a construção civil, tendo iniciado a sua actividade em 1993.
Por escritura pública de 22 de Setembro de 1995, lavrada no 4º Cartório Notarial do Porto, a fls. 63 a 65 do Livro de Notas ...... seu documento complementar, o arguido, intervindo por si e em representação da sociedade “CC, L.da”, com sede na Rua do........º....., Porto, celebrou com a sociedade “i.....– Sociedade de Locação Financeira Imobiliária, S.A.”, com sede em Lisboa, um acordo que denominaram de “Contrato de locação financeira com fiança”, figurando a primeira como locatária e esta última como locadora.
Tal contrato, com a duração de dez anos, tinha por objecto o prédio rústico composto de terreno destinado a construção, designado por Lote ..., sito na Zona Industrial da Maia Um, Sector X, da freguesia e concelho da Maia, descrito em ficha na Conservatória sob o número 801 e inscrito na respectiva matriz sob o art. 1 560.
Tal prédio foi adquirido pela locadora “.......... – Sociedade de Locação Financeira Imobiliária, S.A.” na mesma data e escritura, a “C............ – Combustíveis e Imobiliária, L.da”, tudo conforme cópias certificadas de fls. 172 a 194, aqui dadas como reproduzidas.
Entretanto, e quando, de acordo com o referido contrato, tinha já sido construído um armazém no referido prédio, que continuava na propriedade da locadora nos termos do contratado, o arguido resolveu engendrar um esquema por forma a conseguir arranjar dinheiro para si, à revelia da dona e locadora do referido imóvel.
Assim, convenceu DD, representante legal da sociedade “BB – Imobiliária e Construção, S.A.” de que era dono e legítimo possuidor do aludido prédio, o que sabia não corresponder à verdade, entrando em negociações com aquele, no sentido de lhe vender o mesmo prédio.
O arguido começou por se apresentar a DD, por intermédio de um mandatário, já falecido, que sabia ser amigo e advogado das empresas daquele, e em que este confiava plenamente, para melhor o convencer de que o prédio era seu, dizendo que tinha um armazém na Maia para vender.
Nesse mesmo dia, um Sábado, à tarde, o arguido, acompanhado desse mandatário, deslocou-se com DD ao local do referido armazém, onde lhe mostrou o mesmo.
Nunca o arguido referiu a DD que sobre o aludido prédio incidia o mencionado contrato.
Nesta sequência, na área desta comarca, em 30 de Abril de 1999, o arguido, como sócio-gerente da “CC, L.da”, acordou por escrito com DD, em representação da “BB – Imobiliária e Construções, S.A.”, prometendo vender a esta o prédio-armazém e logradouro a que corresponde o Lote ..., sito na ....................., inscrito na matriz urbana no artigo 1560 (lote) e descrito na Conservatória sob o nº ...., pelo preço de Esc. 96.500.000$00 (noventa e seis milhões e quinhentos mil escudos), por conta dos quais recebeu, nessa data, Esc. 5.000.000$00 (cinco milhões de escudos) como sinal e princípio de pagamento (através do cheque nº ......., do BES, emitido por DD a favor do arguido e que este descontou na instituição sacada), vindo, posteriormente, a receber mais Esc. 7.500.000$00 (sete milhões e quinhentos mil escudos) (através do cheque nº.........do BCP, emitido por DD a favor do arguido e que este descontou na instituição sacada), também Esc. 25.000.000$00 (vinte e cinco milhões de escudos) (através do cheque nº ..... do BCP, emitido por DD a favor do arguido e que este descontou na instituição sacada) e, a 23/06/1999, mais Esc. 10.000.000$00 (dez milhões de escudos) (através do cheque nº............, igualmente subscrito por DD, sobre o BCP).
O arguido fez constar no aludido contrato-promessa que a sua representada era proprietária do bem prometido vender, conforme cópia de fls. 38 e 39, aqui dada como reproduzida.
Ao agir como ficou referido e ao fazer constar do aludido contrato-promessa o que ficou dito, o arguido estava ciente de que fornecia e fazia constar informações falsas ao promitente-comprador quanto à propriedade do armazém e logradouro, informações essas que sabia serem determinantes para que DD, em nome da sua representada, celebrasse o contrato-promessa e entregasse ao arguido os montantes referidos, no total de Esc. 47.500.000$00 (quarenta e sete milhões e quinhentos mil escudos).
Causou, assim, o arguido à “BB” um prejuízo de Esc. 47.500.000$00 (quarenta e sete milhões e quinhentos mil escudos).
Após ter descoberto a real propriedade do imóvel, a assistente manifestou interesse em que o negócio se concretizasse por cessão da posição de locatária financeira e posterior aquisição da propriedade.
No entanto, o arguido inviabilizou a concretização de tal negócio.
O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de obter para si um enriquecimento ilegítimo, o que conseguiu, induzindo em erro e engano, que com astúcia provocou, o representante legal da “BB”, que acreditou serem verdadeiras as disposições contratuais apresentadas por aquele.
Sabia que o seu comportamento era proibido e punido por lei.

Da discussão da causa resultou ainda provada a seguinte matéria de facto do pedido de indemnização civil:

Volvidos cerca de dois meses da outorga do contrato-promessa dos autos, a demandante civil veio a apurar que a representante do arguido AA não era, nem nunca tinha sido titular do direito de propriedade que se arrogava sobre o descrito prédio.
Qualidade essa absolutamente imprescindível para legitimar a outorga do dito contrato-promessa.
Nessa altura, veio a constatar que o prédio alvo do sobredito contrato-promessa de compra e venda era propriedade da “I........ – Sociedade de Locação Financeira Imobiliária, S.A.”, entidade esta com a qual a demandada civil “CC, L.da” tinha celebrado um contrato de locação financeira imobiliária.
Por conta do ajustado preço de Esc. 96.500.000$00 previsto no contrato-promessa a demandante civil entregou ao arguido as seguintes quantias: em 30 de Abril de 1999, com a outorga do contrato-promessa, Esc. 5.000.000$00; em 02 de Junho de 1999, a quantia de Esc. 25.000.000$00; em 21 de Junho de 1999, a quantia de Esc. 7.500.000$00 e, em 23 de Junho de 1999, a quantia de Esc. 10.000.000$00, quantia esta titulada por cheque emitido à ordem da “I........
À excepção do cheque de Esc. 10.000.000$00 emitido a favor da “I.......”, todos os restantes foram descontados pelo arguido, revertendo o seu produto em seu benefício exclusivo.
A demandante civil insistiu por várias vezes junto do arguido e da “CC, L.da” no sentido da realização da prometida escritura de compra e venda, sem sucesso.
O representante legal da demandante civil agiu de boa fé, na convicção de serem verdadeiras as disposições contratuais apresentadas pelo arguido, e concretamente as relativas à propriedade do prédio em causa.
Por via da prática do arguido dada como provada, a demandante civil viu-se na impossibilidade de concretizar o negócio que tinha, de boa fé, ajustado com o mesmo.
Sendo que igualmente se viu privada das importâncias entretanto despendidas por conta do mesmo.
Circunstância essa que, para além de ter causado prejuízos patrimoniais à Autora, determinou a impossibilidade de realizar outros negócios.

Matéria de facto provada adicional:

O processo de desenvolvimento do arguido decorreu no seio da sua família de origem.
O arguido concluiu o curso industrial, com 17 anos.
De imediato, iniciou actividade laboral na empresa “Salvador Caetano” como controlador de tempos e métodos, local onde trabalhou durante 15/16 anos.
Paralelamente, trabalhava na Emissora Nacional como controlador de emissores.
Entretanto, contraiu matrimónio aos 27 anos de idade.
Em momento posterior, fundou a sociedade por quotas “CC, L.da”, assumindo a posição de sócio-gerente.
Esta empresa encerrou em Janeiro de 2000 e o arguido passou a trabalhar na “..., Artigos de Papelaria, S.A.”, sociedade onde é detentor de uma pequena quota.
Actualmente, o arguido reside com a mulher no Porto e trabalha como chefe de secção na papelaria acima referida, auferindo o vencimento líquido de € 600,00.
A mulher encontrava-se a receber subsídio de desemprego até ao passado mês de Outubro, altura em que este terminou. Iniciou o processo de reforma, aguardando uma resposta.
O arguido não tem antecedentes criminais.

Da discussão da causa não se provou a demais matéria de facto relevante da Acusação Pública e da contestação do arguido, e designadamente:

Que a “BB – Imobiliária e Construções, S.A.” tivesse entregado ao arguido a quantia de Esc. 7.500.000$00 no dia 02/06/1999 (da Acusação Pública);
Que o arguido ou a sociedade de que é sócio-gerente jamais se tivessem arrogado proprietários do imóvel a que se faz referência na Acusação (da contestação do arguido);
Que tivesse sido o Dr. EE, na qualidade de mandatária da assistente e com invocação expressa de tal qualidade, quem procedeu à elaboração do contrato …;
… contrato que inteiramente redigiu, com base nos documentos que ele mesmo obteve e que tinha na sua posse (designadamente Certidão da Conservatória do Registo Predial) (da contestação do arguido);
E que tal contrato tivesse sido apresentado ao arguido já redigido, simplesmente para ser assinado (da contestação do arguido);
Que o arguido e a sociedade “CC, L.da” nunca tenham negociado o que quer que fosse com a sociedade “BB – Imobiliária e Construção, S.A.” (da contestação do arguido);
Que a queixosa “BB – Imobiliária e Construção, S.A.” tivesse, desde o início das negociações, perfeito conhecimento da existência do contrato de locação financeira …;
… conhecimento que lhe advinha do advogado que o seu administrador mandatou para elaborar o contrato e mediar o negócio e de a tal administrador isso ter sido dito pelo próprio arguido, da primeira vez em que se encontraram (da contestação do arguido);
Que dos conhecimentos e saberes ligados à actividade comercial da assistente faça parte o perfeito conhecimento do significado das inscrições registrais, designadamente o saber que as inscrições sob a letra “F” não respeitam ao direito de propriedade (da contestação do arguido);
Que para o arguido e para a sociedade sua representada fosse indiferente que a queixosa adquirisse a “CC, L.da” o imóvel o que o fizesse directamente à “Imoleasing”, tal como lhes era indiferente que o adquirente fosse o representado do advogado Dr. EE ou a sociedade da qual aquele representado era administrador (da contestação do arguido);
Que uma eventual cessão da posição de locatária financeira importaria a liquidação de IVA e que o DD tivesse pretendido que a sociedade “CC, L.da” suportasse tal valor, o que esta, por não se encontrar contratado, não aceitou (da contestação do arguido);
Que jamais o arguido ou a sociedade “CC, L.da” tivessem recebido quer da queixosa, quer do seu administrador, qualquer cheque de Esc. 5.000.000$00 (da contestação do arguido);
Que nunca o arguido ou sociedade por si representada, “CC, L.da”, tivessem recebido qualquer quantia da “BB – Imobiliária e Construção, L.da” (da contestação do arguido);
Que nunca a queixosa tivesse interpelado a sociedade “CC, L.da” para a celebração do contrato prometido, nem para a celebração de qualquer outro negócio (da contestação do arguido);
Que nunca, até à celebração do contrato-promessa, o arguido tivesse tido qualquer contacto com a queixosa ou com o Sr. DD (da contestação do arguido).

A Relação, no âmbito do recurso interposto pelo arguido, procedeu a uma profunda alteração da matéria de facto, que fixou da seguinte forma:

A sociedade BB – Imobiliária e Construção, S. A., tem por objecto a compra e venda de imóveis e a revenda dos adquiridos para esse fim e a construção civil, tendo iniciado a sua actividade em 1993.
Por escritura pública de 22 de Setembro de 1995, lavrada no 4º Cartório Notarial do Porto, a fls. ../..do Livro de Notas ....... e seu documento complementar, o arguido, intervindo por si e em representação da sociedade CC, Lda, com sede na Rua do................., Porto, celebrou com a sociedade........ – Sociedade de Locação Financeira Imobiliária, S. A., com sede em Lisboa, um acordo que denominaram de contrato de locação financeira com fiança, figurando a primeira como locatária e esta última como locadora.
Tal contrato, com a duração de dez anos, tinha por objecto o prédio rústico composto de terreno destinado a construção, designado por Lote ....., sito na Zona Industrial da Maia Um, Sector X, da freguesia e concelho da Maia, descrito em ficha na Conservatória, sob o número 801, e inscrito na respectiva matriz, sob o art. 1560.
Tal prédio foi adquirido pela locadora I............ – Sociedade de Locação Financeira Imobiliária, S. A., na mesma data e escritura, a ............ – Combustíveis e Imobiliária, Lda, tudo conforme cópias certificadas de fls. 172 a 194, aqui dadas como reproduzidas.
O arguido, acompanhado do dr. EE, deslocou-se com DD ao local do referido armazém, onde lhe mostrou o mesmo.
Nunca o arguido referiu a DD que sobre o aludido prédio incidia o mencionado contrato.
O arguido, como sócio gerente da CC, Lda, acordou por escrito, datado de 30 de Abril de 1999, com DD, em representação da BB – Imobiliária e Construções, 5. A., prometendo vender a esta o prédio-armazém e logradouro a que corresponde o Lote..., sito na Zona Industrial da ....................inscrito na matriz urbana, no artigo 1560 (lote), e descrito na Conservatória sob o n.° 801, pelo preço de 96.500.000$00 (noventa e seis milhões e quinhentos mil escudos), por conta dos quais recebeu, nessa data, 5.000.000$00 (cinco milhões de escudos), como sinal e princípio de pagamento, através do cheque n.°........., do BES, emitido por DD a favor do arguido e que este descontou na instituição sacada, vindo, posteriormente, a receber mais 7.500.000$00 (sete milhões e quinhentos mil escudos), através do cheque n.º ........, do BCP, emitido por DD a favor do arguido e que este descontou na instituição sacada, também 25.000.000$00 (vinte e cinco milhões de escudos) através do cheque n.º ..............., do BCP, emitido por DD a favor do arguido e que este descontou na instituição sacada, e, a 23/06/1999, mais 10.000.000$00 (dez milhões de escudos), através do cheque n.° ....., igualmente subscrito por DD sobre o BCP.
Fora o dr. EE, na qualidade de advogado de DD, quem procedeu à elaboração do contrato.
O contrato este que inteiramente redigiu, com base nos documentos que ele mesmo obteve e que tinha na sua posse, designadamente, certidão da conservatória do registo predial.
Tal contrato foi apresentado ao arguido já redigido, simplesmente para ser assinado.
Volvidos cerca de dois meses da outorga do contrato-promessa dos autos, a demandante civil veio a apurar que a representada do arguido AA não era, nem nunca tinha sido titular do direito de propriedade sobre o descrito prédio.
Nessa altura veio a constatar que o prédio alvo do sobredito contrato-promessa de compra e venda era propriedade da Imoleasing – Sociedade de Locação Financeira Imobiliária, S.A., entidade esta com a qual a demandada civil CC Lda tinha celebrado um contrato de locação financeira imobiliária.
Após ter descoberto a real propriedade do imóvel, a assistente manifestou interesse em que o negócio se concretizasse por cessão da posição de locatária financeira e posterior aquisição da propriedade.
No entanto, o arguido inviabilizou a concretização de tal negócio.
À excepção do cheque de 10.000.000$00 emitido a favor da Imoleasing, todos os restantes foram descontados pelo arguido, revertendo o seu produto em seu benefício exclusivo.
Jamais o arguido ou a sociedade representada, CC, Lda, receberam, quer da queixosa, quer do seu administrador, qualquer cheque de 5.000.000$00.
Nunca o arguido ou a sociedade por si representada, CC, Lda, receberam qualquer quantia da BB – Imobiliária e Construção, Lda.
A demandante civil insistiu por várias vezes junto do arguido e da CC, Lda, no sentido da realização da prometida escritura de compra e venda, sem sucesso.
O representante legal da demandante civil agiu de boa fé, na convicção de serem verdadeiras as disposições contratuais contidas no dito contrato-promessa, e, concretamente, as relativas à propriedade do prédio em causa.
Por via da prática do arguido dada como provada a demandante civil viu-se na impossibilidade de concretizar o negócio que tinha, de boa fé, ajustado com o mesmo.
O processo de desenvolvimento do arguido decorreu no seio da sua família de origem.
O arguido concluiu o curso industrial, com 17 anos.
De imediato, iniciou actividade laboral na empresa Salvador Caetano como controlador de tempos e métodos, local onde trabalhou durante 15/16 anos.
Paralelamente, trabalhava na Emissora Nacional como controlador de emissores.
Entretanto, contraiu matrimónio aos 27 anos de idade.
Em momento posterior, fundou a sociedade por quotas CC, Lda, assumindo a posição de sócio gerente.
Esta empresa encerrou em Janeiro de 2000 e o arguido passou a trabalhar na M......, Artigos de Papelaria, S. A., sociedade onde é detentor de uma pequena quota.
Actualmente, o arguido reside com a mulher em Porto e trabalha como chefe de secção na papelaria acima referida, auferindo o vencimento líquido de € 600,00.
A mulher encontrava-se a receber subsídio de desemprego até ao passado mês de Outubro, altura em que este terminou. Iniciou o processo de reforma, aguardando uma resposta.
O arguido não tem antecedentes criminais.

Da discussão da causa não se provou a demais matéria de facto relevante da acusação pública e da contestação o arguido, e designadamente:

Entretanto, e quando, de acordo com o referido contrato, tinha já sido construído um armazém no referido prédio, que continuava na propriedade da locadora nos termos do contratado, o arguido resolveu engendrar um esquema, por forma a conseguir arranjar dinheiro para si, à revelia da dona e locadora do referido imóvel.
Assim, convenceu DD, representante legal da sociedade BB – Imobiliária e Construção, S. A., de que era dono e legítimo possuidor do aludido prédio, o que sabia não corresponder à verdade, entrando em negociações com aquele, no sentido de lhe vender o mesmo prédio.
O arguido começou por se apresentar a DD por intermédio de um mandatário, já falecido, que sabia ser amigo e advogado das empresas daquele, e em quem este confiava plenamente, para melhor o convencer de que o prédio era seu, dizendo que tinha um armazém na Maia para vender.
O arguido fez constar no aludido contrato-promessa que a sua representada era proprietária do bem prometido vender conforme cópia de fls. 38 e 39, aqui dado como reproduzido.
Ao agir como ficou referido e ao fazer constar do aludido contrato-promessa o que ficou dito, o arguido estava ciente de que fornecia e fazia constar informações falsas ao promitente-comprador quanto à propriedade do armazém e logradouro, informações essas que sabia serem determinantes para que DD, em nome da sua representada, celebrasse o contrato-promessa e entregasse ao arguido os montantes referidos, no total de 47.500.000$00 (quarenta e sete milhões e quinhentos mil escudos).
Causou, assim, o arguido, à BB um prejuízo de 47.500.000$00 (quarenta e sete milhões e quinhentos mil escudos).
O arguido agiu de forma livre voluntária e consciente com intenção de obter para si um enriquecimento ilegítimo, o que conseguiu, induzindo em erro e engano, que com astúcia provocou, o representante legal de BB …, que acreditou serem verdadeiras as disposições contratuais apresentadas por aquele.
Sabia que o seu comportamento era proibido e punido por lei.
Por conta do ajustado preço de 96.500.000$00 previsto no contrato-promessa, a demandante civil entregou ao arguido as seguintes quantias: em 30 de Abril de 1999, com a outorga do contrato-promessa, 5.000.000$00; em 2 de Junho de 1999, a quantia de 25.000.000$00; em 21 de Junho de 1999, a quantia de 7.500.000$00; e, em 23 de Junho de 1999, a quantia de 10.000.000$00, quantia esta titulada por cheque emitido à ordem da I..........
Sendo que, igualmente, se viu privada das importâncias entretanto despendidas por conta do mesmo.
Circunstância essa que, para além de ter causado prejuízos patrimoniais à autora, determinou a impossibilidade de realizar outros negócios.
A BB entregou ao arguido a quantia de 7.500.000$00 no dia 2/06/1999.
O arguido ou a sociedade de que é sócio gerente jamais se arrogaram proprietários do imóvel a que se faz referência na acusação.
O arguido e a sociedade CC, Lda, nunca negociaram o que quer que fosse com a sociedade BB – Imobiliária e Construção, S. A.
A BB – Imobiliária e Construção, S. A., tinha, desde o início das negociações, perfeito conhecimento da existência do contrato de locação financeira.
Conhecimento este que lhe advinha do advogado que o seu administrador mandatou para elaborar o contrato e mediar o negócio e de a tal administrador isso ter sido dito pelo próprio arguido, da primeira vez em que se encontraram.
Dos conhecimentos e saberes ligados à actividade comercial da assistente fazia parte o perfeito conhecimento do significado das inscrições registrais, designadamente, o saber que as inscrições sob a letra F não respeitavam ao direito de propriedade.
Para o arguido e para a sociedade sua representada era indiferente que a queixosa adquirisse a CC, Lda, o imóvel ou que o fizesse directamente, à I.......... …, tal como lhes fosse indiferente que o adquirente fosse o representado do Advogado dr. EE ou a sociedade da qual aquele representado era administrador.
Uma eventual cessão da posição de locatária financeira importava a liquidação de IVA e DD pretendeu que a sociedade CC, Lda, suportasse tal valor, o que esta, por não se encontrar contratado, não aceitou.
Nunca a queixosa interpelou a sociedade CC Lda. para a celebração do contrato prometido, nem para a celebração de qualquer outro negócio.
Nunca, até à celebração do contrato-promessa, o arguido teve qualquer contacto com a queixosa ou com o Sr. DD.


A Relação fundamentou da seguinte forma a sua decisão em matéria de facto:

Cabe registar, em breve parêntesis e como abreviada nota (justificada pela confusão em que o arguido caiu, ao impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto e ao valorar a discordância como erro notório na apreciação da prova), que a indicada impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto nada tem a ver com os vícios da decisão previstos no art. 410º, nº 2, als. a), b) e c), do C. de Processo Penal (além, questiona-se o julgamento; aquém, põe-se em causa a decisão, vista pelo seu texto, ainda que com recurso às regras da experiência comum).
Ora, no caso, o arguido impugna a decisão proferida sobre a seguinte matéria de facto: a enumerada como provada sob os nºs 5., 6., 7., 10., 11., 17., 21., 26. e 27. e a enumerada como não provada nas alíneas C), D), E), L) e M).
São os que seguem os factos enumerados como provados sob os nºs 5., 6. e 7., respectivamente:
“Entretanto, e quando, de acordo com o referido contrato, tinha já sido construído um armazém no referido prédio, que continuava na propriedade da locadora nos termos do contratado, o arguido resolveu engendrar um esquema, por forma a conseguir arranjar dinheiro para si, à revelia da dona e locadora do referido imóvel”.
“Assim, convenceu DD, representante legal da sociedade BB - Imobiliária e Construção, S. A., de que era dono e legítimo possuidor do aludido prédio, o que sabia não corresponder à verdade, entrando em negociações com aquele, no sentido de lhe vender o mesmo prédio”.
“O arguido começou por se apresentar a DD por intermédio de um mandatário, já falecido, que sabia ser amigo e advogado das empresas daquele, e em quem este confiava plenamente, para melhor o convencer de que o prédio era seu, dizendo que tinha um armazém na Maia para vender”.
Esta factualidade passa, em síntese, essencial, pela decisão, tomada pelo arguido, de engendrar um esquema tendente à obtenção, à custa de DD ou de BB ... de dinheiro, esquema sustentado no convencimento, deste, de que era, aquele, dono e legítimo possuidor do identificado prédio, para o que entrara em negociações com DD para a venda desse mesmo prédio, após ter sido apresentado por intermédio de um advogado, em quem este confiava plenamente (era advogado daquela sociedade e seu amigo), e de que o arguido se serviu para um melhor convencimento.
Para ancorar a sua discordância, não deixou o arguido de indicar uma única prova (pessoal): as declarações de DD.
Estas, não há dúvida (basta ler a transcrição delas), não deixaram de apontar, por um lado, para o tal convencimento, e, por outro, pela determinante intervenção do dito advogado, certo sendo que não conhecia o arguido, acrescendo que este advogado até era, para lá de amigo, advogado da BB ... , e que havia sido o mesmo (e não o arguido ou qualquer outra pessoa) quem havia apresentado o contrato-promessa para assinatura (do arguido e de DD, este na qualidade de representante - Presidente do Conselho de Administração da BB...).
Uma primeira nota não podemos deixar de apontar, qual seja a de esta realidade se nos revelar muito incipiente (ou, inócua, mesmo) para sustentar aquele estratagema (a não ser, evidentemente, que houvesse qualquer conluio entre o arguido e o dito advogado, porque nos parece evidente que se encontrou neste o factor decisivo, como adiante se vai ver).
Na verdade, DD (segundo as suas declarações, secundadas pelas do arguido) não conhecia o arguido e ninguém podia acreditar que aquele, por isso, somente perante a palavra deste, lhe fosse dar crédito, para mais quando ia ter lugar a celebração de um contrato-­promessa e, mais, uma deslocação, significativa, de dinheiro (inclusivamente, desde logo, procedeu-se à entrega, ao arguido, de 5.000.000$00), não se esquecendo, jamais, que DD era pessoa experimentada neste tipo de negócios; acresce que muito facilmente era possível (cuidado básico) verificar, pelo exame do atinente documento registral, qual a relação jurídica existente, ao tempo, entre o arguido e o dito prédio.
Ou seja, assentar, somente assim, em que o convencimento de DD tivesse sido levado a cabo pelo arguido é algo que não se pode, razoavelmente (as regras da experiência comum, sustentadas na posição, perante as coisas, de um homem médio; isto é, sem recurso ao do homem especialmente conhecedor) sustentar.
Mas que esse convencimento (ou, quando menos, aceitação como real) veio a ter lugar, pode-se aceitar (a respectiva plausibilidade não significa exclusividade, pois outras hipóteses se podiam colocar...), mas somente devido à actuação do dito advogado, que, diga-se assim, intermediara a negociação entre o arguido e DD e foi quem apresentara o contrato-promessa para assinatura (de ambos, no gabinete do segundo na BB...); dito de outro modo (claramente espelhado nas declarações de DD) a actuação (intervenção) do mesmo advogado foi o bastante para que DD não tivesse que dar importância ao que quer que fosse que tivesse rodeado a negociação e celebração do contrato-promessa, e, portanto, à posição activa do arguido.
Deste modo, o que se tinha de perspectivar, então, era se, por um lado, esse mesmo advogado e o arguido tinham concertado posições tendentes à celebração, por DD, na qualidade em que interveio, do dito contrato-promessa e para o dito fim ilícito, ou se, por outro lado, o arguido tivesse "ludibriado" o mesmo advogado (muito difícil de compreender, já que este, pelas funções que desempenhava para a BB ... não deixaria, muito singelamente, de diligenciar pela obtenção do dito documento registral; de todo o modo, se houvesse negligência, grosseira, de sua parte, tal não tinha de equivaler à actuação, astuciosa, do arguido), tudo, no entanto, longe do horizonte que o caso, em termos de factos, permite considerar.
E, depois, não obstante, muito mais difícil se torna admitir uma situação como essa quando se está face a um contrato válido (consubstanciando um contrato-promessa a obrigação de celebração do chamado contrato prometido, mais precisamente, da produção das declarações negociais a ele correspondentes, o facto de o promitente vendedor não ser o titular do direito de propriedade sobre o objecto do contrato definitivo, aquando da celebração daquele, não inquina a validade do mesmo, pela singela razão de que sempre podia - o caso até é paradigmático de tal circunstância -, ulteriormente, vir a adquirir o tal direito de propriedade; ao cabo e ao resto, somente aquando da celebração do contrato definitivo é que tal realidade se tinha de perfilar como indiscutível).
Por isso, não podemos deixar de modificar a decisão proferida sobre aquela matéria de facto (que releva, repete-se, para o que é essencial, de acordo com o acima dito), pela enumeração da mesma como factualidade não provada.
Com uma outra consequência, ao nível do facto enumerado como provado sob o nº 18., que tem de ser ajustado, no segmento em que se consignava que o arguido se arrogava como titular do atinente direito de propriedade, que, por isso, tem de ser eliminado desse facto.
Eis o que na matéria de facto enumerada como provada consta sob o nº 10:
"Em 30 de Abril de 1999, o arguido, como sócio gerente da CC, Lda, acordou, por escrito, com DD, em representação da BB - Imobiliária e Construções, S. A., prometendo vender a esta o prédio-armazém e logradouro a que corresponde o Lote ..., sito na Zona Industrial d....Sector ..., inscrito na matriz urbana, no artigo 1560 (lote), e descrito na Conservatória sob o nº ...., pelo preço de 96.500.000$00 (noventa e seis milhões e quinhentos mil escudos), por conta dos quais recebeu, nessa data, 5.000.000$00 (cinco milhões de escudos), como sinal e princípio de pagamento, através do cheque nº ...., do BES, emitido por DD a favor do arguido e que este descontou na instituição sacada, vindo, posteriormente, a receber mais 7.500.000$00 (sete milhões e quinhentos mil escudos), através do cheque nº ....., do BCP, emitido por DD a favor do arguido e que este descontou na instituição sacada, também 25.000.000$00 (vinte e cinco milhões de escudos), através do cheque nº ......., do BCP, emitido por DD a favor do arguido e que este descontou na instituição sacada, e, a 23/06/1999, mais 10.000.000$00 (dez milhões de escudos), através do cheque nº ...... igualmente subscrito por DD sobre o BCP.”
A discordância do arguido, em relação a este facto, registe-se, prende-se com a circunstância de o contrato-promessa nele referido não ter sido celebrado na data que nele consta (30 de Abril de 1999), já que, por um lado, prova real foi produzida (o documento de fls. 37, datado, também, de 30 de Abril de 1999) que aponta para uma diversa data (eis o teor, atinente, desse documento: “o contrato-promessa de compra e venda será outorgado no dia 4 de Maio de 1999”), e, por outro, da prova pessoal igualmente produzida (especialmente, das declarações de DD: e mais, acrescentamos nós, de toda ela) nada resultou que permitisse sustentar a afirmação de que fora, naquela primeira data (ou, já agora, na segunda), celebrado o dito contrato-promessa.
Mas, convenhamos, esta discrepância não pode determinar a conclusão, absurda, sustentada (em primeira via) pelo arguido, qual seja a da enumeração desse facto como não provado, pois (e é bastante, por indiscutivelmente relevante) não se pode pôr em causa (e o arguido, reconheça-se, não põe) a celebração do mesmo contrato-promessa (maxime, na vertente das declarações negociais): tem de determinar, sim, é a compatibilização (de forma a não se sustentar uma contradição existencial: a data de celebração não podia ser e não ser a mesma, certo sendo que não vemos como privilegiar o documento que corporiza o indicado contrato-promessa, em detrimento desse outro, e vice-versa), no que se refere àquele elemento, o que se alcança de um modo muito simples, pela afirmação, em termos de facto, do que o documento que corporiza o referido contrato-promessa dá, quanto a esse aspecto, a conhecer, ou seja, que aquele tem a data de 30 de Abril de 1999.
Por isso, esse facto nº 10., mantendo a sua enumeração como provado, tem de apresentar a seguinte redacção:
O arguido, como sócio gerente da CC, Lda, acordou, por escrito, datado de 30 de Abril de 1999, com DD, em representação da BB - Imobiliária e Construções, S. A., prometendo vender a esta o prédio-armazém e logradouro a que corresponde o Lote ..., sito na Zona Industrial da .................... matriz urbana, no artigo ... (lote), e descrito na Conservatória sob o nº ......, pelo preço de 96.500.000$00 (noventa e seis milhões e quinhentos mil escudos), por conta dos quais recebeu, nessa data, 5.000.000$00 (cinco milhões de escudos), como sinal e princípio de pagamento, através do cheque nº ......., do BES, emitido por DD a favor do arguido e que este descontou na instituição sacada, vindo, posteriormente, a receber mais 7.500.000$00 (sete milhões e quinhentos mil escudos), através do cheque nº ............, do BCP, emitido por DD a favor do arguido e que este descontou na instituição sacada, também 25.000.000$00 (vinte e cinco milhões de escudos), através do cheque nº ........, do BCP, emitido por DD a favor do arguido e que este descontou na instituição sacada, e, a 23/06/1999, mais 10.000.000$00 (dez milhões de escudos), através do cheque nº............, igualmente subscrito por DD sobre o BCP.
Eis o facto enumerado sob o nº 11:
"O arguido fez constar no aludido contrato-promessa que a sua representada era proprietária do bem prometido vender, conforme cópia de fls. 38 e 39, aqui dado como reproduzido".
Para sustentar a sua discordância, indicou as declarações de DD, que interpretou no sentido de que o mencionado contrato-promessa havia sido redigido pelo então Advogado, Dr. EE.
Em relação a este aspecto, algo decorre da pertinente prova produzida (declarações do arguido, declarações de DD e depoimento das testemunhas FF e GG) que o contrato-promessa em referência foi assinado nas instalações da BB..., pelo arguido e por DD, sendo que havia sido o Dr. EE quem o havia trazido já elaborado.
Mas não só: perpassou, com clareza suficiente (até pela menção expressa), pelas declarações de DD que quem havia elaborado o referido contrato havia sido aquele Causídico.
E isto, convenhamos, não custa a crer, não só porque mesmo o trazia consigo para assinar, como porque era Advogado e da assistente, tendo intermediado a realização do negócio, acrescendo o clausulado eminentemente técnico, que, razoavelmente, deixa supor ter sido elaborado por quem tem os indispensáveis conhecimentos; de todo o modo, mesmo que se pudesse, neste quadro, sustentar, razoavelmente, qualquer dúvida, então, por intervenção do princípio in dubio pro reo, sempre se teria de definir o facto em rigorosa obediência ao mesmo.
O que tem uma primeira consequência muito precisa, qual seja a de que fora o Dr. EE quem elaborara o indicado contrato-­promessa, que não, portanto, o arguido.
E, logo de seguida, uma segunda consequência, a de que, por ser assim, se não vê como (face ao que se conhece, naturalmente) podia o arguido fazer constar daquele contrato a menção de que a sua representada (a sociedade CC, Lda) era a proprietária do bem em destaque (isto na pressuposição de que era o que se pretendia referir quando, no texto contratual, se escreveu que o dito bem pertencia a esta sociedade).
Simples, por evidente, então, a conclusão: aquele facto tem de ser enumerado como não provado, assim se modificando a decisão proferida sobre essa matéria de facto.
Sob as alíneas c), d) e e) da matéria de facto enumerada como não provada consta, em correspondência, o que segue:
"Que tivesse sido o Dr. EE, na qualidade de mandatário da assistente e com invocação expressa de tal qualidade, quem procedeu à elaboração do contrato".
"Contrato que inteiramente redigiu, com base nos documentos que ele mesmo obteve e que tinha na sua posse, designadamente, certidão da conservatória do registo predial".
"E que tal contrato tivesse sido apresentado ao arguido já redigido, simplesmente para ser assinado”.
A discordância do arguido aponta no sentido de esta matéria de facto ter de ser considerada como provada, pois para tanto aponta a prova produzida e para os factos anteriores indicada.
Temos como evidente, indiscutivelmente, que o que se acabou de mencionar para o facto que, enumerado como provado, passou a enumerar-­se como não provado, tem a adequada relevância para estes factos, designadamente o relativo à elaboração do contrato-promessa, ainda que com alguns ajustamentos, designadamente o relativo à qualidade em que interveio o Dr. EE, que, como se colhe do documento de fls. 37, era o de "advogado" de DD, acrescendo que as declarações do arguido, em relação a esses aspectos de facto (sobrantes), apontaram no sentido de que esses factos tiveram lugar (o que, sem recurso, sequer, ao princípio in dubio pro reo, é razoável aceitar que assim tivesse sido, exactamente porque o Dr. EE era Advogado).
Por isso, altera-se a decisão proferida sobre essa matéria de facto, que passa a ser enumerada como provada, com a precisão de que o Dr. EE agiu na qualidade de Advogado de DD.
Os factos enumerados como provados sob os nºs 21., 26. e 27. são do seguinte conteúdo:
''21. Por conta do ajustado preço de 96.500.000$00 previsto no contrato-promessa, a demandante civil entregou ao arguido as seguintes quantias: em 30 de Abril de 1999, com a outorga do contrato-promessa, 5.000.000$00; em 2 de Junho de 1999- a quantia de 25.000.000$00; em 21 de Junho de 1999, a quantia de 7.500.000$00; e, em 23 de Junho de 1999, a quantia de 10.000.000$00, quantia esta titulada por cheque emitido à ordem da I.........
"26. Sendo que, igualmente, se viu privada das importâncias entretanto despendidas por conta do mesmo”.
"27. Circunstância essa que, para além de ter causado prejuízos patrimoniais à autora, determinou a impossibilidade de realizar outros negócios'”.
O que, em relação a estes factos, o arguido questiona é, somente, um preciso aspecto: o de ter sido a assistente quem procedeu à entrega, a si, das quantias indicadas.
E indica, para tanto, prova documental (cópias de cheques de fls. 38, 39 e 40).
Tem o arguido, evidentemente, razão, já que os pagamentos indicados não foram feitos pela assistente, como o demonstram, com clareza, esses mesmos documentos: os ditos cheques foram emitidos por DD, sobre uma conta sua e, não, sobre uma conta da assistente: ainda que os mesmos cheques se não reportem à totalidade daquelas quantias - a inicial, de 5.000.000$00, não está neles contemplado -, o certo é que aquela essencial conclusão não pode deixar de ser a mesma, face ao teor do documento de fls. 37, que ressalta que a quantia foi entregue pelo Dr. EE, como advogado de DD.
E a esta conclusão não obtempera o teor do contrato-promessa, que, para o que ora releva, se refere a um único pagamento efectuado, sem que fosse feita qualquer referência a quem o realizou, por um lado, e, por outro, as declarações de DD, quando se refere a suprimentos, pois estes caracterizam-se, sumariamente, pelo empréstimo de dinheiro à sociedade.
Daí que não se possa enumerar como provado o facto de terem sido feitas pela assistente aquelas entregas em dinheiro e, por coerência (ou consequência lógica), que a mesma tivesse ficado privada desse dinheiro, que tivesse sofrido prejuízos e que não tivesse podido fazer outros negócios.
Assim, não pode deixar de ser modificada aquela decisão relativa à matéria de facto, com a consequência de passarem esses precisos factos a ser enumerados como não provados.
Consta da enumeração dos factos não provados, sob as alíneas L) e M), respectivamente:
"Que jamais o arguido ou a sociedade por si representada, CC, Lda, tivessem recebido, quer da queixosa, quer do seu administrador, qualquer cheque de 5.000.000$00”.
"Que nunca o arguido ou a sociedade por si representada, CC, Lda, tivessem recebido qualquer quantia da BB - Imobiliária e Construção, Lda".
O que se acabou de dizer quanto à entrega das quantias em dinheiro tem, notoriamente, incidência sobre a decisão que estes factos mereceram no acórdão sob recurso, implicando (estando em causa aquelas, e unicamente, sabido quem efectuara a respectiva entrega, sabido está, por decorrência, que ninguém mais as veio a entregar) que os mesmos passem a ser enumerados como provados.
Enumerou-se como provado em 16. e 17., respectivamente:
"O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de obter para si um enriquecimento ilegítimo, o que conseguiu, induzindo em erro e engano, que com astúcia provocou, o representante legal de BB…, que acreditou serem verdadeiras as disposições contratuais apresentadas por aquele".
"Sabia que o seu comportamento era proibido e punido por lei".
O arguido, não obstante ter escrito que o facto nº 17. é conclusivo, fê-lo com base lapso de escrita (o que se colhe das conclusões 20ª e 21a e da motivação demonstra-o com clareza ), pois essa conclusividade reportou-a ao elemento (de facto) astuciosamente, constante do facto nº 16.
Há que dizer que esse facto, regra geral contido na parte final da enumeração dos factos provados consubstanciam um juízo de facto (conclusão de facto), que tem de estar assente noutros que o antecederam e que possibilitaram esse juízo ou conclusão, somente se devendo ter como puramente conclusivo se não tem esses outros factos a darem-lhe substância, justificação ou razão de ser.
Ora, na lógica do acórdão sob recurso, tout court, esse juízo ou conclusão aparece devidamente sedimentada pelos factos que definiram a actuação do arguido em relação a DD.
Sucede, porém, que, depois de modificada a decisão relativa à matéria de facto, já essa actuação não justifica que se formule esse juízo de facto (ou conclusão de facto), até porque, não revelando os mesmos natureza de ilícito criminal (maxime o de burla qualificada), têm de ser, naturalmente (pela própria natureza das coisas), eliminados dos factos enumerados como provados.
Assim, têm esses precisos factos de ser enumerados como não provados.
Também para que se não ponha em causa a coerência da decisão relativa à matéria de facto (pela eliminação das contradições), tem de se relegar para o acervo dos factos enumerados como não provadas aqueles que o acórdão recorrido enumerou como provados sob os nºs 12º. e 13º.
Finalmente, o facto n° 19. (qualidade essa – titular do direito de propriedade – absolutamente imprescindível para legitimar a outorga do dito contrato-promessa), tendo de se considerar uma afirmação de natureza jurídica (ou de direito) e, por isso, tem de se considerar como não escrito.

A recorrente imputa, como vimos, ao acórdão da Relação a violação dos arts. 127º (livre apreciação da prova) e 410º, nº 2 (vícios da matéria de facto) do CPP, por não ter apresentado “nenhuma razão pertinente, fundada e relevante para alterar a matéria de facto”.
Contudo, quanto aos vícios do art. 410º, nº 2, nenhum deles é específica e concretamente invocado pela recorrente. E, percorrendo a matéria de facto fixada pela Relação, não é detectável a verificação de algum desses vícios, os quais, segundo o preceito legal, devem resultar do próprio texto da decisão impugnada.
A matéria de facto da Relação acolhe, como vimos, uma versão dos factos completamente diversa da da 1ª Instância, mas igualmente coerente na sua estrutura. À luz do nº 2 do art. 410º do CPP, nenhuma censura merece o acórdão recorrido.
Mas o principal argumento da recorrente é a violação do princípio da livre convicção e o concreto exercício da utilização das regras de experiência comum por parte da Relação.
No entanto, trata-se de um domínio que, como ficou acima referido, o STJ não pode sindicar. O que pode fazer é apenas avaliar da legalidade das provas e dos critérios utilizados para as valorar. E é isso que se fará.
Da longa fundamentação elaborada pela Relação, atrás totalmente transcrita, resulta que a Relação analisou, uma a uma, as provas apresentadas em audiência, inclusivamente as aí produzidas oralmente e transcritas nos autos, avaliando-as segundo o princípio da livre apreciação da prova, de acordo com as regras da experiência comum, amiúde invocadas, e nunca segundo critérios, experiências ou convicções subjectivas, não comprovadas ou não motivadas, dos julgadores.
Todas as conclusões de facto a que a Relação chegou são objecto de pormenorizada justificação, à luz das provas e dos critérios e cânones legais estabelecidos para a sua apreciação.
Sendo assim, não pode deixar de concluir-se que a fixação da matéria de facto, exaustivamente fundamentada, insiste-se, assentou nos critérios e nas regras legais pertinentes.
Como se frisou, o controlo da suficiência da fundamentação (não sendo caso de insuficiência grosseira, manifesta ou notória) está subtraído à competência do STJ.
As conclusões a que a Relação chegou e que verteu na matéria de facto estão submetidas apenas ao controlo dos vícios do art. 410º, nº 2 do CPP, mas nenhum vício foi invocado pela recorrente, nem detectado na análise a que se procedeu.
Consequentemente, encontra-se definitivamente fixada a matéria de facto estabelecida pela Relação.
Improcede, portanto, a primeira questão colocada pela recorrente.


A subsunção dos factos ao crime de burla sob a forma de omissão

Impõe-se, de seguida, analisar se a nova factualidade é susceptível de importar responsabilidade criminal para o arguido, nomeadamente pelo crime de burla, pelo qual foi condenado na 1ª Instância, embora agora considerada sob a forma de comissão por omissão.
É esta a segunda questão posta à consideração deste STJ pela recorrente.
Previamente, porém, há que fazer uma breve indagação sobre a punibilidade do crime em referência por omissão.
O art. 10º do CP faz equivaler, em geral, a omissão à acção, nos crimes de resultado. Mas a punibilidade do agente (aliás, omitente) depende da existência de um específico dever jurídico (não apenas ético) que o obrigue a agir, a evitar o resultado. O omitente, para ser punido, deve ocupar a posição de garante da não produção do resultado.
Só esse dever jurídico de agir pode fundamentar a punição, doutra forma a punibilidade da omissão constituiria uma intromissão intolerável na esfera privada de cada um. Em resumo: o fundamento da punição da omissão reside na equivalência entre o desvalor da acção e o desvalor da omissão. (2)
Como crime de resultado (embora de resultado cortado), a burla admitirá, em princípio, a comissão por omissão.
Contudo, dúvidas têm sido suscitadas sobre tal possibilidade, com fundamento no carácter de “execução vinculada” de que o tipo de crime de burla se reveste. Ao exigir que o erro ou engano que determina a acção do ofendido seja astuciosamente provocado pelo agente, numa primeira análise, o legislador parece ter excluído a possibilidade de omissão, aparentemente incompatível com a conduta activa que a descrição típica enuncia. Esse procedimento astucioso ou fraudulento faltará completamente quando a conduta imputável ao agente seja precisamente a falta de acção, ou, por outras palavras, o aproveitamento de um estado de erro do ofendido não provocado por actos “positivos” do agente.
Contudo, pode contrapor-se que, nesta hipótese de mero aproveitamento de um erro não provocado, a astúcia não deixará de estar presente (de forma negativa) na dissimulação, ocultação ou sonegação dolosa de informações determinantes para a formação de vontade do ofendido.
E assim a questão estaria apenas em saber se o agente tem ou não a obrigação de informar correctamente o ofendido, ou seja, se tem ou não a posição de garante, consumando-se a burla por omissão no caso afirmativo.
Neste sentido se tem pronunciado alguma doutrina. Maia Gonçalves, embora reconhecendo que a solução não é líquida nem pacífica, admite a omissão no crime de burla(3). A. M. Almeida Costa, mais desenvolvidamente, apoiado em extensa doutrina germânica, defende a mesma posição. (4).
Mas da omissão propriamente dita há que distinguir, segundo este último autor, uma outra situação: a da prática da burla activamente, embora não por declarações expressas, mas sim por actos concludentes.
Na verdade, ele qualifica como tal as “condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas, a um critério objectivo – a saber, de acordo com as regras da experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes no sector de actividade -, se mostram adequadas a criar uma falsa convicção sobre certo facto passado, presente ou futuro”. (5).
A idoneidade defraudatória deste tipo de actos não suscitará quaisquer dúvidas, assim como a sua equivalência às declarações expressas, desde que seja inequívoco o sentido ou significado dos aludidos actos concludentes, no contexto específico em que são praticados (aliás, a qualificação como “concludentes” traduz precisamente essa ideia).
A distinção entre actos concludentes e omissão residiria em que, nos actos concludentes, o agente cria, assegura ou aprofunda o erro do ofendido, ao passo que na omissão o agente não pratica qualquer acto positivo, “limitando-se” a aproveitar-se do erro em que o ofendido já incorre, não o esclarecendo ou informando desse erro. (6).
Esta distinção tem uma importância capital, pois, na burla cometida através de actos concludentes, havendo uma acção da parte do agente, não há que indagar se ele tem o dever de garante, contrariamente ao que acontece com a omissão, em que só a existência e violação de um tal dever conduz à responsabilidade criminal.(7)
Entre os actos concludentes, inclui o mesmo autor a realização de um contrato: “A assunção de uma obrigação contratual comporta, de forma concludente, o significado adicional de que o indivíduo se encontra na disposição de cumpri-la, pelo que, faltando esta última, se depara com um crime de burla.” (8). E mais precisamente: “Assim, na órbita da conclusão de um contrato, se uma das artes se abstiver de declarar que não se encontra em condições de o cumprir, comete burla por actos concludentes, uma vez que a celebração de um negócio leva implicada a afirmação de que qualquer dos intervenientes tem a possibilidade de satisfazer as obrigações dele emergentes.” (9).
Na jurisprudência recente deste STJ encontram-se várias decisões sobre este tema.
No acórdão de 29.2.1996 (10)., considerou-se equiparável o aproveitamento do erro à sua provocação pelo agente. Citando: “…há situações em que o silêncio doloso sobre um erro preexistente se assimila à indução em erro para efeitos criminais; assim acontece quando a vítima desconhece a realidade, o agente se apercebe desta circunstância e causa a persistência do erro, prolongando-o e potenciando-o, ao impedir, com a sua astuciosa conduta omissiva do dever de informar, que a vítima se liberte dele”.
No acórdão de 22.5.2002 (11)., admitiu-se a consumação da burla, através de actos concludentes.
No acórdão de 20.3.2003 (12)., considerou-se que o não cumprimento doloso de um contrato-promessa, não tendo havido nunca vontade real de realizar o negócio correspondente e funcionando o contrato apenas como elemento do engano astuciosamente elaborado pelo agente, deve entender-se verificado um crime de burla.
No acórdão de 27.4.2005(13), reconheceu-se a admissibilidade da prática da burla através de actos concludentes ou por meio de omissão.
Igualmente no acórdão de 12.10.2006 (14)., se admitiu a burla consumada por actos concludentes, no âmbito da realização de um contrato de compra e venda.
No acórdão de 25.10.2006 (15)r., admitiu-se também a burla através de actos concludentes, escrevendo-se a esse propósito: “As regras da experiência e o princípio da boa-fé em sentido objectivo constituem elementos primordiais para avaliar a relevância de um determinado comportamento no contexto da tipicidade e ilicitude na execução vinculada do crime de burla. Nesta perspectiva, a deslealdade tida por inadmissível no comércio jurídico, o «domínio do erro» que viole os ditames da boa-fé consubstancia o desvalor característico do ilícito da burla. A actuação do agente tem de consistir em condutas adequadas a criar a falsa convicção sobre certo facto, e que criem ou assegurem o engano da vítima: estão neste caso as situações em que o agente se abstém de declarar que se não encontra em situação de cumprir, ou quando assume uma obrigação que sabe não poder cumprir, actuando com reserva mental dolosa.”
No acórdão de 31.10.2007 (16), também se considerou susceptível de consumação a burla por meio de actos concludentes ou de omissão.
Desta resenha jurisprudencial, não exaustiva, mas suficientemente reveladora das tendências jurisprudenciais do STJ, pode concluir-se, numa breve síntese, que este Tribunal admite que o crime de burla pode ser praticado não só por acção, como também por omissão, nos termos gerais previstos no art. 10º do CP. E ainda que, na vertente activa, relevam não só as declarações expressas, como também os actos concludentes. E mais: dentro destes podem enquadrar-se as condutas praticadas no domínio da negociação e da contratação que, violando as regras da boa-fé negocial, ocultem a (real) vontade, por parte do agente, de não cumprir a obrigação assumida.
Em suma, uma orientação jurisprudencial claramente em sentido convergente com a posição doutrinal exposta e defendida por A. M. Almeida Costa na obra citada.
Passemos agora a analisar os factos, tal como os fixou a Relação.
Podemos resumi-los assim:
O arguido, agindo sempre em nome da sociedade CC, tinha celebrado, como locatário, um contrato de locação financeira sobre um determinado prédio rústico. Posteriormente celebrou com a assistente um contrato-promessa de compra e venda, prometendo vender-lhe o referido prédio, ao qual se previamente deslocou acompanhado do gerente da assistente e do advogado desta. Nunca o arguido referiu que o prédio estava sujeito àquele contrato de locação financeira e que, portanto, a firma por ele representada não era proprietária do mesmo. Por conta do preço estipulado, o arguido recebeu 47 500 000$00. Cerca de dois meses depois da celebração do contrato-promessa, a assistente, que celebrou esse contrato na convicção de serem verdadeiras as disposições nele contidas, veio a saber que o prédio não era propriedade da firma representada pelo arguido. Tentou então que o arguido celebrasse a prometida venda ou, ao menos, cedesse a sua posição no contrato de locação, mas o arguido inviabilizou tal negócio.
Desta matéria de facto não consta quem tomou a iniciativa do negócio, nem como foram iniciados os contactos entre as partes. Certo é, porém, que a assistente outorgou o contrato-promessa de compra e venda na convicção de que o arguido representava a proprietária do prédio; e que este, mesmo depois de se deslocar ao local com o promitente-comprador e o seu advogado, nunca o (ou os) esclareceu que era apenas locatário financeiro do mesmo. O arguido sabia que o promitente-comprador estava agindo de boa-fé, ou seja, estava convencido de que ele representava a proprietária do prédio, tendo ocultado sempre que o verdadeiro proprietário era outro, facto que veio a ser conhecido pela assistente de outra fonte (ignora-se qual), já depois da celebração do dito contrato-promessa.
A má-fé negocial do arguido é, a todos os títulos, evidente. Ele comportou-se activamente como proprietário (melhor, como representante da proprietária), iniciando e intervindo activamente nas negociações para a venda do prédio, ajustando o preço, deslocando-se mesmo ao local acompanhado da outra parte, e finalmente celebrando o contrato-promessa, como sócio-gerente da sociedade CC, que declarou então ser proprietária do prédio em referência. E recebendo logo uma primeira fatia do preço, a que outras se seguiram, até ao montante de 47 500 000$00.
Esta sucessão de actos, embora nunca envolvendo uma declaração expressa por parte do arguido arrogando-se ou admitindo a qualidade de proprietário do prédio, constitui sem qualquer dúvida um conjunto de actos concludentes, pois deles o representante da assistente, na sua boa-fé, poderia depreender e concluir que o arguido era de facto o gerente da proprietária do prédio e consequentemente tinha poderes para o vender, de forma que esses actos encerram uma idoneidade em tudo idêntica à das declarações expressas para enganar a assistente, isto é, para a manter na convicção errada de que o prédio pertencia à sociedade gerida pelo arguido.
Aliás, o comportamento subsequente do arguido, inviabilizando qualquer hipótese de negociação e composição de interesses (nomeadamente com a transmissão da posição de locatário do prédio) e apropriando-se das diversas quantias recebidas por conta do contrato, é demonstrativo de que ele nunca realmente quis celebrar aquele negócio, mas apenas apropriar-se ilicitamente de valores através de engano ou erro da assistente.
Acresce que é incontestável que foi o erro mantido pelo arguido que levou a assistente a celebrar o negócio e a entregar-lhe as quantias referidas.
Estão, assim, verificados todos os elementos típicos do crime de burla (cometido por acção): um prejuízo patrimonial motivado por erro astuciosamente provocado (por meio de actos concludentes) pelo agente.
Procedem, pois, as considerações da recorrente quanto à responsabilidade criminal do arguido pelo crime de burla, embora sob a forma de comissão por acção, e não por omissão, como vem por ela alegado.
Os factos integram um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º e 218º, nº, 2, a), com referência ao art. 202º, b), todos do CP.
Prejudicado fica, assim, o conhecimento da última questão colocada pela recorrente, a título meramente residual (a prática do crime de abuso de confiança).

Determinação da medida da pena

Perante os factos provados e a sua subsunção ao crime de burla qualificada, punido nos termos das disposições atrás citadas com uma pena abstracta de 2 a 8 anos de prisão, há que fixar a pena concreta à luz dos critérios legais estabelecidos nos arts. 40º e 71º do CP, que determinam que a pena deverá ser fixada em função da culpa e das exigências de prevenção, geral e especial, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, sejam favoráveis ou desfavoráveis ao agente.
No caso dos autos, há que considerar, desde logo, a muito elevada ilicitude dos factos, a fortíssima intensidade do dolo, o enorme prejuízo patrimonial provocado ao gerente da assistente, não tendo o arguido reparado, ainda que parcelarmente, tal prejuízo, circunstâncias estas que agravam notoriamente a responsabilidade do arguido.
Em seu benefício, apurou-se apenas a inexistência de antecedentes criminais, sendo certo que tem actualmente 61 anos de idade (nascido a 6.1.1947).
Tendo em atenção as circunstâncias referidas e a moldura penal, entende-se adequada a pena de 3 anos de prisão, anteriormente fixada pela 1ª Instância, a qual, não excedendo a medida da culpa, satisfaz as exigências de prevenção geral e especial.
Atendendo à ausência de antecedentes criminais e ao tempo decorrido desde a prática do crime, encontrando-se o arguido a trabalhar e integrado socialmente, considera-se que a ameaça da pena será suficiente para assegurar as finalidades da punição, de forma a viabilizar a suspensão da pena de prisão.
Mas entende-se que só o estabelecimento da reparação do dano provocado como condição dessa suspensão poderá garantir a eficácia desta pena substitutiva enquanto sanção penal.
Considera-se, pois, que a suspensão da pena de prisão deve ser condicionada ao pagamento ao lesado DD, de cujo património saíram, segundo a matéria de facto fixada pela Relação, as quantias entregues por conta do pagamento do prédio em referência nos autos, num total de 47 500 000$00. Como, porém, se provou que um dos cheques, no valor de 10 000 000$00, foi emitido a favor da I.........., e que todos os restantes cheques, totalizando um valor de 37 500 000$00, foram descontados pessoalmente pelo arguido, “revertendo o seu produto em seu exclusivo benefício”, será este último valor que integrará a condição da suspensão da pena.
Quanto ao prazo da suspensão, entende-se dever manter-se o prazo de 4 anos, apesar de, segundo a versão actual do art. 50º, nº 1 do CP, esse prazo dever ser idêntico ao da medida da pena de prisão, disposição aparentemente mais favorável ao arguido, mas que poderia dificultar o cumprimento da condição, sendo, pois, numa apreciação global, mais favorável ao arguido a aplicação da versão do art. 50º, nº 1 do CP anterior à Lei nº 59/2007, de 4-9.

Pedido cível

Quanto ao pedido cível, e face à matéria de facto estabelecida pela Relação, que considerou não provado que a assistente e demandante civil tivesse feito a entrega de qualquer quantia a favor do arguido ou da sociedade por ele representada, tal pedido terá necessariamente de improceder.

III. DECISÃO

Com base no exposto, acorda-se em conceder provimento parcial ao recurso nos seguintes termos:
a) Nega-se provimento ao recurso, na parte em que põe em causa a matéria de facto fixada pela Relação;
b) Condena-se o arguido, como autor material, em comissão por acção, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º e 218º, nº 2, a) do CP, com referência ao art. 202º, b) do mesmo diploma, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa por 4 (quatro) anos, com condição de, nesse prazo, pagar a DD a quantia de 37 500 000$00 (convertidos em euros);
c) Julga-se improcedente o pedido cível;
d) Condena-se a recorrente em 5 UC de taxa de justiça e nas custas cíveis.

Lisboa, 18 de Junho de 2008

Eduardo Maia Costa (relator)

Pires da Graça (tem voto de vencido, no sentido de que «decretava o reenvio do processo, nos termos dos arts. 410.º, n.º 2, e 426.º, n.ºs 1 e 2, do CPP», por se me afigurar existirem meios que inviabilizam a decisão da causa enquanto não forem supridos)
Pereira Madeira (com voto de desempate nos termos do artigo 419º - 2 do CPP)
________________________________
(1) No mesmo sentido, Paulo Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, anotações nºs 12 e 13 ao art. 410º.
(2) Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, p. 685.
(3) Maia Gonçalves, Código Penal Português, nota 4 ao art. 217º.
(4) Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pp. 307-309.
(5) Almeida Costa, loc. cit., p. 301.
(6) Almeida Costa, loc. cit., p. 302.
(7) Almeida Costa, loc. cit., p. 302.
(8) Almeida Costa, loc. cit., p. 305.
(9) Almeida Costa, loc. cit., p. 304
(10) Proc. nº 46740, rel. Sousa Guedes, publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6º, fasc. 4, pp. 555 ss., com extensa anotação de M. Simas Santos.
(11) Proc. nº 576/02, 3ª Secção, rel. Lourenço Martins. Este acórdão, como os adiante citados, estão disponíveis em www.stj.pt\boletiminterno\.
(12) Proc. nº 241/03, 5ª Secção, rel. Simas Santos.
(13) Proc. nº 752/05, 3ª Secção, rel. Sousa Fonte.
(14) Proc. nº 4220/06, 5ª Secção, rel. Arménio Sottomayor.
(15) Proc. nº 2667/06, 3ª Secção, rel. Henriques Gaspar.
(16) Proc. nº 3218/07, 3ª Secção, rel. Armindo Monteiro.