Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05P130
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
CRIME PRIVILEGIADO
DIMINUIÇÃO DA ILICITUDE
Nº do Documento: SJ200502230001303
Data do Acordão: 02/23/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Sumário : 1ª - O crime previsto no artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, constitui um tipo privilegiado em razão do grau de ilicitude em relação do tipo fundamental de artigo 21°, e pressupõe, por referência ao tipo fundamental, que a ilicitude do facto se mostre «consideravelmente diminuída» em razão de circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, e a qualidade ou a quantidade dos produtos.
2ª - A essência da distinção entre os tipos fundamental e privilegiado reverte ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), mediada por um conjunto de circunstâncias objectivas que se revelem em concreto, e que devam ser conjuntamente valoradas por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei.
3ª - Os critérios de proporcionalidade que devem estar pressupostos na definição das penas, constituem, também, um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de «considerável diminuição de ilicitude».
4ª - A detenção de 4 grs. de heroína e de 5 grs. de cocaína, por si só, apontam para uma configuração de ilicitude que deve ser considerada como consideravelmente diminuída, a preencher o tipo de ilicitude do artigo 25° do Decreto-Lei n° 15/93, 22 de Janeiro. de 23 de Fevereiro de 2005
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. No processo comum (colectivo) do tribunal do Círculo Judicial do Barreiro, n° 35/03.1PEBRR (2° Juízo Criminal) o arguido do A, identificado no processo, foi julgado e condenado como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art° 21°, n° l, do Decreto-Lei nº 15/93, na pena de cinco anos de prisão.
Não se conformando com a decisão, recorreu para o tribunal da relação, que, concedendo provimento parcial ao recurso, condenou o arguido na pena de (quatro) anos de prisão.

2. Ainda inconformado, recorre agora para o Supremo Tribunal, fundamentando o recurso nos termos da motivação que apresentou e que termina com a formulação das seguintes conclusões:

1. O arguido foi condenado, em sede de primeira instância, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.° do Dec. Lei n.° 15/93, de 22/01, na pena de 5 (cinco) anos de prisão.

2. Inconformado com a decisão proferida, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, recorrendo da matéria de facto de direito.
3. O recurso interposto teve provimento parcial, vendo o Recorrente a medida da sua pena alterada de 5 (cinco) para 4 (quatro) anos de prisão.
4. O recorrente pretendia a alteração da qualificação jurídica, por entender que estaria perante um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.° e não pelo art. 21.° do referido Dec. Lei n.° 15/93, de 22/01.
5. A decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, contém um voto de vencido, que contrariamente ao decidido, refere que a factualidade julgada provada integra o crime de tráfico de menor gravidade do artigo 25. °, que não já a do artigo 21°, como foi decidido.

6. Por não se conformar com a manutenção da qualificação jurídica de um crime de tráfico p. e p. pelo art. 21.°, e consequente medida da pena, interpôs o presente recurso.

7. Da materialidade provada, cremos ter ampla aplicação a integração da conduta do arguido na previsão do tipo legal de tráfico de menor gravidade previsto e punido pelo art. 25° do mesmo diploma legal, atento o facto de a culpa se mostrar consideravelmente diminuída e de o grau de ilicitude do facto não ser elevado.

8. A realidade jurídica nacional encontra-se completamente desfasada da realidade e os nossos tribunais condenam, sobretudo, os pequenos traficantes.
9. Na senda da declaração de voto de vencido, a factualidade julgada provada integra o crime de tráfico de menor gravidade do artigo 25. °, que não já a do artigo 2°, como se decidiu.

10. A situação em apreço tem total cabimento no artigo 25.° do Dec. Lei n.° 15/93, porque o seu objectivo é precisamente o de "permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza, encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativo da tipificação do art. 21° e têm resposta adequada dentro da moldura penal prevista na norma indicada em primeiro lugar".

11. O recorrente não passa do que se pode designar por um mero e solitário "vendedor de rua", que venderia directamente aos consumidores, tratando-se do último elo da cadeia, que fica mais exposto à actuação policial.

12. Os meios utilizados são "nenhuns’
13. A forma de venda (sendo que não chegou sequer, a haver venda) será vulgaríssima de "Lineu".
14. As qualidades das substâncias apreendidas são incrivelmente desconhecidas.
15. Apenas relevam as quantidades de "4,372 gr líquido" e de "5,110 bruto", de heroína e cocaína, respectivamente.
16. No caso concreto estamos perante uma concreta situação de mera detenção de tais produtos, já que não logrou provar-se qualquer acto e venda dos mesmos a quem quer que seja, mas antes e tão só que era esse o seu propósito"

17. A conclusão segundo a qual "o arguido agiu com intenção lucrativa", é manifestamente excessiva.
18. Revela-se absolutamente incompatível com o facto julgado provado sob o n.° 6, ou seja, que "... o arguido destinava-os à venda a terceiros que para esse efeito o procurassem, guardando para si os proventos que auferisse dessa actividade";

19. Não se logrou provar (até pelo contrário ficou por demonstrar atenta a deficiente motivação de facto) que o arguido destinava o produto apreendido à sua comercialização e que visava obter lucro com essa conduta.

20. É desconhecida a qualidade, não só da heroína, como também da cocaína, consabidamente "cortadas", - o que não nos permite emitir qualquer juízo no que se refere à sua maior ou menor aditividade.

21. Partindo do pressuposto o grau de pureza da heroína, é de 20%, isso equivale a dizer que a quantidade de 4,372 gr, não ultrapassariam os 0,4 gr; o que de acordo com a Portaria n.° 94/96, de 26/03, significa que essa quantidade equivale ao correspondente a um consumo de 4 dias.
22. O mesmo se aplica em relação aos 5,110 gr brutos de cocaína, que sensivelmente, correspondem a um consumo pelo mesmo período de tempo.
23. Encontra-se preenchido todo um circunstancialismo objecto da previsão do art. 25º do Dec. Lei n.° 15/93, o que significa sem qualquer margem para dúvidas, que "a ilicitude do facto mostra-se consideravelmente diminuída’.

24. Está no entanto, o arguido condenado numa pena de 4 anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.° do Dec. Lei n.° 15/93.

25. A conduta do arguido, todo o enquadramento social e familiar deste, ausência de antecedentes criminais e o facto de não se ter demonstrado qualquer elemento agravante, deveriam subsumir a conduta do arguido ao disposto na alínea a) do art. 25° do D.L. 15/93, censurando o facto, mas não o privando da liberdade.

26. O arguido deveria ser condenado nos termos previstos e punidos na alínea a) do artigo 25° do D.L. 15/93 em pena, cuja execução, pudesse ser suspensa.

27. Devem ser considerados os arts. 71.° e 72.° do Código Penal, dado que a culpa é a culpa do facto sem deixar de se atender à personalidade e às perspectivas da socialização do agente.

28. Na determinação da medida concreta da pena deve o juiz atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.

29. Há que atender à influência da pena sobre o agente, tendo em consideração as condições pessoais e a situação económica deste.
30. É da aplicação destas regras e elementos que se constrói o percurso que leva à determinação da medida da pena.

31. Ao recorrente não foram apreendidos objectos normalmente usados pelos traficantes já com alguma desenvoltura, como balanças, nem lhe foram apreendidos objectos em ouro ou semelhantes, denunciadores de um tráfico intenso e aproveitador das necessidades dos consumidores - cfr. Ac. do STJ de 12.07.2000, in www.dgsi.pt (n.° convencional: JSTT00038106; N.°do documento: SJ20000712002663).
32. Não se provou que o dinheiro apreendido ao arguido (259,05 euros) fosse produto da venda de estupefaciente.

33. Não se provou que o arguido tivesse exercido a actividade de venda de produtos estupefacientes a terceiros, e muito menos que o fizesse há alguns meses, por referência à data da sua detenção.

34. O recorrente é pessoa de modesta condição económica e social, não tendo antecedentes criminais.
35. O recorrente sempre foi uma pessoa trabalhadora.

36. No período que tem estado em Portugal tem desempenhado funções de pedreiro, em obras da construção civil.

37. Ao ser aplicada ao arguido uma pena de 4 de prisão efectiva, há uma clara violação do disposto no art. 71.° do Código Penal.

38. Não há qualquer dúvida que o enquadramento jurídico do crime de tráfico praticado pelo Recorrente é o constante do art. 25.° e não do art. 21.° do D.L. 15/93, configurando os presentes autos um caso de tráfico de menor gravidade.

39. É jurisprudência assente que casos semelhantes ao do arguido revestem natureza de tráfico de menor gravidade.

40. O art. 70° do C.P. manifesta preferência pela pena não privativa da liberdade sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

41. Segundo o art. 50°, n.° l do C.P. o tribunal suspende a pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos, se atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

42. Toda a matéria de facto apurada quanto à personalidade do agente, o seu perfil psicológico e a ausência de antecedentes criminais, tudo, mas rigorosamente tudo, aponta para a desnecessidade absoluta e total da prisão efectiva.

43. Havendo uma ou várias circunstâncias, como sucede in casu, que diminuam consideravelmente a ilicitude, estamos perante a prática de um crime de tráfico consagrado no art. 25.° e não no art. 21.° do D.L. 15/93.

44. A condenação do arguido visou exclusivamente a função repressiva quanto à conduta penal juridicamente relevante, não cuidando em que a condenação contivesse a componente da censura, atenuada em razão dos factores que militam a favor do arguido.

45. Ponderado todo o demais circunstancialismo julgado provado e a favor do recorrente (nomeadamente que é arguido primário, trabalhava em Portugal, onde vivia com dois irmãos e uma cunhada, com autorização de residência válida e que se encontra a trabalhar no estabelecimento prisional), entende-se adequado que o arguido seja condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade (p. e p. pelo art. 25°), numa pena de 2 (dois) anos de prisão, a qual deverá ser suspensa por um período de 3 (três) anos, de acordo com o preceituado no art. 50.° do C.P..

46. Foram violadas as normas jurídicas constantes dos arts. 21.° e 25.° do D.L. 15/93 e dos arts. 50.°, n.° l, 70.°, 71.° e 72.° - todos do C.P..
Termina pedindo a procedência do recurso, e, em consequência, a revogação da pena aplicada ao recorrente por tráfico comum de droga, p. e p. pelo art. 21.° do Dec. Lei n.° 15/93, a desqualificação da conduta do arguido, por se tratar de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo art. 25.° do Dec. Lei n.° 15/93, sendo a pena em que vier a ser condenado especialmente atenuada e suspensa na sua execução.
A magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo, respondendo à motivação, defendo que o recurso deve ser julgado improcedente.

3. Neste Supremo tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se refere o artigo 416º do Código de Processo Penal, considera que nada obsta ao conhecimento do recurso.

4. Colhidos os vistos, teve lugar a audiência com a produção de alegações, cumprindo apreciar e decidir.
As instâncias consideraram provados os seguintes factos:
1. No dia 11.07.2003, pelas 21.50 horas, na Quinta da Amoreira, no Barreiro, foi o arguido observado por um agente da PSP-BAC na prática de actos suspeitos de constituírem tráfico de estupefaciente, concretamente no recebimento de objecto não apurado e na posterior entrega a indivíduo não identificado de outro objecto, este retirado de uma "bola branca" que antes tinha escondido num buraco de uma parede;
2. Fornecida a descrição física do arguido e demais sinaléctica a colegas seus pelo agente supra referido, de imediato para o local se deslocaram outros agentes da PSP-BAC que, pelas 22.30 horas. abordaram o arguido;
3. Antes desta abordagem, o arguido tinha-se apercebido da chegada de agentes policiais e tinha ido buscar ao buraco supra descrito a referida "bola branca", a qual colocou junto de um canavial situado a cerca de 30 metros;
4. Aquela "bola branca" veio a ser encontrada depois pêlos agentes policiais, após a abordagem ao arguido, e veio a verificar-se ser um pedaço de saco plástico do Supermercado Lidl, em cujo interior se encontravam:
a) 60 palhinhas contendo um produto em pó, com o peso líquido de 4,372 gramas, que se apurou tratar-se de heroína;
b) 25 pequenos sacos plásticos contendo um produto pastoso com o peso bruto de 5,110 gramas, que se apurou tratar-se de cocaína;
5. Foi ainda apreendida ao arguido a quantia de € 259,05 faseada maioritariamente em notas de € 5,00 e € 10,00, que coincidem com o preço normal de venda, respectivamente, das palhinhas de heroína e os sacos plásticos de cocaína detidos pelo arguido;
6. Não obstante conhecedor das características estupefacientes daqueles produtos, bem como de que não se encontrava legalmente autorizado a tê-los consigo, o arguido destinava-os à venda a terceiros que para esse efeito o procurassem, guardando para si os proventos que auferisse dessa actividade;
7. Agiu livre e conscientemente, sabendo ser proibida a sua conduta;
8. O arguido negou os fartos e tem como habilitações literárias a 4ª classe;
9. Pouco tempo antes de ser detido o arguido encontrava-se a conversar com um amigo, de nome B, que conhecia de Cabo Verde, o qual encetou uma fuga quando se apercebeu da presença dos agentes da polícia;
10. O arguido manteve-se então no local, tendo tido nessa altura a actividade descrita em 3. supra;
11. Posteriormente à abordagem ao arguido foi-lhe solicitado que entrasse no interior do veículo automóvel da polícia, o que acatou;
12. Após o que, e decorrido algum tempo, um dos agentes da polícia confrontou o arguido com o estupefaciente entretanto encontrado, atribuindo-lhe a sua propriedade;
13. O arguido não tem antecedentes criminais;
14. O arguido, no período que tem estado em Portugal, tem normalmente desempenhado funções de pedreiro em obras de construção civil;
15. Durante o ano de 2002, exerceu funções de pedreiro para as Construções Mendes;
16. Durante os primeiros meses do ano de 2003, prestou serviços de pedreiro para a empresa .... sita na Av. do Bocage, n° ... Esq°, no Barreiro;
17. Actualmente, encontra-se a trabalhar no Estabelecimento Prisional Regional do Montijo, como faxina no refeitório dos reclusos e aí recebe apoio sócio-familiar regular;
18. À data da sua detenção, encontrava-se desempregado há cerca de um mês e meio;
19. O arguido encontra-se em Portugal desde Fevereiro de 2001 e tinha autorização de permanência em Portugal válida até Novembro de 2003;
20. Vivia com dois irmãos e uma cunhada, em casa arrendada na Praceta Maria Helena Vieira da Silva, ..., no Vale da Amoreira;
21. O arguido é oriundo de uma família organizada e amiga entre si, tendo familiares em Cabo Verde, nomeadamente os seus pais.

5. O recorrente coloca como questão central a qualificação penal dos factos provados, que entende dever ser feita no artigo 25 e não no artigo 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
O artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, define o crime de tráfico e outras actividades ilícitas sobre substâncias estupefacientes, descrevendo de maneira assumidamente compreensiva e de largo espectro a respectiva factualidade típica: «Quem , sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver [...], plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas Tabelas I a IV, é punido com a pena de prisão de 4 a 12 anos».

O artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93 contém, pois, a descrição fundamental - o tipo essencial - relativa à previsão e ao tratamento penal das actividades de tráfico de estupefacientes, construindo um tipo de crime que assume, na dogmática das qualificações penais, a natureza de crime de perigo. A lei, nas condutas que descreve, basta-se com a aptidão que revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores (a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão inter-individual das unidades de organização fundamental da sociedade), considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou efectivamente determine: a lei faz recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.

A construção e a estrutura dos crimes ditos de tráfico de estupefacientes, como crimes de perigo, de protecção (total) recuada a momentos anteriores a qualquer manifestação de consequências danosas, e com a descrição típica alargada, pressupõe, porém, a graduação em escalas diversas dos diferentes padrões de ilicitude em que se manifeste a intensidade (a potencialidade) do perigo (um perigo que é abstracto-concreto) para os bens jurídicos protegidos. De contrário, o tipo fundamental, com os índices de intensidade da ilicitude pré-avaliados pela moldura abstracta das penas previstas, poderia fazer corresponder a um grau de ilicitude menor uma pena relativamente grave, com risco de afectação de uma ideia fundamental de proporcionalidade que imperiosamente deve existir na definição dos crimes e das correspondentes penas.

Por isso, a fragmentação por escala dos crimes de tráfico (mais fragmentação dos tipos de ilicitude do que da factualidade típica, que permanece no essencial), respondendo às diferentes realidades, do ponto de vista das condutas e do agente, que necessariamente preexistem à compreensão do legislador: a delimitação pensada para o grande tráfico (artigos 21º e 22º do Decreto-Lei no 15/93), para os pequenos e médios traficantes (artigo 25º) e para os traficantes-consumidores (artigo 26º) (Cfr.. v. g., LOURENÇO MARTINS, "Droga e Direito", ed. Aequitas, 1994, pág. 123; e, entre vários, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 1 de Março de 2001, na "Colectânea de Jurisprudência", ano IX, tomo I, pág. 234).

O artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/93, epigrafado de "tráfico de menor gravidade", dispõe, com efeito, que «se, nos casos dos artigos 21º e 22º a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade e as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações», a pena é de prisão de 1 a 5 anos (alínea a)), ou de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias (alínea b)), conforme a natureza dos produtos (plantas, substancias ou preparações ) que estejam em causa.

Trata-se, como é entendido na jurisprudência e na doutrina (v. g., o acórdão deste Supremo Tribunal, cit. de 1 de Março de 2001, com extensa indicação de referências jurisprudenciais) de um tipo privilegiado em razão do grau de ilicitude em relação do tipo fundamental de artigo 21º. Pressupõe, por referência ao tipo fundamental, que a ilicitude do facto se mostre «consideravelmente diminuída» em razão de circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, e a qualidade ou a quantidade dos produtos.

A essência da distinção entre os tipos fundamental e privilegiado reverte, assim, ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), mediada por um conjunto de circunstâncias objectivas que se revelem em concreto, e que devam ser conjuntamente valoradas por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei, e significativas para a conclusão (rectius, para a revelação externa) quanto à existência da considerável diminuição da ilicitude pressuposta no tipo fundamental, cuja gravidade bem evidente está traduzida na moldura das penas que lhe corresponde. Os critérios de proporcionalidade que devem estar pressupostos na definição das penas, constituem, também, um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de «considerável diminuição de ilicitude».

A diversificação dos tipos apenas conforme o grau de ilicitude, com imediato e necessário reflexo na moldura penal, não traduz, afinal, senão a resposta a realidades diferenciadas que supõem respostas também diferenciadas: o grande tráfico e o pequeno e médio tráfico. Mas estas são noções que, antes de se constituírem em categorias normativas, surgem como categorias empíricas susceptíveis de apreensão directa da realidade das coisas. A justeza da intervenção, para a adequada prossecução também de relevantes finalidades de prevenção geral e especial, justifica as opções legais tendentes à adequada diferenciação do tratamento penal entre os grandes traficantes (artigos 21º, 22º e 24º) e os pequenos e médios (artigo 25º), e ainda daqueles que desenvolvem um pequeno tráfico com a finalidade exclusiva de obter para si as substâncias que consomem (artigo 26º).

6. A densificação da noção de "ilicitude considerável diminuída", tendo, embora, como referências ainda a indicação dos critérios da lei, está fortemente tributária da intervenção de juízos essencialmente prudenciais, permitidos (e exigidos) pela sucessiva ponderação da praxis judicial perante a dimensão singular das casos submetidos a julgamento.

A qualificação diferencial entre os tipos base (artigo 21º, nº 1) e de menor intensidade (artigo 25º) há-de partir, como se salientou, da consideração e avaliação global da complexidade especifica de cada caso - em avaliação, não obstante, objectiva e com projecção de igualdade, e não exasperadamente casuística ou fragmentária.

No caso, a imagem global do facto aponta para uma situação de pequena escala, com actuação isolada, sem qualquer suporte de organização ou logística mínimas para uma actividade de tráfico.
A quantidade de produto é diminuta, e a qualidade (como se refere no voto de vencido no acórdão da Relação) não foi adequadamente verificada para além da identificação pela designação dos produtos, isto é, não foi determinada a natureza e o grau de potencialidade de risco que os produtos concretamente apresentavam.

Nesta perspectiva, as circunstâncias do caso apontam para uma configuração de ilicitude que deve ser considerada como consideravelmente diminuída, a preencher o tipo de ilicitude do artigo 25° do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro (cfr., v. g., o acórdão deste Tribunal de 13 de Outubro de 2004, proc. 2693/04).

Há, assim, que determinar a medida da pena na qualificação que se considera como adequada, tendo em conta as finalidades das penas e os critérios de determinação da medida concreta da pena- artigos 40º e 71º do Código Penal).

Nos parâmetros pressupostos pelo círculo de abrangência do artigo 25° do Decreto-Lei nº 15/93, o grau de ilicitude pode situar-se nos limites inferiores a uma projecção média, reclamando, por isso, uma pena a encontrar dentro da moldura respectiva que possa satisfazer as exigências de prevenção geral impostas pela natureza dos valores afectados e pela intensidade da violação de tais valores.

As imposições de prevenção especial, tendo em devida consideração a situação familiar e pessoal do recorrente, aconselham, por seu lado, uma intervenção que lhe permita uma recomposição amiga dos valores sociais e comunitários, na perspectiva de integração pela via familiar e laboral.

A culpa é de grau médio, não impedindo a medida de prevenção geral.
Tendo em consideração todos estes factores, julga-se adequada a pena de dois anos e seis meses de prisão.

7. A pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos deve ser suspensa se, «atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» - dispõe o artigo 50º, nº 1, do Código Penal.

A suspensão da execução da pena Constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pêlos valores ao direito, através da advertência da condenação e da injunção que esta impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores inscritos nas normas.

A suspensão da execução, acompanhada das medidas e das condições admitidas na lei que forem consideradas adequadas a cada situação, permite, além disso, manter as condições de sociabilidade próprias à condução da vida no respeito pêlos valores do direito como factores de inclusão, evitando os riscos de fractura familiar, social, laborai e comportamental como factores de exclusão.

Não são, por outro lado, considerações de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos prognósticos sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas.

Por fim, a suspensão da execução da pena não depende de um qualquer modelo de discricionariedade, mas, antes, como resulta dos termos de imposição do artigo 50º, nº 1, do Código Penal («o tribunal suspende»), do exercido de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos.

A suspensão de execução da pena, enquanto medida com espaço autónomo no sistema de penas da lei penal, traduz-se numa forte imposição dirigida ao agente do facto para pautar sua a vida de modo a responder positivamente às exigências de respeito pelos valores comunitários, procurando uma desejável realização pessoal de inclusão, e por isso também socialmente valiosa.

O recorrente não tem antecedentes criminais, tem autorização de permanência em Portugal válida, trabalhava na actividade de construção civil, e tem apoio e integração familiar, sendo oriundo de uma família organizada.

Todos estes elementos são de natureza a formular um juízo prognóstico favorável sobre a condução de vida do recorrente no futuro, sendo de prever que a simples ameaça da pena será suficiente para prevenir a reincidência, realizando a finalidade de prevenção especial.

Por outro lado. nas condições específicas da situação concreta, a finalidade de prevenção geral realiza-se também, de modo bastante, com a declaração, que a própria condenação constitui de validade das normas afectadas e de respeito pêlos valores que protegem.
É, pois, de determinar, como impõe o artigo 50º, nº 1 do Código Penal, a suspensão a execução da pena.

8. Nestes termos, concede-se provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido e, consequentemente, condena-se o recorrente, pela prática de um crime p. e p. no artigo 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de dois anos e seis meses de prisão, que, como dispõe o artigo 50º, nº 1 do Código Penal, fica suspensa na sua execução pelo período de três anos, com acompanhamento por técnico de reinserção social.

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2005
Henriques Gaspar (relator)
Antunes Grancho
Silva Flor
Soreto de Barros