Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | MOREIRA CAMILO | ||
Descritores: | PROVEITO COMUM MATÉRIA DE DIREITO MATÉRIA DE FACTO | ||
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Nº do Documento: | SJ200410190027301 | ||
Data do Acordão: | 10/19/2004 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 9054/03 | ||
Data: | 01/20/2004 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
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Sumário : | 1ª - Saber se uma determinada dívida, contraída por um dos cônjuges, foi contraída em proveito comum do casal (cfr. artigo 1691º, nº 1, c), do CC) significa averiguar se o dinheiro ou os bens em cuja aquisição foi aplicado se destinaram a satisfazer interesses comuns do casal. 2ª - A questão de apurar do proveito comum apresenta-se como uma questão mista ou complexa, envolvendo uma questão de facto e outra de direito: a primeira consiste em averiguar o destino dado ao dinheiro representado pela dívida; a segunda é de valoração sobre se, perante o destino apurado, a dívida foi contraída em proveito comum, preenchendo o conceito legal. 3ª - A expressão legal "proveito comum" traduz-se, então, num conceito de natureza jurídica a preencher através dos factos materiais indicadores daquele destino, a alegar na petição inicial. 4ª - Assim sendo, não se trata de matéria de facto passível de ser adquirida pela confissão ficta prevista no artigo 484º, nº 1, do CPC. 5ª - A alegação de que o bem adquirido com o empréstimo se destinou ao património comum do casal não revela, dado que o conceito de património comum é jurídico, desde logo porque anda associado ao conhecimento da data do casamento e respectivo regime de bens. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I - Nas Varas Cíveis da Comarca de Lisboa, "Banco A", em acção com processo ordinário, intentada contra B e mulher C, pediu que, com a procedência da acção, sejam os Réus condenados, solidariamente entre si, a pagar ao Autor a importância de € 19.565,37, acrescida de € 2.154,66 de juros vencidos até ao presente - 19 de Abril de 2002 (data da propositura da acção) - e de € 86,18 de imposto de selo sobre estes juros e, ainda, os juros que, sobre a dita quantia de € 19.565,37, se vencerem, à taxa anual de 16,61%, desde 20 de Abril de 2002 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à referida taxa, sobre estes juros recair. Para fundamentar a sua pretensão, invoca um empréstimo concedido ao Réu para aquisição de um automóvel, que o mutuário não pagou as 7ª e seguintes prestações e que o empréstimo reverteu em proveito comum do casal dos Réus, atento até o veículo se destinar ao património comum do casal dos Réus, pelo que a Ré é solidariamente responsável com seu marido pelo pagamento das importâncias referidas na petição. Citados, os Réus não apresentaram qualquer contestação, pelo que foram declarados confessados os factos articulados pelo Autor, nos termos do artigo 484º, nº 1, do Código de Processo Civil (CPC). De seguida, foi proferida sentença, segundo a qual a acção foi julgada parcialmente procedente e, em consequência, se condenou o 1º Réu a pagar ao Autor a quantia de € 2.898,57, acrescida de juros, à taxa de 12,61%, desde o vencimento de cada uma das prestações vencidas entre 20 de Agosto de 2001 e 20 de Março de 2002 até integral pagamento, bem como no correspondente imposto de selo sobre os juros de mora, absolvendo-o do restante pedido, e se absolveu a 2ª Ré da totalidade do pedido. Tendo o Autor interposto recurso, foi, no Tribunal da Relação de Lisboa, proferido acórdão, nos termos do qual se julgou parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, se revogou a sentença recorrida na parte em que excluiu do contrato a cláusula 8ª das "Condições Gerais" e, de harmonia com a al. c) desta cláusula e artº 120º-A da T.G.I.S., se condenou o Réu marido a pagar ao Autor juros à taxa de 16,61% sobre as prestações vencidas de 20.08.2001 a 20.03.2002 (por manifesto lapso, escreveu-se 20.03.2001) até integral pagamento, acrescidos do respectivo imposto de selo, confirmando-se, no mais, a sentença recorrida. Ainda inconformado, veio o Autor interpor o presente recurso de revista, o qual foi admitido. O recorrente apresentou as suas alegações e respectivas conclusões, que podemos sintetizar no seguinte: - Os recorridos foram pessoal e regularmente citados para os termos da acção, não tendo contestado, pelo que não impugnaram o seu casamento, confessando-o, e não impugnaram também o facto de o empréstimo concedido pelo Autor ao Réu ter revertido em proveito comum do casal formado por ambos os Réus, pelo que toda essa matéria se encontra provada, face ao preceituado no artigo 484º, nº 1, do CPC. - A recorrida mulher é, pois, solidariamente responsável, por a importância mutuada ter revertido para o património comum do casal, como ressalta da matéria de facto que, por não impugnada, se tem que ter por confessada. - O acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 484º, nº 1, do CPC e 1691º, nº 1, c), do Código Civil. Pede, assim, que se revogue o acórdão recorrido, substituindo-o por outro que julgue a acção inteiramente procedente e provada e se condene a Ré mulher no pedido formulado na petição inicial. Não foram apresentadas contra-alegações. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II - Desde já, diremos que o recorrente não procedeu a uma leitura cuidada do acórdão recorrido, pois, de outra forma, não diria - como diz - que os Senhores Juízes Desembargadores fundamentam a sua decisão de negação de provimento ao recurso de apelação interposto pelo ora recorrente da sentença proferida em 1ª instância que o A. não fez prova do casamento dos RR., ora recorridos, e não alegou factos materiais que permitam concluir que o veículo dos autos adquirido com o produto do empréstimo concedido pela ora recorrente reverteu em proveito comum do casal dos RR., donde a tal alegação ser insuficiente para ser tomada em conta na sentença, devendo a acção ser julgada improcedente. Por outro lado, pede a condenação da Ré na totalidade do pedido formulado, quando nas instâncias o Réu foi condenado apenas a parte desse pedido e o seu recurso se encontra delimitado - pelas alegações e respectivas conclusões - à possibilidade de haver condenação da Ré, em solidariedade com o Réu, a aceitar-se a existência do proveito comum do casal. É que, ao contrário da 1ª instância, a Relação aceitou que, pelo facto de não haver contestação, ter-se-á de considerar que os Réus são casados um com o outro, não tendo dado como provado - isso sim - a data da celebração do casamento, ou que a Ré C era casada com o Réu B à data em que este celebrou o contrato de mútuo com o Autor, ou o regime de bens do casamento entre ambos, a finalidade para que foi adquirido o automóvel, ou que o empréstimo foi contraído pelo B nos limites dos seus poderes de administração, não ultrapassando os usos e as condições do casal, o seu "standard" de vida. O que decidiu - pelas razões aí expostas - foi que não estava demonstrado que o empréstimo foi contraído em proveito comum do casal, pelo que, dando provimento ao recurso, quanto ao acréscimo de 4% nos juros (não houve negação de provimento ao recurso, ao contrário do que refere o recorrente), negou tal provimento ao recurso no tocante às demais questões suscitadas, entre elas a do proveito comum do casal, única que agora será submetida à apreciação deste STJ. III - A situação de facto que releva para apreciação da questão referida ressalta já do exposto, nomeadamente mediante a transcrição do alegado pelo recorrente na petição inicial. No mais, remete-se para a matéria de facto enunciada no acórdão recorrido, nos termos dos artigos 713º, nº 6, e 726º do CPC. IV - 1. A questão aqui em análise foi objecto de conhecimento, juntamente com a questão da prova do casamento, nos acórdãos de 27.01.2004 e 13.05.2004 (Revistas 4175/03 e 1206/04, respectivamente, desta 1ª Secção), os quais foram subscritos também pelo aqui relator, como 1º Adjunto, pelo que, com a devida vénia, seguiremos de perto o aí explanado. 2. São da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração - artigo 1691º, nº 1, c), do Código Civil. O núcleo da argumentação do recorrente assenta na tese de constituir matéria de facto a afirmação de o empréstimo feito ao Réu ter revertido em proveito comum do casal formado por ambos os Réus, matéria de facto que se encontra provada por confissão (artigo 484º, nº 1, do CPC). Saber se uma determinada dívida, contraída por um dos cônjuges, foi contraída em proveito comum do casal significa averiguar se o dinheiro ou os bens em cuja aquisição foi aplicado se destinaram a satisfazer interesses comuns do casal. Como refere Pereira Coelho (Curso de Direito de Família, 1977, págs. 348 e 349), o proveito comum afere-se, não pelo resultado, mas pela aplicação da dívida, pelo fim visado pelo devedor, devendo essa finalidade de beneficiar o casal ser apreciada também objectivamente, tendo em conta o interesse dos cônjuges e da família. Bem se compreende, pois, que se venha afirmando que a questão de apurar o proveito comum se apresente como uma questão mista ou complexa, envolvendo uma questão de facto e outra de direito. A primeira consiste em averiguar o destino dado ao dinheiro representado pela dívida; a segunda é de valoração sobre se, perante o destino apurado, a dívida foi contraída em proveito comum, preenchendo o conceito legal. A expressão legal "proveito comum" traduz-se, então, num conceito de natureza jurídica, a preencher através dos factos materiais indicadores daquele destino, a alegar na petição inicial. Trata-se, assim, de proceder à qualificação da dívida, necessariamente através do preenchimento do conceito da lei pelos factos, ou por aplicação daquela a estes, o que compreende questão de direito (neste sentido, acórdãos deste STJ de 29.10.1998 - proc. 98B532; 14.03.2000 - proc. 51/00-1ª; 19.03.2002 - proc. 516/02-7ª; 14.01.2003 - proc. 4346/02-6ª; e 06.02.2003 - proc. 4731/02). Assim sendo, não se trata de matéria de facto passível de ser adquirida pela confissão ficta prevista no invocado artigo 484º, nº 1, do CPC. 3. A alegação de que o automóvel se destinou ao património comum do casal também não releva, pois o problema é o mesmo. O conceito de património comum é jurídico, desde logo porque anda associado ao conhecimento da data do casamento e respectivo regime de bens, sabido que é que só se pode falar em bens comuns se o casamento for no regime da comunhão geral ou, sendo-o na comunhão de adquiridos, após a celebração do contrato, não dispensando o silogismo judiciário e o recurso a actividade interpretativa (cfr. artigos 1722º a 1732º do Código Civil). 4. Diremos ainda que o proveito comum não se presume, excepto nos casos em que a lei o declarar - nº 3 do citado artigo 1691º do Código Civil. Por outro lado, aceitando-se que os Réus são casados um com o outro - como aceitou a Relação -, esbarrar-se-ia sempre com a falta de pressupostos que a lei exige para a responsabilidade de ambos os cônjuges por dívidas contraídas por um deles ao abrigo da alínea c) do nº 1 do artigo 1691º. Com efeito, diversamente do que sucede nos casos contemplados nas alíneas b) e d), em que, verificado o restante circunstancialismo nelas previsto, a dívida geradora da responsabilidade comum pode ser contraída por qualquer dos cônjuges, na situação vertente tal só pode suceder se a dívida for contraída na constância do matrimónio e pelo cônjuge administrador, o que implica, como é óbvio, o conhecimento de que o casamento é anterior à contracção da dívida e que vigora regime diferente do da separação de bens (artigos 1678º, 1690º, nº 2, e 1695º, nº 2, do Código Civil), tudo omitido na petição inicial. 5. Pode, assim, inferir-se que o Autor, ora recorrente, omitiu o ónus de alegar - para provar - os factos de que pudesse concluir-se pelo "proveito comum", enquanto pressuposto da responsabilização de ambos os cônjuges, incumprimento que determina a improcedência da sua pretensão. Logo, não colhem as conclusões do recorrente, tendentes ao provimento do recurso, pelo que o acórdão impugnado não merece qualquer censura. V - Podem extrair-se as seguintes conclusões: 1ª - Saber se uma determinada dívida, contraída por um dos cônjuges, foi contraída em proveito comum do casal (cfr. artigo 1691º, nº 1, c), do CC) significa averiguar se o dinheiro ou os bens em cuja aquisição foi aplicado se destinaram a satisfazer interesses comuns do casal. 2ª - A questão de apurar do proveito comum apresenta-se como uma questão mista ou complexa, envolvendo uma questão de facto e outra de direito: a primeira consiste em averiguar o destino dado ao dinheiro representado pela dívida; a segunda é de valoração sobre se, perante o destino apurado, a dívida foi contraída em proveito comum, preenchendo o conceito legal. 3ª - A expressão legal "proveito comum" traduz-se, então, num conceito de natureza jurídica a preencher através dos factos materiais indicadores daquele destino, a alegar na petição inicial. 4ª - Assim sendo, não se trata de matéria de facto passível de ser adquirida pela confissão ficta prevista no artigo 484º, nº 1, do CPC. 5ª - A alegação de que o bem adquirido com o empréstimo se destinou ao património comum do casal não releva, dado que o conceito de património comum é jurídico, desde logo porque anda associado ao conhecimento da data do casamento e respectivo regime de bens. VI - Nos termos expostos, acorda-se em negar a revista, confirmando-se, em consequência, a decisão recorrida. Custas pelo recorrente. Lisboa, 19 de Outubro de 2004 Moreira Camilo Lopes Pinto Pinto Monteiro |