Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04S4329
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA PEIXOTO
Descritores: JUSTO IMPEDIMENTO
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Nº do Documento: SJ200505040043294
Data do Acordão: 05/04/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 599/04
Data: 05/26/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA.
Sumário : 1. O justo impedimento tem de ser alegado no preciso momento em que a parte se apresenta a praticar o acto fora de prazo.
2. No incidente do justo impedimento, a parte contrária tem direito a responder, mas tal resposta não admite "réplica" e, se esta vier a ser apresentada, deve ser desentranhada.
3. Se as alegações de recurso tiverem sido apresentadas fora de prazo, sem invocação imediata de justo impedimento, o tribunal superior tem de julgar deserto o recurso.
4. São absolutamente infundadas as expectativas criadas do recorrente no sentido de que o tribunal superior não deixaria de conhecer do objecto do recurso, com base no facto de na Relação terem sido emitidas as guias por ele solicitadas para pagamento da multa prevista no art. 145.º do CPC e com base no facto de a Relação não ter julgado deserto o recurso.
5. Por isso, a decisão do tribunal superior, não tomando conhecimento do justo impedimento por este não ter sido alegado aquando da apresentação das alegações e julgando deserto o recurso com o fundamento de que as alegações foram apresentadas fora de prazo, não viola o princípio da confiança ínsito no art. 2.º da CRP.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na secção social do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Na presente acção emergente de acidente de trabalho, a ré "A", S.A., interpôs recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.

O despacho que admitiu o recurso foi notificado às partes, por registo postal expedido em 22.6.2004 (vide fls. 440) e, em 27.9.2004, a recorrente apresentou electronicamente as suas alegações (vide fls. 443).

Nas contra-alegações, os autores suscitaram a questão prévia da deserção do recurso, alegando que as alegações da recorrente tinham sido apresentadas fora de prazo, uma vez que o prazo de que a recorrente dispunha para tal não fora suspenso no decurso das férias judiciais, dada a natureza urgente dos processos de acidentes de trabalho (art. 26.º do CPT) e dado o disposto no n.º 1 do art. 144.º do CPC.

Neste tribunal, o relator não suscitou qualquer questão, no despacho liminar, relativamente ao conhecimento do recurso, mas o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da sua deserção, pelas razões aduzidas pelos autores.

Notificada daquele parecer, a recorrente veio dizer que os processos de acidente de trabalho deixam de ter natureza urgente quando entram na fase de recurso de revista, invocando para tal o disposto no n.º 5 do art. 81.º do CPC que manda aplicar à interposição e alegação do recurso de revista o regime do CPC. E, subsidiariamente, veio requerer que o atraso na apresentação das alegações fosse relevado, alegando justo impedimento do seu mandatário, por ter estado doente de 10 a 30 de Setembro de 2004, conforme atestado médico que juntou.

Pronunciando-se sobre as referidas questões (suspensão do prazo no decurso das férias judiciais e justo impedimento), o relator, no seu despacho de fls. 544, decidiu que as férias judiciais não determinavam a suspensão do prazo para alegar e que, por essa razão, o prazo para a ré alegar terminava no primeiro dia útil após férias, ou seja, em 15.9.2004, podendo, todavia, as alegações ser apresentadas até ao dia 20 seguinte (3.º dia útil após o termo do prazo), nos termos do n.º 5 do art. 145.º do CPC. E mais decidiu que a apresentação das alegações no dia 27.9.2004 implicará a deserção do recurso, salvo se o justo impedimento invocado pela recorrente vier a ser julgado procedente, o que seria decidido depois de ouvida a parte contrária (1) .

Notificados para se pronunciarem sobre o alegado justo impedimento, os autores, apelando ao disposto no n.º 2 do art. 146.º do CPC, vieram dizer que o mesmo não deve ser atendido, por não ter sido invocado logo que cessou (vide fls. 555).

Notificada do requerimento apresentado pelos autores, a recorrente, juntando declaração hospitalar de internamento e atestado médico referentes à pessoa do seu mandatário, veio dizer que as alegações tinham sido apresentadas ainda na pendência do impedimento invocado (vide fls. 556).
Seguidamente, a fls. 564, o relator proferiu despacho (2), ordenando o desentranhamento do requerimento de fls. 556 e dos documentos que o acompanhavam e condenando a ré nas custas do respectivo incidente, fixando a taxa de justiça em 2 UC, decidindo não tomar conhecimento do justo impedimento e julgando deserto o recurso com o fundamento de que as alegações tinham sido apresentadas fora de prazo.

Notificada daquele despacho, a recorrente veio reclamar para a conferência, alegando, em resumo, que:
- o seu requerimento de fls. 556 não pode ser considerado como resposta ao requerimento apresentado pelos autores, a fls. 555, uma vez que, quando o mesmo foi apresentado, em 7.2.2005, ela ainda não tinha sido notificada do requerimento apresentado pelos autores, pois tal só aconteceu em 9.2.2005 e não em 7.2.2005, por neste dia ter havido tolerância de ponto;
- a taxa de justiça fixada é exagerada;
- quando apresentou as alegações, solicitou a emissão de guias para pagamento da multa do n.º 5 do art. 145.º do CPC, guias que pagou;
- o tribunal da relação não julgou deserto o recurso e que, tal facto, apesar de não vincular o tribunal superior, criou-lhe a convicção da admissibilidade do recurso, desde logo, porque as alegações tinham sido apresentadas ainda na pendência do impedimento;
- se o tribunal da relação se tivesse pronunciado pelo indeferimento do recurso, a recorrente teria certamente invocado logo o justo impedimento, o qual, com certeza viria a ser admitido na esteira do decidido no processo n.º 02B3697, ac. STJ, de 28.5.2002 (in www.dgsi.pt);
- como tal não aconteceu, só invocou o justo impedimento na resposta ao parecer do M.º P.º;
- assim, porque não houve despacho de indeferimento ou recusa pelo Tribunal da Relação de Coimbra, foi-lhe criada uma expectativa legítima que ao ser-lhe agora coarctada acarreta a violação do princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 2.º da Constituição da República Portuguesa.

Os autores e a co-ré companhia de Seguros Império Bonança, S.A. não responderam.

Cumpre apreciar e decidir.

2. Como resulta do teor da reclamação apresentada pela recorrente, são três as questões por ela suscitadas:
- saber se o seu requerimento de fls. 556 deve ser desentranhado, ou não;
- na hipótese afirmativa, saber se a taxa de justiça fixada pelo relator é excessiva, ou não;
- saber se é de conhecer, ou não, do justo impedimento.

Relativamente à primeira questão, a reclamante alega que o requerimento não é propriamente uma "réplica" à resposta apresentada pelos autores e que só por antecipação o podia ser, uma vez que, quando o mesmo foi apresentado, em 7.2.2005, ela ainda não tinha sido notificada da resposta dada pelos autores, pois tal só veio a acontecer no dia 9.2.2005.

Todavia e salvo o devido respeito, a argumentação da recorrente não tem o menor cabimento. Na verdade, como a recorrente expressamente reconhece no requerimento em causa (3) (4) (5) , este foi apresentado depois de ela ter sido notificada da resposta dos autores e, como do mesmo também resulta, a sua apresentação surge na sequência do teor do requerimento apresentado pelos autores ("...notificado que foi da apresentação do requerimento dos recorridos...vem, mui respeitosamente, face ao teor do mesmo, dizer:" (6). Perante aquela confissão, é óbvio que a recorrente não pode ser levada a sério quando alega que o seu requerimento foi apresentado antes de ter sido notificada da resposta dos autores. Por outro lado, tendo o requerimento sido motivado pelo teor do requerimento dos autores e visando a recorrente através dele obstar à procedência das razões por aqueles invocadas no sentido de improcedência do justo impedimento, o mesmo não pode deixar de ser considerado processualmente como "réplica".

Ora, sendo assim, como se entende que é, o desentranhamento do requerimento em causa impunha-se, uma vez que o art.º 146.º do CPC não prevê tal tipo de resposta.

De qualquer modo, a situação não seria diferente, mesmo que se entendesse, como defende a recorrente, que o requerimento em questão não era uma verdadeira resposta ao requerimento dos autores, mas um simples "reforço ao invocado justo impedimento". É o que decorre do disposto no n.º 2 do art. 146.º do CPC. Com efeito, como aquele normativo legal dispõe, a parte que alegar o justo impedimento terá de oferecer logo a respectiva prova, o que significa, por maioria de razão, que também terá de alegar logo todos os factos pertinentes ao justo impedimento alegado.

Bem andou, pois, o relator ao ordenar o desentranhamento do requerimento e dos documentos que o acompanhavam

Relativamente à segunda questão (taxa de justiça), a reclamante não põe em causa a tributação do incidente. Limita-se discordar do montante da taxa de justiça fixada pelo relator (2 UC) que acha excessiva. Todavia e salvo o devido respeito, aquele montante nada tem de excessivo, uma vez que, nos termos do art. 16.º do CCJ aqui aplicável (7) , a taxa de justiça podia ser fixada entre metade de 1 UC e 10 UC.

Relativamente à terceira questão (justo impedimento), a reclamante entende que o justo impedimento deve ser apreciado, alegando nesse sentido que as alegações do recurso foram apresentadas ainda na pendência do justo impedimento e que o Tribunal da Relação, ao emitir as guias por ele solicitadas nos termos do n.º 5 do art. 145.º do CPC aquando da apresentação das alegações e ao não julgar deserto o recurso, criou-lhe uma expectativa legítima de que nada obstaria ao conhecimento do recurso (8) que ao ser-lhe agora coarctada se traduziria numa violação do princípio da confiança ínsito no art. 2.º da CRP.

Salvo o devido respeito, também nesta questão as razões aduzidas pela reclamante não merecem acolhimento. Como muito bem se diz no despacho sob reclamação, para que um acto possa ser praticado fora de prazo, não basta que a parte tenha sido impedida de o fazer por qualquer evento que não seja imputável nem a ela, nem aos seus representantes ou mandatários. É necessário que ela alegue o justo impedimento e ofereça a respectiva prova no momento em que se apresenta a praticar o acto. Como salientava A. Reis (citado no despacho reclamado), a propósito do § 2.º do art. 146.º do CPC/39 que corresponde ao n.º 2 do art. 146.º do CPC actual, a leitura do n.º 2 do art. 146.º mostra claramente que a parte não deve ser admitida a praticar o acto fora de prazo enquanto não alegar e provar o justo impedimento e que a alegação e prova do justo impedimento deve ser feita no preciso momento em que o interessado se apresenta para praticar o acto intempestivo.

No caso em apreço, a reclamante apresentou as alegações fora de prazo, sem ter invocado o justo impedimento aquando dessa apresentação. Tal invocação só deduzida muito mais tarde, já neste tribunal, depois de ter sido notificada do parecer emitido pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto. A intempestividade da alegação do justo impedimento obsta naturalmente a que dele se conheça, não tendo cabimento, neste contexto, a alegada violação do princípio da confiança, pois, como a reclamante reconhece, o facto da Relação ter emitido as guias para pagamento da multa prevista no art. 145.º do CPC e o facto de não ter julgado deserto não impede que este tribunal se abstenha de conhecer do objecto do recurso, se para tal houver motivo legal. Com efeito, se relativamente à decisão que admite o recurso a lei não confere ao recorrente quaisquer expectativas de que o tribunal superior irá conhecer do recurso, uma vez que tal decisão não vincula o tribunal superior (art. 687.º, n.º 4, do CPC), não se vislumbra como é que o simples facto de a reclamante ter sido admitida a pagar a multa prevista no art. 145.º do CPC e o facto de a Relação não ter julgado deserto o recurso podiam ter gerado na reclamante expectativas legítimas de que o conhecimento do recurso não seria posto em causa (9) .

Finalmente, também não é relevante o facto de a reclamante ter apresentado as alegações quando o alegado justo impedimento (doença do seu mandatário) ainda persistia. Ainda que assim fosse (e não sabemos se era ou não, por não se ter chegado a tomar conhecimento do justo impedimento), a reclamante não estava dispensada de alegar o justo impedimento no preciso momento em que apresentou a praticar o acto fora de prazo, ou seja, no preciso momento em que apresentou as alegações do recurso de revista.

3. Decisão
Nos termos expostos, decide-se indeferir a reclamação, manter o despacho do relator nos seus precisos termos e, consequentemente, julgar deserto o recurso do revista.
Custas pela reclamante.

Lisboa, 4 de Maio de 2005
Sousa Peixoto
Vítor Mesquita
Fernandes Cadilha
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(1) - No referido despacho, que tem data de 2.2.2005, o relator invocou o acórdão deste tribunal, de 24.11.2004, proferido no processo n.º 2851/04, da 4.ª Secção.
(2) - O despacho em causa tem o seguinte teor:
«Requerimento de fls. 556:
Notificados para se pronunciarem sobre o justo impedimento invocado pela recorrente, os recorridos vierem fazê-lo nos termos do requerimento de fls. 555.
Notificada daquele requerimento, a recorrente veio responder nos termos de fls. 556.
Entendemos, todavia, que a resposta da recorrente não é admissível, face ao disposto no n.º 2 do art.º 146.º do CPC. Com efeito, no que toca ao incidente do justo impedimento, o CPC apenas prevê dois "articulados": o requerimento da parte que o invoca e a resposta da parte contrária. A "réplica" não está prevista, não sendo, por isso, admissível.
Deste modo, ordena-se o desentranhamento do requerimento de fls. 556 e dos documentos que o acompanharam.
Custas do incidente a cargo da recorrente, fixando a taxa de justiça em 2 UC.
Justo Impedimento:
Na sequência do referido no nosso anterior despacho de fls. 544 a 546, o recurso só não será julgado deserto por falta de alegações, se for declarado procedente o justo impedimento invocado pela recorrente, para ter apresentado as alegações fora de prazo.
Ora, como resulta do disposto da parte final do n.º 2 do art. 146.º do CPC, o justo impedimento tem de ser invocado logo que o mesmo tenha cessado. Isto é, para que um acto possa ser praticado fora de prazo, não basta que tenha ocorrido um evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que tenha obstado à prática atempada do acto. É necessário que a parte, quando se apresenta a praticar o acto fora de prazo, alegue logo o justo impedimento e ofereça a respectiva prova e é necessário, ainda, que a prática do acto seja requerida logo que o justo impedimento tenha cessado.
Como dizia A. Reis, comentado o disposto no § 2.º do art. 146.º do CPC de 1939, que corresponde ao n.º 2 do art. 146.º do Código:
"A leitura do § 2.º do artigo 146.º mostra claramente que a parte não deve ser admitida a praticar o acto fora do prazo enquanto não alegar e provar o justo impedimento a praticá-lo dentro do prazo. No preciso momento em que o interessado se apresenta para praticar o acto intempestivo, é que tem de fazer a alegação e prova do justo impedimento." (Comentário, vol. 2.º, pag. 79, nota 1)
No caso em apreço, constata-se que a recorrente nem sequer alegou o justo impedimento, aquando da apresentação das alegações fora de prazo, em 27.9.2004. Só veio a fazê-lo muito posteriormente, em 11.1.2005, na resposta ao parecer do M.º P.º.
Deste modo, ainda que o motivo invocado (doença do mandatário de 9 a 30 de Setembro de 2004) pudesse eventualmente vir a ser considerado como justo impedimento, a verdade é que o mesmo não foi tempestivamente invocado, não só pela razão já referida (não ter sido alegado aquando da apresentação das alegações fora de prazo), mas também porque o motivo (a doença) já tinha cessado há muito (30.9.2004), quando o justo impedimento foi invocado em 11.1.2005.
E sendo assim, nem sequer temos de apreciar se ocorreu ou não justo impedimento, uma vez que a essa questão se antepõe logicamente outra: saber se o justo impedimento fora alegado em tempo.
Como dizia A. Reis (ob. cit. pag. 80), verificado que o acto foi praticado fora de prazo sem se invocar logo o justo impedimento, o tribunal devia ter mandado desentranhar as alegações. "Não havia mesmo que apreciar se ocorrera ou não justo impedimento; a essa questão antepunha-se logicamente a outra: se o justo impedimento fora alegado em tempo."
Perante o exposto, decide-se não tomar conhecimento do justo impedimento alegado e julgar deserto o recurso pelo facto de as alegações terem sido apresentadas fora de prazo.
Custas pela recorrente.»

(3) - O requerimento da recorrente tem o seguinte teor:
«Colendos Juízes Conselheiros
BETOCOFRA, recorrente nos autos à margem identificados, notificado que foi da apresentação de requerimento pelos recorridos Fernando Martins Salgueiro e mulher, vem, mui respeitosamente, face ao teor do mesmo dizer:
(4) - A apresentação das alegações foi feita, ainda, na pendência do impedimento do signatário, violando a imposição médica.
(5) - Imposição médica esta que foi reforçada em virtude do signatário, pouco mais de 3 meses antes, ter sido internado com urgência em 28 de Maio de 2004, cfr. docs. 1 e 2, tendo tido alta de internamento no dia 5 de Junho do mesmo ano, apesar do doc. n.º 2 indicar como data prevista o dia 3.
Crente que V. Exas., Colendos Juízes Conselheiros, saberão avaliar o impedimento e farão justiça.
Junto: 2 docs e comprovativo de notificação às partes.
E. Deferimento
O Advogado»
(6) - Sublinhado nosso.
(7) - Aprovado pelo DL n.º 224-A/96, de 26/11.
(8) - A reclamante limita-se a alegar que lhe foi criada uma expectativa legítima, não diz que expectativa era, mas depreende-se que seria a de que nada obstaria ao conhecimento do recurso.
(9) - Anote-se que na Relação não foi proferido qualquer despacho a ordenar a emissão das guias para pagamento da multa nem a considerar tempestiva a apresentação das alegações.