Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B3724
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA BARROS
Descritores: RESPONSABILIDADE POR FACTO ILÍCITO
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
PRAZOS
PRESCRIÇÃO EXTINTIVA
PROCEDIMENTO CRIMINAL
Nº do Documento: SJ200412020037247
Data do Acordão: 12/02/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 254/04
Data: 04/21/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : I - A sujeição do prazo de prescrição do direito a indemnização fundado em responsabilidade delitual, extracontratual ou aquiliana ao prazo de prescrição da lei penal só se verifica, de harmonia com o nº3º do art.498º C.Civ. "se o facto ilícito" "primeiro dos pressupostos de toda e qualquer forma ou espécie de responsabilidade" "constituir crime".
II - Não exigido para esse efeito prévio procedimento criminal contra o lesante, para que haja efectivamente lugar ao alargamento nos termos da predita disposição legal do prazo de 3 anos previsto no nº1º desse mesmo artigo não basta, no entanto, que se esteja perante facto abstracta ou eventualmente susceptível de constituir crime : é, mais, preciso que concretamente concorram no caso todos os elementos essenciais dum tipo legal de crime.
III - Assim, o lesado que pretenda prevalecer-se do prazo mais longo terá que provar que o facto ilícito em questão constitui, efectivamente, crime, isto é, que na realidade se mostram, em concreto, preenchidos todos os elementos essenciais do tipo legal de crime em referência.
IV - Para tanto irrelevante qualquer presunção de culpa estabelecida na lei civil para efeitos de responsabilidade civil, designadamente a constante do nº3º do art.503º C.Civ., para se poder considerar que determinado evento constitui um crime, é sempre, conforme art.13º do Cód.Penal, indispensável que seja imputável ao agente a título de culpa efectiva.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Litigando com benefício de apoio judiciária na modalidade da dispensa total de preparos e do pagamento de custas, A e B, C, D, E e F, todos ..., a primeira, viúva, e os demais, filhos, de G, falecido em consequência de acidente de viação ocorrido em 16/6/95, pelas 17,20 horas, na EN13, ao km 70/80, na freguesia de Areosa, comarca de Viana do Castelo, os três últimos representados pela 1ª A., intentaram, em 6/6/2000, naquela comarca, contra a Companhia de Seguros H, I, o J (FGA), L, e M, acção declarativa com processo comum na forma ordinária destinada a exigir a efectivação da responsabilidade civil emergente do acidente referido.

Em petição com 238 artigos, alegaram, em síntese, serem os sucessores da vítima mortal do mesmo, condutor do veículo pertencente à 2ª Ré e seguro na 1ª, e que esse acidente se ficou a dever à condução culposa do Réu M, comissário da Ré L, e condutor de veículo que não beneficiava de contrato de seguro obrigatório.

Deduziram pretensão indemnizatória no montante global de 74.215.000$00, com juros a partir da citação.

Os demandados contestaram, e foi suscitada a intervenção principal da Companhia de Seguros N, (ora ..-Companhia de Seguros, S.A.), em virtude de ter efectuado certas prestações aos AA., por força de contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho.

Admitida essa intervenção, aquela seguradora pediu a condenação dos RR. no reembolso da quantia de 6.981.023$00, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, desde a notificação do seu articulado.

Os RR. J e H excepcionaram a prescrição do direito dos AA e do direito de reembolso da interveniente, nos termos do art.498º, nº1º, C.Civ.

Saneado, condensado e instruído o processo, veio, após julgamento, a ser proferida no Círculo Judicial de Viana do Castelo sentença que absolveu dos pedidos as RR Companhia de Seguros H, e I. Julgando, porém, parcialmente procedente a acção quanto aos mais demandados, condenou os RR J, L, e M a pagar, solidariamente, aos AA as seguintes quantias: - € 15.000 pela perda do direito à vida da vítima; - € 1.250 pelos danos não patrimoniais sofridos pela mesma; - € 6.000 pelos danos não patrimoniais sofridos pessoalmente pela 1ª A.; - € 2. 500 a cada um dos restantes AA pelos danos não patrimoniais sofridos (no total, € 12.500); - e pela perda de alimentos, e com juros moratórios, à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento, € 10.000 à A. A, igual montante à Autora D, € 500 à Autora B, € 1.900 ao Autora C, € 4.350 à A. E, e € 5.750 ao A. F; e a pagar à interveniente Companhia de Seguros N, S.A., a quantia de € 12.502,48, absolvendo estes RR do mais pedido. Condenou, por último, os AA, como litigantes de má fé, na multa de € 3.000.

A Relação julgou improcedente o recurso de apelação que o J interpôs dessa sentença e parcialmente procedente o dos AA , fixando em € 7.500 a compensação pelas angústias, receios e dores físicas sofridos pelo falecido, em € 37.500 a correspondente à perda do direito à vida do mesmo, e a relativa aos danos não patrimoniais próprios dos sucessores nos termos seguintes: - € 6.500 quanto à 1ª A. e filhos B e C, € 8.000 para a D, e € 10.000 para os ainda menores E e F. Quanto aos danos patrimoniais futuros (perda do direito a alimentos), estabeleceu os valores respectivos de € 12.000, 700, 2.500, 15.000, 6.000, e 7.500. Declarou, por último, a subsidiariedade da responsabilidade do J (FGA) relativamente aos corresponsáveis.
Tanto os AA como o FGA pedem revista dessa decisão, nos seguintes termos:
A) - Recurso dos AA:
Em alegação praticamente idêntica à oferecida na apelação, deduzem, em desrespeito, uma vez mais, da síntese imposta pelo art.690º, nº1º, CPC, 40 conclusões, de que se extrai que as questões propostas à consideração deste Tribunal (cfr. arts 713º, nº2º, e 726º CPC) são as seguintes :
1ª - insuficiência das verbas indemnizatórias atribuídas em relação aos danos patrimoniais futuros e aos de natureza não patrimonial;
2ª - solidariedade da responsabilidade dos RR. condenados, incluindo o FGA, pelo pagamento do montante indemnizatório global devido;
3ª - a condenação em multa por litigância de má fé; e
4ª - os juros moratórios.
B) - Recurso do FGA:
Fecha a alegação respectiva, reprodução também da produzida na apelação, com 55 conclusões.
Na apelação eram 44. Despreza assim uma vez mais a obrigação de síntese imposta pelo art.690º, nº1º, CPC.
As questões a resolver (v. preditos arts 713º, nº2º, e 726º CPC ) são as que seguem:
1ª - prescrição do direito dos recorridos e da interveniente, nomeadamente: não se tendo apurado, em concreto, culpa efectiva do condutor, o prazo de prescrição do direito creditório das AA, A e B era, segundo o recorrente, de 3 e não de 5 anos;
2ª - esgotamento do capital disponível na acção nº208/96 e interpretação do art.16º do DL 522/85, de 31/12
Houve contra-alegações, e, corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Convenientemente ordenada, a matéria de facto fixada pelas instâncias é esta: - Em 16/6/95, pelas 17,20 horas, ocorreu um acidente de trânsito na EN 13, ao km 70/80, na freguesia de Areosa, comarca de Viana do Castelo, em que foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula OQ, propriedade de I, e conduzido nessa altura por um empregado dessa sociedade em cumprimento de ordens e instruções que essa entidade patronal lhe tinha transmitido, e o veículo automóvel pesado de mercadorias de matrícula JX, com reboque de matrícula C-, propriedade (ambos) da sociedade L, conduzido nessa altura, em cumprimento de ordens e instruções que esta lhe tinha transmitido, por M, empregado dessa sociedade e que para ela desempenhava profissionalmente a função de motorista.
- O veículo primeiro referido transportava operários e ferramentas após um dia de trabalho por conta da sociedade sua proprietária, seguindo por um itinerário que esta lhe tinha também previamente determinado.
- Na altura do acidente, o condutor desse veículo conduzia-o à ordem, com conhecimento e autorização, e por conta, no interesse e sob a direcção efectiva da sociedade referida.
- Na altura do acidente, o condutor desse veículo era G, seguindo no mesmo 5 colegas de trabalho.
- Ao tempo da instauração desta acção, esse facto era do conhecimento dos AA
- O R. M conduzia o pesado com reboque para transporte duma carga de chapas de ferro dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo para Espanha e seguia por um itinerário que a sua referida entidade patronal lhe tinha também previamente determinado, à ordem, com conhecimento e autorização, e por conta, no interesse e sob a direcção efectiva daquela sociedade.
- No local do sinistro, a EN 13 tem traçado rectilíneo numa extensão superior a 1.000 metros.
- A faixa de rodagem tem uma largura de 6,60 metros, destinando-se cada uma das duas metades ao trânsito em cada um dos dois sentidos.
- O seu piso era, como é, pavimentado a asfalto.
- O tempo estava bom e seco.
- O pavimento encontrava-se limpo, seco e em bom estado de conservação.
- Por cada uma das margens da faixa de rodagem existiam e existem bermas, também pavimentadas a asfalto, com uma largura de 3 metros cada uma.
- Quem se encontre no local do sinistro consegue avistar a faixa de rodagem da EN 13 em qualquer dos seus dois sentidos de marcha ao longo de uma distância superior a 500 metros.
- Quem circule pela EN 13 em qualquer dos seus dois sentidos de marcha consegue avistar a sua faixa de rodagem, em toda a sua largura, ao longo de uma distância superior a 500 metros, numa altura em que se encontre, ainda, a uma distância superior a 500 metros antes do local deste acidente.
- Nas referidas circunstâncias de tempo, o ligeiro de mercadorias circulava pela EN 13 no sentido norte-sul, ou seja, Valença-Viana do Castelo, provindo da Zona Industrial da freguesia de Campos, comarca de Vila Nova de Cerveira, de onde tinha partido antes do acidente.
- Na altura do acidente, o pesado com reboque circulava também pela EN 13, em sentido inverso ao seguido pelo ligeiro de mercadorias referido, e, inicialmente, pela metade direita da faixa de rodagem, tendo em conta o seu sentido de marcha.
- Ao chegarem ao km 70/80 da EN 13, os preditos veículos embateram um contra o outro.
- Esse embate ocorreu entre a parte frontal dum e doutro.
- Sobre a berma do lado direito da EN 13, tendo em conta o sentido sul-norte, encontravam-se, de forma ininterrupta, estacionados e imobilizados múltiplos veículos, incluindo um pesado de transportes, tipo TIR, que não ocupavam qualquer espaço correspondente à faixa de rodagem reservada à circulação do trânsito.
- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas, depois do embate com o ligeiro de mercadorias aludido, o pesado com reboque foi projectado para o seu lado direito, atento o seu sentido de marcha, ficou desgovernado e embateu contra os veículos de matricula EC, propriedade de O, e SB, propriedade de P, que se encontravam estacionados na berma direita, atento o sentido Viana/Valença.
- O embate entre o pesado com reboque e ambos esses veículos ocorreu dentro da berma direita, atento o sentido Viana-Valença, para além da linha delimitadora da faixa de rodagem.
- O pesado com reboque embateu em toda a extensão do lado esquerdo do veículo de matricula EC.
- Depois de embater nos veículos de matricula EC e SB, o pesado com reboque, ainda desgovernado, guinou à esquerda, invadiu a faixa esquerda de rodagem, atento o seu sentido de marcha, que galgou na totalidade, e acabou por se imobilizar sobre um terreno adjacente à EN 13, na margem direita desta, atento o sentido Valença-Viana do Castelo, tendo percorrido dentro da sua hemi-faixa cerca de 41 metros.
- Depois da colisão, o ligeiro de mercadorias aludido imobilizou-se, completamente destruído, frente ao veículo ligeiro de passageiros de aluguer de matrícula EZ, na hemi-faixa direita, atento o seu sentido de marcha.
- Pela margem nascente da EN 13 existiam, como existem, de forma ininterrupta, casas de habitação, todas com os seus acessos a deitar directamente para a via.
- O veículo pesado com reboque tinha a largura aproximada de 3 metros e tinha, pelo menos, 3 metros de altura.
- O respectivo tractor e semi-reboque formavam um conjunto de transporte com, pelo menos, 20 m de comprimento e o semi-reboque circulava atrelado ligado apenas a um eixo de ferro que provinha da estrutura da carroçaria.
- No dia do acidente, esse veículo efectuava um transporte de chapa de ferro dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo para Vigo.
- A sua carga nessa data era de 24.082 Kg (de chapa de ferro).
- O Réu M imprimia ao pesado com reboque uma velocidade entre os 60 e os 70 Km/h.
- Como consequência directa e necessária do acidente, resultaram para o G lesões corporais várias que determinaram, de forma directa e necessária, a morte do mesmo, tendo chegado sem vida ao Hospital de Santa Luzia de Viana do Castelo, para onde foi transportado após o acidente.
- No momento do acidente e nos instantes que o precederam o G sofreu um susto e, dado o carácter súbito que o caracterizou, receou pela própria vida.
- À data do acidente o G tinha 41 anos.
- Os AA. são a mulher (39 anos) e 5 filhos do mesmo
- A Autora B nasceu em12/12/79; o Autor C nasceu em 15/10/81; a Autora D nasceu em 6/1/84; a Autora E nasceu em 8/2/87; e o Autor F nasceu em 2/2/91.
- G não deixou quaisquer outros descendentes ou ascendentes, nem fez testamento ou qualquer outra disposição de última vontade.
- A Autora D sofre de deficiência mental profunda, não conseguindo falar, identificar o dinheiro, orientar-se no espaço e no tempo, nem ler ou escrever.
- À data do acidente, G era um homem alegre e apegado à vida e ao trabalho.
- Rodeava sempre a mulher e filhos de atenção e carinho, sentimentos que estes retribuíam.
- G desempenhava para a sociedade I, a profissão de motorista e manobrador de máquinas.
- Auferia um rendimento mensal ilíquido de 146.862$00 e líquido de 137.777$00, sempre incluídas as ajudas de custo e subsídio de alimentação.
- Por vezes, nos dias úteis e aos sábados, trabalhava nos seus campos e, mais frequentemente, contribuía para a exploração de duas vacas leiteiras, destinando os produtos agrícolas e o leite ao consumo do agregado familiar, e vendendo o leite sobrante.
- A mulher governava a casa e provia pelo sustento familiar.
- Na altura do acidente, a 1ª A. desempenhava as tarefas domésticas, não auferindo outros rendimentos e estando dependente do rendimento do G.
- Em consequência do acidente, as peças de vestuário e calçado que este envergava ficaram inutilizadas.
- Em consequência do acidente, o pesado com reboque ficou completamente destruído e sem qualquer valor de mercado.
- A responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo ligeiro de mercadorias aludido estava transferida para a R. Companhia de Seguros H, através de contrato de seguro obrigatório, válido e eficaz, titulado pela apólice nº 6912241, em vigor à data dos factos.
- Para além disso, encontrava-se ainda transferida para a mesma R, por contrato de seguro facultativo, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo mesmo veículo até ao montante de 100.000.000$00.
- Nem a sociedade L, nem o M, nem qualquer outra pessoa tinha transferido para qualquer seguradora a responsabilidade civil por danos causa- dos a terceiros pelo pesado com reboque.
- No Processo nº 208/96 e respectivos apensos, que correu termos no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, os RR. Companhia de Seguros H e J foram condenados ao pagamento de indemnizações aos lesados, conforme as certidões juntas aos autos da sentença proferida e acórdãos da Relação do Porto e do STJ.
- Nessa acção, o J foi condenado, por acórdão transitado em julgado, a pagar aos lesados o montante indemnizatório global de € 244.353,70, acrescido ainda de quantia a liquidar em sede de execução de sentença.
- O J pôs à disposição dos titulares a quantia liquidada, conforme os recibos de indemnização juntos aos autos.
- Em consequência do acidente e por força das obrigações decorrentes de contrato de seguro, a N, até 3l/12/2000, pagou aos AA. o montante de 5.013.045$00, a título de pensões e outras despesas.
Visto que nesse recurso se suscita questão prejudicial do conhecimento das demais a resolver, que é a da prescrição, vai-se começar pelo recurso do FGA.

Depois de desenvolvida dissertação sobre os institutos da prescrição e caducidade (1), a sentença apelada considerou que o facto ilícito gerador da responsabilidade ajuizada é susceptível de integrar o crime de homicídio por negligência, p. e p., à data dos factos, pelo art.136º do Código Penal, e na actual redacção pelo seu art.137º. Como assim, o prazo prescricional aplicável seria de 5 anos, nos termos das disposições conjugadas dos arts.498º, nº3º, C.Civ., e 118º, nº1º, al.c), do Código Penal.

O acidente em causa nestes autos ocorreu em 16/6/95. Proposta esta acção em 6/6/2000, a prescrição tem-se por interrompida, consoante nº2º do art.323º C.Civ., no 5º dia subsequente, pelo que, segundo então se entendeu, o direito dos AA. não se encontraria extinto por prescrição.

Em relação aos AA. menores essa questão não se colocava, sequer, assim, posto que a prescrição não se completaria sem ter decorrido um ano sob o termo da incapacidade, conforme art.320º, nº1º, C.Civ. E também o direito da interveniente não se encontra prescrito, uma vez que, só com esse pagamento surgindo o direito ao reembolso respectivo, o prazo da prescrição só se inicia com o pagamento da indemnização.

Aceitando a decisão que excluía a prescrição do direito à indemnização dos AA menores, o FGA insistiu em que, não apurada, em concreto, culpa efectiva do condutor, o prazo de prescrição do direito das AA maiores à data da propositura da acção, A e B, por ser de 3, e não de 5, anos, se esgotara, respectivamente, em 16/6 e12/12/98; mas a Relação de Guimarães negou-lhe razão.
Tem-se por irrecusável que, neste particular, as instâncias decidiram mal. Com efeito:
A sujeição do prazo de prescrição do direito a indemnização fundado em responsabilidade delitual (extracontratual ou aquiliana) ao prazo de prescrição da lei penal só se verifica, de harmonia com o nº3º do art.498º C.Civ., "se o facto ilícito" "primeiro dos pressupostos de toda e qual quer forma ou espécie de responsabilidade" "constituir crime".
Sendo certo não exigir-se prévio procedimento criminal contra o lesante, não basta, no entanto, para que haja efectivamente lugar ao alargamento, nos termos do nº3º, do prazo de 3 anos previsto no nº1º do art.498º C.Civ., que se esteja perante facto abstracta ou eventualmente susceptível de constituir crime : é, isso sim, preciso que concretamente concorram no caso todos os elementos essenciais dum tipo legal de crime.
Assim, e como, anotando aquele art.498º, elucidam Pires de Lima e Antunes Varela, o lesado que pretender prevalecer-se do prazo mais longo terá que provar que o facto ilícito em questão constitui, efectivamente, crime, isto é, que na realidade se mostram, em concreto, preenchidos todos os elementos essenciais do tipo legal de crime em referência.

A invocação e consideração neste âmbito da presunção de culpa - óbvia e necessariamente estabelecida para efeitos civis, apenas - constante do nº3º do art.503º C.Civ. assenta, parece, na tese, já arredada por estes mesmos juízes na Rev. nº1193/04 desta Secção, de que o que importa para o alargamento do prazo pretendido é que tão só nos seus elementos objectivos exista um facto susceptível de integrar um ilícito penal. É, no entanto, incontornável que, para tanto irrelevante qualquer presunção de culpa estabelecida na lei civil para efeitos de responsabilidade civil, para poder-se considerar que determinado evento constitui um crime, é sempre indispensável que seja imputável ao agente a título de culpa efectiva. Na verdade:
É insofismavelmente para a noção de crime definida pelo direito penal que o nº3º do art.498º C. Civ. remete. Ora, e precisamente, seja qual for o tipo legal de crime a ter em consideração, subsiste, de elementar, mas fundamental, modo, que sem culpa, não há crime (nullum crimen sine culpa).
Do princípio da culpa estabelecido no art.13º do Código Penal resulta que no direito criminal, a culpa não se presume: para se poder afirmar que o evento constitui crime é indispensável que possa ser imputado ao agente a título de culpa efectiva, isto é, que se apure conduta do mesmo efectivamente susceptível de censura no âmbito do direito criminal (mesmo se não averiguada em processo-crime).
Desta sorte, como o FGA sustenta, e se tem, mesmo, por evidente, a presunção do art.503º, nº3º, C.Civ. não pode ser invocada para qualificar uma conduta como criminosa, isto é, como integrando determinado tipo legal de crime.
Diz a sentença apelada que "no caso vertente, não foi possível apurar a concreta dinâmica em que o acidente ocorreu (,) por forma a poder imputar uma contribuição culposa de qualquer um dos condutores para a sua eclosão, ou seja, nada nos permite afirmar que houve violação dos deveres de cuidado exigíveis por parte de um ou ambos os condutores (...)": em suma, não se apurou a culpa efectiva de nenhum deles.
De todo em todo irrelevante para este efeito a presunção de culpa estabelecida para efeito de responsabilidade civil no art.503º, nº3º, C.Civ., só se por inteiro preenchida a previsão do (então) art.136º (depois 137º) CP "incluindo, pois, o elemento subjectivo (de imputação do facto ao agente) desse crime, isto é, se efectivamente provada negligência, é que o prazo prescricional a ter em conta seria, consoante arts.118º, nº1º, al.c), CP e 498º, nº3º, C.Civ, de 5 anos.
Como assim, procede a excepção de prescrição do direito de indemnização que a 1ª A. e a A. B se arrogam. Na realidade :
Ocorrido o acidente em 16/6/95, a prescrição - de 3 anos, como vem de ver-se - ocorreu, quanto à primeira, em 16/6/98, e quanto à segunda, nascida em 12/12/79, e em vista do art.320º, nº1º, C.Civ., em 12/12/98.
No que se refere à seguradora interveniente, estar-se-ia em crer sabido que o direito de reembolso do subrogado só efectivamente nasce com o pagamento por este efectuado: pelo que, no que se refere a essa seguradora, a excepção de prescrição deduzida pelo FGA improcede.
A Relação de Guimarães revelou-se também menos atenta ao dizer questão nova a do esgotamento do capital disponível suscitada por este recorrente com referência à limitação do capital pelo qual podia ser responsabilizado, prevista no art.6º, aplicável ex vi do art.23º, do DL 552/85, de 31/12, a saber, e à data, € 249.398,94: trata-se, de facto, de questão claramente arguida nos artigos 36º a 41º da contestação do FGA e expressamente considerada na sentença apelada. Na realidade:
O art.16º do DL 552/85, de 31/12, firma, no seu nº1º, regra segundo a qual no caso de haver vários lesados com direito a indemnização cujo valor total exceda o montante do capital garantido, os valores respectivos se reduzam proporcionalmente de modo a que aquele montante não seja excedido.
O nº2º prescreve, por sua vez, que o responsável por esse pagamento - seguradora ou FGA - que de boa fé ou por desconhecimento da existência de outras pretensões, liquidar a um lesado uma indemnização de valor superior à que lhe competiria no rateio determinado pelo número anterior só fica obrigado até à concorrência da parte restante do capital seguro.
Não houve na sentença apelada, e nem bem se vê como pudesse efectivamente haver, dúvida alguma de que, demandado no já falado Proc.nº208/96, o FGA tinha efectivo conhecimento da existência de mais lesados.
Para poder beneficiar da limitação aludida, impunha-se-lhe, como bem notado nessa sentença, ter chamado àquela acção os aqui AA, provocando a intervenção principal dos mesmos ou requerer, se viável, a apensação desta à outra acção relativa a este acidente, ou então a suspensão da instância na anteriormente proposta em ordem a viabilizar o rateio que o nº1º do art.16º do DL 522 /85 prevê. Não o fez: sibi imputet.

A sentença apelada citou a este respeito o bem elaborado sumário de ARE de 11/3/99, CJ, XX IV, 2º (e não 3º), 257 (-II), segundo o qual "tendo a seguradora deixado transitar sentença que a tenha condenado a pagar indemnizações apenas a alguns dos lesados por forma a esgotar o capital seguro muito embora tivesse conhecimento da existência de outros, não pode pretender que a mesma sentença a libere de indemnizar estes últimos segundo as regras do rateio legalmente imposto, ainda que para além dos limites do montante daquele capital".

Tem-se, por outro lado, por obviamente sofística a distinção que o instituto público recorrente pretende estabelecer entre a referência no nº1º do art.16º do DL 552/85 a lesados e no nº2º do mesmo às respectivas pretensões. Mais não caberá dizer a este respeito que não seja que efectivamente improcede esta outra excepção oposta à responsabilidade deste recorrente.
O recurso dos AA só, necessariamente, é de conhecer apenas na parte não prejudicada pelo apurado em tema de prescrição. Assim :
No relativo aos danos não patrimoniais próprios que o sofrimento físico e moral da vítima representa no tempo que mediou entre o acidente e o óbito, de que se mostra particularizado o susto e receio da morte (iminente), afigura-se adequado às circunstâncias do caso o montante de € 9.975, 96 pretendido pelos recorrentes.
A valorização do dano da morte não vem discutida.
Como já esclarecido, à data da propositura desta acção, o direito a indemnização da 1ª A. encontrava-se já extinto, por prescrição, nos termos do art.498º, nº3º C.Civ.; o mesmo acontecendo em relação à 2ª.
Só há, pois, que determinar as verbas indemnizatórias dos danos da privação de alimentos e com pensatórias dos danos não patrimoniais próprios relativas aos AA C, D, E e F " todos ainda menores à data do falecimento do pai.
No cálculo da indemnização pela perda de alimentos - danos patrimoniais (lucros cessantes) futuros previstos no art.495º, nº 3º, C.Civ. e a fixar de harmonia com os arts.562º, 564º, nº2º, e 566º, nºs 2º (teoria da diferença) e 3º, C.Civ. -, há que ter em conta o vencimento líquido da vítima (137.777$00 mensais), de que é de admitir que gastaria 1/3 consigo própria, a idade da mesma à data do acidente (41 anos), o limite geralmente aceite da vida activa (65 anos), a respectiva esperança de vida (71 anos), taxa de juro estimada em 3%, e o tempo provável em que a contribuição alimentar se manteria. A sentença apelada não atendeu ao rendimento que resultaria do contributo do falecido para a exploração do campo e das duas vacas leiteiras, por entender que a exploração familiar se manteve ainda que sem esse contributo.
Considerados os 2/3 do rendimento supostamente gastos com a família, lançando mão das tabelas financeiras de uso comum e assim achado para 24 anos de vida útil e com a taxa de juro referida um factor de capitalização de 16,935542, o valor assim encontrado deveria, como a Relação lembrou, sofrer ainda desconto na ordem de 1/3, uma vez que, como notado em estudo do Cons. Sousa Dinis publicado na CJSTJ, IX, 1º (v p..9, 2ª col.), os familiares da vítima vão receber de uma só vez o que, em princípio, deveriam receber em fracções anuais. Na verdade, o capital da indemnização não pode ser tal que produza rendimento igual aos proventos do lesado, destinando-se esta redução a evitar que fique colocado numa situação de receber os juros mantendo-se o capital intacto.

Há, por outro lado, de facto, que atender à situação de especial carência da lesada deficiente, sendo de admitir que a vítima lhe prestasse alimentos até ao termo da sua vida, tal como à mulher, doméstica.

Quanto aos demais, notou-se que o Autor C, com 18 anos aquando da propositura desta acção, já trabalhava, e entendeu-se, face ao concreto circunstancialismo familiar, que, em relação a esses filhos, tal obrigação se manteria apenas até essa idade.
Assim, a vítima iria, presumivelmente, prestar alimentos durante 30 anos à 1ª A. e à A. D, durante 2 anos à A. B, durante 4 anos ao A. C, durante 10 anos à A. E, e durante 14 anos ao A. F.

Tudo assim ponderado, têm-se por adequados os valores determinados neste âmbito pela Relação no que se refere aos AA C, D, E e F, de, respectivamente, € 2.500, € 15. 000, € 6.000 e € 7.500.

No respeitante aos danos não patrimoniais próprios desses AA, tem-se, à luz do disposto nos arts.494º e 496º, nº3º, C.Civ., por adequado, em relação a cada um deles, sem distinção, o montante compensatório de € 12.500.

A natureza subsidiária da responsabilidade do FGA decorre claramente do disposto nos arts.21º, 26º, nº1º, e 29º, nº6, do DL nº 522/85, de 31/12.

Do seu conhecimento aquando da propositura desta acção que na altura do acidente o condutor do ligeiro de mercadorias era o G, não sofre tergiversação que os AA articularam factos com relevo evidente na apreciação da causa que sabiam bem que não correspondiam à verdade.

Representados no processo pela mãe, o menor e a deficiente não deixam por isso de ser parte com actuação censurável nestes autos.

De par com a gravidade da referida violação do dever de probidade que o art.266º-A CPC impõe e o valor elevado da acção, atendeu-se, na fixação da multa, à humildade da situação económico-social dos AA.
De todo o modo, e como a Relação salientou, tão só se insurgindo a parte, no recurso de apelação, contra a imposição dessa sanção, estava-lhe vedada a apreciação da quantificação da multa.

Os recursos destinam-se, por definição, à revisão do decidido na instância inferior (art.676º, nº 1º, CPC), não podendo, pois, discutir-se agora o que não se curou de submeter à apreciação da instância recorrida.

A conclusão 18ª da alegação oferecida na apelação refere-se ao montante global das indemnizações a satisfazer, com, realmente, menção, na sua parte final, dos "juros acrescidos, tal como peticionado".

Nem os recorrentes, aliás, indo ao ponto de invocar a este respeito a al.d) do nº1º do art.668º CPC, tão vaga ou imprecisa se mostra essa alusão aos juros peticionados que nem bem, sequer, poderá dizer-se, em bom rigor, - clara, concreta e efectivamente -, suscitada qualquer questão a esse respeito na parte final da conclusão 18ª da alegação oferecida na instância recorrida.

Percorrida, aliás, toda a alegação apresentada na apelação, não se encontra para aquela menção qualquer correspondência no texto da mesma; e como elucidado em Ac.STJ de 2/12/88, BMJ 382/ 497-III e 500 (parte final do 2º par.), não há que conhecer de questões só suscitadas em conclusão sem correspondência no texto da alegação.

Contra, por fim, o que estes recorrentes afirmam na parte final da alegação oferecida neste recurso de revista, as quantias indemnizatórias arbitradas na sentença apelada a título de compensação dos danos não patrimoniais foram nela expressamente ditas actualizadas. Só, por conseguinte, sendo de considerar, no que se lhes refere, a atribuição de juros a partir da prolação dessa sentença, tal, porém, dependia, ainda, de essa questão ter sido efectivamente suscitada na apelação. O que, como já visto, não sucedeu.

Na conformidade do exposto, alcança-se a decisão que segue :
Na procedência parcial de ambos os recursos em apreço, concede-se, em parte, a revista neles respectivamente pretendida.
Assim, na procedência em relação às duas primeiras AA da excepção de prescrição deduzida pelo FGA, revoga-se a decisão das instâncias a esse respeito, e absolve-se o mesmo do pedido por elas respectivamente deduzido. Nega-se, no mais, provimento a esse recurso.
Fixa-se em € 9.975,96 a compensação pelas angústias, receios e dores físicas sofridos por G e em € 12.500 a relativa aos danos não patrimoniais próprios dos AA C, D, E e F (devendo na liquidação final observar-se a proporção resultante da repartição da culpa estabelecida na 1ª instância). Nega-se, no mais, provimento ao recurso dos AA.

Confirma-se, assim, no restante, a decisão recorrida.

Custas pelas partes, na proporção do vencimento respectivo (conforme ora determinado), tanto nas instâncias, como neste recurso; sempre, no entanto, sem prejuízo da isenção atribuída ao FGA pelo art.29º, nº11º, do DL 522/85, de 31/12, e do benefício do apoio judiciário concedido.

Lisboa, 2 de Dezembro de 2004
Oliveira Barros
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
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(1) A que adiante se soma a relativa à responsabilidade civil e seus elementos e às regras que presidem à fixação da indemnização.