Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
09B0523
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: DECISÃO SURPRESA
Nº do Documento: SJ2009060405232
Data do Acordão: 06/04/2009
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: LIVRO 117 (INCIDENTES) FLS.48 E SS..
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: DESATENDIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário :
Ponderando o Supremo Tribunal de Justiça, em recurso de revista, decidir o destino de condecorações, com base nas regras próprias dos direitos de personalidade, ignoradas nas decisões das instâncias e, sempre, pelas partes, não tem que ouvir, previamente, estas.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I -
Na revista interposta para este Tribunal, discutia-se a questão de saber se a autora tinha direito a haver, do réu, as condecorações com que fora agraciada a avó dela.
As instâncias haviam tomado posição, situando-se na perspectiva material e, por isso, com recurso aos regimes jurídicos da sucessão em geral, posse, comodato e afins.
Nessa perspectiva se situaram os argumentos do réu/recorrente carreados para este tribunal no presente recurso de revista.

Aqui proferimos acórdão, entendendo que não valiam as regras da sucessão em geral, da posse, comodato e afins, porque se tratava, em primeira linha, de direitos de personalidade, tendo-se decidido em conformidade com o regime próprio destes.

II –
Reclama o réu/recorrente, sustentando que o acórdão proferido é nulo, por encerrar uma decisão surpresa, vedada pelo artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
Nada disse a contraparte.

III –
Aquele artigo 3.º, n.º 3 surgiu com a reforma introduzida pelo do DL n.º 329-A/95, de 12.12 e tinha a seguinte redacção:

O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenha tido a possibilidade de, agindo com a diligência devida, sobre elas se pronunciarem.

Foi justificado no respectivo preâmbulo, nos seguintes termos:
“Assim, prescreve-se, como dimensão do princípio do contraditório, que ele envolve a prolação de decisões surpresa, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem…”

Com o Decreto-Lei n.º180/96, substituiu-se a expressão “agindo com a diligência devida”, pela de “salvo manifesta desnecessidade”, ficando o preceito assim redigido:

O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

IV –
Como se vê, o instituto da proibição de decisões surpresa é, entre nós, muito recente exigindo a sua ponderação uma atenção, ainda que sumária, sobre o que se vem considerando no país donde dimanou e tem longo historial, ainda que se venham a constatar importantes diferenças de regime.
Como refere Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, página 96), “a esta concepção [do princípio do contraditório], válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechtilches Gehör germânico, entendida como garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo.”

O rechtliches Gehör, como o próprio autor transcreve em nota de pé de página, está previsto no artigo 103.º, 1, da Lei Fundamental Alemã, cuja melhor tradução pensamos ser e seguinte:

Perante o tribunal todos têm direito a ser ouvidos.

Este princípio constitucional tem seguimento nos §§139 e 278, n.º 3 da Zivilprozessordnung (o Código de Processo Civil) e deles vemos que o legislador germânico lhe confere uma dimensão que vai muito para além do que comporta, mesmo em interpretação extensiva, a lei portuguesa.
Logo no n.º1 do primeiro daqueles parágrafos, se determina que o tribunal tem de “discutir” (erörtern) com as partes a vertente factual e jurídica do litígio, para, no n.º2, se estatuir que quando uma das partes (ou ambas) tenham ignorado ou menosprezado, claramente, um ponto de vista, que não respeite a questão acessória, o tribunal só pode fundamentar a sua decisão depois de a(s) esclarecer e de lhe(s) dar a possibilidade de se pronunciarem.
O seguimento prático destas normas não traduz, contudo, o que delas, numa primeira análise, poderia resultar. Assim, como refere Othmar Jauernig (Direito Processual Civil, edição da Almedina, página 169), o tribunal “não é obrigado sem mais a apresentar à discussão das partes, antes da decisão, o seu parecer jurídico”, limitando-se o autor a referir que o tribunal “fará bem em dar a conhecer oportunamente às partes a sua concepção jurídica, para que elas se possam manifestar quanto a isso… procedendo o tribunal assim, poupa-se à difícil verificação de uma das partes tomar um aspecto jurídico manifestamente como irrelevante.” Trata-se, pois, apenas dum aconselhamento em ordem a poupar a diligência que aquele n.º2 do § 139 impõe. Como “exemplo modelar” de decisão surpresa exemplifica, agora a páginas 143, a que foi tomada pelo tribunal supremo, no sentido da aplicação (não anteriormente discutida) do direito estrangeiro a um caso que as instâncias haviam conhecido aplicando o direito alemão. Um caso extremo em que toda a construção jurídica do tribunal assentou em ordem jurídica diferente da que vinha sendo tida em conta.


V -
Cotejando o regime legal português, que vertemos essencialmente em III, com o regime germânico, logo vemos que estamos longe do que, ali, a lei contempla.
Assim, a estrutura do nosso processo civil não prevê que o tribunal “discuta” com as partes o que quer que seja. Podemos admitir o avanço de Lebre de Freitas, no sentido de que terá perdido actualidade a discussão duma parte contra outra, com o juiz, acima delas, a decidir, estando agora aberto o caminho para que elas “influenciem directamente” a decisão. Mas a mais a nossa lei não chega.
Outrossim, inexiste, entre nós, preceito correspondente àquele n.º2 do §139 da ZPO. Pelo contrário, já vimos, em III, que o legislador chegou a introduzir, no texto legal, a expressão “agindo com a diligência devida”, que veio a retirar, substituindo-o pela “manifesta desnecessidade”, mas tal não significará - até ante os princípios gerais que enformam o nosso código – que tivesse aliviado as partes de usarem a diligência devida para alcançarem as questões que vêm a ser, ou podem vir a ser, importantes para a decisão que virá a ser tomada (neste sentido, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, I, 33 e Abílio Neto também em anotação ao artigo 3.º)
Repare-se aliás, que, na nossa lei, existem muitos preceitos que apontam para a ideia de, à discussão – nas vertentes factual e jurídica – se suceder a apreciação e decisão pelo tribunal, deixando a convicção de que, quanto a esta, o tribunal decide – aproveitando ou não o teor dessa mesma discussão - sem que se abra nova disputa, ainda que situada em campo diferente. Não precludem eles, é certo, que tal se abrisse – e casos há em que tem mesmo de ser assim - mas não se adequam bem a tal. Vejam-se os artigos 664.º (o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito…), 658.º (concluída a discussão do aspecto jurídico da causa, é o processo concluso ao juiz, que proferirá sentença dentro de 30 dias), 659.º, n.º2 (seguem-se os fundamentos – da sentença – “devendo o juiz … interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes”) e 690.º n.ºs 2 e 3 (enquanto impõe ao recorrente que indique as normas jurídicas violadas e o sentido com que devem ser interpretadas e aplicadas, sem que se preveja que constitua deficiência a omissão do que vier a ser relevante na decisão) (sublinhados nossos).


VI –
Do que vem sendo exposto resulta que acompanhamos e continuamos a jurisprudência deste tribunal, plasmada nos Acórdãos de 16.1.2007 (Agravo n.º 3294/06 : “Não constitui decisão surpresa o conhecimento pela Relação da questão do esbulho violento com fundamentos jurídicos diversos e não suscitados na 1.ª instância, sem que previamente tenha sido convidada a agravante a tomar posição sobre tal questão”) e de 11.11.2008 (Revista n.º 11.11.2008 : “I - Ao aplicar ao caso o art. 12.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 24/07, de 18-07, não foi suscitada no processo uma questão nova de direito, pronunciando-se o reclamado acórdão sobre a mesma questão de direito, que foi objecto de discussão ao longo de todo o processo, que era a questão da natureza da responsabilidade civil das concessionárias das auto-estradas, pelos danos causados nos acidentes de viação nela ocorridos, devido ao atravessamento de animais, e do consequente ónus da prova da culpa. II - Pronunciando-se sobre essa questão, o Acórdão decidiu-a por uma razão de direito resultante da aplicação de uma norma legal que ainda não tinha sido considerada no processo, mas podia tê-lo feito, ao abrigo do art. 664.º do CPC, pois o Tribunal não está sujeito as alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regas de direito.”).
Orientação que também o STA já assumiu (Ac. de 23.1.2008, processo 0574/07, com texto integral em www.dgsi.pt : “O princípio do contraditório, na vertente que proíbe a decisão surpresa, não impõe ao tribunal de recurso que, antes de decidir questão proposta pelo recorrente, o alerte para a eventualidade de o fazer com base num quadro normativo distinto do por si invocado e até então não referido no processo”).


Por isso, não se viola o n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, quando se decide o destino de condecorações com base nas regras próprias do direito de personalidade, não obstante as partes, na oportunidade que as alegações lhe proporcionaram - e até antes - de discutirem a questão, terem ignorado tais regras.


De qualquer modo, sempre há que acentuar que a construção, que levámos a cabo, relativa aos direitos de personalidade, se inseriu na questão, mais vasta e levantada pelo recorrente, da inversão do título de posse, servindo para afastar a sua relevância. Assim subordinada, assume apenas a categoria de argumentação, não se guindando, com propriedade, a “questão”, para efeitos daquele n.º 3.



VII –
Face ao exposto, desatende-se a reclamação.
Custas pelo reclamante, com 4 UCCs de taxa de justiça.

Lisboa, 4 de Junho de 2009

João Bernardo (relator)
Oliveira Rocha
Oliveira Vasconcelos