Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04A117
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: COMPETÊNCIA
COMPETÊNCIA MATERIAL
CONEXÃO
ACTO ADMINISTRATIVO
EXTENSÃO DE COMPETÊNCIA
QUESTÃO PREJUDICIAL
CAUSA PREJUDICIAL
SUSPENSÃO
TRIBUNAL DE COMARCA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: SJ200403090001176
Data do Acordão: 03/09/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 1494/03
Data: 10/07/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : I - O art. 96, nº1, do C.P.C., estabelece a competência do tribunal competente para a acção para também conhecer das questões incidentais ou prejudiciais que nela se levantem.
II - Esta extensão da competência visa evitar a suspensão da causa principal até ao julgamento das questões prejudiciais ou incidentais.
III - Por isso, sendo o tribunal da comarca competente, em razão da matéria, para conhecimento da questão principal, será também ele competente para conhecimento das questões conexas, incidentais ou prejudiciais, ainda que para estas, quando isoladamente consideradas, fosse competente o foro administrativo.
IV - A decisão dessas questões prejudiciais ou incidentais constitui apenas caso julgado formal.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 22-11-01, o Município da Figueira da Foz remeteu a juízo o processo de expropriação litigiosa urgente que instaurou contra "A - Indústria de Comércio e Madeiras, S.A.", referente a uma parcela de terreno, identificada no respectivo processo por parcela nº 10, com vista à construção da ligação do IP 3 à V3, incluindo acesso à Rua Heróis do Ultramar, na Figueira da Foz.
Depois de aprovação em Assembleia Municipal e da publicação no Diário da República da respectiva declaração da utilidade pública, a entidade expropriante procedeu à instrução do competente processo administrativo, com vista à expropriação por via negocial.
Não tendo logrado êxito, foi constituída a arbitragem e, após a remessa do processo a tribunal, teve lugar a adjudicação ao expropriante da referida parcela de terreno.

Inconformada com o valor da indemnização de 4.566.080$00, que lhe foi atribuído na arbitragem, a expropriada interpôs recurso da decisão arbitral, pedindo que a indemnização seja elevada para 8.044.000$00.
Houve resposta do Município da Figueira da Foz, pugnando pelo valor atribuído na decisão arbitral.

Já depois de efectuada a avaliação da parcela, a entidade expropriante, através do seu requerimento de fls 294, veio informar ter tomado conhecimento, entretanto, que o terreno agora expropriado já tinha sido anteriormente objecto de expropriação pela JAE, pelo que solicitou que se declare:
1 - a nulidade da deliberação da Assembleia Municipal da Figueira da Foz de 23-6-00 que declarou a utilidade pública da presente expropriação, bem como de todo o processo expropriativo;
2 - a nulidade do despacho de adjudicação da parcela ao Município da Figueira da Foz e, consequentemente, de todos os actos processuais subsequentes, tudo por impossibilidade legal do objecto da expropriação.

A expropriada respondeu, suscitando a questão da incompetência, em razão da matéria, do tribunal comum para conhecer do pedido de declaração de nulidade da citada deliberação da Assembleia Municipal da Figueira da Foz, por entender que tal conhecimento cabe aos tribunais administrativos.
Se assim não for entendido, afirma que a JAE nunca entrou na posse do ajuizado terreno, em consequência da respectiva expropriação a que procedeu e que, por isso, voltou a adquiri-lo por usucapião, pelo que o presente processo deve prosseguir seus termos, para fixação do valor devido pela actual expropriação realizada pelo Município da Figueira da Foz.


Por decisão de 4-2-03 (fls 336 e segs), foi julgado:

1 - Declarar nula a deliberação da Assembleia Municipal da Figueira da Foz de 23-6-2000, sobre a utilidade pública da expropriação da parcela em questão, bem como todo o procedimento administrativo;
2 - Declarar nulo o despacho de adjudicação da parcela, bem como os actos processuais subsequentes.

Agravou a expropriada "A, Indústria de Comércio e Madeiras, L.da," mas sem êxito, pois a Relação de Coimbra, através do seu Acórdão de 7-10-03, negou provimento ao agravo e confirmou a decisão recorrida.

Continuando inconformada, a expropriada recorreu de agravo para este Supremo, onde resumidamente conclui:
1 - A propriedade da parcela expropriada nunca chegou a ser judicialmente adjudicada à JAE, para se completar o processo expropriativo e lhe dar plena eficácia, nem a JAE chegou a ser investida na sua posse.
2 - A deliberação da Assembleia Municipal da Figueira da Foz de 23-6-2000 é válida.
3 - O tribunal comum não pode apreciar a regularidade do anterior processo de expropriação da JAE.
4 - A sede própria para atacar ou sindicar a deliberação da Assembleia Municipal da Figueira da Foz é apenas o contencioso administrativo.
5 - Foram violados os arts 134, nº2, do C.P.A, 51, al. c) do ETAF, 9, 15, 39, 41, 44, 100, 120 e 124 do dec-lei 845/76, de 11 de Dezembro, 268 da Constituição da República, 36 e 79 do Cód. Exp., 1306 do C.C. e arts 2 e 8 do anterior Cód. Reg. Predial.

O Município da Figueira da Foz respondeu, suscitando a questão prévia do não conhecimento do agravo e defendendo a manutenção do julgado, para a hipótese de se conhecer do seu objecto.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

A Relação considerou provados os factos seguintes:

1 - O procedimento administrativo iniciou-se, nestes autos, com a declaração da utilidade pública da Assembleia Municipal da Figueira da Foz, datada de 23-6-2000, publicada no D.R., 2ª série, nº 163, de 17 de Julho, da parcela de terreno com a área de 1.040 m2, designada por parcela 10, que faz parte do prédio rústico composto de terra de cultura paul, sito na Várzea, inscrito na matriz da freguesia de S. Julião sob o art. 168 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz, na ficha 1606, da mesma freguesia.
2 - A expropriação destinou-se à construção da via de ligação do IP 3 à V3, incluindo o acesso à Rua dos Heróis do Mar.
3 - Em 28-8-2000 foi elaborado o auto de posse administrativa.
4 - A propriedade da parcela foi adjudicada à entidade expropriante, por despacho de 23-11-2001.
5 - Ordenada a notificação da decisão arbitral, a expropriada interpôs recurso, por não se conformar com o valor da indemnização de 4.566.080$00, pedindo a sua elevação para 8.044.000$00.
6 - Já depois de realizada a avaliação, a entidade expropriante veio dar conhecimento que a ajuizada parcela já tinha sido anteriormente expropriada pela JAE, pelo que solicitou a nulidade da deliberação da Assembleia Municipal da Figueira da Foz e de todo o processo expropriativo, bem como do despacho adjudicativo da propriedade ao Município da Figueira da Foz e de todos os termos subsequentes.
7 - Em 12-4-1982, a JAE e a sociedade "A", através de auto de expropriação amigável, expropriou uma parcela de terreno com a superfície de 1.765 m2, sito na Várzea, que faz parte da propriedade Marinha, inscrito na matriz da freguesia de S. Julião sob o art. 168 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz sob o nº 22518, da mesma freguesia.
8 - A declaração da utilidade pública desta expropriação foi publicada no D.R., 2ª série, nº 47, de 25 de Fevereiro de 1977, com o fim de realizar obras nas estradas nºs 109 e 111.
9 - O prédio encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz, em nome de A - Indústria e Comércio de Madeiras, L.da, desde 2-12-58.
10 - A firma "A, L.da", tem pago a contribuição autárquica do prédio referente à parcela referida.

Questão prévia:

O presente recurso de agravo é admissível, a luz do art. 754, nº3, do C.P.C., com referência ao art. 734, nº1, al. a), do mesmo diploma ( a decisão põe termo ao processo), já que o preceituado no art. 66, nº5, do Cód. das Expropriações, aprovado pelo dec-lei 168/99, de 18 de Setembro, não impede a sua admissibilidade para o Supremo.

As instâncias concluíram:
- a expropriada já não pode fazer uso de qualquer direito de reversão, quanto à parcela expropriada em 1982, de que faz parte o terreno que agora foi novamente expropriado;
- a parcela expropriada não podia ser readquirida por usucapião ;
- objecto da presente expropriação é impossível, uma vez que se pretende expropriar o que já é do domínio público.
Por isso, decidiram que o tribunal comum é competente para declarar a nulidade da deliberação da Assembleia Municipal da Figueira da Foz de 23-6-2000 e de toda a tramitação administrativa e processual subsequente.

Que dizer?
Tudo sem olvidar que o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações.

A expropriação de 1982 decorreu ao abrigo das normas do dec-lei 845/76, de 11 de Dezembro, então vigente.
O art. 70, nº4, do referido dec-lei 845/76, estabelecia o seguinte:
"Recebido o processo devidamente instruído com a guia de depósito das indemnizações ou efectuada a notificação referida no número anterior, o Juiz, no prazo de 2 dias, adjudicará ao expropriante a propriedade e a posse dos prédios, salvo, quanto a esta, o caso de já ter sido conferida posse administrativa ou judicial. Simultaneamente, será ordenada a notificação da decisão arbitral, quer ao expropriante, quer aos diversos interessados ".
A análise desta norma permite-nos concluir que o acto de declaração de utilidade pública não transfere, só por si, a propriedade do bem para a entidade expropriante.
A expropriação propriamente dita só se consuma com a adjudicação da propriedade, pelo que a declaração da utilidade pública não será mais que o facto constitutivo da relação jurídica da expropriação.
A partir do momento da adjudicação da propriedade, o processo expropriativo segue para fixação do valor da indemnização devida pela expropriação.
Com efeito, declarada e publicada a utilidade pública, os direitos do expropriado ficam cerceados, mas não ficam extintos.
Tão pouco o direito de propriedade fica, por esse mero efeito, substituído por um direito de crédito à justa indemnização.
Tal só acontece com a adjudicação do bem à entidade expropriante (Ac. S.T.J. de 16-1-96, Col. Ac. S.T.J., IV, 1º, pág. 45; Alves Correia, As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, pág. 114).
Ora, através do certidão de fls 375 e segs, que se mantém nos autos, constata-se que a parcela, ora expropriada, foi adjudicada à JAE, por decisão de 26-4-83, transitada em julgado, no processo expropriativo de 1982.
Os actos declarativos da utilidade pública, como actos constitutivos da expropriação, são actos administrativos; como regra, os tribunais administrativos são os materialmente competentes para a sua impugnação contenciosa.
Todavia, o art. 96, nº1, do C.P.C., estabelece que o tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões suscitadas como meio de defesa.
Esta extensão da competência visa evitar a suspensão da causa principal até ao julgamento das questões prejudiciais ou incidentais.
Assim, sendo o tribunal da comarca o competente em razão da matéria, para o conhecimento da questão principal ou fundamental, será também o competente para o conhecimento das restantes questões conexas, incidentais ou prejudiciais, ainda que para umas e outras, enquanto isoladamente consideradas, fosse competente, por exemplo, o foro administrativo (Ac. S.T.J. de 9-1-03, Col. Ac. S.T.J., XI, 1º, 14).
É o que se verifica, in casu.
A razão principal e única do prosseguimento do processo consiste na fixação do valor da indemnização devida pela expropriação efectuada pelo Município da Figueira da Foz.
A nulidade da deliberação da Assembleia Municipal da Figueira da Foz de 23-6-2000 e dos subsequentes actos administrativos com vista à aludida expropriação foi suscitada, como meio defesa, pela entidade expropriante.
Trata-se duma questão prejudicial, relativamente à fixação do quantum indemnizatório, na medida em que a indemnização pressupõe uma expropriação válida e subsistente.
O tribunal comum, onde o processo correu termos, podia tomar uma de duas atitudes:
- conhecer da questão prejudicial, como conheceu - art. 96, nº1, do C.P.C.;
- sobrestar na decisão, até que o tribunal competente (tribunal administrativo) se pronuncie, no prazo e termos do art. 97, nºs 1 e 2 do C.P.C.
O poder que o art. 97 atribui ao Juiz de suspender, nestes casos, a instância, é uma simples faculdade (Alberto dos Reis, Comentário, Vol. 1º, pág. 288); Rodrigues Bastos, Notas ao Código do Processo Civil, Vol. I, 2ª ed., pág. 251).
Se entender preferível, pode logo julgar, na causa pendente, a questão prejudicial.
Apenas importa salientar que a decisão das questões incidentais e prejudiciais suscitadas não constitui caso julgado fora do respectivo processo, excepto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude e o tribunal for competente do ponto de vista internacional e em razão da matéria e da hierarquia - art. 96, nº2, do C.P.C.
Na verdade, o caso julgado formado pela decisão em crise da questão prejudicial ajuizada tem natureza meramente formal ( art. 672), isto é, só tem força obrigatória dentro deste processo.
Para que o caso julgado tivesse natureza material (art. 671, nº1), obrigando dentro e fora do processo, seria necessário que qualquer das partes tivesse requerido o julgamento dessa questão com essa amplitude e que o tribunal tivesse competência sem (ser por virtude do fenómeno da extensão) em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia, requisitos que não se verificam no caso presente.

Termos em que, não se mostrando violados os preceitos invocados nas conclusões, negam provimento ao agravo e confirmam o Acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 9 de Março de 2004
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Ponce Leão