Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B312
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUCAS COELHO
Descritores: VEÍCULO AUTOMÓVEL
REBOQUE
DANO
Nº do Documento: SJ200411180003122
Data do Acordão: 11/18/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 3505/03
Data: 09/29/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1 - Os veículos que integram um «conjunto de veículos» são material e juridicamente autónomos.
2 - Resultando de despiste e colisões do automóvel segurado na ré, exclusivamente imputáveis a facto do seu condutor, danos materiais no tractor e no semi-reboque da autora que rodavam em sentido oposto, incluindo a paralisação temporária de um e do outro, deve a seguradora indemnizar cumulativamente os danos das paralisações dos dois veículos e não apenas de uma única paralisação do conjunto unitariamente considerado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
"A", com sede em Vila Nova de Famalicão, instaurou no tribunal desta comarca, em 8 de Março de 2001, contra a Companhia de Seguros B, sediada em Lisboa, acção ordinária tendente a fazer valer a responsabilidade civil emergente de acidente de viação ocorrido a 26 de Novembro de 1999, na E. N. n.º 14, lugar do Quintão, freguesia de Muro, Trofa.
Nele intervieram directamente o tractor Scania OE atrelando o semi-reboque de matrícula L-, propriedade da autora, conduzido pelo seu empregado C, e o automóvel ligeiro de passageiros Opel Kadett AQ, propriedade de D, que o tripulava, e segurado na ré, os quais circulavam em direcções opostas, o OE no sentido Trofa/Porto e o AQ no sentido Porto/Trofa.
O sinistro, exclusivamente imputável a facto do condutor do Opel, resultou de manobra ilegal de ultrapassagem por este efectuada, que originou violenta colisão frontal com a outra viatura, ocasionando a morte daquele, ferimentos no condutor do Scania, e avultados danos materiais nos dois veículos, no semi-reboque e respectiva carga, em dois outros automóveis e um motociclo presentes no local, bem como lesões corporais ainda nos ocupantes de um destes.
O semi-reboque foi reparado por 1 100 000$00 a expensas da ré - que aceitara a responsabilidade pela eclosão do acidente -, sofrendo entretanto uma paralisação de 87 dias úteis que causou à autora o prejuízo diário de 37 000$00, no montante global de 3 218 000$00.
Considerou, todavia, a ré inviável devido a razões técnico-económicas a reparação do Scania, o qual, aliás, permanecera entrementes imobilizado durante 106 dias úteis, com um prejuízo total, à razão igualmente de 37 000$00 por dia, que a autora quantifica em 3 922 000$00.
Alegando ademais o prejuízo derivado da perda total desta viatura, no montante de 4 300 000$00, equivalente ao seu valor na data do acidente - 5 000 000$00, abatido do preço dos salvados que vendeu por 700 000$00.
Pede, em resumo, a condenação da ré a pagar-lhe a indemnização global de 11 440 000$00 - 4 300 000$00 a título da perda total do veículo OE e 7 140 000$00 advenientes da paralisação deste e do semi-reboque -, acrescidos dos juros moratórios legais vincendos a contar da citação.
Contestada a acção tão-somente no tocante aos montantes indemnizatórios, e prosseguindo o processo os trâmites legais, veio a ser proferida sentença final, em 13 de Fevereiro de 2003, que julgou a acção procedente na sua totalidade, condenando a ré a pagar à autora a peticionada soma de 11 440 000$00, e os juros legais pedidos.
Apelou a ré, circunscrevendo o recurso à parcela ressarcitória relacionada com a «paralisação do conjunto tractor/semi-reboque», mas a Relação do Porto negou-lhe provimento, confirmando a sentença da 1.ª instância.
Do acórdão neste sentido proferido, em 29 de Setembro de 2003, vem interposta a presente revista, cujo objecto, considerando a respectiva alegação e suas conclusões, à luz da fundamentação da decisão em recurso, se cinge unicamente à mesma questão de saber se há lugar à indemnização da paralisação do tractor, por um lado, acrescendo o ressarcimento autónomo da imobilização do semi-reboque, por outro, ou se ao invés releva para efeitos indemnizatórios apenas um dano de paralisação do conjunto dos dois veículos unitariamente considerados.
II
1. A Relação considerou assente a matéria de facto dada como provada na 1.ª instância, para a qual, aliás não impugnada e devendo aqui manter-se inalterada, desde já se remete nos termos do n.º 6 do artigo 713.º do Código de Processo Civil.
Aconselha em todo o caso a inteligibilidade do presente acórdão, além dos elementos informativos introdutoriamente aduzidos, se recortem do vasto elenco factual provado nas instâncias os pontos de facto estreitamente relacionados com a questão problemática que vem de se enunciar, tal como apresentados no acórdão em revista:
(...)
1.1. «Ora, em consequência do acidente resultaram para a autora danos avultados quer no tractor (veículo OE) quer no semi-reboque (veículo L-), bem como na mercadoria por este transportada (ponto 36.º);
1.2. «Por isso, em 9 de Dezembro de 1999, a autora entrou em contacto com a ré - Companhia de Seguros B - para que esta procedesse à vistoria e peritagem técnica adequadas (ponto 37.º);
1.3. «Nas quais se constatou que apenas o semi-reboque era susceptível de reparação (38.º);
1.4. «Na sequência da vistoria levado a cabo pela ré, e tendo esta emitido parecer favorável no sentido da sua reparação, foi formulada uma acta de acordo de reparação em 27.04.00, convencionando-se para o efeito o valor de Esc. 1 100 000$00 (€ 5 486,78) (39.º);
1.5. «No seguimento deste acordo procedeu-se, portanto, à reparação do semi-reboque, tendo a autora efectuado o pagamento respectivo, do qual foi reembolsada pela ré (40.º);
1.6. «Já no que concerne ao veículo OE, considerou a ré não se justificar quer em termos técnicos, quer em termos económicos a sua reparação (41.º);
(...)
1.7. «O veículo em apreço (1) esteve imobilizado durante 87 dias úteis e 37 dias não úteis (sábados, Domingos e feriados) o que perfaz 124 dias (44.º);
1.8. «A autora é uma empresa que se dedica aos Transportes Internacionais (TIR) (45.º);
1.9. «Daqui decorrendo, logicamente, que o veículo semi-reboque constitui um dos seus instrumentos de trabalho (46.º);
1.10. «O acordo ANTRAM mencionado, prevê um valor padrão de paralisação, que é distinto consoante a classificação dos veículos em causa (47.º);
1.11. «Estando o veículo semi-reboque adstrito ao serviço Internacional, cada dia representa, nos termos deste valor padrão, um prejuízo de Esc. 37 000$00 (€ 184,56), o qual embora consensual corresponde efectivamente ao valor que a autora deixou de ganhar pelo facto de o mesmo não poder circular, tendo-se este prejuízo reflectido no património da autora (48.º);
1.12. O «(...) tempo total de paralisação da viatura, calculado em 87 dias úteis», (...) «perfaz o montante de Esc. 3 218 000$00 (€ 16 051,32) (49.º);
1.13. «A autora informou a ré, com a antecedência devida, do local onde o veículo se encontrava, advertindo-a de que a paralisação do mesmo era susceptível de lhe causar avultados prejuízos (50.º);
(...)
1.14. «Por outro lado, a ré protelando, por sua culpa exclusiva, a decisão sobre o destino a dar ao veículo (2) , apenas declarou a "perda total" do mesmo em 2 de Maio de 2000 (54.º);
1.15. «A imobilização da viatura traduziu-se num prejuízo diário de Esc. 37 000$00 ( € 184,56), por ter deixado de circular e consequentemente ter a autora deixado de facturar serviços que poderia ter feito (55.º);
1.16. «Entre a data dos factos e a declaração por parte da ré, da perda total da viatura, verificada, como referido supra em 2/5/00, decorreram 106 dias úteis» (56.º).
2. À luz dos factos descritos se perfilou em 1.ª instância a questão da paralisação ou paralisações dos veículos da demandante que ora polariza a relação litigiosa no presente recurso.
Estando as partes de acordo quanto a tratar-se de um tipo de dano indemnizável, emergente do acidente, a autora pretendia ressarcir-se dos prejuízos decorrentes, quer da imobilização do semi-reboque, quer do tractor OE, contrapondo, todavia, a ré constituírem ambos um único veículo e haver, portanto, lugar a um só dano de paralisação.
Prevaleceu na sentença a primeira solução, alicerçada no pensamento fundamental de que os dois veículos, autonomamente, «um sem o outro continuam a ter utilidade económica para a autora», que assim ficou cumulativamente privada, do «uso do tractor» e do «uso do semi-reboque».
3. A Relação do Porto subscreveu o mesmo entendimento, com desenvolvida argumentação, concluindo em resumo:
«A indemnização por paralisação de veículo comercial tem como pressuposto a impossibilidade de utilização e circulação e perda de ganho.
Embora tractor e semi-reboque sejam considerados pela lei como veículos únicos, constituem ou podem constituir unidades económicas independentes e capazes de, separadamente, cada uma produzir rendimentos da sua utilização.
Tractor e semi-reboque devem ser considerados como realidades distintas para efeitos de fixação de indemnização pela paralisação de ambas as viaturas, atendendo ao critério económico que deve presidir á sua fixação.»
4. Da decisão dissente inconformada a B mediante a presente revista, sintetizando a alegação nas conclusões subsequentes, que reproduzem em boa parte as conclusões da alegação da apelação:
4.1. «O presente recurso tem apenas por objecto a indemnização arbitrada pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto a título de paralisação do conjunto tractor/semi-reboque;
4.2. «Em consequência do acidente dos autos o tractor OE e o semi-reboque L-, ambos propriedade da recorrida, sofreram danos que acarretaram a sua paralisação, respectivamente, durante 87 e 106 dias úteis;
4.3.«O tribunal a quo interpretou a tabela do acordo entre a ANTRAM e a APS no sentido de que o tractor e o semi-reboque constituem dois veículos, daí advindo uma duplicação da indemnização atribuída à recorrida;
4.4. «Analisado o acordo celebrado entre a ANTRAM e a APS (Associação Portuguesa de Seguradores) verifica-se: as indemnizações nele previstas referem-se, exclusivamente, à paralisação de veículos, não havendo nele qualquer referência à paralisação de reboques ou semi-reboques, sendo certo que o custo da imobilização varia, consoante a tonelagem dos veículos;
4.5. «Regulando o supra referido acordo o cálculo das indemnizações emergentes de paralisações de veículos de mercadorias, aquela tonelagem releva para efeitos de se aferir a quantidade de carga que cada veículo pode transportar;
4.6. «A quantidade de carga que cada veículo pode transportar constitui, na perspectiva da recorrente, o critério base para a fixação do custo de imobilização de cada veículo;
4.7. «A ser assim, não faz sentido - salvo o muito e devido respeito por opinião contrária - a referência ao conjunto tractor/reboque ou semi-reboque como unidades económicas independentes, para efeitos de cálculo do referido custo de imobilização;
4.8. «Nos termos do disposto no artigo 111.°, n.° 2, do Código da Estrada conjunto de veículos é o grupo constituído por um veículo tractor e seu reboque ou semi-reboque e, nos termos do n.° 2 daquele preceito, o conjunto de veículos é equiparado a veículo único;
4.9. «O custo de aquisição e as despesas de manutenção de um tractor são muito superiores aos de um semi-reboque, motivo pelo qual o prejuízo pela paralisação daquele é, naturalmente, muito mais elevado do que o prejuízo pela paralisação deste;
4.10. «E não se diga - até porque não foi sequer alegado - que a autora podia ter alugado um tractor e um semi-reboque para fazer face à paralisação dos que ficaram danificados: é que se o fizesse o seu prejuízo já não seria o lucro cessante derivado da alegada paralisação, mas o dano emergente correspondente ao custo do aluguer;
4.11. «A indemnização fixada pela tabela do acordo entre a ANTRAM e a APS respeita à paralisação do conjunto tractor/semi-reboque;
4.12. «A indemnização a que a recorrida tem direito corresponde ao maior número de dias em que o conjunto esteve paralisado: tendo o semi-reboque estado paralisado durante 86 dias úteis e o tractor 106, a indemnização, nos termos da indicada tabela, corresponde a € 19 563,36 (106 x € 184,56);
4.13. «A decisão recorrida violou, entre outros, o disposto nos artigos 562.° e 566.°, ambos do Código Civil.»
5. A autora contra-alega sugestivamente a favor da tese da dupla paralisação, pronunciando-se pela confirmação do acórdão sub iudicio.
III
Coligidos em conformidade com o exposto os necessários elementos de apreciação, cumpre decidir.
1. No cerne da presente revista, como se adiantou no intróito, está a questão de saber se a autora tem direito à indemnização da paralisação do veículo tractor, acrescendo o ressarcimento autónomo da paralisação do semi-reboque, ou se para efeitos indemnizatórios releva tão-somente uma paralisação do conjunto dos dois veículos unitariamente considerados.
Na linha das decisões conformes das instâncias, ponderadas as duas vertentes em que se projecta a questão enunciada - o fundamento jurídico-factual dos concretos danos de paralisação litigiosos; e a natureza material e jurídico-económica dos veículos em apreço - propendemos decididamente para o primeiro termo da alternativa.
1.1. Quanto à primeira vertente relevam antes de mais os dispositivos concernentes do Acordo ANTRAM/APS alegado como elemento integrador da causa de pedir nos artigos 44.º e segs. da petição, e acolhido na decisão da matéria de facto [quesitos 4.º e segs. (fls. 59), considerados provados (fls. 136); cfr. supra, II, 1.10. e segs.], a que por último também se reporta a alegação da revista (conclusões supra, II, 4.3. e segs.).
Efectivamente, entre a Associação Nacional de Transportes Públicos Rodoviários de Mercadorias (ANTRAM) e a Associação Portuguesa de Seguradores (APS), ambas em representação dos seus associados, foi celebrado o Acordo, de 23 de Março de 2000 (documentos de fls.16/22), tendente à resolução das questões emergentes de acidentes de viação relativamente a «danos num veículo de transporte público de mercadorias propriedade de um associado da ANTRAM», que sejam «da responsabilidade duma representada da 2.ª Outorgante».
A análise das matérias clausuladas - avisos de sinistros, reparações de danos, resoluções de litígios, etc. - exorbitaria dos limites da revista, justificando-se, todavia, aludir em breve recorte ao profuso artigo 3.º, que rege precisamente acerca das paralisações.
A seguradora obriga-se a liquidar aos associados da ANTRAM, mediante apresentação do livrete e da licença de aluguer emitida pela Direcção-Geral dos Transportes Terrestres, as importâncias constantes da tabela anexa ao convénio a título de paralisação dos veículos, conforme a classificação destes.
Prevêem-se nestes termos cinco categorias de veículos pesados por ordem ascendente de tonelagem (cfr. fls. 17), e uma sexta categoria de «serviço internacional» independentemente de tonelagem, às quais correspondem respectivamente os «custos de imobilização/dia» fixados na tabela por ordem crescente, culminando na verba de 37 000$00 atribuída à categoria de «serviço internacional» - a categoria, pois, considerada pertinente quanto aos veículos da autora na presente acção.
Entende-se por paralisação, conforme o n.º 3.1. do artigo 3.º, «o período de tempo da imobilização da viatura aguardando peritagem, o período de tempo em que se aguarda disponibilidade dos serviços de reparação na oficina e o período de tempo para reparação dos danos», descontados «os sábados, domingos e os feriados oficiais» - como nos cálculos de quantificação dos danos a que se procedeu na decisão da matéria de facto.
Conclui-se, por conseguinte, que as disposições de lex mercadoria a que as partes subordinaram os litígios sinistrais cobertos por contratos de seguro (artigo 405.º, n.º 1, do Código Civil e artigo 3.º do Código Comercial) consideram como danos ressarcíveis - independentemente da prova, v. g., de correspectivos lucros cessantes -, as questionadas paralisações pelo mero facto da sua verificação (3) , aspecto em que os litigantes aliás não divergem, tão-só dissentindo na questão da dupla paralisação.
A solução compreende-se à luz do pragmatismo e agilidade imperante nos negócios do mundo empresarial, envolvendo operações de sectores interactivos e inter-relacionais dinâmicos, a altos rácios de ocupação/laboração, como os dos transportes de mercadorias transfronteiras e da actividade seguradora.
Abstraindo como quer que seja do Acordo sumariado - importará subsidiariamente observar, por outro lado, na tónica em que nos situamos -, as instâncias deram por assente que as paralisações em apreço se traduziram em efectivos prejuízos da autora, quantificados na decisão de facto não só em função dos vectores contratuais de classificação dos veículos, e do factor tempo, mas dos próprios lucros cessantes que a demandante deixou de auferir (supra, II, 1.7. e segs., em especial 1.11. e 1.15.).
1.2. Posto isto, interessa na segunda vertente a questão da natureza dos veículos da demandante, à luz primacialmente do direito de circulação rodoviária compendiado no Código da Estrada e legislação complementar.
O veículo Scania pertence à classe dos tractores, ou seja, conforme o artigo 106.º, n.º 2, alínea d) (4), dos veículos «construídos para desenvolver um esforço de tracção, sem comportar carga útil».
O outro veículo da autora é um semi-reboque, que se destina, portanto, «a ser atrelado a um veículo a motor, assentando a parte da frente e distribuindo o peso sobre este» (artigo 110.º, n.º 2).
A este propósito, distingue o artigo 111.º «veículos únicos» e «conjuntos de veículos», enumerando no n.º 1 os do primeiro tipo: «a) o automóvel pesado composto por dois segmentos rígidos permanentemente ligados por uma secção articulada que permite a circulação entre ambos», e «b) o comboio turístico constituído por um tractor e um ou mais reboques destinados ao transporte de passageiros em pequenos percursos e com fins turísticos ou de diversão».
Por seu turno, o conjunto de veículos, nos termos do n.º 2, «é o grupo constituído por um veículo tractor e seu reboque ou semi-reboque».
É, pois, indubitável que os dois veículos em causa constituem um conjunto de veículos, e não um veículo único.
Tanto assim, que estão sujeitos a matrícula (artigo 117.º, n.º 1), e à consequente emissão de livrete (artigo 118.º, n.º 1), quer o tractor, quer o semi-reboque.
A lei especifica inclusivamente que a matrícula no segundo caso é constituída «por uma ou duas letras, seguidas de um número de ordem» (artigo 35.º do Regulamento do Código da Estrada) - tal como a matrícula do semi-reboque da autora identificada nos autos (L-......).
E os semi-reboques encontram-se ademais adstritos a seguro obrigatório (artigo 131.º, n.º 1, do Código da Estrada; v. g, artigos 1.º, n.º 1, e 20.º, n.os 2 e 3, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro).
2. Os veículos que integram um «conjunto de veículos» são, assim, material e juridicamente autónomos, e, por conseguinte, funcionalmente intermutáveis na utilização económico-comercial de cada um dos tipos em combinação com diferentes veículos do outro tipo.
E possuindo cada um dos elementos do conjunto de veículos uma utilidade económica de exploração comercial própria e autónoma, bem se compreende, à luz do exposto, que a paralisação de qualquer deles deva relevar também autonomamente como fonte de danos.
2.1. A recorrente objecta fundamentalmente que, nos termos do n.º 3 do artigo 111.º do Código da Estrada, «o conjunto de veículos é equiparado a veículo único» (cfr. conclusão 8.ª, supra, II, 4.8.).
Para daqui concluir «que a tabela da ANTRAM, ao referir-se a veículos, refere-se ao conjunto veículo/reboque ou semi-reboque» e, portanto, «a indemnização pela paralisação do conjunto e não a indemnização pela paralisação de cada um dos seus componentes» (págs. 4/5 da alegação, a fls. 205 verso/206).
Por outras palavras, no entendimento da ré, uma vez que a lei considera o conjunto como veículo único, deve a tabela do acordo aplicar-se-lhe exactamente como a um só veículo e não como a dois veículos. Não é, por consequência, uma particular interpretação do Acordo, mas uma certa acepção da lei que está no cerne da tese da recorrente.
2.2. Ora, o n.º 3 do artigo 111.º do Código da Estrada (5) - que atrás se deixou propositadamente em suspenso - dispõe como segue (frisado agora):
«3 - Para efeitos de circulação, o conjunto de veículos é equiparado a veículo único.»
A alegação da revista omite, todavia, qualquer menção ao segmento «para efeitos de circulação», a despeito da sua importância no conteúdo do inciso.
Na verdade, o normativo transcrito considera o conjunto equiparado a veículo único, mas apenas para efeitos de circulação.
E essa é desde logo a melhor prova, além do que já se disse, de que os veículos do conjunto não constituem na realidade um único veículo, mas dois veículos distintos e autónomos, como há pouco se mostrou.
Desde logo, o fraseado da «equiparação» em preceitos de lei é bem sintomático da técnica legislativa da ficção legal, mera forma dissimulada ou implícita de remissão que consiste precisamente na «deliberada equiparação daquilo que é consabidamente desigual» (6), na «assimilação fictícia de realidades factuais diferentes, para efeito de as sujeitar ao mesmo regime jurídico» (7).
O n.º 3 do artigo 111.º finge, ou ficciona, portanto, que o conjunto de veículos é um veículo único para o sujeitar ao mesmo regime destes veículos.
Mas a ficção ou equiparação não vale sem limitações, mas apenas «para efeitos de circulação», isto é, para os efeitos implicados na disciplina do trânsito das várias espécies de veículos presentes simultaneamente em vias públicas de diferente natureza, nas mais variadas condições de tempo e espaço.
Não é, por consequência, o caso, se bem se pensa, das paralisações do tractor e do semi-reboque em apreço por efeito dos danos materiais neles causados mercê da colisão a que culposamente deu origem o condutor do automóvel Opel segurado na ré (8).
A tese que mereceu o favor das instâncias é, em suma, a mais acertada, apresentando, ademais, capacidade de resistência dialéctica que a deixa imune à argumentação adversa.
3. Na improcedência, por todo o exposto, das conclusões da alegação da recorrente, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pela ré recorrente (artigo 446.º do Código de Processo Civil).

Lisboa, 18 de Novembro de 2004
Lucas Coelho
Bettencourt de Faria
Moitinho de Almeida
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(1) Trata-se agora indubitavelmente do semi-reboque, não do veículo OE
(2) O veículo neste caso aludido é o Scania OE.
(3) Anotem-se, todavia, as cautelas exaradas nos n.os 3.2. e 3.6. do artigo 3.º: «Desde que o veículo não fique impedido de trabalhar, o tempo de paralisação indemnizável será limitado ao número de dias necessários à reparação dos danos, acordado entre o perito da seguradora e a oficina reparadora» (n.º 3.2.); além disso, «Qualquer demora imputável ao lesado será da sua responsabilidade e, consequentemente, no período correspondente, não vencerá direito a indemnização» (n.º 3.6.).
(4) Isto - tanto quanto foi possível apurar - na redacção do Código da Estrada de 1994 emergente da revisão levada a efeito pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, e constante da republicação do Código anexa ao diploma (cfr. o seu artigo 2.º), o qual entrou em vigor a 31 de Março de 1998, sendo essa a versão vigente na data do sinistro sub iudicio. Cfr. subsídios no sentido exposto em Júlio Reis, Código da Estrada, «Edições Júlio Reis», Lisboa, 1999, pág. 63. O mesmo se diga quanto aos normativos subsequentemente citados no texto, com relevo para o n.º 3 do artigo 111.º, aludido infra, ponto 2.2.
(5) Cfr. supra, nota 4., e Júlio Reis. op. cit., anotação ao artigo 111.º
(6) Karl Larenz, Methodenlehre der Rechtswissenschaft (Studienausgabe), 5.ª edição alemã, Springer Verlag, Berlin, Heidelberg, New York, Tokyo, 1983 pág. 141, com outros desenvolvimentos, e Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997, tradução por José Lamego da 6.ª edição alemã, de 1991, pág. 366, sem diferenças sensíveis entre os dois textos
(7) Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 11.ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 1999, págs. 108 e segs.; cfr. também Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral - Uma Perspectiva Luso-Brasileira, 11.ª edição revista, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 503, criticando a técnica das ficções «porque o que na realidade é diverso, diverso continua».
(8) Por similitude de alguns elementos, não se resiste a evocar o acórdão, de 18 de Janeiro de 2000, «Colectânea de Jurisprudência. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça», Ano VIII (2000), Tomo 1, págs. 34 e segs., em que, todavia, a situação, aliás sujeita ao Código da Estrada de 1954, como diz o aresto, era a inversa: acidente imputável à condução de tractor agrícola com atrelado, resultando os danos especificamente da utilização do reboque desprovido de seguro