Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B4298
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: DUARTE SOARES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS MORAIS
Nº do Documento: SJ200402260042982
Data do Acordão: 02/26/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 3036/03
Data: 06/26/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : I- A mulher casada com vítima de acidente de viação causador de lesões que provocaram disfunção eréctil, não tem direito de reclamar, do responsável, indemnização por danos não patrimoniais.
II- A decorrente impossibilidade do marido cumprir o débito conjugal não constitui, para o respectivo cônjuge, dano directo do evento danoso mas apenas uma sua consequência mediata ou indirecta.
III- O universo das pessoas não lesadas directamente com direito à indemnização por danos morais são apenas as previstas na norma do nº. 2 do artº. 496º do CC e apenas no caso de morte da vítima.
Não pode aplicar-se essa norma, extensivamente, ou por analogia, a outras situações para além da morte da vítima porque a restrição em vigor constitui uma opção consciente do legislador.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A instaurou acção ordinária contra "Companhia de Seguros B" pedindo a condenação desta a pagar-lhe uma indemnização de montante não inferior a € 150.000 com juros de mora desde a citação, que é o valor dos danos não patrimoniais que sofreu em consequência de acidente de viação entre os veículos MC, seguro na Ré, e o EL, conduzido por seu marido. O acidente deveu-se a culpa exclusiva do condutor do MC e dele resultaram lesões para o seu marido que ficou a padecer de disfunção sexual o que é causa de danos directos para si.
Contestou a Ré sustentando que os danos alegados não são indemnizáveis.
Logo no saneador, conhecendo de mérito, o Mmo. Juiz julgou a acção improcedente por entender que os danos não patrimoniais sofridos por outrem que não o lesado, não são indemnizáveis.
Conhecendo da apelação interposta pela A, a Relação do Porto julgou-a procedente revogando o saneador sentença e ordenando o prosseguimento da acção.
Pede agora revista a Ré que, nas alegações, conclui assim:
1 - A responsabilidade civil invocada pressupõe a violação do direito da A ou de norma legal destinada a proteger o seu interesse, o que não ocorre.
2 - A Autora não interveio no acidente pelo que não é lesada directa para efeitos de titular um direito a indemnização.
3 - Os danos não patrimoniais reflexos, causados indirectamente pelo lesante a terceiros apenas são indemnizáveis quando ocorra previsão legal o que não se verifica nesta hipótese.

Contra alegou a recorrida batendo-se pela confirmação do acórdão.
Foram colhidos os vistos. Cumpre decidir.

A 1ª instância, louvando-se nas normas dos artºs. 495º, nº. 2 e 3, e 496º, nº. 3, do CC, e na jurisprudência largamente dominante e em amplos sectores da doutrina, decidiu, logo no saneador, por julgar improcedente o pedido com o fundamento de que os factos alegados logo demonstram que a Autora não sofreu danos directos com o acidente dos autos.
A Relação, por sua vez, configurando a situação da A, enquanto cônjuge da vítima directa do acidente, como titular de um direito de personalidade no que concerne ao seu direito ao exercício e uma sexualidade sã, concluiu que tal direito foi directamente violado pela conduta danosa do segurado da R pois, do acidente resultou a incapacidade da vítima cumprir para com a Autora um dos deveres essenciais que assumiu no casamento.
Não pode pôr-se em causa que numa situação como esta, bem como nos casos em que ocorram lesões graves em acidentes, podem ser, e são-no frequentemente, muito graves os danos colaterais suportadas por quem não sofreu o impacto directo da ofensa.
Mas é evidente o propósito do legislador no sentido de delimitar ou circunscrever o âmbito dos titulares do direito a indemnização.
Tal propósito é o que se revela, a contrario, das referidas normas dos artºs. 495º, nº. 2, e 496º, nº. 3 do CC quando definem as pessoas, para além da vítima directa do acidente, com direito à indemnização.
E, como foi dito, não tem havido divergências nas decisões judiciais que, de modo praticamente uniforme, têm entendido que, por mais grave que seja o dano reflexamente suportado, não há lugar a indemnização para além dos casos previstos naquelas normas.
No notável estudo com que participou na homenagem ao Professor Inocêncio Galvão Telles, o Dr. António Abrantes Geraldes analisa, em profundidade, o tema da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais de terceiros em caso de lesão corporal (ed. LA Almedina 2003), e concluiu que á luz do nosso direito positivo "são ressarcíveis os danos não patrimoniais suportados por pessoas diversas daquela que é directamente atingida por lesões de natureza física ou psíquica graves, nos termos gerais do artº. 496º, nº. 1 do CC, designadamente quando fique gravemente prejudicada a sua relação com o lesado ou quando as lesões causem neste grave dependência ou perda de autonomia. Tal direito deve ser circunscrito às pessoas indicadas no nº. 2 do artº. 496º.
No percurso que seguiu para chegar a esta conclusão, o autor considerou, em geral, a realidade de todos conhecida de que, nas mais variadas circunstâncias, os danos não patrimoniais sofridos pelos cônjuges e familiares próximos das vítimas, são, não raras vezes, de bem maior intensidade do que o que estas suportam.
E no sentido do alargamento da norma de modo a abranger tais danos invocou a doutrina de vários autores, designadamente a de Vaz Serra, Ribeiro de Faria e Américo Marcelino.
As razões que recomendam tal alargamento são de tal modo evidentes, relevando de modo impressionante, os danos sofridos pelos pais de uma criança vítima de acidente que ficou para sempre incapacitada com sequelas irreversíveis, psíquicas e físicas, que não é razoável defender-se que o legislador não os previu.
Acresce, quanto a Vaz Serra - com participação activa nos trabalhos preparatórios do Código Civil - que foi rejeitada a proposta que então formulou relativamente à norma em questão que foi a de que (vide BMJ nº. 83 pgs. 96) no caso de dano que atinja uma pessoa de modo diferente do previsto no 2º (morte) têm os familiares dele direito de satisfação pelo dano a eles pessoalmente causado.

Não pode, assim, razoavelmente invocar-se, como já foi dito, a falta de previsão do legislador quanto às situações que, fundadamente, reclamam o alargamento da aplicação da norma.
A restrição que ela impõe foi, e é, uma opção consciente do legislador e, face aos princípios gerais em matéria de interpretação da lei (artº. 9º do CC) que elegem como critério último a reconstituição do pensamento do legislador, não estando sequer em causa uma eventual obscuridade ou ambiguidade do texto normativo, não é legítimo alargar o campo da sua aplicação nos termos pretendidos, sob pena de estarem os tribunais a invadir áreas que lhe estão vedadas e de violarem o princípio constitucional da separação dos poderes.
É certo que o acórdão recorrido configura os danos cuja indemnização a Autora reclama como danos próprios pois o invocado direito a uma sã sexualidade foi directamente atingido pela conduta do segurado da R.
No entanto, sem embargo de se reconhecer que terá ficado comprometido o cumprimento, pelo seu marido, de um relevante dever conjugal, há que reconhecer que, em rigor, o correspondente direito da A só reflexamente terá sido atingido.
Conclui-se, pois, que não existem fundados motivos para alargar o âmbito da aplicação da norma do artº. 396º do CC no sentido pretendido pela A pelo que procedem, no essencial, as conclusões do recurso

Nestes termos, concedendo a revista, revogam o douto acórdão recorrido para que prevaleça o decidido na primeira instância.
Custas pela recorrida.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2004
Duarte Soares
Ferreira Girão
Luís Fonseca (votei a decisão)