Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B111
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA GIRÃO
Descritores: UNIÃO DE FACTO
LIQUIDAÇÃO DE PATRIMÓNIO
Nº do Documento: SJ200403090001112
Data do Acordão: 03/09/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 2347/02
Data: 05/08/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : Cessada a união de facto, a liquidação do património comum (adquirido pelo esforço comum) pode fazer-se - verificados os respectivos pressupostos - ou de acordo com os princípios das sociedades de facto, ou com invocação do instituto do enriquecimento sem causa.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Alegando ter vivido maritalmente com o réu durante cerca de 13 anos, como se de marido e mulher se tratasse, de que resultou, além do nascimento de uma filha de ambos, um património comum, construído com os proventos das respectivas actividades profissionais e com as economias que iam fazendo, a autora A intentou a presente acção ordinária contra o réu B, onde pede que se decida:
a)que a autora e réu tiveram, nos 13 anos que viveram em comum, a economia doméstica conjunta, para a qual participaram com os seus vencimentos;
b)que todo o património adquirido durante a vigência dessa união de facto foi feito com as economias de ambos, na perspectiva de um casamento futuro;
c)que qualquer dos conviventes, autora e réu, tem metade no património comum dos dois, não obstante alguns bens estarem apenas em nome de um;
d) a condenação do réu na entrega à autora de metade de tal património a liquidar em execução de sentença, com juros de mora até integral pagamento.
Invoca a peticionante os artigos 473 e 479 do Código Civil.
Contestando, o réu excepciona a caducidade do direito de acção bem como a prescrição do direito à indemnização a que a autora se arroga, impugna a factualidade alegada pela autora e, invocando também o enriquecimento sem causa, deduz reconvenção e termina o seu articulado contestatório pretendendo que se decida:
a)pela procedência das excepções peremptórias de caducidade do direito da autora e da prescrição do direito à indemnização, absolvendo-se a ré do pedido;
b)dado o carácter subsidiário da acção de restituição por enriquecimento sem causa, a autora devia ter-se socorrido das acções apropriadas no tempo e lugar adequados para defesa dos seus direitos, ou quando assim se não entenda:
c)que durante os 13 anos de vida em comum, autora e réu tiveram economia doméstica comum e patrimónios separados, participando cada um a seu modo, com vencimentos, produtos e serviços e dentro das suas possibilidades para tal economia;
d)que não tendo existido da parte do réu qualquer compromisso de contrair casamento, a expectativa da autora não é tutelada pelo direito;
e)que a aquisição pelo réu de bens patrimoniais foi feita a título pessoal, apenas com os seus recursos e através de obrigações para o efeito contraídas, não tendo a autora intervindo directa ou indirectamente em tais aquisições e com quaisquer meios;
f)que não tendo havido, mediante despesas que a autora tivesse feito e que o réu tivesse deixado de fazer, qualquer enriquecimento do réu, não podia a autora, através desse meio, ter adquirido directa ou indirectamente qualquer parte do património do réu;
g)que não tendo o réu enriquecido à custa da autora e não tendo esta empobrecido à custa do réu não existe obrigação de restituir ou indemnizar. Ou, alternativamente,
h)que, procedendo o pedido da autora, deve o réu ser indemnizado e restituído nos termos reconvencionais.
i)que, sendo as despesas efectuadas pelo réu de montante superior àquele que a autora diz ter efectuado, deve a autora ser condenada no pagamento ao réu do que vier a apurar-se em liquidação de sentença.
Houve réplica e, realizado o julgamento, foi a acção julgada improcedente, com a consequente absolvição do réu do pedido, não se tendo conhecido da reconvenção, por prejudicialidade.
Apelou a autora e a Relação de Lisboa, concedendo provimento ao recurso, revogou a sentença e condenou o réu a pagar à autora a quantia que se liquidar em execução de sentença.
É agora a vez de o réu pedir revista do acórdão da Relação, formulando as seguintes conclusões:
1. A vivência em comum de um casal em situação análoga à dos cônjuges só tem como consequências as previstas no artigo 2020 do Código Civil, ou seja, é irrelevante para apurar o conteúdo do património de cada um dos membros desse casal.
2. Se ao longo dessa vivência em comum, pela actividade de ambos, criaram um património comum, nenhum deles enriqueceu à custa do outro, por esse facto, havendo lugar tão somente ao processo de pôr termo à indivisibilidade/comunhão do património como é regulamentado nos artigos 1412 e 1413 do Código Civil.
3. Não se pode afirmar que da vivência em comum resulte necessariamente um património comum; mas se ele resultar dessa vivência em comum deve concretizar-se quais são os bens, direitos e obrigações que os compõem, para efeitos da cessação da indivisibilidade.
4. Não é possível condenar-se um dos membros do casal em vivência de facto em execução de sentença a pagar ao outro, ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa no caso de haver património comum inconciliável com o teor do artigo 473 do C. Civil (neste há uma transferência indevida de valores para uma das partes, o que não é o caso sub judice).

A recorrida contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

Os factos provados são os seguintes:

A autora viveu maritalmente e durante 13 anos com o réu e eram vistos pelos vizinhos com se de marido e mulher se tratasse;

Desta união de facto nasceu a filha de ambos, C, em 5/9/84;

Autora e réu viveram primeiramente em Cruz de Pau, freguesia de Amora, depois, em Outubro de 1985, passaram a viver em Salvaterra de Magos, e, posteriormente, passaram a viver em Marinhais;

Durante os 13 anos de convivência em união de facto o réu proporcionou habitação à autora, na Cruz de Pau, Salvaterra e Marinhais, não existindo qualquer contrato de comodato, nem nunca a autora pagou qualquer valor de renda;

Tanto a autora como o réu trabalhavam, auferindo os seu vencimentos;

Por escritura lavrada no Cartório Notarial de Salvaterra de Magos, no dia 7/8/86, D, como 1º outorgante declarou vender ao réu, como 2º outorgante, que aceitou comprar, o prédio urbano, que se compõe de uma morada de casas de rés-do-chão, com três assoalhadas, cozinha, casa de banho, despensa e marquise com logradouro, sito na vila e freguesia de Marinhais, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2060 e descrito na CRP de Salvaterra de Magos sob o nº232;

Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de Salvaterra de Magos, no dia 7/8/86, o réu confessou-se devedor à CGD da quantia de 2.000.000$00, que por esta lhe foi emprestada para aquisição do prédio identificado em 6º;

Tal prédio esteve inscrito a favor do réu pela inscrição G.2, Ap.5/300586;

Actualmente o prédio identificado em 6º encontra-se inscrito a favor de E pela inscrição G-3, Ap12/971112;
10º
Em 12/12/97 foram canceladas as hipotecas voluntárias incidentes sobre o prédio identificado em 6º, pelas apresentações 10 e 11;
11º
Em 26/3/95 foi elaborado um relatório de avaliação, que se encontra junto a fls. 13 dos autos;
12º
Autora e réu tinham uma conta bancária comum na C.G.D., em Alcochete;
13º
Durante a união de facto, o réu comprou carro por três vezes, o primeiro com empréstimo da C.G.D., em 1991 comprou o segundo veículo e em Dezembro de 1994 comprou um terceiro a pronto pagamento, cada um destes veículos em substituição do anterior;
14º
Durante a vivência conjunta, o réu disponibilizou à autora a possibilidade de utilizar os Serviços Sociais da C.G.D., não tendo a autora feito despesas com cuidados médicos, pagando o réu por desconto no seu ordenado a parte correspondente aos excessos que a autora nunca lhe pagou;
15º
A autora adquiriu um veículo automóvel «Fiat Uno» em 1992;
16º
Durante o período em que autora e réu viveram juntos, o réu cultivou e produziu no logradouro da casa identificada em 6º batatas, couves, alfaces, tomates, ovos, galinhas, coelhos, patos, faisões e pombos;
17º
O prédio anteriormente referido foi aumentado durante o tempo em que a autora e o réu viveram juntos e foi vendido já com rés-do-chão e 1º andar;
18º
Devido ao mau relacionamento existente entre autora e réu, este cancelou uma viagem que pretendia realizar no início do mês de Abril;
19º
Era intenção da autora e do réu contraírem matrimónio;
20º
O réu quis que o prédio identificado em 6º ficasse em nome da autora;
21º
O que só não aconteceu para o réu poder beneficiar de juros bonificados no empréstimo referido em 7º ;
22º
Foi a autora quem suportou as despesas domésticas ao longo de 13 anos de vida em comum;
23º
Em 1985 o réu auferia um vencimento base de 71.645$00;
24º
A autora gastou, em média e por mês, 3.000$00 de água, 7.000$00 de luz e 10.000$00 de telefone;
25º
A autora pagou as despesas com o gás;
26º
A autora procedeu ao pagamento do pão, das mercadorias, do talho, da empregada doméstica e da lenha;
27º
A autora teve despesas com o vestuário, calçado, consertos de electrodomésticos e compra de artigos para a casa;
28º
Com o baptizado da C a autora gastou 100.000$00;
29º
Foi a autora quem suportou as despesas com a ama da C;
30º
A autora prestava trabalho em casa, no desempenho das tarefas domésticas;
31º
Tais despesas foram feitas pela autora no pressuposto de que a união de facto com o réu se manteria, com a perspectiva do casamento;
32º
A autora tinha na C.G.D. conta só em seu nome onde era depositado o seu vencimento;
33º
A conta da autora na C.G.D. não foi movimentada pelo réu;
34º
No BBI, agência da Cruz de Pau, existiu uma conta bancária destinada a pagamentos de despesas de água, luz e telefone;
35º
A autora levantou o dinheiro depositado pelo réu naquela conta, sabendo o fim a que a mesma se destinava;
36º
E por falta de fundos os recibos foram devolvidos;
37º
A irmã do réu emprestou-lhe dinheiro para a aquisição da casa referida em 6º, dinheiro proveniente da venda de uma fracção de que era proprietária na Cruz de Pau;
38º
E com o dinheiro de um empréstimo que o réu teve de contrair e no qual a autora não teve qualquer intervenção;
39º
Antes das compras referidas em 13º o réu já tinha automóvel;
40º
Este sempre esteve ao serviço do réu, da autora, do filho desta e da filha de ambos e para familiares da autora;
41º
A referida viatura foi entregue por troca da que foi adquirida em 1º lugar e referida em 13º;
42º
As prestações para pagamento desse veículo foram feitas através de desconto no vencimento;
43º
A viatura adquirida em 1991 era uma viatura mista de passageiros e foi comprada através de um empréstimo contraído pelo réu;
44º
Em 1998 a autora auferia um vencimento mensal de cerca de 66.300$00;
45º
Os encargos com o parto da filha da autora e do réu foram pagos através dos Serviços Sociais da C.G.D;
46º
Autora e réu apenas se deslocaram poucas vezes a casa do pai da autora, em Elvas;
47º
A autora utilizou sem qualquer pagamento do seu valor os produtos identificados em 16º;
48º
Os animais e aves ali referidos ficaram na posse do réu;
49º
Os referidos produtos eram consumidos por todo o agregado familiar;
50º
À filha da autora e do réu foram prestados particularmente cuidados de saúde pagos pela autora;
51º
Os electrodomésticos foram reparados numa firma denominada «Telemáquina», pertença de F, em Marinhais, cujos serviços e peças sempre foram pagos pela autora;
52º
O pai da autora ofereceu-lhe a quantia correspondente ao montante pago na ocasião da compra como entrada do veículo identificado em 15º;
53º
A autora ficou a pagar o restante preço a prestações.

Embora, como refere o Professor Pereira Coelho, RLJ 120º, páginas 79-86, para a generalidade dos efeitos não possa ser considerada como relação de família, na definição do artigo 36, nº1 da Constituição da República Portuguesa, é patente que a união de facto, como incontornável situação da realidade sociológica, tem vindo a ser objecto de crescentes medidas legislativas de protecção.

É verificável no nosso ordenamento jurídico uma generalizada e profusa concessão de efeitos à união de facto, quer - e especialmente - na área do direito da segurança social, quer no âmbito do direito civil.

Classificando os efeitos meramente civis de desfavoráveis e de favoráveis, o citado Professor, na referida anotação, elenca como um dos efeitos favoráveis o de «cessada a união de facto, cada um dos sujeitos da relação tem direito a participar na liquidação do património adquirido pelo esforço comum, liquidação que, segundo determinada orientação, deve fazer-se de acordo com os princípios das sociedades de facto quando os respectivos pressupostos se verifiquem» -- loc. cit. página 80.

Em termos processuais, esta forma de liquidação pressupõe a declaração judicial da cessação da relação de união de facto, uma vez que, não havendo acordo sobre os critérios da liquidação, o subsequente processo especial liquidatório corre por dependência (apenso) dessa acção de dissolução, nos termos dos artigos 1122 e sgs. do Código de Processo Civil, aplicando-se ainda o disposto nos artigos 1011 e sgs. do Código Civil.

Uma outra forma para efectivar a liquidação em apreço é a de, em acção declarativa de condenação, o convivente em união de facto, que se considere empobrecido relativamente aos bens em cuja aquisição participou, pedir que o outro convivente seja condenado a reembolsá-lo, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa (artigos 473, 474 e 479, nº1 do Código Civil) - cfr. acórdão do STJ, de 8/5/97, CJSTJ, ano V, II-81.
Foi esta a forma optada no caso que nos ocupa.

Qualquer das formas, porém e como é obvio, pressupõe a existência de um património comum (adquirido pelo esforço comum) a liquidar.

Pressuposto este que, embora tenha sido alegado, não logrou comprovação no caso que nos ocupa, como acertadamente decidiu a sentença da primeira instância.

Efectivamente, dos factos provados acima enumerados extrai-se que:
-- o prédio urbano foi adquirido pelo recorrido, com dinheiro emprestado pela Caixa Geral de Depósitos e por uma irmã daquele;
--os três automóveis adquiridos pelo recorrido, durante a união de facto e em substituição sucessiva, foram-no a expensas exclusivamente suas;
--o automóvel «Fiat Uno» foi adquirido a expensas exclusivas da recorrente, sendo o seu pai quem lhe ofereceu o dinheiro da «entrada».

Todo o demais constante da matéria de facto apurado consubstancia despesas e consumos próprios de uma convivência em comum, com repartição dos respectivos encargos pela recorrente e pelo recorrido.
E mesmo que assim não tivesse sido, a discussão sobre essa matéria só poderia ter lugar em acções próprias, como é o caso, por exemplo, das despesas exclusivamente suportadas pela recorrente com a C, sua filha e do recorrido.

Inexistindo, assim, património comum resultante da união de facto vivida entre a recorrente e o recorrido, nada há a liquidar em execução de sentença, ao contrário do que decidiu o acórdão recorrido, que, por isso, tem que ser revogado.


DECISÃO
Pelo exposto concede-se a revista e revoga-se o acórdão sob recurso, ficando a subsistir a sentença da 1ª instância.
Custas pelo recorrido.

Lisboa, 9 de Março de 2004
Ferreira Girão
Luís Fonseca
Lucas Coelho