Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A3883
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOREIRA CAMILO
Descritores: ACTIVIDADES PERIGOSAS
CONSTRUÇÃO DE OBRAS
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
ELEMENTO CONSTITUTIVO
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: SJ200401270038831
Data do Acordão: 01/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 922/03
Data: 06/11/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1ª - A construção civil não deve ser considerada uma actividade perigosa para efeitos do disposto no nº 2 do artigo 493º do Código Civil.
2ª - São elementos constitutivos da responsabilidade extracontratual: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
3ª - O artigo 563º do Código Civil acolheu a doutrina da causalidade adequada.
4ª - A fórmula aí usada deve interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, adequada, desse efeito.
5ª - Sendo certo que o aludido preceito comporta qualquer das variantes da formulação da teoria da causalidade adequada, provindo a lesão de facto ilícito, deverá ter-se por acolhida a sua formulação negativa segundo a qual só deixará de haver nexo causal adequado se o facto que actua como condição, segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para surgir um tal dano, e só se tornou condição dele em resultado de outras circunstâncias extraordinárias que intervieram no caso concreto.
6ª - Tendo a Autora, num domingo em que ninguém se encontrava num prédio em construção, entrado ali sem ter solicitado à Ré construtora autorização para isso, nem lhe pedido para a acompanhar na visita, na companhia de uma filha, e, chegando ao 2º andar, onde pretendia ver um apartamento que sua filha e outro viriam a comprar, e tendo reparado numa entrada que se lhe apresentava pela frente e que se lhe afigurava ser o hall de tal fracção, tendo avançado sem que nada assinalasse ou lhe fizesse prever da existência imediata de uma abertura no solo - nenhum sinal existia no local advertindo da existência da referida abertura destinada ao ascensor, nem qualquer guarda-corpos - e caído desamparada no fosso, a ela deve ser imputada a responsabilidade pela produção do acidente, apesar de a Ré ter violado o disposto no artigo 40º do Decreto-Lei nº 41821, de 11.08.1958, pois a conduta omissiva da Ré não pode ser considerada adequada à produção do sinistro.
7ª - Não existe, assim, o nexo de causalidade entre tal facto e o dano sofrido pela Autora, antes, foi o comportamento da Autora a causa adequada à ocorrência desse dano, a causa jurídica dessas consequências danosas, pois uma coisa é a causa naturalística ou mecânica e outra é a causa jurídica.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I - Nas Varas Mistas da Comarca de Guimarães, A, em acção com processo ordinário, intentada contra B, pediu que, com a procedência da acção, seja a Ré condenada a pagar à Autora a importância total de 16.720.000$00, com juros, à taxa legal de 7%, a contar da citação.

Para fundamentar a sua pretensão, alega, em síntese, o seguinte:

A Ré, no exercício da sua actividade, procedeu à construção, na freguesia de Costa, em Guimarães, de um conjunto habitacional, Edifícios Belos Ares, lote 1B.
Por contrato-promessa outorgado em 18.10.1997, a Ré prometeu vender a C um apartamento do tipo T2, no 2º andar, lado direito, do referido lote.
Em 22.02.1998, pelas 16.30 horas, a pedido e acompanhada de sua filha D, a Autora dirigiu-se ao conjunto habitacional para ver aquele apartamento.
Ao chegar ao 2º andar, e tendo reparado numa entrada que se lhe afigurava ser o hall dessa fracção, a Autora avançou sem que nada assinalasse ou lhe fizesse prever da existência imediata de uma abertura no solo, não podendo evitar a queda no fosso destinado ao ascensor, caindo da altura de 18 metros, sofrendo ferimentos diversos, os quais a obrigaram a internamentos e tratamentos prolongados, que deixaram sequelas que motivam o seu pedido de indemnização.

Na sua contestação, a Ré refere que o dia em que a Autora alega ter ocorrido o acidente é domingo, dia em que não se trabalha em obras de construção civil, que a Autora não lhe solicitou autorização para entrar naquela obra, nem pediu que a acompanhassem naquela visita, terminando a pugnar pela improcedência da acção.

A final, foi proferida sentença, segundo a qual a acção foi julgada parcialmente procedente e provada e, em consequência, foi a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de € 6406,56, a título de danos patrimoniais, e a quantia de € 15.000, a título de danos não patrimoniais, acrescidas dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efectivo pagamento.

Tendo a Ré e a Autora recorrido - a segunda subordinadamente -, foi proferido acórdão no Tribunal da Relação de Guimarães, nos termos do qual se negou provimento à apelação da Ré e se concedeu parcial provimento à da Autora, fixando-se a indemnização por danos morais em € 17.458.

Ainda inconformada, veio a Ré interpor o presente recurso de revista, o qual foi admitido.

A recorrente apresentou as suas alegações, formulando as seguintes conclusões:
1ª - Não obstante toda a matéria de facto apurada apontar para uma conduta por parte da recorrente desrespeitadora do artigo 40º do Dec. Lei nº 41.821, de 11-8-58, o certo é que nunca aquela poderá ser condenada, como o foi pelas instâncias, a pagar qualquer indemnização à apelada, pois "in casu" não se verificam os pressupostos de que depende a obrigação de indemnizar exigidos pelos artigos 483º e 493º, nº 2, do CC e 40º do Dec. Lei 41.821.
2ª - Com efeito, não obstante o que resulta da resposta aos artigos 2º, 3º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º e 40º da base instrutória e que foi relevado pelas instâncias em termos de ilicitude, culpa e nexo de causalidade, o certo é que nunca à actuação e situação descrita podia ser aplicável o citado Dec. Lei e concretamente o seu artigo 40º.
3ª - Trata-se de um Diploma que regulamenta a Segurança no Trabalho da construção civil, pelo que os seus destinatários e, portanto, as pessoas a quem se aplica são os trabalhadores ou operários e não qualquer pessoa (mesmo crianças, como refere o douto acórdão recorrido), pois são aqueles os titulares dos interesses protegidos por tal Diploma legal, sendo certo que a lesão sofrida pela recorrida não ocorreu no círculo de interesses tutelados pelo dito artigo 40º.
4ª - Aliás, se é certo que a ocorrência, em termos objectivos de uma situação que constitui contravenção a uma norma, deve implicar presunção "iuris tantum" de negligência, tal presunção deve ser afastada no caso em que a norma violada não se destina a proteger o interesse em concreto ofendido, pois joga aqui a regra da adequação, que é um dos elementos de causalidade, o que significa que, no caso "sub judice", as lesões sofridas pela recorrida não são consequência adequada da violação da norma em causa, mas antes de factos imputáveis a si própria, designadamente ao visitar uma obra em construção fora do horário de trabalho, sem autorização e conhecimento do respectivo dono e desacompanhada de qualquer responsável pela obra.
5ª - Assim, o artigo 40º do citado Dec. Lei dirige-se não a visitantes, como foi o caso da recorrida, mas aos trabalhadores ou operários e tão só dentro do horário de trabalho, sendo certo que são inúmeras as decisões dos tribunais de trabalho a descaracterizar os acidentes ocorridos fora daquele horário, mesmo que haja desrespeito por normas do diploma em questão.
6ª - Aliás, a anomalia geradora do acidente poderia ter sido provocada por terceiros estranhos à obra em construção, tanto mais que são factos notórios os assaltos e invasões a obras em construção, sobretudo aos fins de semana, e o certo é que o dia em que a autora sofreu o acidente coincidiu com um domingo (alínea E dos factos assentes).
7ª - Donde, sendo inaplicável ao caso o artigo 40º do citado Dec. Lei nº 41.821, nunca a recorrente poderia ser responsabilizada pelo pagamento dos danos sofridos pela recorrida, pelo que, ao condená-la nos termos sub-ditos, o douto acórdão recorrido violou, entre outros, os artigos 483º e 493º, nº 2, do CC e o artigo 40º do Dec. Lei nº 41.821, de 11/8/58.
8ª - No tocante à alteração do quantitativo fixado pela 1ª instância a título de danos morais, e sem prescindir do acima exposto, sempre se dirá que o montante anteriormente arbitrado é justo e adequado a proporcionar à recorrida alegrias e satisfações que de algum modo contrabalancem as dores e desilusões, desgostos e outros sofrimentos que a recorrente lhe tenha provocado e ajusta-se perfeitamente aos parâmetros que em termos quantitativos vêm sendo referidos pelos nossos tribunais em tal matéria, tendo-se ainda de considerar a conduta da ofendida, pelo que, ao alterar o quantitativo fixado pela primeira instância, o douto acórdão recorrido violou o art. 493º, nº 3, do CC (a recorrente terá pretendido escrever 496º).

Contra-alegou a recorrida, defendendo a confirmação da decisão impugnada.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II - Nas instâncias, foram dados como provados os seguintes factos:
1. A Ré é uma sociedade comercial que tem por objecto social a construção e comercialização de prédios urbanos.
2. No decurso dos anos de 1997 e 1998, a Ré procedeu à construção, na freguesia da Costa, da cidade de Guimarães, dum conjunto habitacional, Edifícios Belos Ares, ....., o qual foi posteriormente submetido ao regime de propriedade horizontal, tendo as respectivas fracções autónomas sido objecto de contratos de compra e venda.
3. Por contrato-promessa de compra e venda outorgado em 18 de Outubro de 1997, a Ré prometeu vender a C um apartamento tipo .. andar, lado direito, do referido lote 1B.
4. A Ré veio posteriormente a transferir para o C e para a filha da Autora, D, tal unidade.
5. Em 22 de Fevereiro de 1998, pelas 16.30 horas, a Autora, a pedido de sua filha e acompanhada desta, dirigiu-se ao conjunto habitacional, em adiantado estado de construção e já em fase de acabamentos, a fim de analisar o processamento destes relativamente à fracção que esta ia adquirir juntamente com o mencionado C.
6. Ao chegar ao 2º andar, e tendo reparado numa entrada que se lhe apresentava pela frente e que se lhe afigurava ser o hall da fracção T2, lado direito, a Autora avançou sem que nada assinalasse ou lhe fizesse prever da existência imediata duma abertura no solo.
7. Ao caminhar para a entrada contínua ao pátio do segundo andar e que dava ligação com a supra mencionada fracção, a Autora fê-lo na convicção que penetrava neste.
8. No local existia uma luminosidade natural.
9. Nenhum sinal existia no local advertindo da existência da referida abertura no pavimento destinada ao ascensor.
10. Nem qualquer guarda-corpos.
11. A Autora caiu desamparada no fosso.
12. Aquando da visita da Autora à fracção imobiliária, o acesso à construção do conjunto habitacional não se encontrava impedido.
13. Como consequência directa e necessária do descrito acidente, a Autora sofreu fractura de L1 na região lombar, fractura do colo do úmero direito e fractura do punho direito.
14. Internada imediatamente após o acidente nos serviços de ortopedia, no Hospital de Guimarães, a Autora foi submetida a intervenção cirúrgica, tendo tido alta em 16.03.1998.
15. Ao fim do mencionado período de internamento, a Autora regressou à sua residência.
16. Desde 21.07.1998 a 12.10.1998, a Autora foi submetida a tratamento de fisioterapia no Hospital de Guimarães, tratamento que prosseguiu na Clínica Dr. ..., no Porto.
17. Em 28 de Janeiro de 1999, a Autora foi submetida a intervenção cirúrgica ao punho direito na Clínica ...., em Guimarães.
18. A Autora apresenta rigidez na articulação do ombro direito, deformidade na coluna lombar e rigidez da articulação do punho direito.
19. Apresenta uma IPP de 46,5.
20. Aquando do acidente, a Autora tinha 59 anos de idade.
21. A Autora exercia a actividade profissional de enfermeira há mais de 35 anos, sendo proprietária do Centro de ......, em Guimarães.
22. Com a sua actividade e experiência profissional, a Autora, ajudada por seu marido, atendia diariamente clientela, dispensando-lhe os mais diversos e especializados tratamentos.
23. A Autora prestou serviços de enfermagem no .... de Felgueiras até 06.10.1998.
24. Nos serviços prestados no E.P. de Felgueiras, a Autora auferia mensalmente 31.800$00.
25. A Autora rescindiu o contrato com o E.P. de Felgueiras por dificuldade de condução e pelos preços irrisórios da avença.
26. Em consequência das sequelas, a Autora pode exercer a sua profissão com as limitações devidas à sua incapacidade.
27. A Autora era alegre e comunicativa.
28. A Autora sofreu dores em consequência das intervenções cirúrgicas, bem como nos tratamentos recuperatórios.
29. Os tratamentos recuperatórios desenvolveram-se por cerca de um ano.
30. A Autora, após o acidente, contratou E, a fim de assegurar os serviços domésticos da sua habitação e os cuidados inerentes à alimentação.
31. A Autora pagou mensalmente à referida empregada 80.000$00.
32. A Autora, à data do acidente, já se encontrava aposentada.
33. O dia 22 de Fevereiro de 1998 coincidiu com um domingo.
34. A Ré não trabalhava na data do acidente e, por isso, não se encontrava no local.
35. A Autora não solicitou à Ré autorização para entrar na obra, nem lhe pediu para a acompanhar na visita à obra.
36. Não havia trabalhadores na obra.
37. A obra encontrava-se na fase de montagem de elevadores, também, o que era do conhecimento de todas as pessoas que trabalhavam na obra.
38. Havia perigo.

III - 1. Lendo a petição inicial, verificamos que a Autora fundamenta o seu pedido de indemnização na responsabilidade extracontratual da Ré, pelo facto de não ter qualquer sinal, no local onde a Autora caiu, a advertir da existência da abertura no pavimento destinada ao ascensor e, muito menos, qualquer guarda-corpos, requisito obrigatório e determinado pelo artigo 40º do Decreto-Lei nº 41821, de 11.08.1958.

Na sentença proferida na 1ª instância, a Senhora Juíza, depois de fazer alusão á responsabilidade extracontratual e aos respectivos pressupostos (artigo 483º, nº 1, do Código Civil), concluiu que a conduta da Ré, traduzida na inexistência de qualquer sinal, ou qualquer protecção, que advertisse da existência da abertura no pavimento destinada ao ascensor, nem qualquer guarda-corpos que impedisse quem quer que penetrasse na obra de ali cair, sendo certo que o acesso à construção do conjunto habitacional não se encontrava igualmente impedido, foi determinante e essencial para que se tivesse verificado o acidente.

Entendeu que a Ré violou o disposto no artigo 40º do Decreto-Lei nº 41821, de 11.08.1958.

Após o recurso da Ré, o Tribunal da Relação de Guimarães, considerando que, em matéria de responsabilidade extracontratual, em princípio, é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, acabou, incompreensivelmente (dado que ninguém lhe pôs a questão nesses termos), por entender que se está perante o caso excepcional de presunção legal de culpa previsto no nº 2 do artigo 493º do Código Civil, com a consequente inversão do ónus da prova, embora acabe por considerar que o Decreto-Lei nº 41821, de 11.08.1958, que aprovou o Regulamento de Segurança no Trabalho de Construção Civil, é aplicável ao público em geral, nomeadamente a quem possa entrar em contacto com quem trabalha na construção civil, pelo que concluiu que, face à atitude gravemente violadora dos deveres de cuidado, a que a Ré, como construtora, estava obrigada, isolando ou tomando todas as medidas de segurança previstas que o caso requeria, em concreto, é ela civilmente responsável pela indemnização a arbitrar à Autora.

2. Segundo o nº 2 do artigo 493º do Código Civil, "Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir".

Como diz Jacinto Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Civil, vol. II, pág. 292, "O nº 2 contempla um caso de inversão do ónus de prova. Para além disso - é importante notá-lo - a exclusão da responsabilidade não resulta aqui da demonstração da normal diligência do bonus pater familias; é necessário que se alegue e prove terem sido adoptadas as precauções particulares que a técnica respectiva indicar como idóneas a prevenir os resultados danosos de actividade intrinsecamente perigosa, ou a perigosidade dos meios, principal ou acessoriamente, utilizados".

A lei não diz o que deve entender-se por uma actividade perigosa, apenas admitindo, genericamente, que a perigosidade derive da própria natureza da actividade ou da natureza dos meios utilizados.
Daí que se tenha de ver caso a caso.

De qualquer forma, e ao contrário do entendido no acórdão recorrido, não podemos aceitar que uma actividade de construção de um prédio habitacional possa ser considerada perigosa para efeitos de aplicação do citado nº 2 do artigo 493º do Código Civil.

3. Não sendo aqui aplicável o referido normativo legal, que implicava uma inversão do ónus da prova, vejamos agora se à situação concreta dos autos se pode aplicar o já referido artigo 40º do Decreto-Lei nº 41821.

Dispõe este normativo legal que "as aberturas feitas no soalho de um edifício ou numa plataforma de trabalho para passagem de operários ou material, montagem de ascensores ou escadas, ou para qualquer outro fim, serão guarnecidas de um ou mais guarda-corpos e de um guarda-cabeças, fixados sobre o soalho ou a plataforma", estabelecendo o artigo 43º que "Os dispositivos de protecção das aberturas só podem ser retirados quando for necessário proceder ao fecho definitivo daquelas e, bem assim, durante o tempo estritamente necessário para o acesso de pessoas e transporte ou deslocação de materiais.
No segundo caso, os dispositivos serão repostos logo que esteja concluída a operação".

Lendo o aludido diploma, que aprovou o "Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil", constata-se que os destinatários do mesmo (pessoas a quem se aplica) são os trabalhadores das obras.

Mais tarde, surgiram o Decreto-Lei nº 441/91, de 14 de Novembro, que estabelece o regime jurídico do enquadramento da segurança, higiene e saúde no trabalho, e o Decreto-Lei nº 155/95, de 1 de Julho, que transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva nº 92/57/CEE, do Conselho, de 24 de Junho, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde a aplicar nos estaleiros temporários ou móveis, bem como a Portaria nº 101/96, de 3 de Abril, que regulamenta as prescrições mínimas de segurança e de saúde nos locais e postos de trabalho dos estaleiros temporários ou móveis.

Trata-se de diplomas que visam essencialmente a protecção dos trabalhadores, de forma a prevenir acidentes de trabalho.

Logo, estamos perante legislação que se destina a proteger trabalhadores ao serviço da entidade construtora, no período de serviço, pois se refere à segurança, higiene e saúde nos locais e postos de trabalho, quer na construção civil, quer em estaleiros temporários ou móveis, sem embargo de se ter de admitir que o seu escopo seja também prevenir acidentes com pessoas que, nesses períodos de serviço, possam entrar em contacto com tais actividades.

Sendo assim, não pode aqui ser chamada à colação para, por si só, servir de fundamento à obrigação de a Ré indemnizar a Autora.

Haverá que analisar se, na situação vertente, a omissão da colocação de guarda-corpos por parte da aqui recorrente constitui esta na obrigação de indemnizar a recorrida pelos danos sofridos na sequência da queda.

4. Estando-se perante a responsabilidade extracontratual, rege aqui o artigo 483º do Código Civil, o qual, no seu nº 1, prescreve que "Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".

Temos, assim, que são elementos constitutivos da responsabilidade extracontratual: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Segundo o artigo 563º do referido Código, "A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão".

Aceitou-se aqui a doutrina da causalidade adequada.

A fórmula usada neste artigo deve interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz, adequada desse efeito (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 1967, pág. 400, citando M. Andrade).

Assim, para que determinado facto deva ser reparado pelo autor do facto que o causou, é necessário que esse facto tenha actuado como condição do dano e que, em abstracto, seja também causa (em termos de probabilidade ou normalidade, mas não necessariamente causa típica normal) adequada do mesmo dano.

Como sintetiza Antunes Varela ("Das Obrigações em Geral", 9ª ed., pág. 928), "o autor do facto só será obrigado a reparar aqueles danos que não se teriam verificado sem esse facto e que, abstraindo deste, seria de prever que não se tivessem produzido".

Sendo certo que o aludido preceito comporta qualquer das variantes da formulação da teoria da causalidade adequada, provindo a lesão de facto ilícito, deverá ter-se por acolhida a sua formulação negativa segundo a qual só deixará de haver nexo causal adequado se o facto que actua como condição, segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para surgir um tal dano, e só se tornou condição dele em resultado de outras circunstâncias extraordinárias que intervieram no caso concreto (cfr., M. Andrade, "Obrigações", pág. 351, P. Coelho, "O Problema da Relevância da Causa Virtual ...", pág. 33, e A. Varela, obra citada, pág. 919).

Hão-de ser, em suma, as circunstâncias a definir a adequação das causas, mas tendo-se em conta que, para a produção do dano, pode ter havido a colaboração de outros factos, contemporâneos ou não, e que a causalidade não tem necessariamente de ser directa ou indirecta, bastando que a acção condicionante desencadeie outra condição que directamente suscite o dano (causalidade indirecta).

5. Vejamos, então, qual foi o comportamento da Autora.

Mostra-se provado que, em 22 de Fevereiro de 1998, um domingo, pelas 16.30 horas, a Autora, a pedido de sua filha e acompanhada desta, dirigiu-se ao conjunto habitacional que a Ré construía na freguesia da Costa, em Guimarães - onde se situava um apartamento tipo T2, no 2º andar, lado direito, que fora objecto de um contrato-promessa de compra e venda celebrado entre a Ré e C e cuja propriedade viria, mais tarde, a ser transferida para este e para a referida filha da Autora -, o qual se encontrava em adiantado estado de construção e já em fase de acabamentos, e, ao chegar ao 2º andar, e tendo reparado numa entrada que se lhe apresentava pela frente e que se lhe afigurava ser o hall da fracção T2, lado direito, avançou sem que nada assinalasse ou lhe fizesse prever da existência imediata duma abertura no solo.

Mais se provou que, ao caminhar para a entrada contínua ao pátio do segundo andar e que dava ligação com a mencionada fracção, a Autora fê-lo na convicção de que penetrava neste e caiu desamparada no fosso e que no local existia uma luminosidade natural, que nenhum sinal existia no local advertindo da existência da referida abertura no pavimento destinada ao ascensor nem qualquer guarda-corpos.

Também se provou que, aquando da visita da Autora à fracção imobiliária referida, o acesso à construção do conjunto habitacional não se encontrava impedido, que a Ré não trabalhava na data do acidente e, por isso, não se encontrava no local, que a Autora não solicitou à Ré autorização para entrar na obra, não pediu à Ré para a acompanhar na visita à obra, não havia trabalhadores na obra, esta encontrava-se também na fase de montagem de elevadores, o que era do conhecimento de todas as pessoas que trabalhavam na obra, e que havia perigo.

De tudo isto decorre que estamos perante uma actuação ilícita da Autora, a qual abusivamente entrou no conjunto habitacional em construção.

A tal conduta deverá atribuir-se a causa do acidente.

Foi, efectivamente, essa circunstância extraordinária - e não o facto de a abertura para o ascensor não estar guarnecida com guarda-corpos e não haver qualquer sinal no local a advertir da existência dessa abertura - a causa do acidente.

Uma coisa é a causa naturalística ou mecânica e outra a causa jurídica.

A conduta omissiva da Ré não pode ser considerada adequada à produção do sinistro.

Não existe, portanto, o nexo de causalidade entre tal facto e o dano sofrido pela Autora.

Antes, foi o comportamento da Autora a causa adequada à ocorrência desse dano, a causa jurídica dessas consequências danosas.

6. Infere-se, assim, do exposto que não se verificam aqui os pressupostos da obrigação de indemnizar, pelo que colhem as conclusões da recorrente, tendentes ao provimento do recurso.

Deverá, pois, conceder-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido.

IV - Podem, pois, extrair-se as seguintes conclusões:

1ª - A construção civil não deve ser considerada uma actividade perigosa para efeitos do disposto no nº 2 do artigo 493º do Código Civil.
2ª - São elementos constitutivos da responsabilidade extracontratual: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
3ª - O artigo 563º do Código Civil acolheu a doutrina da causalidade adequada.
4ª - A fórmula aí usada deve interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, adequada, desse efeito.
5ª - Sendo certo que o aludido preceito comporta qualquer das variantes da formulação da teoria da causalidade adequada, provindo a lesão de facto ilícito, deverá ter-se por acolhida a sua formulação negativa segundo a qual só deixará de haver nexo causal adequado se o facto que actua como condição, segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para surgir um tal dano, e só se tornou condição dele em resultado de outras circunstâncias extraordinárias que intervieram no caso concreto.
6ª - Tendo a Autora, num domingo em que ninguém se encontrava num prédio em construção, entrado ali sem ter solicitado à Ré construtora autorização para isso, nem lhe pedido para a acompanhar na visita, na companhia de uma filha, e, chegando ao 2º andar, onde pretendia ver um apartamento que sua filha e outro viriam a comprar, e tendo reparado numa entrada que se lhe apresentava pela frente e que se lhe afigurava ser o hall de tal fracção, tendo avançado sem que nada assinalasse ou lhe fizesse prever da existência imediata de uma abertura no solo - nenhum sinal existia no local advertindo da existência da referida abertura destinada ao ascensor, nem qualquer guarda-corpos - e caído desamparada no fosso, a ela deve ser imputada a responsabilidade pela produção do acidente, apesar de a Ré ter violado o disposto no artigo 40º do Decreto-Lei nº 41821, de 11.08.1958, pois a conduta omissiva da Ré não pode ser considerada adequada à produção do sinistro.
7ª - Não existe, assim, o nexo de causalidade entre tal facto e o dano sofrido pela Autora, antes, foi o comportamento da Autora a causa adequada à ocorrência desse dano, a causa jurídica dessas consequências danosas, pois uma coisa é a causa naturalística ou mecânica e outra é a causa jurídica.

V - Nos termos expostos, acorda-se em conceder a revista e, em consequência, revogando-se a decisão recorrida, decide-se julgar a acção improcedente, por não provada, com a consequente absolvição da Ré do pedido.

Custas, aqui e nas instâncias, a cargo da recorrida.


Lisboa, 27 de Janeiro de 2004
Moreira Camilo
Lopes Pinto
Pinto Monteiro