Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08S3045
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: VASQUES DINIS
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
CONTRATO DE TRABALHO
PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE
ÓNUS DA PROVA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
CONHECIMENTO OFICIOSO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
TRÂNSITO EM JULGADO
Nº do Documento: SJ2009042203045
Data do Acordão: 04/22/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário : I – No artigo 12.º, do Código do Trabalho de 2003, na sua versão original, consagrou-se um desvio à regra geral do ónus da prova, plasmada no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil – da qual decorre que ao autor que pretende ver reconhecida a existência de um contrato de trabalho incumbe demonstrar os atinentes factos constitutivos –, fazendo recair sobre a parte contrária, demonstrados que sejam determinados factos indiciários, o ónus de ilidir a presunção de laboralidade deles resultante, mediante prova em contrário (artigos 344.º, n.º 1 e 350.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

II – O referido preceito, reportando-se à valoração de factos que importam o reconhecimento da presunção de laboralidade do contrato, portanto com reflexos na qualificação do contrato, só se aplica aos factos novos, ou seja, às relações jurídicas constituídas após o início da vigência do referido corpo de normas, em face do disposto no artigo 8.º, n.º 1, da Lei Preambular (Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto).

III – Por isso, tendo os denominados «contratos de prestação de serviços» em apreciação sido celebrados antes da entrada em vigor do Código do Trabalho/2003, para efeitos da qualificação da relação que vigorou entre as partes, não é possível recorrer à presunção de laboralidade consignada no mencionado preceito, mas sim, à luz da regra geral de repartição do ónus da prova, consignada no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.

IV – A questão da determinação da lei aplicável é de conhecimento oficioso, como resulta do disposto no artigo 659.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, competindo ao Supremo Tribunal, nos termos do artigo 729.º, n.º 1, do mesmo diploma, aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido.

V – Daí que, apesar de, sem impugnação das partes, as instâncias terem perspectivado a resolução do litígio à luz de um determinado regime jurídico, não está vedado ao Supremo afastar a aplicação desse regime e optar pelo que julgue adequado.

VI – Assim, uma vez que o regime jurídico que estabeleceu a presunção de laboralidade não é aplicável ao caso dos autos, e porque o juízo da 1.ª instância quanto à qualificação do contrato, fundado na falta de demonstração dos elementos constitutivos de uma relação laboral, e formulado tendo em atenção a mencionada regra geral atinente à repartição do ónus da prova, se tornou definitivo, uma vez que não foi impugnado, não pode ser objecto de apreciação pelo Supremo a pretensão do recorrente no sentido de ser qualificado o relacionamento das partes como contrato de trabalho, como pressuposto da procedência da acção.

Decisão Texto Integral:


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. AA instaurou em 28 de Julho de 2005, no Tribunal do Trabalho de Sintra, a presente acção emergente de contrato individual de trabalho contra BB, E.M., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a indemnização decorrente de alegado despedimento ilícito, sem prejuízo da opção pela reintegração no seu posto de trabalho a exercer no momento processual próprio, e a pagar-lhe o montante já vencido de € 4.410,24, acrescido das retribuições que se vencerem até decisão final e de juros, calculados à taxa legal de 4% ao ano, contados desde a citação até integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que a Ré o admitiu ao seu serviço, em 17 de Setembro de 2001, para desempenhar, mediante retribuição mensal, as funções de monitor de natação; que ele, Autor, dava aulas de natação, seguindo as instruções e directivas da Ré, transmitidas verbalmente ou através de comunicações internas, subordinado à hierarquia por ela estabelecida, cumprindo horário de trabalho estipulado e controlado pela Ré, em local por esta atribuído e utilizando equipamentos pela mesma fornecidos; que a Ré rescindiu, em 31 de Julho de 2004, o contrato com ele celebrado, o que constitui despedimento ilícito; que ele, Autor, auferiu as retribuições mensais médias de € 522,85 até 2003 e de € 1.120,64 em 2004 e que a Ré não lhe pagou as retribuições dos meses de Agosto de cada ano, nem os subsídios de férias e de Natal, no valor global de € 3.289,60.
Na contestação, a Ré pugnou pela absolvição do pedido e solicitou a condenação do Autor como litigante de má fé, alegando, em resumo, que admitiu o Autor para prestar serviços de assistência especializada como monitor de natação, mediante a celebração sucessiva de três contratos de prestação de serviço, que cessaram nas datas neles previstas, e durante a respectiva execução o Autor recebeu dela as quantias acordadas, pelo que, inexistindo qualquer contrato de trabalho, não ocorreu despedimento, nem ela tinha que lhe pagar quaisquer outras quantias.

Após resposta do Autor, prosseguiram os autos, vindo a realizar-se a audiência de discussão e julgamento, durante a qual o Autor optou pela indemnização de antiguidade em detrimento da sua reintegração, conforme ficou a constar de fls. 162.

Na 1.ª instância a acção foi julgada improcedente, com a consequente absolvição da Ré do pedido.

Apelou o Autor, sem sucesso, pois o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso.

2. Mantendo o seu inconformismo, vem o Autor pedir revista, terminando a respectiva alegação com as conclusões que se transcrevem:

1. O A. intentou a presente acção contra a R. invocando em suma que tendo sido admitid[o] ao serviço da R. como monitor de natação esta rescindira o contrato em 31 de Julho de 2004, rescisão que impugnava com fundamento em ilicitude, uma vez que o v[í]nculo que existi[a] entre as partes era um v[í]nculo emergente de um contrato de trabalho subordinado e não de um contrato de prestação de serviços como a R. invocava à luz de um contrato incorrectamente qualificado como tal;

2. Mais pedia a condenação da R. a pagar-lhe as retribuições dos meses de Agosto nos anos em que estivera ao serviço e bem assim os subsídios de férias e de Natal daqueles anos;

3. Dos factos provados sob os n.os 3, 4, 5, 9, 10, 11, 12, 15, 16, 18 e 19 decorre que ficaram provados nos autos todos os requisitos cumulativamente exigidos para que se presuma existente o contrato de trabalho entre as partes à luz da presunção estabelecida pelo art. 12.º do Código do Trabalho, com a redacção anteriormente à Lei 9/2006, uma vez que o despedimento da A. ocorreu em 26 de Setembro de 2004;

4. Provados que estão todos os pressupostos da presunção estabelecida pelo art. 12.º do Código do Trabalho e não tendo o R. ilidido tal presunção (arts. 342.º e 350.º do Código Civil) não poderia a acção deixar de ser considerada procedente;

5. E nem se invoque, como o fez o douto Acórdão recorrido, que não existia dependência económica uma vez que a actividade desenvolvida pelo A. ao serviço da R. era complementar de uma actividade principal que o A. tinha num Colégio, porquanto dos factos dados por provados não decorre que a actividade no Colégio fosse mais bem remunerada ou de maior duração do que aquela que o A. tinha na R.;

6. E o requisito da dependência económica não é essencial à caracterização da relação jurídica como sendo emergente de um contrato de trabalho subordinado, sendo tal requisito configurado na alínea c) do citado art. 12.º do Código do Trabalho, como um requisito alternativo e, não obstante a inexistência de dependência económica, verificava-se no caso dos autos a retribuição do A. em função do tempo d[e]spendido na execução da actividade, ou seja, verificava-se o requisito alternativo exigido pela alínea citada;

7. E o facto de o A. poder fazer-se substituir quando não podia dar uma aula, tendo de comunicar à R. previamente quando a substituição fosse efectuada por alguém que não trabalhasse na R., não descaracteriza a existência de um contrato de trabalho subordinado porquanto era um evento isolado e de verificação excepcional, não podendo as regras da substituição próprias da necessidade de assegurar o funcionamento das aulas de natação, como elemento isolado, sobreporem-se à verificação de todos os requisitos do citado art. 12.º do Código do Trabalho e que impõem a presunção legal da existência de um contrato de trabalho subordinado – Ver Acórdãos do STJ de 11/01/95 (in Ac. Dout. 402, págs. 729 e seguintes) e do Tribunal da Relação de Lisboa, de 9/4/2008;

8. Sendo as substituições eventos de carácter excepcional, como o demonstra o facto de ser o A. o trabalhador contratado pela R. para levar a cabo a leccionação das aulas de natação, nenhum vínculo sendo estabelecido com os substitutos que excepcionalmente asseguravam aquela leccionação em substituição do A.;

9. O douto Acórdão recorrido ao considerar o recurso improcedente por considerar que entre as partes vigorava um contrato de prestação de serviços violou pois o art. 12.º do Código do Trabalho, na redacção anterior à Lei 9/2006 e os arts. 342.º e 350.º do Código Civil.

Não houve contra-alegação da Ré.


Neste Supremo Tribunal, a Exma. Magistrada do Ministério Público pronunciou-se, em parecer a que as partes não responderam, no sentido de ser negada a revista.

Corridos os vistos, cumpre decidir.


II

1. As instâncias fixaram, sem crítica das partes, a matéria de facto provada, nos termos que seguem:

1. A R. tem como objecto principal a gestão e manutenção dos equipamentos educativos públicos no concelho de Sintra, nos termos e nas condições a definir pela Câmara Municipal de Sintra (doc. de fls. 47).

2. Entre tais equipamentos, encontram-se várias piscinas municipais, onde são ministradas aulas de natação, quer a utentes que nelas se inscrevem directamente, quer a outros que as frequentam por força de protocolos ou contratos relativos a escolas públicas do ensino básico, estabelecimentos particulares de ensino, associações de apoio social a idosos ou outros, etc..

3. Em 17 de Setembro de 2001, o A. e a R. assinaram o denominado “contrato de prestação de serviço” constante de fls. 52 a 54, que se dá como reproduzido, nos termos do qual, além do mais, entre aquela data e o dia 31 de Julho de 2002, o A. se obrigava a prestar serviços de “assistência técnica especializada como Monitor de Natação” em qualquer das piscinas municipais geridas pela R., proporcionando-lhe “o resultado do seu trabalho profissional, sem subordinação hierárquica”, mediante o pagamento, “a título de honorários”, de 1.800$00 por hora de serviço prestada de 2.ª a 6.ª Feira e de 2.100$00 por hora de serviço prestada ao Sábado, acrescido de IVA à taxa legal, contra a emissão pelo A. de recibos Modelo n.º 6, com exclusão de “quaisquer retribuições acessórias do tipo férias, Natal, subsídio de férias ou outras.”

4. Em 17 de Setembro de 2002, o A. e a R. assinaram o denominado “contrato de prestação de serviço” constante de fls. 56 a 58, que se dá como reproduzido, nos termos do qual, além do mais, entre aquela data e o dia 31 de Julho de 2003, o A. se obrigava a prestar serviços de “assistência técnica especializada como Monitor de Natação” em qualquer das piscinas municipais geridas pela R., proporcionando-lhe “o resultado do seu trabalho profissional, sem subordinação hierárquica”, mediante o pagamento, “a título de honorários”, de € 9,50 por hora de serviço prestada de 2.ª a 6.ª Feira e de € 11,00 por hora de serviço prestada ao Sábado, acrescido de IVA à taxa legal, contra a emissão pelo A. de recibos Modelo n.º 6, com exclusão de “quaisquer retribuições acessórias do tipo férias, Natal, subsídio de férias ou outras.”

5. Em 15 de Setembro de 2003, o A. e a R. assinaram o denominado “contrato de prestação de serviço” constante de fls. 60 a 62, que se dá como reproduzido, nos termos do qual, além do mais, entre aquela data e o dia 31 de Julho de 2004, o A. se obrigava a prestar serviços de “assistência técnica especializada como Monitor de Natação” em qualquer das piscinas municipais geridas pela R., proporcionando-lhe “o resultado do seu trabalho profissional, sem subordinação hierárquica”, mediante o pagamento, “a título de honorários”, de € 9,50 por hora de serviço prestada de 2.ª a 6.ª Feira e de € 11,00 por hora de serviço prestada ao Sábado, acrescido de IVA à taxa legal, contra a emissão pelo A. de recibos Modelo n.º 6, com exclusão de “quaisquer retribuições acessórias do tipo férias, Natal, subsídio de férias ou outras.”

6. O A. celebrou com a Zurich – Companhia de Seguros, S.A. um contrato de seguro do ramo Acidentes de Trabalho – Trabalhadores Independentes, tendo como objecto a actividade que prestava à R. (doc. de fls. 64).

7. A R. não efectuou descontos para a Segurança Social relativos ao A..

8. A R. indicou ao A. as piscinas e horários para que tinha necessidade de contratar monitores de natação, tendo o A. manifestado preferência pela Piscina Municipal de Mira Sintra e o horário das 12H00 às 14H00, às 2.ª, 4.ª e 6ª. Feiras, e das 9H00 às 13H00, aos Sábados, pelo facto de o mesmo ser compatível com o horário que tinha como professor de natação num colégio situado nas proximidades (doc. de fls. 55).

9. Dentro dos limites dos períodos de tempo referidos nos pontos 3, 4 e 5 e do horário e local mencionados no ponto 8, o A. ministrou aulas de natação às classes que lhe foram atribuídas e nas pistas e horários que lhe foram indicados, em conformidade com os planeamentos anuais de épocas desportivas elaborados pela Coordenação Técnica da R..

10. As aulas de natação às classes de utentes inscritos directamente na piscina iniciavam-se e terminavam nas datas referidas nos pontos 3, 4 e 5; as aulas às classes de utentes oriundos de estabelecimentos de ensino tinham a duração do ano lectivo e suspendiam-se nas férias escolares de Natal, Páscoa e Verão; as aulas às classes de utentes abrangidos por outros protocolos ou contratos celebrados pela R. iniciavam-se e terminavam nas datas aí previstas.

11. Nos períodos mencionados nos pontos 3, 4 e 5, o A. auferia mensal-mente quantias variáveis, correspondentes às horas que leccionasse - as quais eram registadas diariamente pela R. - em função dos valores acima referidos (docs. de fls. 65 a 69).

12. A tal título, o A. recebeu da R. a quantia global de € 7.844,49 em 2003 e de € 5.751,30 em 2004 (docs. de fls. 22 e 23).

13. Se o A. precisasse de faltar, fazia-se substituir por outro monitor de natação, de preferência que também exercesse funções na R. mas podendo ser de fora se tal não fosse viável, avisando antes neste caso e comunicando antes ou depois naqueloutro (doc. de fls. 21).

14. O A. não precisava de justificar as faltas, apenas não recebendo as quantias correspondentes.

15. Para o ensino da natação, o A. utilizava os equipamentos existentes nas instalações da R. para o efeito.

16. No exercício da sua actividade, o A. devia respeitar as normas gerais de utilização e funcionamento das instalações, as normas técnicas do ensino da natação (doc. de fls 16/17) e os objectivos qualitativos da actividade pretendidos pela Coordenação Técnica da R..

17. A Coordenação Técnica da R. acompanhava a evolução do desempenho profissional dos monitores, com vista a avaliar se havia interesse em celebrar com eles novos contratos escritos.

18. Por carta de 24/06/2004, constante de fls. 63 e que se dá como reproduzida, a R. comunicou ao A., além do mais, o “terminus do contrato de prestação de serviço” em 31 de Julho de 2004 e que estava em curso a preparação da época desportiva de 2004/2005.

19. A R. entendeu não voltar a celebrar qualquer outro contrato com o A..

20. A partir de Setembro de 2004, na sequência duma reestruturação organizativa da actividade da R., esta passou a celebrar por escrito “contratos de trabalho” com os monitores de natação, com períodos semanais de trabalho de 35 horas, celebrando “contratos de prestação de serviço” apenas em casos pontuais.
2. Não tendo a decisão proferida sobre a matéria de facto sido impugnada e não ocorrendo qualquer das situações previstas no n.º 3 do artigo 729.º do Código de Processo Civil, que autorizam o Supremo Tribunal a sobre ela exercer censura, é com base no quadro factual fixado pelas instâncias que há-de resolver-se a questão fundamental suscitada na revista, que é a de saber se o relacionamento estabelecido e desenvolvido pelas partes deve ser qualificado como contrato de trabalho ou como contrato de prestação de serviço.

2. 1. Extrai-se dos factos provados que as relações contratuais entre Autor e Ré se desenvolveram no período compreendido entre 17 de Setembro de 2001 e 31 de Julho de 2004.

Nesse período, ocorreram alterações no ordenamento jurídico, de que importa salientar a aprovação do Código do Trabalho pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto (Lei Preambular), que revogou os diplomas respeitantes às matérias reguladas no Código, entre os quais, o Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969, que aprovou o Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho (LCT) — artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei Preambular.

Assim, para a solução da questão relativa à qualificação da relação que vigorou entre as partes, ao abrigo de denominados “contratos de prestação de serviço”, há que atender a que a Lei Preambular fixou, no artigo 3.º, n.º 1, o dia 1 de Dezembro de 2003 para a entrada em vigor do Código (doravante, Código de 2003) e, no artigo 8.º, n.º 1, consignou a regra geral de aplicação no tempo, segundo a qual “ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho os contratos de trabalho e os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho celebrados ou aprovados antes da sua entrada em vigor, salvo quanto às condições de validade e aos efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento”.

Na versão original do seu artigo 12.º, o Código de 2003 estabeleceu a presunção de que as partes celebraram um contrato de trabalho assente no preenchimento cumulativo dos indícios de laboralidade mencionados nas suas alíneas.

Consagrou-se ali um desvio à regra geral do ónus da prova, plasmada no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil — da qual decorre que ao autor que pretende ver reconhecida a existência de um contrato de trabalho incumbe demonstrar os atinentes factos constitutivos —, fazendo recair sobre a parte contrária, demonstrados que sejam determinados factos indiciários, o ónus de ilidir a presunção de laboralidade deles resultante, mediante prova em contrário (artigos 344.º, n.º 1 e 350.º, n.os 1 e 2, do Código Civil).

A propósito da aplicação no tempo daquele preceito, concluiu-se no Acórdão deste Supremo Tribunal de 2 de Maio de 2007 (Documento n.º SJ200705020043684, em www.dgsi.pt) que tal preceito, traduzindo uma valoração dos factos que importam o reconhecimento da presunção de laboralidade do contrato, portanto com reflexos na qualificação do contrato, só se aplica aos factos novos, ou seja, às relações jurídicas constituídas após o início da vigência do referido corpo de normas, em face do disposto no artigo 8.º, n.º 1, da Lei Preambular — orientação esta reafirmada, entre outros, nos Acórdãos de 17 de Outubro de 2007 e de 16 de Setembro de 2008 (Documentos n.os SJ200710170021874 e SJ20080916003214, em www.dgsi.pt, respectivamente).

Acolhendo-se tal conclusão e os respectivos fundamentos, que nos dispensamos de reproduzir, e tendo em atenção que os “contratos de prestação de serviço”, aqui em causa, foram todos celebrados antes da entrada em vigor do Código de 2003, não pode deixar de se considerar afastada, no caso que nos ocupa, a aplicação do referido artigo 12.º, dado que não se demonstrou, nem foi alegada, qualquer alteração aos mesmos, de modo a poder considerar-se que, na vigência deste preceito, ocorreram, no relacionamento que ao abrigo deles se desenvolveu, factos novos integradores da presunção consignada naquele preceito.

Quer isto dizer que, para efeito da qualificação da relação que vigorou entre as partes, não era caso de se recorrer à presunção de laboralidade consignada no mencionado preceito.

2. 2. Não foi esse o entendimento das instâncias:

A sentença da 1.ª instância, depois de discorrer sobre o alcance do preceito em causa, no âmbito da repartição do ónus da prova, e de observar que, não se verificando os pressupostos cumulativos da presunção nele estabelecida, ao Autor competia fazer a prova cabal dos elementos constitutivos do contrato de trabalho, procedeu à análise do quadro factual disponível, vindo a concluir que "não só não estão preenchidos cumulativamente os requisitos da presunção estabelecida no citado art.º 12.º do CT, como não estão também provados índices bastantes, em número e impressividade, da existência da subordinação jurídica inerente ao contrato de trabalho".

Por sua vez, o acórdão da Relação, perante a alegação do Autor de que se encontram verificados todos os pressupostos da presunção estabelecida naquele preceito e que a Ré não ilidiu tal presunção — único fundamento do recurso de apelação levado às respectivas conclusões —, debruçou a sua atenção sobre o preenchimento cumulativo dos requisitos da presunção de laboralidade, discorrendo assim:

«Não vem questionado o preenchimento dos requisitos previstos nas alíneas b) d) e e) do art. 12.º, que aliás foi reconhecido pela sentença recorrida e resultam claramente dos factos provados sob os n.os 9, 10, 11, 15 e 18.

O Recorrente questionou a verificação dos requisitos previstos nas al. a) e c) do art. 12.º, que a sentença recorrida julgou não verificados e que o recorrente entende estarem provados.

No que concerne à al. c) do art. 12.º basta que se verifique uma das situações aí referidas em alternativa, ou seja, que o prestador de trabalho seja retribuído em função do tempo despendido na execução da actividade ou que se encontre numa situação de dependência económica face ao beneficiário da actividade.

Face aos factos provados, verifica-se que o Recorrente prestava a sua actividade de monitor de natação no horário das 12H00 às 14H00, às 2.ª, 4.ª e 6.ª Feiras, e das 9H00 às 13H00, aos Sábados, o que se traduz em dez horas semanais, tendo recebido da R. a quantia global de € 7.844,49 em 2003 e de € 5.751,30 em 2004.

Resulta também dos autos que o A. desenvolvia outra actividade num colégio, que seria a sua actividade principal, como o demonstra o facto do seu horário se situar na hora de almoço aos dias de semana e ao sábado, isto é, fora do horário normal de trabalho da sua actividade principal no colégio.

A actividade prestada à Apelada tinha, portanto, um carácter complementar da sua actividade principal que efectuava num colégio das proximidades, o que evidencia que o A. não estava na dependência económica da Ré.

Por outro lado, verifica-se que era retribuído pelas horas de aulas leccionadas, o que, em princípio, é mais característico da prestação de serviços em que se retribui o resultado da actividade do que do contrato de trabalho em que normalmente se paga a disponibilidade do trabalhador.

Propendemos, assim, a considerar não preenchido o requisito previsto na al. c) do art. 12.º do CT.

No que se refere à al. a) do referido art. 12.º, são dois os requisitos cumulativos exigidos: (a) que o prestador de trabalho esteja inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e (b) que realize a sua prestação sob as orientações deste.

Embora alguns autores refiram que estes requisitos são “apenas descritivos e que não indicam qualquer tipo de valoração quantitativa ou qualitativa” (*), afigura-se-nos que a actividade valorativa não pode ser dispensada, até porque o legislador não se satisfaz com uma qualquer inserção na estrutura organizativa do empregador, exigindo complementarmente a realização da prestação sob as orientações do beneficiário.

No presente caso, considerando os factos provados não podemos deixar de dar relevo qualificativo aos factos provados sob os n.os 13 e 14 segundo os quais se o A. precisasse de faltar, fazia-se substituir por outro monitor de natação, de preferência que também exercesse funções na R. mas podendo ser de fora se tal não fosse viável, avisando antes neste caso e comunicando antes ou depois naqueloutro, sendo certo que não precisava de justificar as faltas, apenas não recebendo as quantias correspondentes.

Ora, esta possibilidade do Apelado se fazer substituir, nos termos amplos em que o podia fazer, evidencia que não se integrava na estrutura organizativa da ré, como já foi decidido, em situação idêntica, no Ac. do STJ de 2.05.07, citado na decisão recorrida e disponível em www.dgsi.pt.

Com efeito, a possibilidade de o trabalhador se fazer substituir revela inequivocamente que o que interessava à Apelada não era a actividade do trabalhador em si mesma, como é próprio do contrato de trabalho (art. 1152.º do Código Civil), que é celebrado intuitu personae, mas antes o resultado da actividade característica do contrato de prestação de serviços (art. 1154.º do C.C.).

É certo que o A., se obrigou a respeitar, no exercício da sua actividade, as normas gerais de utilização e funcionamento das instalações, as normas técnicas do ensino da natação e os objectivos qualitativos da actividade pretendidos pela Coordenação Técnica da R.

Todavia, como bem refere a decisão recorrida, trata-se de respeitar normas previstas para todos os utilizadores das piscinas, no 1.º caso, normas próprias da profissão, qualquer que seja a modalidade do seu exercício, no 2.º caso, e, por último, de respeitar o resultado definido pelo beneficiário da actividade, como é legítimo na generalidade das relações jurídicas afins, designadamente de prestação de serviços. Por isso, afigura-se-nos que estas instruções genéricas iniciais, na ausência de quaisquer outras instruções ao longo da vigência do contrato não servem para integrar o segundo requisito da al. a) do art. 12.º do CT.

Concordamos, por isso, com a decisão recorrida que considerou não verificado o requisito previsto na al. a) do art. 12.º do CT.

Consequentemente, não se verifica a presunção do art. 12.º do CT.

Em face desta decisão fica prejudicada a questão de saber se a Apelada ilidiu a referida presunção, uma vez que não se verificam os pressupostos de que esta depende.

E não vindo colocada qualquer outra questão, improcedem todas as conclusões do recurso, sendo de confirmar a decisão recorrida.»

2. 3. Na revista, o Autor persiste em defender que os factos provados permitem afirmar a verificação de todos os elementos indiciários da presunção de laboralidade e, em particular, dos consignados nas alíneas a) e c) do referido artigo 12.º, que as instâncias julgaram não verificados.

Já se viu que, no entendimento deste Supremo Tribunal, o artigo 12.º do Código de 2003 não é aplicável ao caso dos autos, do que resulta não poder a questão da qualificação do contrato ser apreciada com base na presunção nele estabelecida, mas sim, à luz da regra geral de repartição do ónus da prova, consignada no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.

A questão da determinação da lei aplicável é do conhecimento oficioso, como resulta do disposto no artigo 659.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, competindo ao Supremo Tribunal, nos termos do artigo 729.º, n.º 1, do mesmo diploma, aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido.

Significa isto que, apesar de, sem impugnação das partes, as instâncias terem perspectivado a resolução do litígio à luz de um determinado regime jurídico, não está vedado ao Supremo afastar a aplicação desse regime e optar pelo que julgue adequado.

Recorde-se que o tribunal de 1.ª instância, embora aplicando o regime do Código de 2003, considerou, por um lado, que os factos provados não preenchiam todos os requisitos da presunção de laboralidade e, por outro lado, à luz da regra geral do ónus da prova, que o Autor não lograra demonstrar factos bastantes para se poder concluir pela existência de um relação de carácter laboral.

Este último fundamento da sentença não foi objecto de impugnação no recurso de apelação interposto pelo Autor, que se limitou a atacar a decisão no ponto em que esta julgou não verificados os pressupostos da presunção.

Ora, entendendo este Supremo que o regime que estabeleceu a presunção não tem aplicação ao caso dos autos, torna-se inútil discutir se se verificam, ou não, os respectivos pressupostos — único fundamento que constitui objecto do presente recurso —, isto, apesar de a Relação, perfilhando entendimento diferente, ter conhecido da questão.

E porque o juízo da 1.ª instância quanto à qualificação do contrato, fundado na falta de demonstração dos elementos constitutivos de uma relação laboral, e formulado tendo em atenção a mencionada regra geral atinente à repartição do ónus da prova, se tornou definitivo, uma vez que não foi impugnado, não pode ser objecto de apreciação por este Supremo Tribunal a pretensão do recorrente no sentido de ser qualificado o relacionamento das partes como contrato de trabalho, como pressuposto da procedência da acção.


III

Em face do exposto, decide-se negar a revista.

Custas a cargo do recorrente.

Lisboa, 22 de Abril de 2009.

Vasques Dinis (relator)

Bravo Serra

Mário Pereira