Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B648
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
CASAMENTO
BENS PRÓPRIOS
Nº do Documento: SJ2008032706487
Data do Acordão: 03/27/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
O processo de divisão de coisa comum deve ser utilizado para pôr termo à indivisão de um imóvel adquirido em compropriedade pelos conjugues antes do casamento.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 05.12.15, nas Varas Cíveis de Lisboa – depois, no 1º Juízo Cível de Lisboa – RS instaurou a presente acção especial de divisão de coisa comum contra MS
pedindo
que cessasse a indivisão referente à fracção autónoma designada pela letra “U”, correspondente ao 6º andar direito do prédio urbano sito na Rua ...., nº 00, na Freguesia da Ameixoeira, em Lisboa
alegando
em resumo, que
- em 9 de Junho de 1997, adquiriu, com a ré, a propriedade do referido imóvel, antes do matrimónio celebrado entre ambos;
- não foi convencionada, nem registada qualquer cláusula de indivisão referente à referida fracção;
- não obstante, a ré recusa-se a pôr termo à indivisão de forma amigável.

Contestando
e também em resumo, a ré alegou que
- acordou com o requerente sobre a indivisão do imóvel, uma vez que lhe foi atribuído na pendência do divórcio como casa de morada de família até à partilha dos bens do casal;
- o requerente não pode exigir a venda ou a divisão da fracção por se tratar da casa de morada de família num matrimónio não dissolvido, pelo que a sua venda ou qualquer outro modo de oneração ou alienação dependerá sempre do acordo da ré mulher, atento o disposto no art. 1682º-A, nº 2, do Código Civil.
Em 07.06.15, foi proferida decisão em que se julgou procedente o pedido de divisão formulado pelo autor e se determinou que os autos prosseguissem tendo em visa a adjudicação ou venda da fracção, uma vez que ela anão era divisível em substancia.

A requerida apelou, com êxito, tendo a Relação de Lisboa, por acórdão de 07.11.22, julgado a acção improcedente, absolvendo a mesma do pedido.

Inconformado, o requerente deduziu a apresente revista, apresentando as respectivas alegações e conclusões.

A recorrida contra alegou.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que
- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido
são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:
A) – Processo de divisão do prédio.
B) – Acordo sobre a indivisão.
C) – Abuso de direito.

Os factos

São os seguintes os factos que foram dados como provados nas instâncias:
1º Encontra-se descrita na 5ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, na ficha nº 189/19901015, a fracção autónoma designada pela letra “U”, correspondente ao 6º andar direito do prédio urbano sito na Rua ..., nº 00, na Freguesia da Ameixoeira, em Lisboa;
2º Pela Ap. 19 de 09.06.1997 foi inscrito na ficha referida em 1º, a favor do autor e da ré, o acto de aquisição, por compra do imóvel descrito em 1º;
3º O autor e a ré casaram um com o outro em 25 de Abril de 1999 no regime de comunhão de adquiridos;
4º Por sentença proferida em 2 de Junho de 2006 no âmbito do processo de divórcio litigioso nº 1564/05.8TMLSB que correu termos pelo 1º Juízo, 3ª Secção do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, foi decretado o divórcio entre o autor e a ré;
5º A sentença referida em 4º transitou em julgado em 22 de Junho de 2006;
6º Por apenso ao processo de divórcio referido em 4º correu termos um processo de atribuição da casa de morada de família no âmbito do qual, em 25 de Outubro de 2005, o autor e a ré acordaram em atribuir a casa de morada da família, sita na Rua ..., nº 00, 6º direito, na Ameixoeira, em Lisboa, à requerente mulher até à venda ou partilha;
7º O acordo referido em 6º foi homologado por sentença que transitou em julgado em 17 de Novembro de 2005;
8º Por apenso ao processo de divórcio referido em 4º ainda corre termos o processo de inventário instaurado para partilha dos bens comuns do extinto casal constituído pelo autor e pela ré;

Os factos, o direito e o recurso

A) – Processo de divisão do prédio

No acórdão recorrido entendeu-se que o “imóvel em causa não podia ser objecto de divisão senão nos termos do processo de inventário instaurado para partilha dos bens comuns do casal na sequência da sentença de divórcio, ou através de meio próprio, após esse processo de inventário”.

O recorrente entende que o bem em causa só pode ser dividido através de acção própria de divisão de coisa comum, sob pena de violação do principio da imutabilidade do regime de bens resultante da lei e do princípio de que os bens adquiridos pelo casal em regime de compropriedade antes do casamento devem ser divididos apenas mediante aquela acção.
Tem razão.

As relações patrimoniais entre os cônjuges cessam, além do mais, com a sua dissolução.
Cessadas essas relações, procede-se à partilha dos bens do casal – cfr. art. 1689º do Código Civil.
Cada cônjuge receberá na partilha os seus bens próprios e a sua meação no património comum – cfr. nº1 do referido artigo.
Sigamos, agora, as lições dos professores Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira “in Curso de Direito de Família, volume I, 2ª edição, página 429.
“A partilha, assim e numa acepção ampla, compõe-se de três operações básicas: a separação de bens próprios; a liquidação do património comum e a partilha propriamente dita.
Em primeiro lugar, tem de fazer-se a operação de bens próprios de cada conjugue.
Estes bens pertencem individualmente aos seus titulares e não carecem, em rigor, de qualquer intervenção; separam-se para que as operações seguintes incidam apenas sobre bens comuns que, estes sim, carecem de divisão.
A separação de bens é, portanto, um simples pressuposto, uma operação ideal de exclusão, que não se documenta, nem deixa rasto.
Ela só serve para a atenção dos interessados na partilha se concentre apenas no activo e no passivo comuns, que precisam de ser partilhados”

No caso concreto em apreço, resulta dos factos dados como provados o seguinte:
- o requerente e a requerida adquiriram um imóvel em compropriedade, no estado de solteiros;
- posteriormente, vieram a casar e sob o regime de comunhão de adquiridos;
- o casamento foi dissolvido por divórcio;
- procede-se a inventário subsequente a esse divórcio.

Face ao disposto na alínea a) do nº1 do artigo 1722º, o imóvel em caso tem de ser considerado bem próprio dos cônjuges.
Logo, não pode ser considerado no inventário em causa, uma vez que não era bem comum do casal.
Será entregue ao requerente e à requerida na qualidade de comproprietários e não na qualidade interessados na partilha do património comum do casal.
Sendo assim, a partilha que ocorrer naquele inventário nunca pode abranger o imóvel em causa.
E muito memos a sua divisão.
Pelo que, independenteemnte do resultado daquela partilha, o imóvel continuará a pertencer em compropriedade ao requerente e à requerida, isto é, indiviso.
Ora, “nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa” – nº1 do artigo 1412º do Código Civil.
Sendo que “a divisão é feita amigavelmente ou nos termos da lei do processo” – nº1 do artigo 1413º do mesmo diploma.
O processo de divisão de coisa comum está disciplinado nos artigos 1052º e seguintes do Código de Processo Civil.
Concluímos, que é este o processo que deve ser utilizado para termo à indivisão do imóvel comum em causa.

A atribuição à requerente do prédio em questão como “casa de morada de família” acordada pelo requerente e para requerida em apenso ao processo de divórcio nada tem a ver com a questão da compropriedade do imóvel e da sua divisão.
Na verdade, o acordo só podia ter como objecto a “utilização” da denominada “casa de morada de família” – cfr. nºs 2 e 7 do artigo 1407º do Código Civil – ou o direito ao seu arrendamento – cfr. artigo 1793º do mesmo diploma e 84º do Regime do Arrendamento Urbano – e nunca fixar o processo por que a divisão do imóvel iria ser feita.
E muito menos que essa divisão fosse efectuada em processo de inventário, pois que, tendo em conta o regime legal acima referido e a ausência de qualquer convenção antenupcial, o imóvel era bem próprio do requerente e da requerida e, por consequência e como já ficou referido, bem não partilhável naquele processo de inventario.

B) – Acordo sobre a indivisão

Mas o requerente e a requerida acordaram, por transacção lavrada em processo incidental de atribuição de casa de morada de família, em “atribuir” o imóvel em causa à requerente mulher “até venda ou partilha”.
Deste acordo não se pode concluir que as partes tenham convencionado “que a coisa se conserve indivisa”, nos termos da parte final do nº1 do artigo 1412º e dos nºs 2 e 3 do mesmo artigo.
O que se pode concluir é que “até à venda ou partilha” a requerente ficava com o direito de utilizar o imóvel em causa para sua morada.
Face ao ficou dito aquando da apreciação da questão anterior, “venda e partilha” só pode significar a “venda” ou a “adjudicação” referidas no nº2 do artigo1056º do Código de Processo Civil na disciplina do processo de divisão de coisa comum.
Ou seja, o que as partes acordaram foi que a requerente ficava a habitar o imóvel até este ser adjudicado a ela ou ao requerente ou então, na falta de acordo sobre a adjudicação, ser vendida.
Adjudicação e venda estas que, na ausência de acordo, teria que ser feita em acção de divisão de coisa comum, como também já foi explicado.
Concluímos, pois, que do acordo em causa não resultava qualquer obstáculo ao pedido de cessação da compropriedade do imóvel feito nesta acção pelo requerente RS.

C) – Abuso de direito

No acórdão recorrido entendeu-se que mesmo que se admitisse que o recorrente tinha o direito de intentar a presente acção, sempre estaríamos numa situação de abuso de direito “por não ser expectável que o apelado, poucos dias depois de ter firmado um acordo com a apelante no sentido de lhe ter sido atribuído o imóvel como casa de morada de família, viesse intentar uma acção de divisão desse imóvel com a finalidade descrita e a consequência visível da venda do bem e a perda da morada para a família da apelante”.
Com o devido respeito, não concordamos.

A noção e abuso de direito foi consagrada no art.334º do Código Civil segundo a concepção objectiva, conforme salienta Antunes Varela ao escrever: “para que haja lugar ao abuso de direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exercer o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito” - Das Obrigações, vol.II, 5ª ed. p.516.
Esta contradição é patente nos actos de “venire contra factum propium”: são os casos em que uma pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando, por exemplo, determinada causa de nulidade, anulação resolução ou denúncia de um contrato, depois de fazer crer à contra parte que não lançaria mão de tal direito ou depois de ter dado causa ao facto invocado como fundamento da extinção da relação do contrato - Antunes Varela, ob.cit., p.517.
Conforme sublinha Baptista Machado “in” Tutela de Confiança e “venire contra factum proprium” - Obra Dispersa, vol.I, p.385, a ideia imanente a esta proibição é a do “dolus praesens”, isto é, que a conduta sobre que incide a valoração negativa é a conduta presente, sendo a conduta anterior apenas ponto de referência para, tendo em conta a situação então criada, se ajuizar da conduta actual.
Na decorrência do exposto, enumera aquele mestre, a páginas 415 a 418 da citada obra, três pressupostos para o desencadeamento dos efeitos do instituto:
1º - uma situação objectiva de confiança: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura.
2º - investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contra parte, com base na situação de confiança criada, toma disposição ou organiza planos de vida de que surgirão danos, se a confiança legitima vier e ser frustada.
3º - boa fé da contra parte que confiou: a confiança do terceiro ou da contra parte só merecerá protecção jurídica quando tenha agido de boa fé e com cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico.
Posto isto, vejamos se no caso concreto em apreço, se verificam estes três pressupostos.

Para que o primeiro requisito se tivesse como verificado, necessário era que se demonstrasse que o recorrente procedeu em termos de criar na recorrida a expectativa de que não instauraria a presente acção antes do findar o processo de inventário subsequente ao divórcio.
Não existem quaisquer elementos que nos permitam concluir nesse sentido.
Como acima ficou expresso, a questão da oportunidade da instauração desta acção ou do exercício do direito a não permanecer na indivisão não foi tratada – ou, pelo menos, não está demonstrado que o fosse – entre o recorrente e a recorrida.
Apenas foi tratada a questão relacionada com a utilização do imóvel.
Por isso, não podemos concluir pela existência daquela expectativa.
E não existindo esta expectativa, também não existem os outros dois requisitos para o abuso de direito na modalidade aludida, que dependiam da verificação daquela.
Concluímos, pois, não haver factos que nos indiquem ter o requerente agido com abuso de direito.

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repondo-se o decidido na 1ª instância.
Custas pela recorrida

Lisboa, 27 de Março de 2008

Oliveira Vasconcelos (relator)
Serra Baptista
Duarte Soares