Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | NUNO CAMEIRA | ||
Descritores: | USUFRUTO RENÚNCIA NEGÓCIO ONEROSO ACÇÃO PAULIANA REQUISITOS ÓNUS DA PROVA MATÉRIA DE FACTO MATÉRIA DE DIREITO | ||
Nº do Documento: | SJ200410190022886 | ||
Data do Acordão: | 10/19/2004 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL PORTO | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 5388/03 | ||
Data: | 01/20/2004 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
Sumário : | 1 - A renúncia ao usufruto prevista no artº 1476º, nº 1, e), do Código Civil, apresenta-se, por definição, como um negócio gratuito, no qual a renúncia, em princípio, é pura e simples, abdicativa: através dela o titular do usufruto desvincula-se deste direito sem qualquer contrapartida. 2 - O negócio, porém, deixa de ser unilateral e gratuito se se estipularem contrapartidas à renúncia: integrado, então, pela renúncia propriamente dita e por uma outra qualquer prestação que é, segundo a vontade das partes, o seu correspectivo, o negócio transforma-se, por esse facto, num negócio oneroso. 3 - Alegando o autor, em acção pauliana, que o negócio impugnado consistiu na renúncia a metade de um usufruto, recai sobre o réu o ónus da prova de que o negócio celebrado foi oneroso. 4 - Não é conclusivo o quesito da base instrutória em que se pergunta se a renúncia ao usufruto foi feita pelo réu sem qualquer contrapartida. 5 - É matéria de direito - integrada, por isso, na competência do Supremo como tribunal de revista - a questão de saber se determinada resposta à base instrutória é ou não conclusiva. 6 - Na acção pauliana cabe ao credor provar o montante da dívida e ao devedor ou ao terceiro interessado na manutenção do acto que o obrigado possui no seu património bens penhoráveis suficientes para a satisfação daquela. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. Síntese dos termos da causa e do recurso A propôs uma acção ordinária - acção pauliana - contra B, seu ex-marido, C, filha de ambos, e D. Pediu que se declarasse ineficaz e de nenhum efeito relativamente a ela, autora, a renúncia do 1° réu a metade do usufruto sobre os prédios identificados no art. 3° da petição inicial formalizada por escritura de 5.6.96 e se condenassem os 2.°s réus a reconhecer o direito que lhe assiste de executar no património deles o referido usufruto até integral pagamento da quantia reclamada em duas acções que correram, respectivamente, no 1º. Juízo/1 a secção e 6.° Juízo/3.a secção do Tribunal Cível do Porto sob os n.°s 11 .345/93 e 941/96. Alegou que, tendo casado com o 1.' réu em 5.6.54 no regime da comunhão geral de bens, divorciou-se dele por mútuo consentimento em 15.7.85; por acordo de ambos, doaram à filha com reserva de usufruto em partes iguais, "a vagar por metade à morte de cada um deles e no por inteiro até à morte do último", os bens imóveis identificados na petição inicial, ficando o 1° réu investido na qualidade de administrador; na sequência de processos de prestação de contas instaurados contra o 1.' réu foram reconhecidos à autora direitos de crédito sobre ele; o 1° réu, no entanto, para impossibilitar ou agravar a impossibilidade de a autora receber tais créditos, renunciou à sua quota parte no usufruto em favor da filha C (2 ª ré), assim fazendo diminuir a garantia patrimonial da autora, já que não lhe são conhecidos outros bens ou direitos penhoráveis. Os três réus, separadamente, contestaram. O réu D alegou a sua ilegitimidade por não ser casado com a ré C nem beneficiário da renúncia ao usufruto. A Ré C impugnou os factos constitutivos do direito alegado e, designadamente, a existência de qualquer conluio ou colaboração com o 10 réu, seu pai, no sentido de prejudicar a autora (sua mãe). O réu B, por fim, concluiu pela improcedência da acção por falta de alegação de elementos da causa de pedir - em concreto, factos demonstrativos de que a renúncia foi efectuada com dolo e má fé, seja do renunciante, seja do terceiro adquirente; invocou ainda a caducidade do direito accionado, e impugnou parcialmente os factos alegados na petição, em particular a gratuitidade da renúncia ao usufruto (por estar inserida, disse, numa compensação para com a sua filha, que cuidaria dele na velhice), bem como a má fé ou dolo no negócio. Na réplica a autora defendeu a inadmissibilidade da reconvenção e desistiu da instância contra o réu D, concluindo, no mais, como na petição inicial. Houve ainda tréplica por parte da ré C a respeito da posição defendida pela autora quanto à inadmissibilidade do pedido reconvencional. No despacho saneador declarou-se extinta a instância em relação ao réu D, não se admitiu a reconvenção e julgaram-se improcedentes as excepções de falta ou insuficiência da causa de pedir e caducidade do direito. Condensada e instruída a causa seguiu-se a audiência de discussão e julgamento e depois foi proferida sentença que julgou improcedente a acção, absolvendo os réus dos pedidos. Sob apelação da autora, porém, a Relação do Porto revogou a sentença, substituindo-a por outra que deu procedência ao pedido. E deste acórdão que os réus pedem revista, tendo formulado as seguintes conclusões úteis: 1- No recurso de apelação a recorrida não impugnou a matéria de facto apurada em 1ª instância, sendo evidente que não cumpriu os ónus estabelecidos no art° 690°-A, n° 1, do CPC: transcrição de depoimentos e especificação dos concretos pontos de facto que considerou incorrectamente julgados com indicação dos concretos meios de prova em que se baseia; 2 - Assim, a entender-se que existiu impugnação da matéria de facto, esta deveria ter sido rejeitada e não apreciada; conhecendo dela, o acórdão incorreu na nulidade prevista no art° 668°, n°1, d), CPC; 3 - Face à não impugnação da matéria de facto e por não se verificar nenhuma das situações previstas no art. 7120 , n°1, do CPC, que legitime o uso de presunções judiciais, a eliminação do quesito 1° e sua resposta é inadmissível; 4 - É admissível que o STJ sindique o uso que a Relação fez dos poderes que lhe estão atribuídos de alteração de matéria de facto fixada em 1 a Instância, e também, e no caso, da eliminação do quesito 1° e sua resposta, pelo que os recorrentes pedem a revogação desta eliminação e a manutenção do quesito 1° e sua resposta; 5 - Para além dos fundamentos da sentença, que os recorrentes subscrevem, o certo é que a renúncia em questão pode revestir carácter oneroso ou gratuito, face ao negócio causal que a funda; 6 - Tal como qualquer outro tipo de renúncia, a renúncia ao usufruto pode consubstanciar um acto oneroso, com contrapartida, ou gratuito; 7 - A recorrida não demonstrou um dos requisitos inerentes à acção pauliana, concretamente o do art. 610°, b), do CC; 8 - Para integrar a verificação deste requisito não basta ao credor invocar o crédito, líquido ou ilíquido, de que é titular, sendo-lhe imposto que demonstre o montante do passivo do devedor, ou seja, o montante das dívidas; 9 - A recorrida funda a acção pauliana em crédito detido de largos milhares de contos, pedindo a ineficácia de acto cujo valor é de dezenas de contos, o que, traduzindo clara desproporção no exercício do direito, consubstancia um abuso, reprimido pelo artº 334º do CC; 10 - Perante o acto - renúncia - impugnado, e não tendo provado a sua gratuitidade, impunha-se à recorrida alegar e provar o requisito da má fé, previsto no artº 612°, n° 1, do CC, o que não conseguiu. A autora apresentou contra alegações, defendendo a manutenção do julgado. II. Fundamentos Factos definitivamente assentes: 1) - Autora e réu casaram em 05/06/54, segundo o regime de comunhão geral de bens; 2) - Em 15.07.8 5, através de divórcio por mútuo consentimento, puseram fim a essa relação matrimonial. 3) - Do seu património comum faziam parte integrante os dois seguintes prédios urbanos, ambos inscritos na matriz da freguesia de S. Pedro da Afurada, Vila Nova de Gaia sob o artigo 611, com valor patrimonial de Esc: 26.228.943: a) - uma casa de um pavimento com a área coberta de cinquenta metros quadrados; b)- uma casa de dois pavimentos com a área coberta de setenta metros quadrados e quinta com cento e cinquenta metros quadrados. 4) - Realizada a escritura de partilhas, a autora e primeiro réu doaram aqueles dois prédios à filha de ambos, a ré C, reservando para si o usufruto em parte iguais a vagar por metade à morte de cada um deles e não por inteiro até à morte do último; 5) - A autora instaurou contra o primeiro réu duas acções de prestação de contas que correram termos no Tribunal Cível do Porto e que se reportavam, respectivamente, às contas relativas aos períodos de 1 de Janeiro de 1989 a 20 de Outubro de 1994 e de 21 de Outubro de 1994 a 31 de Agosto de1996; 6) - Tal prestação de contas advinha do facto de o referido réu nunca o ter feito no âmbito da administração dos imóveis referidos em C). 7) - Na primeira acção, com o n° 11345/93 do 1° Juízo, 1 a secção, o réu B foi condenado na primeira instância a pagar à autora a quantia de 4.217.430$00 acrescida de juros de mora à taxa legal de 7% desde o trânsito em julgado da respectiva sentença até efectivo e integral pagamento; 8) - A respectiva sentença foi confirmada pelo Tribunal da Relação, estando agora ainda pendente o recurso de resta da mesma. 9) - Na segunda acção, com o n° 941/96 do 6° Juízo, 3ª secção, foi o referido réu condenado por sentença, transitada em julgado em 06/10/2000, a pagar à autora a quantia de 3.596.726$00 acrescida de juros de mora vencidos no montante de 144.768$00 e juros de mora vincendos desde 01/01/97. 10) - Por escritura de 05/06/1996, o citado Réu B renunciou ao direito de usufruto que possuía sobre metade dos imóveis referidos em C), a favor da sua filha (a ora Ré C). O único quesito que integrava a base instrutória estava assim redigido: "A renúncia ao usufruto e referida em J) foi feita pelo réu B sem qualquer contrapartida?" Este quesito obteve na 1 a instância a resposta de não provado, constando da respectiva fundamentação, além do mais, que "...o tribunal não adquiriu a convicção firme que, para lá da natural hesitação de quem depõe, fosse de molde a persuadir da realidade em termos de conscienciosamente podermos responder de forma positiva ao quesito 1 °..." Na sentença ponderou-se que, não tendo a autora provado a gratuitidade do acto impugnado nem alegado a má fé dos réus, a acção teria que improceder; e isto porque, em suma, recaia sobre ela, autora, o ónus da prova do carácter gratuito do negócio objecto da impugnação pauliana. Diversamente, a Relação julgou "proibido" o quesito em apreço, por ser "conclusivo" e respeitar a "questão de direito"; em conformidade, considerou-o não escrito, bem como à resposta; sustentou, por outro lado, que a renúncia ao usufruto é um negócio gratuito por natureza, o que dispensava a autora de fazer a prova, quer da inexistência de contrapartidas, quer, concomitantemente, do requisito da má fé má fé previsto no artº 612°, n° 1 para os actos onerosos; e assim, julgando reunidos, ante os factos provados, todos os requisitos de procedência da impugnação pauliana de actos gratuitos, sentenciou em sentido contrário ao da 1 a instância, consoante se relatou. Analisando as conclusões da revista, definidoras do seu âmbito, verifica-se que estão postos problemas, digamos, laterais, e um problema central, nuclear, cuja solução condiciona a de todas os outros: o problema da qualificação jurídica do negócio objecto da impugnação. Tratou-se da renúncia a um usufruto, expressamente prevista no art.° 1476°, e), como uma das causas de extinção deste direito real limitado. A renúncia pode ser definida, segundo refere Rui Pinto Duarte (1), como um negócio jurídico unilateral pelo qual o seu autor extingue um direito de que é titular. A definição de Manuel Henrique Mesquita (2) é precisamente idêntica, apenas com a especificação de que se trata de um negócio unilateral de disposição. E possível distinguir, dentro da renúncia, entre a renúncia abdicativa e a renúncia liberatória No primeiro caso a extinção do direito é pura e simples; no segundo é feita a favor de alguém, não gratuitamente, mas como meio de obter a exoneração duma obrigação. Exemplos desta modalidade encontramo-los no art.° 1472°, n° 3 (meio de o usufrutuário se livrar da obrigação de fazer reparações ou de suportar despesas) e no art.' 1567', n° 4 (meio de o titular do prédio serviente se eximir a custear obras a que se tenha obrigado). Assim, relativamente aos pressupostos, enquanto que a renúncia liberatória, como a própria designação indica, só pode ocorrer quando o titular do direito real está vinculado ao cumprimento de uma obrigação propter rem, a renúncia pura e simples (ou abdicativa) é um acto discricionário, traduzindo o exercício duma faculdade que a lei não sujeita a qualquer condição. Tal é o caso, justamente, da renúncia ao usufruto, pois o seu titular pode demitir-se deste direito quando entender, mesmo que o respectivo estatuto não o sujeite a qualquer obrigação propter rem. Depois, relativamente à causa ou função do acto de renúncia, enquanto que a renúncia liberatória se dirige ao credor de uma obrigação propter rem e tem por objectivo libertar o seu autor duma responsabilidade debitória em que está constituído, a renúncia abdicativa, diferentemente, não tem destinatário: através dela, o seu autor não quer mais do que desvincular-se de um direito real de que é titular. Por isso, - conclui o Autor citado em segundo lugar - "a renúncia abdicativa traduz-se num negócio gratuito e efectua-se através de uma declaração unilateral não receptícia; a renúncia liberatória, diversamente, constitui um negócio oneroso e realiza-se pela via de uma declaração unilateral receptícia" (3). Negócio jurídico gratuito é aquele em que, por contraposição ao negócio oneroso, não existe no respectivo conteúdo um sistema de contrapartidas estipulado, entendida a contrapartida como o correspectivo de outra prestação. A doutrina chama a atenção para o cuidado com que é preciso manusear esta classificação dicotómica dos negócios jurídicos em gratuitos e onerosos, na medida em que ela pode tornar mais difícil a "concepção dos contratos que não sejam puramente gratuitos nem perfeitamente onerosos" (4). É que são concebíveis, na verdade, e verificam-se a cada passo situações em que, pelas razões mais diversas, uma das prestações não corresponde valorativamente à outra. A gratuitidade e a onerosidade, - escreve o Autor mencionado na nota quatro - não são qualidades impermeáveis, são dois pólos numa série infinitamente graduável, na qual se inserem negócios mais ou menos gratuitos, como a doação modal, e mais ou menos onerosos, como as vendas por preços baixos, ou mesmo por preços vis (5). Na situação ajuizada, contudo, como se vê através da declaração unilateral não receptícia levada à escritura pública a que alude o facto n° 10, a renúncia teve carácter abdicativo, no sentido já exposto. E não há dúvida de que semelhante negócio é, por definição, um negócio gratuito, sem contrapartidas de qualquer espécie; quando estas se verifiquem, parece óbvio que deixará automaticamente de ser unilateral e gratuito para de imediato se transformar num qualquer contrato inominado, mas oneroso; um negócio, portanto, integrado pela renúncia ao usufruto propriamente dita, mas também por uma outra prestação cujo conteúdo pode variar e que surge, segundo a vontade convergente das partes, como o correspectivo da renúncia. Temos, assim, que a afirmação explícita, inserida pela autora no articulado inicial, de que a renúncia ao usufruto impugnada foi feita sem contrapartidas, não sendo embora errónea nem deslocada, é todavia redundante e desnecessária à procedência do pedido, por isso que não obedece, sequer, a um ónus de afirmação a que estivesse vinculada. Alegação desnecessária ainda porque, pretendendo-se atacar um negócio cujo traço distintivo essencial reside na gratuitidade que, consoante se expôs, lhe é inerente, a inserção de um quesito indagando de modo directo acerca dessa qualificação não interessa ao estabelecimento da base de facto pertinente à correcta solução do litígio. Isto significa, por outras palavras, que na situação ajuizada o ónus da prova não se distribui entre as partes pelo modo indicado na sentença. Com efeito, não era a autora quem tinha o ónus de provar a gratuitidade da renúncia operada. Os réus é que, por força do disposto no art.° 342°, n° 2, tinham o ónus de demonstrar o carácter oneroso do negócio realizado através da alegação e da prova de que a renúncia teve uma qualquer contrapartida estipulada entre o titular do usufruto e a proprietária da raiz. Os factos caracterizadores dessa contrapartida negocial assumir-se-iam como verdadeiros e próprios factos modificativos do direito invocado pela parte contrária. Por conseguinte, o non liquet a que se chegou relativamente ao ponto de facto em análise - resposta negativa ao único quesito da base instrutória - tem de resolver-se, em termos decisórios, contra os réus, não contra a autora: nada tendo eles provado quanto a uma pretensa onerosidade da renúncia, fica de pé, incólume, a gratuitidade que constitui por assim dizer a sua imagem de marca, o seu selo de origem. Deste modo, a conclusão extraída no acórdão recorrido quanto à natureza gratuita do negócio impugnado e consequente dispensa de prova da má fé acaba por estar certa. Não podemos, todavia, acompanhar a Relação no itinerário que percorreu para lá chegar. Não está em causa, decerto, a faculdade que lhe assiste - extensiva, de resto, à a instância e ao próprio Supremo Tribunal - de aplicar a norma do art.° 646°, n° 4, do CPC, independentemente de haver ou não impugnação da matéria de facto na apelação interposta. Com efeito, uma coisa é a reapreciação das provas em ordem a sustentar possíveis modificações no elenco dos factos que a 1ª instância julgou provados - reapreciação essa balizada pelas normas contidas nos art.'s 690°-A e 712º - e outra, totalmente distinta, é a intervenção por assim dizer "indirecta" que a aplicação daquele preceito proporciona na matéria factual a que a decisão final do litígio vai atender: se na primeira situação ainda está em causa, apenas e só, julgar factos, na segunda, rigorosamente, trata-se já de separar os factos do direito, autonomizando-os, e, nesta exacta medida, de proferir um juízo de mérito, um inevitável juízo valorativo e qualificativo, em termos jurídicos da factualidade tida por assente. Juízo que, do ponto de vista lógico, é posterior, é subsequente ao que está na base do julgamento de facto propriamente dito, nu e cru. Por isso mesmo já se decidiu que a questão de saber se determinada resposta é ou não conclusiva constitui matéria de direito cabendo, portanto, na competência do Supremo, enquanto tribunal de revista (6). Só que, a nosso ver, e ao contrário do que a 2ª instância decidiu, o quesito único da base instrutória não era conclusivo, nem continha matéria de direito (7). Na verdade, o art..° 646°, n° 4, proíbe que o tribunal que julga a matéria de facto responda a questões de direito, ou tire conclusões nesse âmbito. Não é esse, contudo, o caso do quesito que a Relação suprimiu: se qualquer pessoa medianamente instruída e diligente, mesmo não sendo jurista, pode apreender o significado e discorrer em juízo sobre o conteúdo de termos como empréstimo, arrendamento, benfeitorias, cheque, letra, factura, etc, etc - tudo realidades que, sem qualquer dúvida, apresentam uma conotação jurídica impossível de negar e ignorar - assim também, por idêntica razão, poderá fazê-lo relativamente ao que seja uma "contrapartida" num qualquer negócio. Nisto, como em tudo aquilo que se relaciona com o problema, nunca definitivamente resolvido, da distinção entre matéria de facto e matéria de direito, há que agir com cautela e circunspecção. Não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, as mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação (8), sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstracções (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. De tudo quanto se disse até ao momento decorre que as conclusões 1ª a 7ª e 11ª da revista são improcedentes. Vejamos as restantes. É condição de procedência da acção pauliana que resulte do acto impugnado a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade - art.° 6100, b). Os recorrentes alegam que a autora não fez a demonstração deste requisito uma vez que apenas provou o montante do crédito de que é titular, e não, como também se impunha, o das dívidas. O argumento, contudo, não colhe. Uma vez mais, a repartição do ónus da prova não favorece, relativamente ao ponto considerado, a posição dos réus. Conforme resulta, a nosso ver de modo muito claro, do art.° 611º, a demonstração do requisito em apreço não tem de ser feita pelo credor, pois é ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto que cabe provar que o obrigado possui bens de valor igual ou maior. Portanto, se o credor provar o montante das dívidas e o devedor ou terceiro, por seu turno, não provar que há bens penhoráveis suficientes no património do devedor, a impugnação terá que ser julgada procedente (9). Vem colocada, por fim, a questão do abuso do direito, assente numa alegada desproporção entre, por um lado, o crédito de que a autora é titular e cuja consistência prática visa defender através da acção pauliana, e, por outro, o acto impugnado, de valor consideravelmente menor. É evidente, neste ponto, a falta de razão dos recorrentes. O art.° 334º do CC é bem claro ao reprimir apenas os abusos no exercício do direito que sejam patentes, ostensivos, manifestos, chocantes, ao ponto de colidirem de modo frontal com os limites que a boa fé, os bons costumes ou o próprio fim social ou económico do direito em causa imponham. Na situação ajuizada, porém, nada aponta para que se verifique algo de semelhante a isto. Desde logo, e decisivamente, porque nenhum facto concreto se provou acerca do real valor do acto impugnado (renúncia ao usufruto); logo, cai pela base a ilação extraída acerca da escandalosa desproporção entre esse valor e o do crédito da recorrida. lmprocedem, assim, as restantes conclusões da minuta (8ª, 9ª e 10ª). III. Decisão Nestes termos nega-se a revista e mantém-se o acórdão recorrido, embora por fundamentos parcialmente diversos. Custas pelos recorrentes. Lisboa, 19 de Outubro de 2004 Nuno Cameira Sousa Leite Salreta Pereira ---------------------------------------- (1) Curso de Direitos Reais, Principia, edição de Outubro de 2002, pág. 52. (2) Obrigações Reais e Ónus Reais, Colecção Teses, Almedina, pág. 365. (3) Obra citada na nota anterior, pág. 383, que no texto seguimos de perto. (4) 4 Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, pág. 286. (5) Obra e loc. cit. na nota 4. (6) Cfr. o acórdão deste tribunal proferido em 28.11.00 na revista 2667/00. (7) Como se diz no texto era, mais exactamente, um quesito desnecessário, impertinente. (8) Se, claro está, não houver outra razão jurídico-processual que o desaconselhe; como se tenta explicar no texto é essa, precisamente, a situação que se verifica no caso dos autos. (9) Neste exacto sentido podem ver-se Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 4ª edição, pág. 437, nota 2, e Meneses Leitão, Direito das Obrigações, II, pág. 300. |