Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A3600
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PAULO SÁ
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
LIVRANÇA
AVAL
DENÚNCIA
Nº do Documento: SJ200812020036001
Data do Acordão: 12/02/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I - O aval, como autêntico acto cambiário, origina uma obrigação autónoma, que se mantém mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.
II - A livrança em branco destina-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior, sendo a sua entrega acompanhada de poderes para o respectivo preenchimento de acordo com o denominado “pacto ou acordo de preenchimento”.
III - É indiferente que o avalista tenha dado ou não o seu consentimento ao preenchimento da livrança. Com efeito, esse acordo apenas diz respeito ao portador da livrança e ao seu subscritor, não sendo o avalista sujeito da relação jurídica existente entre estes, mas apenas sujeito da relação subjacente à obrigação cambiária do aval, relação essa constituída entre ele e o avalizado e que só é invocável no confronto entre ambos.
IV - No caso em apreço, não obstante o montante da obrigação e a data do seu eventual vencimento não estivessem determinadas à data em que o executado deu o seu aval, a obrigação era determinável, nos termos do acordo de preenchimento. Assim, não ocorre qualquer violação do disposto no art. 280.º do CC.
V - Embora o aval seja irrevogável, é admissível a sua denúncia até ao momento do preenchimento do título, em situações como a dos autos, em que a livrança é decorrente de um contrato de abertura de crédito com um prazo inicial de 6 meses, que foi sendo renovado 16 vezes, por prazos idênticos e sucessivos, já tendo decorrido cerca de 4 anos e meio sobre a aposição do aval.
VI - A denúncia basta-se, então, com a simples comunicação ao Banco exequente da vontade e do pedido feito pelo avalista de “ser retirado” da livrança o seu aval, isto independentemente do fundamento que foi invocado (a circunstância de ter deixado de ser sócio e renunciado à gerência da sociedade subscritora da livrança).
VII - Tendo a declaração de denúncia chegado ao poder do Banco beneficiário, a mesma tornou-se eficaz (art. 224.º, n.º 1, do CC).
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I ─ Por apenso à execução n.º 32435/05.744PRT, interposta no 2.º Juízo de Execução do Porto, em que figura como executado, sendo exequente AA, SA. veio BB deduzir oposição.

Para tanto alega, em síntese:

Deve considerar-se válida a denúncia de toda e qualquer convenção de preenchimento de livrança – tácita ou expressa, operada pela carta que remeteu à exequente, devendo considerar-se a obrigação “ad aeternum” contrária à ordem pública, nos termos do artigo 280.º, n.º 2, do Código Civil, constituindo flagrante e brutal abuso de direito a manutenção de uma livrança em branco, em carteira, para a preencher quando der “na real gana” do seu possuidor.

Notificada da aludida oposição, contestou a exequente, pugnando pela improcedência das invocadas excepções e nulidades e pela manutenção do título dado à execução, salientando, também em resumo e no essencial, que a livrança exequenda foi preenchida em conformidade com a respectiva convenção.

Foi dispensada a realização de audiência preliminar e foi proferido saneador-sentença, no qual se decidiu julgar procedente, por provada a oposição à execução e determinou-se, em consequência, a extinção da execução contra o opoente.

Inconformado, interpôs recurso de apelação o exequente, tendo a Relação do Porto vindo a julgar a apelação procedente, revogando a decisão recorrida.

Desse acórdão veio o opoente interpor recurso, ora de revista, recurso que foi admitido.

Nas conclusões com que remata as suas alegações, diz o recorrente:

I. A ponderação das consequências da decisão constitui um factor relevante da realização do direito, habilitando as regras da “interpretação sinépica” o intérprete­aplicador a pensar “através de consequências” que permitem, pelo conhecimento e ponderação dos efeitos das decisões, repudiar qualquer resultado injusto, ainda que de conformidade formal, assim prosseguindo, na vida jurídica, a realização integral do direito.
II. Sendo o Recorrente a parte fraca, por débil economicamente e a menos preparada tecnicamente, de uma relação concluída com um contraente profissional, dever-lhe-á ser amplamente permitido o recurso a todos os meios de defesa, como forma de o proteger face à sua evidente fragilidade.
1. Mostra-se violado o disposto no n.º 3 do art. 9.º do C. Civil, em cujos termos a solução injusta no resultado não pode ser entendida como vontade da lei;
III. Pelos motivos invocados na precedente conclusão, o banco, enquanto parte forte, económica e juridicamente, dispondo de quadros com uma preparação e formação muito superior à média, estava obrigado, ao receber a carta do recorrente solicitando a retirada do seu aval a partir daquela data, a responder-lhe, informando-o de que não iria considerar o seu pedido, ao invés de se remeter ao silêncio concupisciente, e, contando com o aval cuja pretensão de retirada fora manifestada, prosseguir em sucessivas renovações do contrato, efectuando novos financiamentos à empresa do avalizado, sem o informar de qualquer destes actos.
1. Mostra-se violado o n.º 2 do art. 762.º do C. Civil e o princípio geral da boa-fé que nele se contém, de onde decorre a obrigação de informação que, uma vez violada, implica a libertação da responsabilidade do recorrente em relação ao aval cuja retirada solicitou;
IV. A relação que intercede entre o avalista do subscritor e o beneficiário de uma livrança é uma relação imediata, na medida em que a obrigação daquele encontra como primeiro credor o beneficiário, o qual assim se lhe opõe directamente.
1. Mostra-se incorrectamente interpretado o regime jurídico das letras e livranças, mormente o art. 17.º da Lei Uniforme respectiva, o qual postula interpretação como a que se contém na precedente conclusão.
V. Deve considerar-se perfeitamente válida e eficaz, pelo menos para a não renovação do contrato, declaração de um dos seus subscritores a solicitar a retirada do seu aval, quando o contrato depende em absoluto da prestação do aval de todos os intervenientes, sempre teve prazo certo e nele se prevê, desde o início, que qualquer das partes, por sua iniciativa, pode denunciá-lo através do meio usado pelo recorrente (carta registada com aviso de recepção). Sendo este contrato que funda o pacto de preenchimento de livrança invocado para este acto no título dado à execução, a denúncia daquela forma operada implica a caducidade da autorização de preenchimento da livrança no que aos recorrentes concerne.
1. Mostra-se violado o art. 10.º da LULL, do qual resulta a contrario sensu, que o preenchimento da letra pelo subscritor do pacto respectivo, contra este pacto – no caso, para além da sua vigência, no que ao recorrente concerne – pode ser-lhe oposta, já que demonstra inequívoca má-fé e, logicamente, falta grave.
VI. Mesmo que inexistissem as cláusulas referidas na conclusão anterior, deve sempre considerar-se válida a desvinculação ad nutum do avalista, face a eventual inexistência de convénio ou acordo nesse sentido, atenta a “repugnância, retratada no n.º 2 do art. 280.º do C. Civil”, da lei pelas obrigações “ad aeternum”, devendo julgar-se inerente às relações jurídicas de duração indeterminada a faculdade de se lhes pôr termo mediante denúncia.
1. Mostra-se violado o n.º 2 do art. 280.º do Código Civil, já que a tese de que o aval é irrevogável, convertendo-o assim em obrigação desprovida de limite de tempo é contrária à ordem pública, bem como a al. j) do art. 18.º do D. L. N.º 446/85 (Lei das Cláusulas Contratuais Gerais) que expressamente proíbe em absoluto a existência de cláusulas com tal conteúdo.
VII. A decisão que se pretende ver repudiada e se acusa nas anteriores conclusões IV e V, encerra uma interpretação inconstitucional do regime jurídico das letras e livranças, nomeadamente dos artigos 10.º e 17.º da Lei Uniforme respectiva, já que qualquer delas conduz à sonegação do acesso, pelo avalista, à tutela judiciária efectiva, deixando-o totalmente à mercê do avalizado e do credor, os quais, assim, até se podem conluiar para o prejudicarem a seu bel-prazer, sem que lhe seja permitido qualquer controle.
1. Mostra-se violado o Art. 20.º da C.R.P., o qual impunha a interpretação que se propugna nas conclusões referidas no corpo desta.

Colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir.


II – Fundamentação

II.A. De Facto

II.A.1. Foram dados como provados pelas instâncias os seguintes factos:

1 – Foi apresentada à execução de que estes autos constituem um apenso pelo AA, SA, o documento de fls. 13 do processo executivo, denominado “livrança”, do qual resulta, além do mais, o seguinte:
– Importância – € 23.762,16;
– Local e data de Emissão – Porto – 2005/05/06;
– Vencimento – 2005/05/16;
– Subscritor – Modasport – Comércio, Representação, Importação e Exportação, Lda, com a aposição da assinatura de dois dos seus gerentes no local respectivo;
– Avalistas – No verso da livrança encontra-se apostas quatro assinaturas precedidas da frase “Por aval ao subscritor”, as quais, sem qualquer outra indicação, serão de atribuir aos executados CC; BB; DD e EE;
2 – Através do contrato de fls. 55 a 61, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, denominado “contrato de abertura de crédito – conta corrente”, na parte que releva para a decisão da causa, a exequente AA, SA, em 18 de Dezembro de 1996, celebrou com a executada Modasport – Comércio, Representação, Importação e Exportação, Lda., com o acordo dos avalistas supra referidos, “um contrato de abertura de crédito sob a forma de conta corrente, sujeito ao clausulado seguinte, que se obrigam mutuamente a respeitar e a cumprir”;
3 – De acordo com a cláusula 1ª do aludido contrato, “A presente abertura de crédito destina-se a apoio financeiro podendo ser utilizada até ao limite de Esc. 10.000.000$00 (Dez milhões de escudos)”;
4 – Por sua vez, na cláusula 2ª estabeleceu-se que “Este contrato é válido por um prazo de seis meses, a contar da data da assinatura do mesmo, sendo renovado automaticamente, por igual período de tempo, podendo o AA, aquando da prorrogação do contrato, exigir a redução do limite de crédito e/ou a alteração ou o cumprimento de quaisquer condições adicionais, nomeadamente as relativas à taxa de juro, mediante comunicação escrita, dirigida à beneficiária, com antecedência mínima de cinco dias, relativamente ao fim do prazo inicial ou de alguma das suas prorrogações, ficando essa comunicação a fazer parte integrante deste contrato para todos os efeitos legais”;
5 – Em conformidade com o disposto na cláusula 6ª do mesmo contrato, “O presente contrato poderá ser denunciado por qualquer das partes com antecedência mínima de 30 dias, relativamente ao fim do prazo inicial ou de alguma das suas prorrogações, através de carta registada com aviso de recepção”;
6 – De acordo com o estipulado na alínea b) da cláusula 15ª do aludido contrato, “O AA poderá dar o presente contrato e suas eventuais renovações imediatamente por resolvido, não tendo esta resolução qualquer efeito retroactivo, se: houver alteração na composição do Capital Social ou nos Órgãos Sociais da beneficiária”;
7 – Pela escritura pública constante do documento de fls. 25 a 29, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, outorgada no Cartório Notarial de S. João da Madeira em 29 de Maio de 2001, o executado/opoente, BBcedeu a sua quota no valor de quinhentos mil escudos que possuía na sociedade Modasport – Comércio, Representação, Importação e Exportação, Lda., ao executado, DD, renunciando ainda à gerência que vinha exercendo na referida sociedade;
8 – As referidas cessão de quota e renúncia às funções de gerência foram registadas na respectiva Conservatória do Registo Comercial em 13/07/2001;
9 – Em 20 de Julho de 2001, o executado/opoente, BB remeteu à exequente carta registada com aviso de recepção nos termos constantes de fls. 31 e 32, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, solicitando que “...o meu aval, bem como o da minha esposa, sejam retirados nas livranças da firma, MODASPORT – COM. REP. EXPORT. IMPORT, LTDA, em virtude de já não pertencer à mesma”, tendo essa carta sido recepcionada pelos serviços da exequente em 3 de Julho de 2001;
10 – A exequente remeteu ao executado/opoente, BB, as cartas de fls. 62 e 63, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, datadas de 13/04/2005 e 6/05/2005, respectivamente, comunicando-lhe a resolução do contrato e o preenchimento da livrança pelo valor de € 23.762,16.

II.B. De Direito

II.B.1. Como se sabe, o âmbito do objecto do recurso é definido pelas conclusões dos recorrentes (art.º 684.º. n.º 3, e 690.º, n.os 1 e 3, do CPC), importando ainda decidir as questões nela colocadas e bem assim, as que forem de conhecimento oficioso, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – art.º 660.º, n.º 2, também do CPC.

II.B.2. Suscita o recorrente as seguintes questões:
a) Viola o princípio da boa fé e o disposto no n.º 2 do artigo 762.º do Código Civil o prosseguimento das renovações do contrato sem informar o avalista de que não fora considerada a solicitada retirada do aval do opoente.
b) Viola os artigos 10.º e 17.º da LULL o entendimento de que o avalista não está em relação imediata com o beneficiário de uma livrança e que aquele não pode validamente, nos termos do contrato, denunciar o seu aval (para o futuro) através do meio usado.
c) A interpretação que denega a desvinculação do avalista ad nutum viola o comando do artigo 280.º, n.º 2 do Código Civil;
d) A interpretação feita pelo tribunal recorrido viola o artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil e a referida nas duas alíneas anteriores é, ainda, inconstitucional, por violação do comando do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

Colhidos os vistos, cabe apreciar e decidir.

II.B.3. O aval é uma garantia bancária que, embora com natureza jurídica semelhante à da fiança, não pode confundir-se com esta.

Ao aval somente são aplicáveis os princípios da fiança que não contradigam o seu carácter cambiário.

O aval é o acto pelo qual um terceiro ou um signatário da letra ou de uma livrança garante o seu pagamento por parte de um dos subscritores – art. 30.º da LULL.

A função do aval é uma função de garantia, inserida ao lado da obrigação de um certo subscritor cambiário, a cobri-la ou caucioná-la.

O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada – art. 32.º, n.º 1, da LULL.

O que significa, nas palavras de FERRER CORREIA, (Lições de Direito Comercial, Vol. III, Letra de Câmbio, Universidade de Coimbra, 1975, p. 215) “antes de tudo, que o avalista fica na situação de devedor cambiário perante aqueles subscritores em face dos quais o avalizado é responsável, e na mesma medida em que ele o seja”.

A responsabilidade do avalista não é, no entanto, subsidiária da do avalizado, posto que não goza aquele do benefício de excussão prévia, antes respondendo solidariamente com os demais subscritores, cf. art.º 47.º, § 1º, da LULL.

Além de não ser subsidiária, a obrigação do avalista, conforme assinala igualmente FERRER CORREIA, “não é, senão imperfeitamente, uma obrigação acessória relativamente à do avalizado. Trata-se de uma obrigação materialmente autónoma. Embora dependente da última quanto ao aspecto formal”.
Pois que se mantém, ainda que a obrigação garantida seja “nula por qualquer razão que não seja um vício de forma”, cf. citado art.º 32.º, § 2.º.
O qual “é… apenas aquele que prejudica a aparência formal do título…tem pois o título que exibir/apresentar uma certa configuração externa, ou seja «determinados requisitos formais indicados na lei para que o seu particular regime jurídico lhe seja aplicável»”(ob. cit. p. 23).

No mesmo sentido vai OLIVEIRA ASCENSÃO, (Direito Comercial, Vol. III, Títulos de Crédito, Lisboa, 1992, Ed. da FDL, p. 173) para quem “nem podemos dizer que o aval é uma fiança nem sequer, em rigor, que é uma garantia. No regime legal, funciona como uma obrigação autónoma”.

Tal significa que a medida da responsabilidade do avalista é a do avalizado.

Por isso, sendo o aval prestado a favor do subscritor, como é o caso, o acordo do preenchimento do título concluído entre este e o portador impõe--se ao avalista, para medir a sua responsabilidade (Ac. STJ de 11.2.03, proc. 02A4555 e Ac. STJ de 11.12.03, proc. 03A3529, ambos em www.dgsi.pt).

É indiferente que o avalista tenha dado ou não o seu consentimento ao preenchimento da livrança.

Com efeito, esse acordo apenas diz respeito ao portador da livrança e ao seu subscritor.

O avalista não é sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança.

O avalista é apenas sujeito da relação subjacente ou fundamental à obrigação cambiária do aval, relação essa constituída entre ele e o avalizado e que só é invocável no confronto entre ambos.

E o aval, como autêntico acto cambiário origina, como já deixámos dito, uma obrigação autónoma, que se mantém mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.

A livrança em branco, cuja admissibilidade resulta dos art.os 10.º e 17.º, da LULL destina-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior, sendo a sua entrega acompanhada de poderes para o seu preenchimento de acordo com o denominado «pacto ou acordo de preenchimento».

O contrato de preenchimento é o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, o lugar do pagamento, a estipulação dos juros, etc. (ABEL DELGADO, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, 3.ª ed., Atlântida Editora, Coimbra, p. 58).

No caso vertente, conforme se mostra da declaração constante da parte final do contrato de abertura de crédito-conta corrente (cf. fotocópia constante de fls. 54 a 61) o executado, ora opoente, por ter sido interveniente no referido contrato de abertura de crédito-conta corrente, de onde resulta o pacto de preenchimento da livrança e, por a livrança não ter sido ainda transmitida, pode invocar as excepções pessoais decorrentes da violação do pacto de preenchimento.

Acontece que o opoente não alegou nem provou que houvesse violação do pacto de preenchimento.

E cabe referir que, no caso em apreço, o aval foi validamente prestado pelo recorrido e não é nulo por indeterminabilidade do seu objecto e do seu limite temporal.

O artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil considera nulo o negócio cujo objecto seja indeterminável.

Quer isto dizer que o objecto do negócio pode ser indeterminado – o que não pode ser é indeterminável.

E como explicita MENEZES CORDEIRO, (“Impugnação Pauliana – Fiança de Conteúdo Indeterminável”, CJ, Ano XVII, Tomo III, p. 61). “a prestação é indeterminada mas determinável quando não se saiba, num momento anterior, qual o seu teor, mas, não obstante, exista um critério para proceder à determinação”. Pelo contrário, “a prestação é indeterminada e indeterminável quando não exista qualquer critério para proceder à determinação.

Neste último caso, a obrigação é nula”.

Logo, “[a]penas se consideram nulos os negócios jurídicos de objecto indeterminável, mas não os de objecto indeterminado. São de objecto indeterminado, por exemplo, as obrigações genéricas ou alternativas. As obrigações podem também ser ilíquidas, ou encontrar-se a determinação do seu objecto na dependência duma condição” (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, citado, vol. II, p. 258).

No caso em apreço, não obstante o montante da obrigação e a data do seu eventual vencimento não estivessem determinadas à data em que o ora recorrido deu o seu aval, a obrigação era determinável, nos termos do acordo de preenchimento.

E assim não ocorre qualquer violação do disposto no artigo 280.º, do C. Civil.

E assim, o exequente é um portador legítimo do título dado à execução, cujo pagamento o recorrido pessoalmente garantiu através do aval (arts. 30.º da L.U.).

Por isso, e como já decidiu o Supremo Tribunal de Justiça nos acórdãos de 11 de Dezembro de 2003, in www.dgsi.pt e de 11.09.2007, in CJSTJ, Ano XV, Tomo III, pp. 46 a 49, é indiferente que o aval garanta obrigação de sociedade comercial de que o avalista era sócio: sendo o património do avalista que, em última análise, suporta a garantia concedida, o facto de ter cedido a sua quota e renunciado à gerência na sociedade avalizada não o isenta de responsabilidade.

Centremo-nos sobre os efeitos derivados do facto de o avalista ter deixado de ser sócio e renunciado à gerência da sociedade avalizada e ter comunicado tais factos à ora recorrente antes da apresentação do título a pagamento, pedindo que fossem retirados da livrança o seu aval e o da sua mulher (no caso inexistente).

Disse-se no acórdão da Relação que:

“Para que tal factualidade pudesse ser relevante era necessário que no pacto de preenchimento tivesse ficado explicitamente estipulado que o aval prestado pelo recorrido deixaria de subsistir se e quando ele deixasse de ser sócio da subscritora/avalizada.
Tal, porém, não aconteceu. E as estipulações respeitantes à prestação do aval constam da cláusula 9ª do contrato de abertura de crédito-conta corrente que inclui o acordo do preenchimento da livrança.
E atendendo à natureza e características do aval a comunicação efectuada pelo recorrido e que consta do n.º 9 dos factos provados não podia interpretar-se como pedido de «denúncia» do contrato de abertura de crédito-conta corrente, a qual só poderia validamente ser exercida pelas ora recorrente e sociedade subscritora da livrança, porquanto não obstante a sua intervenção no contrato de abertura de crédito (que incluía o acordo de preenchimento) o aval como autêntico acto cambiário origina uma obrigação autónoma, como já acima referimos”.

Não podemos subscrever este entendimento. Com efeito, não há que fazer qualquer confusão entre a denúncia do contrato de abertura de crédito e a denúncia da obrigação de aval.

Do primeiro não são os avalistas partes e não podem, por isso, fazer uso da faculdade de denúncia prevista na respectiva cláusula 6.ª

Já quanto ao aval não podemos recorrer às regras do contrato de abertura de crédito mas às regras aplicáveis às obrigações em geral e às do contrato de fiança que não contradigam o seu carácter cambiário.

Uma das causas de extinção do negócio jurídico é a denúncia do contrato que, como a resolução, é unilateral, mas, ao contrário desta, não se baseia em fundamento algum, sendo de exercício livre. “O seu campo de aplicação é limitado aos contratos de execução continuada ou duradoura (fornecimento, sociedade ou mandato), em que as partes não estipulam prazo fixo de vigência. Como a vigência do contrato ilimitada no tempo seria contrária à liberdade económica das pessoas, que não se compadece com a criação de vínculos perpétuos ou de duração indefinida, admite-se neste caso a sua denúncia a todo o tempo.
A denúncia caracteriza-se ainda por ser não retroactiva, limitando-se a extinguir o contrato para o futuro sem permitir a restituição das prestações entretanto realizadas com base nele (MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. II, Almedina, Coimbra, 4.ª ed., pp. 105 e 106.)

Se é adquirido que o aval é irrevogável, não vemos razão para que se deva ter por igualmente não denunciável, quando se verifique uma situação como a acima referida.

A obrigação do aval constituiu-se com o preenchimento da livrança, decorrente do contrato de abertura de crédito.

Este, com um prazo inicial de 6 meses, foi sendo renovado por prazos idênticos e sucessivos, tendo sido renovado por 16 vezes.

É manifesto que escapa à previsibilidade do termo do contrato e do montante garantido, a prorrogação durante tanto tempo de um contrato de abertura de crédito, tanto mais quanto as condições negociadas, em termos de juros, se mostrariam adversas a tal número de renovações.

O que aponta para a denunciabilidade do aval.

Temos, pois, por correcta a posição assumida nos acórdãos da Relação de Porto de 02.04.98, no processo n.º 830121 e deste Tribunal de 08.07.2003, processo n.º 03B2060, em que foi relator o Desembargador/Conselheiro Oliveira Barros, ambos constantes de www.dgsi.pt.

No sumário do primeiro acórdão citado, afirma-se:

“I Tendo o avalista remetido uma carta à entidade bancária na qual declara que se desvincula, a partir dessa data, de qualquer aval ou responsabilidade pelo pagamento de remessas, exportações e transacções comerciais efectuadas pela subscritora da livrança, esse acto unilateral tem plena eficácia.
II Tal declaração constitui uma lícita e legítima denúncia do vínculo obrigacional, pois é contrário à ordem pública que alguém se vincule indefinidamente por um contrato obrigacional.
III Os contratos sem prazo de duração que criem vínculos obrigacionais são livremente denunciáveis, pelo que devem ser julgados procedentes os embargos de executado deduzidos pelo denunciante em relação a importâncias pedidas com base em tal vínculo.”

E no segundo acórdão diz-se, em defesa da referida tese:

“No que ao tempo se refere, é, no entanto, de considerar, na realidade, inadmissível uma sujeição ao predito acordo ou convénio desprovida de limite no tempo – isto é, por assim dizer, ad aeternum.
Tem, por isso mesmo, de aceitar-se a possibilidade de válida desvinculação discricionária, ad nutum ou ad libitum, mediante denúncia do mesmo ().
Tal assim, pois, sem necessidade, sequer, de invocação de fundamento ou justa causa.”

E, em nota de rodapé, invoca-se a doutrina que sustenta tal entendimento:

“Violenta, contrária à vontade presumível das partes, e, sobretudo, contrária à ordem pública uma vinculação de duração indefinida tendencialmente perpétua , é inerente às relações jurídicas de duração indefinida (sem prazo de duração) a faculdade de pôr-lhes termo mediante denúncia. Constitui, assim, princípio geral de direito, só derrogável por expressa disposição legal, a livre denunciabilidade dos contratos por tempo indeterminado. V., a este respeito, Antunes Varela, RLJ, 102.º/122 e nota 1, dizendo contrária aos bons costumes (v. artº. 280.º, n.º 2, C.Civ.) uma vinculação por tempo indefinido ou de carácter perpétuo; Vaz Serra, RLJ, 103.º/233, 2.ª col., Mota Pinto, "Teoria Geral do Direito Civil", 3.ª ed., 622-IV-623, Baptista Machado, "Obra Dispersa", I, 649 a 652 e 654, e, citando-os, Henrique Mesquita, RLJ 129.º/79 e 130.º/46 e 47, onde refere que a simples vontade (nuda voluntas) de denunciar é quanto em tal caso basta para pôr termo ao contrato, pois só assim se afasta o perigo de perpetuação do vínculo dele emergente a que, precisamente, obvia o princípio imperativo da denunciabilidade ad nutum dos vínculos obrigacionais sem prazo de duração.”

Bastando-se a denúncia, neste caso, com a simples vontade, a comunicação à exequente da vontade e do pedido de serem retirados nas livranças da firma Modasport do seu aval e do da esposa, quando já tinham decorrido cerca de 4 anos e meio sobre a aposição do aval, releva independentemente do fundamento invocado.

Tendo a declaração de denúncia chegado ao poder do beneficiário, a declaração tornou-se eficaz (artigo 224.º, n.º 1, do Código Civil).

Não se afasta deste entendimento o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.02.2008, proferido no processo n.º 10143/2007-2, igualmente constante do sítio que temos vindo a citar.

Neste acórdão sustenta-se com apoio nos acórdãos deste Tribunal de 5.12.2006, (processo n.º 2522-0619) e de 06.03.2007, (processo. n.º 07A205) que o aval só se consolida no mundo dos negócios após o completo preenchimento do título em branco, momento em que se constitui como dívida cambiária perfeitamente determinada.

Antes disso (OLIVEIRA ASCENSÃO, obra citada, p. 118), não tem a letra em branco efeito como letra, como toda a letra incompleta.

Este entendimento também aplicável à livrança implica que a declaração de aval nela aposta não pode traduzir, por “articulação” com o acordo de preenchimento respectivo, um aval condicional.

“Apenas relativamente ao título cambiário válido, porque completo, e no confronto da sua estrita literalidade, se equacionando pois a questão da incondicionalidade dos negócios cambiários.”

Mais adiante, num desenvolvimento deste entendimento sobre o que se deve entender sobre a condicionabilidade das obrigações cambiárias, diz-se, no acórdão que temos vindo a citar, sobre a indefinição” dos acordos de preenchimento celebrados em relação ao prazo de validade das livranças, e da “indeterminabilidade” da “condição” relativa ao preenchimento daqueles títulos:

“Como, assim antecipando, se considerou já supra, (…), a sobredita indefinição apenas importaria a possibilidade de válida desvinculação discricionária, ad nutum ou ad libitum,() mediante denúncia do acordo de preenchimento, “por inadmissível uma sujeição ao predito acordo ou convénio desprovida de limite no tempo isto é, por assim dizer, ad aeternum.”.
Denúncia que, porém, não foi efectivada, até ao preenchimento do título, sendo que, como visto, apenas valeria in futurum.
E com tal preenchimento cessou a situação de indefinição relativa à vinculação do avalista.”

Resulta clara desta transcrição a aceitação da denúncia do aval, até ao momento do preenchimento do título.

Não sendo abundante, a jurisprudência citada e a doutrina em que se apoia, convencem-nos da bondade deste entendimento.

O que basta para se concluir pela procedência da fundamentação da oposição e do recurso, sem necessidade de apreciar as demais questões que resultam prejudicadas.

III. Termos em que se acorda em conceder a revista, revogando-se a decisão recorrida.

Custas pela exequente.

Lisboa, 02 de Dezembro de 2008
Paulo Sá (Relator)
Mário Cruz
Garcia Calejo