Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B3010
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: SEGURO AUTOMÓVEL
RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
GABINETE PORTUGUÊS DA CARTA VERDE
SOLIDARIEDADE
Nº do Documento: SJ200312180030102
Data do Acordão: 12/18/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 2876/02
Data: 03/13/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. O seguro de responsabilidade civil automóvel celebrado em Espanha, um estado membro da CE, produz efeitos no nosso País, como se aqui tivesse sido emitida a respectiva apólice (art. 20º/8 do Dec-Lei 522/85, de 31/12).
2. Relativamente a sinistros ocorridos em Portugal, compete ao Gabinete Português de Certificado Internacional de Seguro (G.P.C.V.), como gabinete gestor, a satisfação das indemnizações devidas, nos termos legais e regulamentares do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aos lesados por acidentes ocorridos em Portugal causados por veículos matriculados noutros Estados membros da CE.
3. A acção em que seja pedida indemnização por danos decorrentes de acidente de viação, ocorrido em Portugal, causado por veículo automóvel matriculado num Estado membro da União Europeia deve ser dirigida, em princípio, contra o Gabinete Português de Carta Verde; mas pode ser intentada contra o segurado ou o segurador (como directamente responsável pelos danos causados).
4. E se o segurador tiver correspondente em Portugal, também este pode ser demandado, de acordo com o n.º 3 do Despacho Normativo n.º 20/78, de 24/1.
5. O correspondente não é um mero intermediário ou auxiliar do segurador ou do Gabinete Gestor, mas verdadeiro responsável pelo pagamento da indemnização aos lesados, sem prejuízo do direito a subsequente reembolso do que pagar, judicial ou extrajudicialmente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.
"A" e mulher B intentaram, no Tribunal Judicial de Vila Viçosa, contra C (que na p.i. identificaram como C - Gabinete de Gestão e Regularização de Sinistros), como representante da Seguradora espanhola D, sediada em Barcelona, a presente acção com processo ordinário, em que pedem que a demandada C seja condenada a pagar-lhes a quantia de 46.862.302$00, que, por si e como sucessores de seu filho E reclamam, como indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência de acidente de viação - choque frontal de veículos - ocorrido em 17.12.96, ao Km 154 da E.N. n.º 4, devido a culpa exclusiva do condutor de um veículo automóvel segurado na representada da ré, do qual resultou a morte do filho dos autores, que conduzia o outro veículo automóvel interveniente no acidente.

A ré contestou, deduzindo defesa por excepção e por impugnação.
Por excepção, arguiu, além da prescrição do direito dos autores, a sua própria ilegitimidade, sustentando, a este respeito, não ser a legal representante dos interesses da seguradora espanhola no nosso País, mas tão só uma sociedade de regulação de sinistros, com sede em Barcelona e sucursal em Portugal, que age apenas até à fase judicial em representação daquela e em regime de mera prestação de serviços, competindo ao Gabinete Português de Certificado Internacional de Seguros a representação em juízo e a satisfação das indemnizações devidas pelos acidentes causados por veículos matriculados noutros Países da União Europeia, conforme o disposto no art. 2º do Dec-lei 122-A/86, de 30 de Maio.
Por impugnação, alegou que o acidente ficou a dever-se a culpa exclusiva do filho dos autores.

Replicaram os autores, defendendo a inverificação das arguidas excepções.

No saneador, a Ex.ma Juíza comarcã, além do mais, julgou improcedentes as invocadas excepções.
A ré C agravou desta decisão, na parte respeitante à excepção de ilegitimidade, tendo o recurso sido recebido para subir em diferido, com o primeiro que, depois dele, tivesse subida imediata.

Seguiu, depois, o processo a sua normal tramitação, realizando-se a audiência de discussão e julgamento, com sequente prolação da sentença, na qual o Ex.mo Juiz do Círculo de Évora, julgando parcialmente procedente a acção, condenou a ré C a pagar aos autores a quantia de 13.835.500$00.

Da sentença apelou a ré.
Sem êxito, porém, pois a Relação de Évora, conhecendo não só deste recurso, mas também do de agravo do saneador, que com ele subiu, negou provimento ao agravo e julgou improcedente a apelação, confirmando ambas as decisões recorridas.

Recorre, de novo, a ré - agora de revista para este Supremo Tribunal.
E, no remate da sua alegação recursiva, formula conclusões que, no que interessa, se podem assim sintetizar:
1ª - A condenação da recorrente resulta de erróneo entendimento do art. 3º do Despacho Normativo 20/78, de 24 de Outubro, bem como do Dec-lei 122-A/86, de 30 de Maio.
2ª - O acórdão recorrido considerou que a correspondente em Portugal só pode ser demandada em acção de indemnização por acidente de viação aqui ocorrido, em representação da seguradora, se a sua obrigação de indemnizar em substituição desta resultar de disposição contratual ou imperativo legal, e entendeu que se verifica, in casu, este condicionalismo.
3ª - Mas não existe qualquer contrato escrito, que defina as relações entre correspondente e correspondido; as nomeações dos correspondentes são feitas por cartas onde o Gabinete Gestor se limita a aceitar, como representante de uma determinada seguradora estrangeira, o correspondente que ela lhe indica, e as suas competências encontram-se expressas no art. 9º, al. c) da Convenção Inter-Gabinetes: regularizar e gerir o sinistro tendo em conta qualquer orientação que lhes seja fornecida pelo Gabinete Gestor.
4ª - A"regularização e gestão" do sinistro nunca pode significar que o correspondente fica obrigado, a se, a pagar a indemnização aos lesados que o demandem, pois que tal significaria alargar o âmbito da legitimidade passiva nos casos de acidentes de viação que envolvem veículos matriculados nos países que aderiram ao sistema da Carta Verde.
5ª - Ora, a correspondente não pode estar em juízo porque, pura e simplesmente, não está mandatada para tal.
6ª - Esse mandato encontra-se, por lei, na esfera de actuação do Gabinete Português de Certificado Internacional de Seguro, vulgo Gabinete Português da Carta Verde, a quem cabe a satisfação das indemnizações devidas aos veículos matriculados noutros Estados da UE - art. 2º do Dec-lei 122-A/86, de 30/5.
7ª - É, pois, taxativo este art. 2º, quando atribui a legitimidade (passiva, no caso em apreço) para representar em juízo as seguradoras estrangeiras ao Gabinete Português da Carta Verde, não podendo, de todo, esta legitimidade ser derrogada nem alargada a qualquer outra pessoa jurídica, seja a seguradora estrangeira seja o seu correspondente em Portugal.
8ª - Desta forma, só o Gabinete pode representar judicialmente as seguradoras estrangeiras em território nacional, sendo condenado nas respectivas indemnizações - e não as correspondentes daquelas.
9ª - O Tribunal a quo desvirtuou a intenção que presidiu à criação do sistema de Carta Verde, que foi a de facilitar a resolução dos litígios decorrentes de sinistros ocorridos com veículos matriculados em países diferentes do de origem e aderentes ao sistema internacional de seguros.

Os recorridos apresentaram contra-alegações, pugnando por que seja negada a revista.

Foram corridos os vistos legais, cumprindo agora decidir.
2.
No plano da facticidade relevante, a Relação louvou-se na matéria de facto apurada em 1ª instância, para a qual, na falta de impugnação ou alteração, também aqui se remete, nos termos do n.º 6 do art. 713º do CPC (aqui aplicável ex vi do art. 726º), sem prejuízo das alusões que se revelarem pertinentes.
Com base nela, foi entendido, na sentença da 1ª instância, que o acidente de quo agitur ocorreu por culpa exclusiva do condutor da viatura segurada na D, tendo sido fixado em 13.835.500$00 o valor dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela vítima e pelos autores, que lhe sucedem.
Daí que nesse montante se tenha fixado a indemnização a estes devida, tendo-se igualmente decidido dever a ré por ele responder,"quer em face da resposta dada ao quesito 1º [A ré encontra-se designada como representante da seguradora Grupo D, em território português], quer ante o constante do n.º 3 do Despacho Normativo 20/78, de 24/1 (se a seguradora estrangeira tiver em Portugal um correspondente - tal qual ocorre no presente caso - o Gabinete Gestor abandonará a instrução do processo e a liquidação dos sinistros ao dito correspondente).
Este entendimento foi sufragado no acórdão da Relação, ora recorrido, que confirmou in integrum a decisão da 1ª instância.

Como facilmente se intui da leitura das conclusões acima exaradas, não vem questionado, no presente recurso, nem a responsabilidade na eclosão do sinistro, nem o valor dos danos indemnizáveis.
A ré C apenas sustenta que é parte ilegítima na acção - a legitimidade passiva é, no seu entender, do Gabinete Português da Carta Verde - e que não pode ser responsabilizada pela satisfação da indemnização devida aos autores, por nela não radicar a titularidade efectiva do objecto do processo.
Apreciemos, então, o mérito do recurso.

Da matéria de facto assente verifica-se ter ocorrido no nosso País um acidente de viação, com directa intervenção de dois veículos automóveis - um, o do filho dos autores, matriculado em Portugal, e o outro matriculado em Espanha e segurado em companhia de seguros desse país, que tem como correspondente em Portugal a ora recorrente.
Do acidente resultou a morte do filho dos autores, estando assente ter o sinistro ocorrido por culpa exclusiva do condutor do veículo espanhol.
Os autores intentaram acção de indemnização apenas contra a correspondente da seguradora deste veículo.
Não suscita dúvidas que o seguro celebrado na Espanha, um Estado membro da Comunidade Europeia, produz efeitos jurídicos no nosso País, como se aqui tivesse sido emitida a respectiva apólice - tal decorre directa e expressamente do disposto no n.º 8 do art.20º do Dec-lei 522/85, de 31 de Dezembro.
De acordo com o preceituado no art. 2º do Dec-lei 122-A/86, de 30 de Maio, relativamente a sinistros ocorridos em Portugal, compete ao Gabinete Português de Certificado Internacional de Seguro (Gabinete Português de Carta Verde) a satisfação das indemnizações devidas, nos termos legais e regulamentares do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aos lesados por acidentes causados por veículos matriculados noutros Estados membros da CE.
A conveniência reconhecida na celebração de acordos de texto uniforme acautelando devidamente os proprietários e condutores de veículos automóveis contra os riscos de responsabilidade civil para com terceiros quando viajam em países onde seja obrigatório o seguro de tais riscos esteve na origem da criação de uma Convenção-Tipo Intergabinetes, em cuja versão de 1989 (1) (de resto, idêntica, no essencial, às versões anteriores) aquele Gabinete, enquanto Gabinete Gestor, "tem a responsabilidade no seu próprio País, da gestão e regularização de um sinistro (...) nos termos da respectiva legislação nacional" [art. 3º, al. h)].
Sinistro significa o pedido ou pedidos"ao segurado ou o seu segurador, ou ao Gabinete Gestor, de reparação dos prejuízos resultantes de um acidente (...)" ocorrido em Portugal [art. 3º, al. f)].
A pedido do"gabinete emissor", que é o do País onde foi celebrado o seguro [art. 3º, al. i)], aquele"pode confiar a gestão e a regularização dos sinistros a um correspondente", o qual"fica responsável (...) pela gestão do sinistro tendo em atenção qualquer orientação, geral ou específica, recebida do Gabinete Gestor" [art. 9º, al. b)]; este, logo que"tenha regularizado um sinistro, terá direito (...) a ser reembolsado (...)" (art.11º).
Por outro lado, de acordo com o disposto no n.º 3 do Despacho Normativo n.º 20/78, de 24/1,"no caso de a companhia inscrita no gabinete emissor do certificado ter em Portugal um correspondente, ao abrigo do artigo 4º da Convenção-Tipo Intergabinetes, o Instituto Nacional de Seguros abandonará a instrução do processo e a liquidação dos sinistros ao referido correspondente".
Resulta do que vem de ser exposto que o correspondente de seguradora estrangeira não é um mero intermediário ou auxiliar dela ou do Gabinete Gestor, mas verdadeiro responsável pelo pagamento da indemnização aos lesados. É esse o significado das funções, que lhe cabem, de"regularização dos sinistros" - sem prejuízo, obviamente, do direito a ser reembolsado pelo que pagar, judicial ou extrajudicialmente - pelo que todos os interessados deverão encaminhar directamente todos os seus assuntos para esses correspondentes.
Importa, pois, concluir que a acção em que seja pedida indemnização por danos decorrentes de acidente de viação, ocorrido em Portugal, causado por veículo automóvel matriculado num Estado membro da União Europeia deve ser dirigida, em princípio, contra o Gabinete Português de Carta Verde (o Gabinete Gestor). Mas pode ser intentada contra o segurado ou o segurador (como directamente responsável pelos danos causados), como flui do citado art. 3º, al. f). E, tendo este último correspondente em Portugal, também este pode ser demandado, de acordo com o n.º 3 do citado Despacho Normativo. O correspondente tinha o dever de regularizar o sinistro, pagando a indemnização - e se o não fez voluntariamente, não se vê razão para que não possa ser compelido judicialmente a fazê-lo.
Foi este o sentido em que julgaram os acórdãos da Relação de Évora de 04.11.97 (2) e o deste Supremo Tribunal, de 08.04.94 (3).
E, por isso, não cabe, no caso em apreço, falar de ilegitimidade da recorrente, nem da falta de mandato para estar em juízo.
Ela é demandada porque, tendo o dever, decorrente do sua condição de correspondente da seguradora espanhola, de regularizar o sinistro, ou seja, pagar a indemnização devida aos lesados - com direito a subsequente reembolso - não o fez, forçando-os a recorrer à via judicial para serem ressarcidos dos danos sofridos. E, face ao que se apurou em sede de culpa na produção do acidente e no que concerne aos danos, não poderia a recorrente deixar de ser condenada, nos precisos termos em que o foi.
Não se mostram, pois, violados os normativos a que alude a recorrente.
3.
Nos termos expostos, nega-se a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 18 de Dezembro de 2003
Santos Bernardino
Bettencourt de Faria
Moitinho de Almeida
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(1) A Convenção-Tipo Intergabinetes actualmente em vigor - a que foi adoptada pelo Conselho de Gabinetes, que é a entidade gestora do Sistema de Carta Verde, na Assembleia Geral de 30 e 31 de Maio de 1996 - é fruto da revisão da versão de 1989, e só se aplica às reclamações respeitantes a acidentes ocorridos a partir de 01.07.97, não tendo, pois, aplicação ao acidente a que se reportam os autos, ocorrido em 17.12.96.
(2) Col. Jur. XXII, 5, 257.
(3) BMJ 434/559.