Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P4629
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARMANDO LEANDRO
Nº do Documento: SJ200302050046293
Data do Acordão: 02/05/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 6 V CR LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 72/01
Data: 10/22/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
Por douto acórdão da 6ª Vara Criminal de Lisboa o arguido A, solteiro, professor de musculação e segurança particular, nascido a 15/08/71, em Cabo, Recife, Brasil, de nacionalidade brasileira, filho de B, residente na rua Dr. Orlando, nº ...., Dom Helder Piedade, Pernambuco, Brasil,
que vinha acusado pelo Ministério Público, foi condenado na pena de nove anos de prisão pela prática, como autor material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22/01.
O referido aresto ordenou ainda a expulsão do arguido do território nacional, nos termos do art. 101º, nº 1, do DL nº 244/98, de 08/08/01, na redacção introduzida pelo DL nº 4/01, de 10/01, e art. 34º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22/01, pelo período de dez anos.
O arguido recorreu deste acórdão para o Tribunal da Relação do Porto que por douto acórdão revogou parcialmente aquela decisão na parte relativa à medida concreta da pena de prisão, que reduziu para sete anos.
Ainda inconformado, recorreu para o S.T.J., formulando na sua motivação as seguintes conclusões:
1- O arguido foi condenado em 1.ª Instância numa pena de 9 (nove) anos de prisão efectiva, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo n.º 1 do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
2- Inconformado com a decisão o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que concedeu parcialmente provimento ao recurso, alterando o quantitativo da medida da pena, condenando o arguido na pena de 7 (sete) anos de prisão efectiva.
3- Conforme resulta dos autos, bem como do acórdão recorrido, o arguido agiu como mero "correio", servindo de transportador de determinada encomenda, que lhe fora entregue no Brasil por um indivíduo de identidade desconhecida, e destinado a pessoa também não identificada, sem que o mesmo pudesse ou tivesse qualquer interferência quer na quantidade quer na natureza do conteúdo da encomenda, bem como do seu destino ou destinatários.
4- Contudo, do douto acórdão parece não ter sido totalmente tomado em consideração a posição de mero "correio", o que, a ser convenientemente apreciado, teria certamente contribuído para a diminuição da culpa e consequente diminuição da medida da pena a determinar.
5- Assim sendo, a culpa do recorrente deveria ter sido apreciada, em face da designação supra referida, o que, salvo melhor entendimento, diminuiria a pena a aplicar em concreto, a qual se demonstra proporcional e adequada, para um verdadeiro mandante traficante, o qual, tem plena consciência do acto que pratica, ao contrário do mero "correio" que apenas, "obedece" sem consciência do comportamento Ilícito que por vezes adopta, recebendo algum (pouco, aliás) dinheiro.
6- Mais acresce que, não foi tido em consideração, na determinação da medida da pena aplicada ao arguido, o facto do mesmo ser primário.
7- Face à pena aplicada, é nítida a violação do disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, em termos de culpa do arguido, a qual é diminuta, dada a falta de consciência do crime que, com a sua conduta, estava a cometer .
8- Assim, entende-se que a duração da pena de prisão imposta ao arguido deveria ser revista, face ao reduzido grau da sua culpa, e consequentemente diminuída, em consonância com os limites impostos quer pelo Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, quer pelos limites da determinação da medida da pena, constantes no n.º 1 do artigo 71° do Código Penal.
9 - Mais requer o ora recorrente, que lhe seja concedida dispensa total do pagamento de taxa de justiça e demais encargos.
Nestes termos e nos demais de direito, sempre com o douto suprimento de Vas Ex.as, deverá merecer provimento o presente Recurso, e em consequência ser revogado o acórdão recorrido, decidindo-se, em qualquer caso, pela diminuição da pena em que foi condenado o arguido ora recorrente.
Porém V. as Ex.as farão como sempre a habitual Justiça.
Respondeu o Exmo. Magistrado do Ministério Público, defendendo a manutenção do decidido, por entender que o factualismo provado infirma a invocação do recorrente de que «não teve a consciência do crime que com a sua conduta estava a cometer» e por considerar que a pena de sete anos de prisão se mostra ajustada, à luz da aplicação aos factos apurados dos critérios constantes do art. 71º do C.P.
Subidos os autos ao S.T.J., o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, quando da vista nos termos do art. 416º do C.P.P., pronunciou-se no sentido de nada obstar ao conhecimento do recurso.
Igual entendimento foi expresso no despacho preliminar, pelo que, após vistos, teve lugar a audiência, cumprindo agora decidir.
II
O douto acórdão recorrido manteve a seguinte decisão de facto da 1ª instância e respectiva fundamentação:
Os factos provados são os seguintes:
1. No dia 27 de Julho de 2001, pelas 11.H30, o arguido acabado de chegar ao Aeroporto de Lisboa, proveniente do Recife, Brasil, no voo TP 1535, com destino a Amesterdão, foi seleccionada para a Sala de Controlo de Passageiros e de Bagagens da Alfândega do Aeroporto.
2. Na revista a que foi sujeito foram encontrados ao arguido - no interior de duas mochilas de marca NIKE, que trazia dentro da mala de viagem que transportava, a qual tinha aposta a etiqueta com o nº. TP 396601, correspondente à aposta no bilhete de passageiro do arguido - num total de 24.264,656 gramas de cocaína.
3. O arguido trazia ainda consigo diversos documentos, incluindo passagens de avião, 800 dólares dos EUA e 16 reais do Banco Central do Brasil.
4. A cocaína fora-lhe entregue, no Brasil, por indivíduo de identidade desconhecida, e era destinada a pessoa também não identificada.
5. Os documentos e quantias monetárias apreendidas destinavam-se a ser utilizadas e eram fruto dessa actividade.
6. O arguido conhecia a natureza estupefaciente do produto, destinando-o a ser introduzido, para venda, no mercado.
7. Agiu de forma livre e consciente, bem sabendo a sua conduta era proibida por lei.
8. O arguido é de nacionalidade brasileira e não tem qualquer ligação a Portugal.
9. Vive com a mãe e um irmão.
10. Em casa arrendada por cerca de Es: 15.000$00
(quinze mil escudos).
11. Tem a 6ª. Série (Brasil).
12. Aufere mensalmente cerca de Esc: 30.000$00
(trinta mil escudos) - 150 Euros - no exercício da sua actividade profissional.
13. Agiu movido por dificuldades económicas.
14. Apresenta modesta condição social.
15. Sendo precária a sua situação económica.
16. Negou os factos que lhe são imputados.
17. Não tem antecedentes criminais.
Para além dos descritos não foram aduzidos outros factos com relevo e essenciais para a decisão da causa.
Motivação de facto (artigo 374º nº.2 do Código do Processo Penal):
Para formar a sua convicção e como consequência do princípio constitucional do contraditório, o Tribunal Colectivo fundamentou-se na prova produzida em audiência de julgamento e na constante dos autos indicada na acusação e que foi a seguinte:
1 - Prova produzida em audiência:
a) Nas declarações do arguido no tocante à condição de vida e situação económica;
b) Com a livre apreciação - artigo 127º do Código Processo Penal, no depoimento da testemunha, C, verificador auxiliar da Direcção-Geral das Alfândegas, em serviço no aeroporto de Lisboa, que ao fazer uma inspecção de rotina à bagagem do arguido, a qual se encontrava em trânsito, e através de raio x, detectou dois blocos grandes dentro da mala que correspondiam à cocaína apreendida e que deram origem aos presentes autos, tendo assim revelado conhecimento directo de factos e prestado o seu depoimento de forma correcta, isenta e convincente;
2 -Outra prova considerada na deliberação:
a) no Auto de Apreensão de folhas 14;
b) Nos documentos de folhas 15 a 17;
c) No auto do Exame e Avaliação de folhas 44;
d) No exame toxicológico do Laboratório de Polícia Científica de folhas 94 e 95;
3 -Nos termos do artigo 369º nº 1 do Código do Processo Penal, o Tribunal tomou ainda em consideração o teor do certificado do Registo Criminal do arguido junto a folhas 58.
III
Do texto do acórdão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, não resulta qualquer dos vícios ou nulidades previstas nos nºs 2 e 3 do art. 410º do C.P.P., pelo que se considera assente a decisão de facto.
IV
Conforme entendimento pacífico, as questões a decidir, salvo as de conhecimento oficioso, que no caso não se perfilam, são as que resultam das conclusões da motivação.
A única questão a apreciar é pois a seguinte:
A referida medida concreta da pena de sete anos de prisão é excessiva, por inadequada à medida da culpa do arguido, que é diminuta por força das circunstâncias, não tidas na devida conta pelo acórdão, de ter actuado como mero «correio», «sem consciência do crime que, com a sua conduta, estava a cometer», e de ser primário, devendo por isso ser reduzida?
Apreciemos.
Dos factos descritos como provados, nomeadamente sob os nºs 6 e 7, resulta claramente que o arguido conhecia a natureza do estupefaciente que voluntariamente transportava e que este se destinava à venda, actuando de forma livre e consciente e bem sabendo do carácter proibido da sua conduta.
O facto de apenas se ter provado que actuou como «correio» de forma alguma contraria essa conclusão.
Não resta pois qualquer dúvida de que o arguido actuou com dolo, incluído o seu momento «emocional» da consciência da ilicitude.
E dolo directo de forte intensidade, ainda que correspondente apenas à única modalidade provada da sua conduta (a de «correio») no quadro de uma actividade internacional de tráfico de droga.
O grau de ilicitude é elevado, considerando sobretudo a qualidade (cocaína) e a quantidade (24.264,656 gramas) de estupefaciente transportado, determinantes de um alto nível de perigosidade de ofensa da saúde pública, com as conhecidas graves consequências ao nível pessoal, familiar e societário.
Actuou com intuito de lucro, traduzido em remuneração inerente à sua provada conduta como «correio».
Militam a seu favor as circunstâncias de não ter antecedentes criminais, ter actuado movido por dificuldades económicas, encontrando-se em situação económica precária, e ser de modesta condição social.
Presente este circunstancialismo, a medida da redução da pena, de nove para sete anos de prisão, pelo acórdão do Tribunal da Relação, foi adequadamente fundamentada por esse douto aresto, à luz dos critérios e factores prescritos nos arts. 40º e 71º, ambos do C.P., não se justificando redução mais pronunciada. A decidida pena de sete anos de prisão não excede a medida correspondente ao limite inultrapassável da culpa, que se concluiu justificadamente revelar-se elevada, apesar de se ter provado apenas actuação como «correio». Por outro lado, apresenta-se como suficiente mas também necessária à satisfação das exigências concretas de prevenção geral positiva ou de integração, que são muito acentuadas porque, como é sabido, o tráfico de cocaína designadamente ao nível internacional, com a amplitude indiciada pelas avultadas quantidades transportadas pelo arguido, envolve graves perigos para diversos e muito relevantes valores individuais e comunitários consubstanciados na saúde pública. E corresponde também adequadamente às significativas - atento o significado da gravidade da conduta - necessidades de prevenção especial de socialização, consideradas dentro da «moldura da prevenção geral», com o mínimo correspondente à medida indispensável à satisfação das exigentes expectativas comunitárias de confiança nas normas violadas e o máximo traduzida no mais elevado grau dessa satisfação, dentro do referido limite em função do grau da culpa. Limites mínimo e máximo aqueles que é razoável considerar situarem-se respectivamente em seis e nove anos de prisão.
Improcede assim o fundamento do recurso.
V
Em conformidade, julgando-se improcedente o recurso, confirma-se o douto acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de Justiça em cinco UC. Atendendo porém ao apoio judiciário concedido, as custas só serão exigíveis se verificada alguma das hipóteses previstas no art. 54º, nº 1, do Decreto-Lei nº 327-B/87, de 29/12. Fixam-se em 5 Us os honorários à Exma. Defensora Oficiosa
Elaborado pelo relator e revisto.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2003.
Armando Leandro
Virgílio de Oliveira
Lourenço Martins
Flores Ribeiro