Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
045679
Nº Convencional: JSTJ00038637
Relator: SA NOGUEIRA
Descritores: EXCLUSÃO DA ILICITUDE
EXCESSO DE LEGÍTIMA DEFESA
DIREITO DE NECESSIDADE
ERRO SOBRE ELEMENTOS DE DIREITO
Nº do Documento: SJ199506080456793
Data do Acordão: 06/08/1995
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T J ESPINHO
Processo no Tribunal Recurso: 536/92
Data: 05/05/1993
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 31 ARTIGO 32 ARTIGO 33 ARTIGO 34.
CP95 ARTIGO 31 ARTIGO 32 ARTIGO 33 ARTIGO 34.
Sumário : I. Tendo o recorrente sido condenado por vários ilícitos penais e não se tendo feito indicação das várias penas aplicadas, mas tão só da respectiva pena unitária, estamos perante um erro cometido na 1 instância, perfeitamente passível de correcção no Supremo Tribunal de Justiça.
II. De acordo com o art. 32 do Código Penal, o excesso de legítima defesa corresponde a uma situação em que se têm de verificar os requisitos da legítima defesa, com excepção do da proporcionalidade dos meios empregues, relativamente à agressão iminente ou em vias de concretização, de natureza ilegal e não provocada pelo agente que a está a sofrer.
III. Para se poder verificar um direito de necessidade, exige a lei - art. 34 do Código Penal - que haja sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado e ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse ameaçado, para além de não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo no caso de protecção do interesse de terceiro, sendo que, para a determinação da superioridade do interesse sacrificador, o critério a adoptar não pode ser baseado exclusivamente na medida dos ilícitos cometidos pela vítima e pelo arguido, pois haverá sempre que atender às escalas de valores dos bens juridicamente protegidos estabelecida pela lei, e, dentro de cada escalão, no caso de crimes de natureza exclusivamente patrimonial, aos próprios valores dos prejuízos causados por cada uma das infracções em confronto.
IV. A ilicitude da agressão que a lei exige para que se possa verificar a legítima defesa engloba dois aspectos: a prática, por alguém, de um acto violador de interesses juridicamente protegidos de outrem e a não contribuição do defendente para o aparecimento daquele acto; por outro lado, a exigência, feita pela lei, de o meio empregue ser o necessário para repelir a agressão corresponde à aplicação do conceito de proporcionalidade que a doutrina sempre tem referido fazer parte do instituto da legítima defesa.
V. A fórmula agora utilizada quanto à legítima defesa difere, aparentemente, da que constava no Código anterior - arts. 31 e 32 - mas, na verdade, mais não é do que uma diferente e mais perfeita maneira de exprimir a mesma realidade.
VI. A diferença dos diversos institutos referidos, no campo da responsabilidade, traduz-se, no fundo, no seguinte: enquanto na legítima defesa e no direito de necessidade, o agente não é responsável, nem penal nem civilmente, ele tem responsabilidade civil mas não criminal nas situações de excesso de legítima defesa e de estado de necessidade, e tem responsabilidade criminal atenuada e responsabilidade civil quando actua em situação de excesso de legítima defesa.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2 Subsecção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

No processo comum 536/92, da 3 Secção de Espinho, os arguidos A, solteiro, ajudante de serrador, nascido em 5 de Maio de 1962, em Ovar, e residente em, Maceda, Ovar;
B, casado, serralheiro, nascido em 15 de Julho de 1946 em Espinho, e residente, Silvalde, Espinho,
foram acusados:
- o A, da comissão de três crimes de introdução em lugar vedado ao público, do art. 177 do Código Penal, e de três crimes de furto qualificado, dos arts. 296 e 297 n. 2, c) e d), do mesmo diploma,
- e o B, da de um crime de ofensas corporais, do art. 143, alíneas b) e c), e de um crime de detenção de arma proibida, do art. 260, todos daquele código.
A final, o A. veio a ser condenado pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público (art. 177) e de um crime de furto qualificado (art. 297 n. s 1 e 2, alínea c), ), nas penas parcelares de 40 dias de prisão, substituída por multa a 300 escudos diários, ou, em alternativa, 26 dias de prisão, e de 1 ano de prisão, e o B veio a sê-lo pela de um crime de ofensas corporais negligentes (por aplicação das regras do excesso de legítima defesa), e de um crime de detenção de arma proibida, nas penas parcelares de 6 meses de prisão, substituída por multa a 600 escudos diários, e em 50 dias de multa à mesma taxa, ou, em alternativa, 153 dias de prisão, e em 120 dias de multa, a 600 escudos diários, ou, em alternativa, 80 dias de prisão.
Não foram fixadas quaisquer penas unitárias, e, com a indicação de referência à Lei 23/91, foram declaradas perdoadas as penas parcelares de 40 dias de multa, de 1 ano de prisão, de 6 meses de prisão substituída por multa, e metade das multas de 50 dias e de 120 dias, com o que se concluiu pela subsistência, para cumprimento, apenas, da pena renascente de 85 dias de prisão, substituída por multa a 600 escudos diários, ou, em alternativa, 56 dias de prisão, imposta ao arguido B.
O mesmo arguido B foi, ainda, condenado no pagamento da indemnização cível de 300000 escudos ao co-arguido A, e das despesas hospitalares de 14200 escudos ao Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia.
Foi julgado improcedente o pedido cível que havia sido deduzido pelo referido arguido B contra o arguido A.
O mesmo arguido B, inconformado, recorre para este Supremo Tribunal, a sustentar que se não verificou excesso de legítima defesa mas sim defesa legítima, e que, por isso, deve ser absolvido, quer do crime, quer do pedido de indemnização formulado.
A Exma Delegada do Procurador da República, na sua contra-motivação, opinou pela improcedência do recurso.
Foram corridos os devidos vistos e procedeu-se ao julgamento com observância do adequado formalismo.
É a seguinte a matéria de facto que foi dada como definitivamente assente pelo acórdão recorrido:
1) Em 10-03-1990, pela 1 h., o arguido A, que havia procurado a noite para mais facilmente concretizar o seu desígnio, e que estava ciente de que agia contra a vontade do respectivo dono, introduziu-se no quintal anexo à residência do arguido B, em Silvalde, Espinho, onde trepou ao telhado de um anexo contíguo à casa deste último, pelo lado Norte, e, de um pombal pertencente ao dito B, retirou cinco pombos-correio, com o valor global de 50000 escudos, que fez seus.
Actuou deliberada, livre, e conscientemente, não obstante saber do carácter penalmente ilícito da sua conduta e que aqueles lhe não pertenciam e que agia contra a vontade e em prejuízo do respectivo dono.
2) O arguido B já havia sido, por duas vezes, em 3 e em 27-02-1990, vítima de assaltos no seu pombal (de onde tinham subtraídos, da primeira vez, 6 pombos-correio, no valor global de 60000 escudos, e um apito de chamar pombos, no valor de 5000 escudos, e, da segunda, 7 desses pombos, no valor de 70000 escudos), motivo pelo qual montou um alarme eléctrico que funcionava no caso de alguém abrir a porta do pombal.
Por isso, e quando, naquela noite de 10-03-1990, o arguido A se encontrava já na posse dos mencionados 5 pombos, mas ainda sobre o telhado anexo e junto ao pombal, apareceu o arguido B, que fora alertado pelo alarme, munido de uma arma caçadeira Gazelle-Saint-Etienne, de culatra móvel, sem carregador, de bala, com cano de 60 cm de comprimento, carregada com um cartucho (?) de chumbos.
O local não é iluminado.
O B percorreu o quintal e foi postar-se, pelo lado Nascente, que dava para um campo espaçoso e livre, a cerca de um metro do anexo, de modo que o A, ainda sobre o telhado, se apresentava ao dito B num plano superior, a cerca de 1,20 m de altura, e disse para o A "Está quieto, não te mexas", ao que o A respondeu "Se é pelos pombos, eu ponho os pombos", ao mesmo tempo que largou os dois que segurava nas mãos e que mantinha os outros três encobertos, junto ao peito, sob a roupa.
O B insistiu "Não te mexas, já chamei a guarda", e, simultaneamente, mantinha a caçadeira apontada, com a mão esquerda a segurar a base do cano e o indicador direito em contacto directo com o gatilho, e o A retorquiu-lhe "também tenho uma arma" e manteve-se de frente para o B.
Logo em seguida, o A, abaixou-se, no propósito de pegar num pau que estava sobre o telhado, para o usar de forma a tingir o B.
O B, com o fim de demover o A de tal propósito, continuou a segurar a arma como o estava a fazer, usou-a como se de um pau se tratasse, e deu, de imediato, uma forte pancada no A, no preciso momento em que este, agachado, ia pegar no pau.
O A, em acto instintivo, levantou o braço, pelo que a pancada violenta dada pelo B o atingiu no antebraço esquerdo e lhe fracturou o cúbito, na região inferior.
Na mesma altura, ou devido à violência da pancada, ou devido a uma instintiva pressão do gatilho, a arma disparou e o chumbo do cartucho (?) foi atingir o A na região cervical (triângulo infero-externo, do lado esquerdo, junto ao bordo anterior do esterno-cleido-mastoideu, a nível do terço inferior do respectivo músculo), e provocou no A uma ferida perfurante, com hemiparesia esquerda.
Ao cair sobre o telhado, o A sofreu, ainda, traumatismo do joelho esquerdo.
O A foi operado em 10-03-1990, às lesões cervicais, com laminectomia descompressiva de c5 e c4, e às lesões cubitais, com redução e ósteo-síntese com parafuso.
Sofreu limitação da abdução do ombro esquerdo a 90%, limitação da mobilidade do cotovelo a 120%, e parésia da mão esquerda.
Teve 670 dias de doença e incapacidade de trabalho, e ficou definitivamente com vestígios cicatriciais, ao nível da face externa do cúbito esquerdo, na zona cervical, e ao longo das espinhas vertebrais, com diminuição da força muscular no braço e punho esquerdos.
4) Ao desferir a pancada sobre o A, o B, quis ofendê-lo corporalmente, mas sem ter representado, sequer, a possibilidade de disparar sobre ele ou a possibilidade das consequências lesivas sofridas pelo mesmo.
O B, com a conduta descrita em relação ao A, agiu deliberada, livre, e conscientemente.
5) O B não tinha licença de uso e porte da arma atrás referida e não a tinha manifestada nem registada, no que agui deliberada, livre e conscientemente, e sabedor de que o acto era penalmente ilícito.
6) Os arguidos são de condição social humilde.
7) O A tem a 3ª classe da escolaridade, é solteiro, sem emprego, vive com a mãe, e é pobre.
Já sofreu uma condenação penal por porte ilícito de arma, e respondeu por crime de furto, sem se saber se foi ou não condenado.
8) O B não tem antecedentes criminais.
Como serralheiro, tem um ganho mensal de 80000 escudos, e explora, ainda, com a mulher, uma "venda".
Tem a 4ª classe de escolaridade, e tem a seu cargo duas filhas.
Goza de estima e consideração no meio social em que se encontra integrado.
Foram recuperados todos os pombos subtraídos pelo A.
E o colectivo considerou ainda como não provado que:
- tivesse sido o A o autor das subtracções de pombos e do apito ocorridas em 3 e em 27 de Fevereiro de 1990;
- o B tivesse disparado em direcção ao A ou tivesse pensado que este ia a fugir;
- o B tivesse representado e quisesse provocar no A a impossibilidade de utilização plena do corpo no trabalho diário ou doença particularmente dolorosa;
- quaisquer outros factos alegados ou invocados em audiência com eventual pertinência para a decisão da causa.
b) Como se referiu, o arguido B. defende, no seu recurso, que se não verificou excesso da legítima defesa mas sim defesa legítima, e que, por isso, deve ser absolvido, quer do crime, quer do pedido de indemnização formulado.
Passemos, por tal razão, a aplicar o direito aos factos.
Antes de mais, cumpre frisar que o acórdão recorrido não deu integral cumprimento aos comandos do Código do Processo Penal, e aplicou erradamente diversas disposições legais, visto que, contra o preceito expresso do art. 78 do Código Penal não procedeu à indicação das penas únicas (ou unitárias) em que os arguidos deveriam ser condenados, e que, em consequência disso, veio a aplicar o perdão da Lei 23/91, que obrigatoriamente incide sobre a pena unitária, sobre as penas parcelares que haviam sido encontradas, e que engloba também as penas aplicadas em alternativa de multa.
Para além disso, incorreu no vício da contradição absoluta entre os fundamentos e a decisão, na medida em que, depois de ter dado como provado que "Ao desferir a pancada sobre o A, o B quis ofendê-lo corporalmente, mas sem ter representado, sequer, a possibilidade de disparar sobre ele ou a possibilidade das consequências lesivas sofridas pelo mesmo. ", e que" o B com a conduta descrita em relação ao A, agiu deliberada, livre, e conscientemente.", veio concluir que o crime de ofensas corporais por ele praticado na pessoa do B tinha sido negligente (?), e isso porque procedeu a uma errada construção da figura do excesso de legítima defesa (art.33 do Código Penal), já que nesta, ao contrário do que foi decidido, o excesso da conduta do agente nunca é punido como se se tratasse de crime involuntário, mas como conduta voluntária, sujeita a uma especial atenuação.
Feitos os precedentes reparos, torna-se necessário determinar se a existência dos vícios apontados compromete o conhecimento do objecto do recurso ou se, pelo contrário, o conhecimento deste último pode conduzir à correcção dos primeiros.
Quanto aos indicados aspectos da falta de indicação das penas unitárias e da errada aplicação do perdão da Lei 23/91, dúvidas não podem existir de que se trata de erros de direito da decisão recorrida, perfeitamente passíveis de correcção por esta instância, pelo que a sua ocorrência não implica a anulação do julgamento.
No que se refere à apontada contradição, entende-se que a mesma não é enquadrável em qualquer dos vícios apontados no art. 410 do Código do Processo Penal, pois parece manifesto que tal contradição mais não corresponde do que a uma errada interpretação e aplicação da lei, uma vez que respeita exclusivamente a matéria de direito.
Tal contradição é, assim, susceptível de ser conhecida e rectificada por este Supremo Tribunal, em harmonia com o preceituado no art. 433 do mesmo Código.
Por isso, passa-se a proceder à apreciação do recurso.
O objecto do recurso é, como se referiu, a alteração da qualificação jurídica da conduta do arguido recorrente, com passagem da figura do excesso de legítima defesa para a da defesa legítima, em ordem a decretar-se a consequente absolvição daquele, relativamente à actuação de que foi vítima o arguido A..
De acordo com a lei (art. 32 do Código Penal) o excesso de legítima defesa corresponde a uma situação em que se têm de verificar os requisitos da legítima defesa, com a excepção do da proporcionalidade dos meios empregues, relativamente à agressão iminente ou em vias de concretização, de natureza ilegal e não provocada pelo agente, que a está a sofrer.
Isto é, a única diferença entre as duas figuras reside na utilização ou não de meios adequados para prevenir a mencionada agressão.
No caso dos autos, a decisão recorrida entendeu que a defesa da propriedade dos pombos não se coadunava com a violação da integridade física do violador de tal propriedade, nos moldes em que foi feita, e que, por isso se verificaria a apontada situação de excesso dos meios usados para acabar com a agressão.
Vejamos se tal posição se deve manter.
A construção tradicional do instituto da legítima defesa foi feita no sentido de que as ofensas á vida (consumadas ou tentadas) não poderão ser enquadradas nesse instituto quando a agressão que as mesmas se destinam a evitar tenha como objecto quaisquer valores diversos dos da própria vida do defendente, como os direitos patrimoniais, ou relativos à honra, ou, mesmo, a interesses imateriais, numa clara reminiscência das regras mesopotâmicas da "Lei de Talião".
Com a passagem dos anos, esta posição doutrinária veio, ainda que de modo não uniforme nem constante, a ter uma expressão mas mitigada, uma vez que se passou a admitir a possibilidade de violação do direito à vida em situações de defesa contra ataque nocturno (e/ou em lugar ermo) a bens simultaneamente patrimoniais e imateriais, como o domicílio do lesado, mas, em tais situações, a doutrina tendeu a proceder a uma distinção subtil: constituiria legítima defesa a violação da vida do assaltante se este já tivesse entrado, de noite e violentamente, na casa de habitação do lesado, mas já o não constituiria se esse mesmo assaltante se estivesse a preparar para entrar na casa mas ainda o não tivesse feito.
E isso seria assim, segundo essa posição doutrinária, porque, na última das indicadas situações, ainda se não estaria a verificar uma agressão actual ao domicílio do ofendido, agressão esta que só se concretizaria com a mencionada entrada na casa deste, contrariamente ao que sucederia na primeira.
Não nos parece, no entanto, que a indicada distinção tenha qualquer apoio legal, como se vai ver.
Se não oferece qualquer dúvida o conceito de que a vida é o bem supremo, para cuja defesa contra agressões injustas e admite racionalmente a violação de idêntico bem do agressor, também não suscita qualquer oposição o facto de que, numa situação de roubo (que é, tipicamente, um crime misto, contra as pessoas e contra a propriedade), se aceita como constitutiva de legítima defesa a violação do direito à vida do ofensor quando a conduta violenta deste tenha natureza ambígua, sem permitir destrinçar facilmente e no momento em que ocorre, se o seu propósito é unicamente de provocar uma lesão corporal ou o de poder chegar ao extremo de tirar a vida ao ofendido.
Precisamente por se ter reconhecido tal facto, veio o Código Penal (de 1983, tal como o de 1995) a consignar a ausência de culpa da correspondente conduta, quando estipulou no n. 1 do seu art. 35, a propósito do estado de necessidade desculpante:
Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não seja razoável exigir dele, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.
Previsão esta que nos surge imediatamente depois de o mesmo diploma ter estruturado, no art. 34, uma figura penal aparentemente nova, a do direito de necessidade, cujos requisitos são a existência de uma agressão ilícita, não provocada pelo ofendido, a superioridade do interesse atacado sobre o interesse sacrificado, e a razoabilidade da imposição desse sacrifício, face à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.
Ora, para se poder verificar um direito de necessidade, exige a lei (art. 34 do Código Penal) que haja sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado, e ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado, para além de não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo no caso de protecção do interesse de terceiro.
Para a determinação da superioridade do interesse sacrificador, o critério a adoptar não pode ser baseado exclusivamente na medida dos ilícitos cometidos pela vítima e pelo arguido, pois haverá sempre que atender às escalas de valores dos bens juridicamente protegidos estabelecida pela lei, e, dentro de cada escalão, no caso de crimes de natureza exclusivamente patrimonial, aos próprios valores dos prejuízos causados por cada uma das infracções em confronto.
Disse-se acima, ao falar do estado de necessidade desculpante, que essa figura seria aparentemente nova, mas, na realidade, não deve ser assim considerada, porque, na estruturação teórica dos diversos institutos de desculpabilização da conduta do agente, feita por este Supremo nos acórdãos proferidos nos procs. 41798, 43325, e 45928, de que foi relator o dos presentes autos, se chegou a uma conclusão um tanto diferente, como resulta da conjugação do que foi afirmado em tais decisões, como se vai ver:
O PROBLEMA DA LEGÍTIMA DEFESA E INSTITUTOS AFINS:
A legítima defesa é a figura de direito criminal que caracteriza os actos praticados por um agente como meio necessário para repelir uma agressão actual e ilícita de quaisquer interesses juridicamente protegidos do dito agente ou de terceiro (art. 32 do Código Penal).
Aquela ilicitude da agressão que a lei exige para que se possa verificar a legítima defesa engloba dois aspectos, conforme uma longa elaboração doutrinária e legal tem feito ressaltar: - a prática por alguém de um acto violador de interesses juridicamente protegidos de outrem, e a não contribuição do defendente para o aparecimento daquele acto.
E compreende-se que assim seja, porque, quando o defendente, pelo seu comportamento, dá origem àquela actuação violadora dos interesses juridicamente protegidos de alguém, esta última tem a susceptibilidade de funcionar como uma legítima defesa contra aquele comportamento, e porque não pode haver legítima defesa contra uma legítima defesa.
Por outro lado, a exigência, feita pela lei, de o meio empregue ser o necessário para repelir a agressão corresponde à aplicação do conceito de proporcionalidade que a doutrina sempre tem referido fazer parte do instituto da legítima defesa.
É que, expressa na linguagem vulgar, poderá dizer-se que a legítima defesa é a subtracção, do mundo do ilícito, da conduta de um agente que, dentro dos limites do razoável, vai ofender direitos de outrem, para evitar uma lesão maior ou, pelo menos, igual, que se encontra a ser feita por este último, seja quanto a interesses protegidos do agente, seja quanto a interesses protegidos de terceiro, lesão essa para a qual o agente de modo algum tenha contribuído.
Daí que se diga que a legítima defesa tenha de traduzir-se numa conduta não desproporcionada de reacção a uma lesão actual (isto é, em execução ou em começo de execução) dos interesses protegidos, e que tal lesão seja ilícita (ou seja, não justificada ou legitimada pelo direito).
É por isso que os arts. 31 e 32 do Código Penal afastam a ilicitude dos actos que, embora objectivamente sejam enquadráveis numa figura criminal, sejam praticados numa situação de legítima defesa, isto é, quando sejam cometidos como meio necessário para repelir uma agressão actual e ilícita de quaisquer interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.
A fórmula agora utilizada, aparentemente, difere da que constava do Código anterior, mas, na verdade, mais não é do que uma diferente e mais perfeita maneira de exprimir a mesma realidade.
Com efeito, o "meio necessário" corresponde, nos seus traços essenciais, aos anteriores requisitos da impossibilidade de recurso à força pública (que originava problemas de interpretação quando esta última se pudesse encontrar perto do local mas estivesse ou se mostrasse inoperacional ou inoperante ...), e da proporcionalidade do meio empregue.
E o requisito da "agressão actual e ilícita" é precisamente o mesmo que se encontrava consignado na lei anterior, como parece evidente (agressão já iniciada ou em vias de se iniciar, mas ainda não completada, e para a qual o agente não tivesse contribuído).
Mas a lei prevê ainda como realidades distintas, várias outras situações, directamente derivadas do antigo conceito de legítima defesa, e que se enquadram na realidade que antigamente era tratada unitariamente como pertencente à figura da legítima defesa (o direito de necessidade e o estado de necessidade desculpante, embora este último tenha como efeito, não a exclusão total da ilicitude, mas apenas a da culpa do agente), bem como uma outra que corresponderá a outra realidade mais ampla (o excesso da legítima defesa não punível, do art. 33, n. 2), derivada não só da anterior figura da legítima defesa como também da regulamentação da perturbação acidental do exercício das faculdades mentais do agente.
A diferença dos diversos institutos referidos, no campo da responsabilidade, traduz-se, no fundo, no seguinte: enquanto na legítima defesa e no direito de necessidade, o agente não é responsável, nem penal nem civilmente, ele tem responsabilidade civil mas não criminal nas situações de excesso de legítima defesa e de estado de necessidade, e tem responsabilidade criminal atenuada e responsabilidade civil quando actua em sitação de excesso de legítima defesa.
Em qualquer dos casos, no entanto, o que sucede é que, em virtude de a realidade actual corresponder à que existia na lei anterior, todo o trabalho doutrinário e jurisprudencial de elaboração do conceito em causa que havia sido feito a propósito do Código de 1886, pode e deve ser aproveitado para a determinação do âmbito de aplicação da figura à luz do Código actual.
Daí que haja necessidade de relembrar que, no campo da legítima defesa, se tivesse doutrinariamente considerado como igualmente existente uma outra realidade, classicamente chamada "legítima defesa putativa", que englobava os casos em que uma dada situação se configurava no espírito do agente, sem culpa sua, como de agressão ilícita, em vias de execução, contra a qual se apresentava uma determinada conduta como meio correcto, necessário, e suficiente, de a evitar ou de impedir a respectiva continuação, realidade essa que, presentemente, se encontra, nalguns aspectos, abrangida pela previsão do art. 35 do Código Penal (estado de necessidade desculpante) quando nele se prevê a conduta de quem pratica um acto ilícito adequado a afastar um perigo actual e não removível de outro modo, que ameace um determinado bem jurídico de natureza pessoal, se não for razoável exigir dele, segundo as circunstâncias do caso, um comportamento diferente, e que, noutros aspectos, se enquadra num conceito de excesso de legítima defesa não punível, como a seguir se verá.
Com efeito, mesmo que, porventura, ela extravasasse dos limites de uma defesa legítima, ou de um direito de necessidade, a conduta de um arguido, nas condições dos autos, poderia vir a cair nessa previsão do excesso de legítima defesa não punível, do art. 33 n. 2 do Código Penal (defesa com excesso dos meios empregues, mas em resultado de perturbação, medo ou susto não censuráveis), uma vez que, como se referiu, o condicionalismo em que decorreu a sua conduta e para o qual ele em nada havia contribuído, levaria qualquer homem normal a actuar da mesma forma que por ele foi adoptada.
No caso em apreço, e dado todo o circunstancialismo anterior, motivador de uma legítima reacção de defesa da sua propriedade, da parte do arguido, não se configura como razoável que ele, perante um assaltante do seu pombal que, em reacção a ser descoberto, se arma de um pau e o tenta agredir com este, e convencido, como estava, de que ia ser atacado fisicamente pela vítima, de noite e no quintal da sua casa pudesse ter um comportamento diverso daquele que teve.
É que, depois de o arguido ter aparecido com a arma na mão, em seguida a toda uma actuação injustificada e ilícita da vítima, esta última não se intimidou com a intervenção do primeiro e demonstrou querer avançar para aquele, em atitude de ameaça, o que, só por si, é uma conduta indicadora de que o aviso resultante da exibição da arma não teve qualquer efeito de travagem do crescendo de actuação ilícita que a aludida vítima se encontrava a demonstrar.
O acórdão recorrido enquadrou a actuação do arguido na figura do excesso de legítima defesa, como já foi referido, mas deve ser entendido que, atento o raciocínio expendido pelo acórdão recorrido, ela pareceria integrar-se mais correctamente num misto de legítima defesa e de estado de necessidade desculpante, ou, de acordo com uma outra visão dos factos, na figura do excesso de legítima defesa não punível, em consequência de perturbação e receio induzidos pela actuação da "vítima" (citados art. s 31, 32, 35 e 33 n. 2 do citado diploma), correspondentes, no seu conjunto, à clássica legítima defesa putativa já acima referida.
Nessa medida, só se os factos apurados neste processo fossem analisados unicamente à luz da gravidade da conduta da vítima e da aparente desproporção do meio utilizado pelo arguido (utilização de arma de fogo carregada, como pau, com produção de disparo acidental da mesma tiro mortal, contra ameaças de agressão corporal), se poderia ser levado a aceitar que teria havido, da parte do mesmo arguido, uma situação de excesso de legítima defesa, justificativa de uma condenação penal, mas com punição especialmente atenuada, de acordo com a parte final do art. 33 n. 1 daquele código, como foi feito pelo acórdão recorrido.
No caso concreto, porém, o meio empregue (uso de arma de fogo como varapau) mostra-se idóneo para fazer terminar a agressão patrimonial de que o arguido estava a ser vítima, tanto mais que, nas circunstâncias presentes de criminalidade violenta, e de noite, até se tem chegado a considerar como adequado o recurso ao disparo de uma arma desse tipo.
Resulta do exposto que, como já foi acima referido, o único problema que há que resolver é o da determinação correcta do instituto em que se insere a sua não punibilidade.
O recorrente encontrava-se acusado da comissão, entre outros, do crime de ofensas corporais voluntárias graves, do art. 143, al. b) e c), do Código Penal, mas a matéria provada e não provada que a esse respeito ficou provada e que a seguir se volta a transcrever, afasta por completo a possibilidade de lhe serem imputados a título de dolo eventual os ferimentos sofridos pelo A em resultado do disparo da espingarda,
Com efeito, a mesma matéria é, repete-se, a seguinte:
1) - Ao desferir a pancada sobre o A, o B quis ofendê-lo corporalmente, mas sem ter representado, sequer, a possibilidade de disparar sobre ele ou a possibilidade das consequências lesivas sofridas pelo mesmo.
2) - O B, com a conduta descrita em relação ao A, agiu deliberada, livre, e conscientemente.
3) - E o colectivo considerou ainda como não provado que:
a) - o B tivesse disparado em direcção ao A ou tivesse pensado que este ia a fugir;
b) - o B tivesse representado e quisesse provocar no A a impossibilidade de utilização plena do corpo no trabalho diário ou doença particularmente dolorosa.
Por esse motivo, a sua conduta, nesse aspecto, nem sequer poderá ser enquadrada na figura das ofensas corporais preterintencionais, do art. 145 n. 2 do Código Penal, para que seria lícita uma eventual convolação da acusação, e apenas se pode reconduzir à comissão teórica de um crime de ofensas corporais simples, relativamente ao qual a constituição da obrigação de indemnizar pelos ferimentos resultantes do disparo da arma, só poderia surgir ao abrigo das disposições reguladoras da responsabilidade pelo risco (em consequência da utilização de um meio perigoso, como o é uma arma de fogo carregada, empregue como se de um varapau se tratasse), e, mesmo assim, apenas se a sua conduta não pudesse ser enquadrada na figura de legítima defesa, uma vez que, como já foi frisado, se não pode falar em excesso desta última.
Na verdade,
Não pode deixar de se entender que o meio por ele utilizado (uso da arma de caça como pau) era idóneo para fazer terminar a agressão patrimonial nocturna de que estava a ser vítima, e que havia proporcionalidade entre o seu emprego e a lesão do bem jurídico que a conduta do A para si comportava, dado que tradicionalmente se tem entendido que uma pequena agressão corporal será sempre meio idóneo para fazer travar uma situação de efectivação em curso de um furto ou de um roubo, sobretudo quando este é praticado de noite.
Por esse motivo, reafirma-se, não se pode falar em excesso de legítima defesa, por as consequências mais danosas do que o normal que resultaram para o A não terem sido queridas nem previstas pelo arguido B, e tão somente é possível configurar-se a actuação do mesmo B como de legítima defesa contra a agressão patrimonial nocturna de que estava a ser alvo.
E, nessa medida, a sua responsabilidade criminal não existirá, por ter praticado um acto não punível, nos termos do art. 32 do Código Penal.
Simultaneamente, como também já foi anotado, e porque se não verificam as situações de excesso de legítima defesa ou de enquadramento da sua actuação na figura das ofensas corporais preterintencionais, a sua eventual responsabilização pelo pagamento de uma indemnização cível ao arguido A só poderia ter apoio por aplicação de um esquema de responsabilidade pelo risco, desencadeável nos termos do n. 2 do art. 82 do Código do Processo Penal (redacção do art. 17 do DL 423/91, de 30-10), mas tal não seria possível, por o desencadear de toda a situação por força da qual ele ficou ferido ter sido devido a culpa do próprio A.
A posição que foi assumida pelo acórdão, neste aspecto, parece resultar de uma errada visão da matéria, resultante de uma incorrecta leitura dos preceitos da lei civil (arts. 336 e seguintes do Código Civil) relativos à legítima defesa e ao excesso desta.
Nestes termos e dado o exposto, o recorrente terá de ser absolvido da comissão do crime de ofensas corporais, por ter sido praticado em legítima defesa, e da satisfação da indemnização ao co-arguido A, e da das despesas hospitalares ao Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia.
Procede assim, o recurso, pelo que o mesmo recorrente fica apenas condenado pela prática do uso de arma não legalizada, do art. 260 do Código Penal, na pena fixada pela primeira instância, que se reputa ajustada à gravidade da infracção e à sua personalidade.
Quanto ao aspecto, oportunamente frisado, de falta de efectivação do cúmulo jurídico das penas parcelares impostas ao arguido A, e uma vez que se trata unicamente de uma pena de multa e de uma pena de prisão, que se cumulam materialmente por serem de diferentes naturezas, cumpre apenas rectificar a falta e indicar que a pena do mesmo arguido é de 1 ano de prisão e 40 dias de multa a 300 escudos diários, ou, em alternativa desta, 26 dias de prisão.
Ao abrigo, porém, do preceituado nas Leis 23/91 e 15/94, declaram perdoadas todas as penas impostas aos arguidos (embora, quanto a metade das de multa, sob a forma condicional estipulada na última dessas leis de clemência).

Desta forma, dão provimento integral ao recurso e alteram o decidido pela maneira acabada de indicar.
Na primeira instância se procederá à aplicação da Lei 15/94.
Não há lugar a tributação, mas cada arguido satisfará os honorários dos seus Exmos Defensores oficiosos nomeados para a audiência, pelo mínimo da correspondente intervenção acidental.
Lisboa, 08 de Junho de 1995.
Sá Nogueira,
Sousa Guedes.