Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1514/12.5JAPRT.P1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: RAUL BORGES
Descritores: RECURSO PENAL
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL COLECTIVO
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL COLETIVO
ACORDÃO DA RELAÇÃO
PENA DE PRISÃO
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
DUPLA CONFORME
REJEIÇÃO DE RECURSO
CÚMULO JURÍDICO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO DE INFRAÇÕES
MEDIDA CONCRETA DA PENA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
EXEMPLOS-PADRÃO
UNIÃO DE FACTO
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
ILICITUDE
PLURIOCASIONALIDADE
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
Data do Acordão: 02/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Sumário :
I - Quando estamos perante uma confirmação total pelo Tribunal da Relação do acórdão proferido pela 1.ª instância - dupla conforme total - o STJ tem entendido que, à luz do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, são irrecorríveis as penas parcelares, ou únicas, aplicadas em medida igual ou inferior a 8 anos de prisão, restringindo a cognição do STJ às penas de prisão, parcelares e única, aplicadas em medida superior a 8 anos. Dado que o arguido foi condenado em 1.ª instância, a uma pena de 1 ano e 4 meses de prisão, pela prática do crime de detenção de arma proibida, condenação essa confirmada integralmente pelo Tribunal da Relação (mantendo-se exactamente a factualidade assente, a qualificação jurídico-criminal e a pena aplicada), o recurso quanto a este crime é inadmissível, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. f), e art. 432.º, n.º 1, al. b), ambos do CPP.

II - O princípio da dupla conforme é assegurado através da possibilidade de os sujeitos processuais fazerem reapreciar, em via de recurso, pela 2.ª instância, a precedente decisão. As garantias de defesa do arguido em processo penal não incluem o 3.º grau de jurisdição. Por a CRP no seu art. 32.º se bastar com um 2.º grau, já concretizado no presente processo. O TC tem vindo a afirmar que o direito ao recurso como garantia de defesa do arguido não impõe um duplo grau de recurso. Impõe-se apenas conhecer a qualificação jurídica e a dosimetria da pena, quer no que toca ao crime de homicídio qualificado, quer no que tange à pena conjunta.

III - O recorrente no presente recurso para o STJ, ressalvando um segmento, repete ipsis verbis, o alegado no anterior recurso, incluído o texto das conclusões. Sendo os argumentos agora utilizados, na sua quase totalidade, exactamente os mesmos que foram dirigidos ao acórdão da 1.ª instância, tal significa que, o recorrente não impugna o acórdão da Relação. Esquecendo-se que a decisão agora em reexame é esta e não a da 1.ª instância. A discordância nesta sede só fará sentido se dirigida à solução perfilhada pela Relação, com argumentos novos, dirigidos ao novo acórdão, com outros enquadramentos, explicitando razões jurídicas novas, dirigidas à nova decisão, agora recorrida, que infirmem os fundamentos nesta apresentados.

IV - Há uma corrente jurisprudencial que entende que um recurso interposto nestas condições é de rejeitar por manifesta improcedência – por falta de motivação. Acolhe-se, à semelhança de outra corrente jurisprudencial, orientação oposta, considerando que a repetição/renovação da motivação não dever ser equiparada à sua falta e não estar prevista a possibilidade de rejeição de recurso para os casos em que o recorrente se limita a repetir a argumentação já apresentada no recurso interposto para o Tribunal da Relação.

V - O homicídio qualificado não é mais que uma forma agravada do homicídio simples, p. e p. pelo art. 131.º do CP, que constituirá, pois, a matriz, o tipo base, fundamental. A aceitação de utilização de cláusulas gerais, de conceitos indeterminados, a não taxatividade das circunstâncias alinhados no n.º 2, a concepção de tipo com carácter aberto, em suma a compatibilidade do art. 132.º do CP com o princípio da legalidade/tipicidade e da possibilidade de analogia e interpretação declarativa tem suscitado dúvidas na Doutrina.

VI - É entendimento uniforme do STJ de uma interpretação do tipo do art. 132.º do CP, como sendo baseado estritamente na culpa mais grave, revelada pelo agente, tendo como fundamento o facto do agente revelar especial censurabilidade ou perversidade no seu comportamento e de que as circunstâncias previstas no n.º 2 do citado preceito, são meramente exemplificativas e não funcionam automaticamente.

VII - A relação conjugal e outras aparentadas, actualmente integram um novo exemplo típico na previsão da al. b) do n.º 2 do art. 132.º do CP (alínea aditada na alteração legislativa de Setembro de 2007 – Lei 59/2007, de 04-09). Esta alínea inclui entre os exemplos-regra, para além do conjugicídio, várias outras soluções, nomeadamente a união de facto, tratando-se de um novo padrão, indício, indicador de situação, que abstractamente poderá ser susceptível de indicar. Sugerir – e apenas isso – que a acção do agente atinge o grau (especial) de culpa revelador de especial censurabilidade ou perversidade.

VIII - O relacionamento do arguido com a vítima durante cerca de 3 anos como se casados fossem, e mantido até poucos dias antes (do homicídio), atendendo aos laços de afecto e da comunhão de vida, deveria ter funcionado como travão para a acção do arguido. A reacção do arguido é manifestamente desproporcional em relação à manifestação de vontade da vítima de não querer continuar com a relação amorosa. O arguido agiu com manifesta superioridade conferida pela posse de arma de fogo, sendo os tiros direccionados a zonas vitais (2º tiro atingiu-a na cabeça), a curta distância. Estas circunstâncias bastam para a acrescida censurabilidade e demonstrando comportamento altamente desvalioso, confirmando-se ter o arguido cometido o crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 132.º, n.º 2, al. b), do CP.

IX - Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente. São intensas as necessidades de prevenção geral. No caso presente é elevadíssimo o grau de ilicitude dos factos, atenta a gravidade das consequências da conduta do arguido, tirando a vida à ex-companheira. O recorrente actuou com surpresa, de forma súbita, utilizando arma de fogo, assim agindo com superioridade. Ao tirar a vida à vítima, de 48 anos, para além da perda da vida desta, e exactamente em resultado dessa definitiva privação de vida, o comportamento desviante do arguido conduziu à produção de efeitos colaterais – na vida do filho menor daquela, que ficou privado de sua mãe aos 16 anos.

X - Por último, ter-se-ão em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, fazendo-se a comparação do caso concreto com situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, sem se perder de vista a especificidade do caso sujeito. Afigura-se adequado manter a pena de 15 anos e 6 meses de prisão, aplicada na 1.ª instancia e mantida pelo Tribunal da Relação.

XI - No que concerne à determinação da pena única, deve ter-se em consideração a existência de um critério especial na determinação concreta da pena do concurso, segundo o qual serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que abriga a que o teor da sentença conste uma especial fundamentação da medida da pena do concurso. Estamos perante um quadro de 2 crimes cometidos com acentuada gravidade, na mesma ocasião, não se indiciando propensão ou inclinação criminosas. Afigura-se proporcional à dimensão do ilícito global a pena única de 16 anos, aplicada na 1.ª instancia e mantida pelo Tribunal da Relação.
Decisão Texto Integral:

      No âmbito do processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo n.º 1514/12.5JAPRT, da 1.ª Vara de Competência Mista de Vila Nova de Gaia, foi submetido a julgamento o arguido

     AA, nascido ..., preso preventivamente desde 4 de Setembro de 2012, no Estabelecimento Prisional do Porto - fls. 108, 757, 807, 880.

      Em despacho de pronúncia foi imputada ao arguido a prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas b), e), h) e j), do Código Penal e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 59/2007, de 4-09, n.º 17/2009, de 06-05, n.º 26/2010, de 30-08 e n.º 12/2011, de 27-04.

       Foi deduzido pedido de indemnização civil pelo assistente BB, pedindo a condenação do arguido a pagar-lhe a quantia de 120.000,00 €, acrescida de juros de mora.

      Por acórdão do Colectivo da 1.ª Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Gaia, datado de 31 de Outubro de 2013, constante de fls. 756 a 807, do 3.º volume, depositado no mesmo dia, conforme declaração de fls. 810, foi deliberado:

      Parte Criminal

      1 - Julgar a acusação parcialmente procedente e, consequentemente, condenar o arguido pela prática de:

1.1 - Um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alínea b), do Código Penal, na pena de 15 (quinze) anos e 6 (seis) meses de prisão. *

1.2 - Um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, por referência ao artigo 3.º n.º 5, alínea c), do mesmo diploma, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.

2 – Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 16 (dezasseis) anos de prisão.

      Parte Cível

     3 - Julgar o pedido de indemnização civil parcialmente procedente, e condenar o arguido/demandado a pagar ao demandante a quantia de 75.000,00 €, acrescida de juros de mora a contar da notificação do pedido de indemnização.

      * NOTA

      No dispositivo, alínea A), a fls. 805, consta a condenação do arguido na pena de 15 anos e 6 meses de prisão “pela prática como autor material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo artigo 22.º, 23.º, 72.º, 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, alínea b) do Código Penal”.

    Ora, não está em causa a punição por tentativa, como facilmente se retira do contexto do próprio acórdão, no início do relatório, a fls. 757, referindo a pronúncia sem dúvida a prática de homicídio qualificado consumado, embora com mais qualificativas, e a fls. 792, quando a terminar a subsunção relativa ao homicídio qualificado e depois de afastar as qualificativas das alíneas e), h) e j), de págs. 789 a 792, refere o acórdão que “Deste modo, o arguido deverá ser condenado [por] um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alínea b), do Código Penal”.

     O recorrente na motivação reproduz o que consta do dispositivo, com referência aos artigos 22.º, 23.º e 72.º, a fls. 848, e depois, de forma correcta a fls. 934, e de igual modo o Ministério Público na Comarca refere a incriminação que consta do dispositivo – resposta de fls. 886 – e de igual forma o Ministério Público no Tribunal da Relação do Porto, a fls. 930.

      O caso foi solucionado no acórdão recorrido, na nota de rodapé a fls. 954, onde ao abrigo do disposto no artigo 380.º, n.º 2, do CPP, se procedeu à correcção, no sentido de se ter por não escritas as referências aos artigos 22.º, 23.º e 72.º do Código Penal, por tais normas nada terem a ver com o caso.

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    Inconformado com tal deliberação judicial, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, a fls. 813 e em original a fls. 847, argumentando conforme fls. 814 a 845, e em original, de fls.848 a 879.

     O recurso, limitado à parte criminal, foi admitido por despacho de fls. 880.

     O Ministério Público respondeu, conforme fls. 886 a 893, pugnando pela respectiva improcedência.

     O assistente BB respondeu como consta de fls. 901 a 906, defendendo igualmente a confirmação do acórdão recorrido.

 

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     Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 21 de Maio de 2014, constante de fls. 954 a 981, foi deliberado negar provimento ao recurso, confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.

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     O arguido interpôs recurso para este Supremo Tribunal, produzindo a motivação de fls. 989 a 1003, com texto incompleto, fls. 1005 a 1027 e original, de fls. 1029 a 1051, rematando com as seguintes conclusões (transcritas na íntegra, incluídos realces):

                                                                   I

1. Errada qualificação jurídica dos factos dados como provados.

2. Os factos dados como provados integram a previsão de homicídio simples p. e p. no artº 131º do C.P. e apenas este e não o de homicídio qualificado plasmado no artº 132°, nº 2 alínea b) do C.P., com evidente e manifesta implicação na medida da pena.

3. Vem a doutrina entendendo, que os exemplos-padrão prendem-se essencialmente com a questão da culpa, mais do que com a ilicitude, pois ainda que se refiram a um maior desvalor da conduta (por exemplo, o homicídio cometido na pessoa do pai ou do filho), não é essa circunstância, por si, que determina a qualificação do crime, antes a especial censurabilidade ou perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa.

4. “A qualificação do crime de homicídio qualificado não é consequência irrevogável da existência de qualquer das circunstâncias constantes do nº 2 do artigo 132º do C.P. Essencial, é que, as circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade distintas (pela sua anormal gravidade) daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio simples”.

 5. E, não é pelo facto de se verificar em concreto uma qualquer das circunstâncias referidas nos exemplos-padrão ou noutras substancialmente análogas que fica preenchido o tipo, deduzindo-se daquelas a especial censurabilidade ou perversidade; é preciso que, autonomamente, o intérprete se certifique de que, da ocorrência de qualquer daquelas circunstâncias resultou em concreto a especial censurabilidade ou perversidade.

6. Contudo, torna-se necessário verificar se, em concreto, se pode concluir pela existência do maior grau de culpa em que assenta o tipo qualificado.

7. Cremos que não se deu como provada, in caso, a especial censurabilidade e; perversidade exigida pela norma.           

8. Não se provou qualquer circunstância que, no caso, revelasse a especial censurabilidade e perversidade necessária para a qualificação do tipo simples do crime de homicídio.

9. O simples facto de arguido e vítima serem ex cônjuges não pode, per si, constituir consequência necessária e direta daquelas especiais censurabilidade e perversidade ensinamento, apoiado pela vasta jurisprudência referida supra, como o foi no douto acórdão!

10. Assim, o recorrente teria de ser condenado pela prática do crime homicídio simples, p. e p. pelo artº 131º, com pena de prisão aplicável de 8 a 16 anos.

11. E, assim sendo, é nosso entendimento que a pena se deve situar no seu mínimo legal, ou seja, nos oito (8) anos de prisão, atendendo o plasmado nos artº 40.° e 71.° do  Código Penal.

Sem prescindir,

                                                                  II.

12. Deficiente fixação da medida concreta da pena aplicada pela prática dos crimes de homicídio qualificado e detenção de arma proibida pelo que veio a ser condenado.

13. Entendemos que no douto acórdão de que se recorre não foram suficiente e corretamente valoradas todas as circunstâncias previstas no artº 71º, do CP, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior e posterior ao facto.

14. Assim, atendendo aos factos que anteriormente foram exaustivamente referidos (i.e., confissão, arrependimento, bom comportamento anterior e posterior, quadro depressivo que limitava a capacidade de valorar e discernir, diminuição da culpa, etc.) e aqui nos abstemos de reproduzir, e a todos aqueles considerados pelo Tribunal, a pena concretamente aplicada ao crime de homicídio qualificado deverá fixar-se em 12 (doze) anos de prisão e ao crime de detenção de arma proibida 1 (um) ano de prisão, sendo que, em cúmulo jurídico crê-se que a pena justa aplicada deverá ser de 12 (doze) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

     Termina pedindo que seja concedido provimento ao recurso.

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       O recurso foi admitido por despacho de fls. 1052.

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       O Exmo. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação do Porto apresentou resposta, conforme fls. 1058 a 1065, que remata com as seguintes conclusões:

A.

Por acórdão desta Relação tirado em 21.05.2014, foi confirmada a decisão proferida na 1ª Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, que havia condenado, o arguido AA, pela prática, enquanto autor material, dos seguintes crimes:

  B.

Um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 22°, 23°, 72°, 131°, 132°, n ° s 1 e 2, alínea b), todos do C.P, na pena de quinze anos e seis meses de prisão;

Um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86°, n ° 1, alínea c), da Lei nº° 5 / 2006, de 23 / 02, por referência ao art. 3º, n ° 5, alínea c) do aludido diploma legal, na pena de um ano e quatro meses de prisão;

Nos termos do artigo 77° do C.P., na pena única de 16 anos de prisão.

C.

Inconformado, o arguido AA, interpôs recurso para esse Alto Tribunal, em que como se vê das conclusões extraídas, suscita dois tipos de questões:

•          A da qualificação jurídico-penal dos factos integrantes do crime de homicídio, que entende deverem ser qualificados, como perfectibilizando, tão só tipo fundamental do crime, previsto no art. 131° do CP;

•          A medida das penas parcelares e única, que entende serem desadequadas, e bem assim no atinente ao crime de detenção de arma proibida, sustenta que a opção, por pena não privativa de liberdade.

C.1.

«Nemo discrepante» todos os sujeitos processuais aquiescem em que as circunstâncias qualificativas do art. 132° do C.P, não são de funcionamento automático, não dispensando uma análise casuística. De resto, a técnica usada nas alíneas do n ° 2 do art. 132° do CP, a dos chamados exemplos - padrão ou «regelbeispieltechnic», impõe uma indagação da matéria de facto provada, em ordem a concluir-se, se «in casu» resulta «uma imagem global do facto agravada», (Figueiredo Dias) evidenciadora dum grau superior de culpabilidade. Todavia, esta natural concordância teórica, dado o «acquis» existente na matéria, deixa de existir quando se desce ao caso «sub judicio».

C.1.1.

Todavia a posição da defesa de sustentar «à outrance» que a matéria provada não consente a subsunção no quadro do homicídio qualificado, não encontra qualquer adesão, salvo o devido respeito, na matéria assente. Com efeito, bastará atentar no bosquejo das circunstâncias da comissão do crime, constantes da matéria de facto provada, supra transcrito sob C.2. para tal se poder concluir, sem margem para dúvidas.

C.1.2.

De facto dele, impõe-se a conclusão que este bárbaro homicídio perfectibiliza não só «os factos que integram o exemplo - padrão como também o critério geral do n ° 1 do art. 132° do C.P» como, bem se considerou, no aliás douto, acórdão recorrido.

C.2.

Face á matéria de facto que vem assente, entende-se que, no que diz respeito ao crime de detenção de arma proibida, se impunha a aplicação de uma pena privativa de liberdade, conquanto não existem fundamentos, para concluir que no caso «sub judicio» uma pena de substituição, realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

C.2.1.

Quanto á medida das penas parcelares e única: Deve salientar-se, no referente á aplicada ao homicídio qualificado, 15 anos e 6 meses de prisão, atenta a gravosa matéria provada, em desfavor do recorrente, e o muito diminuto peso das circunstâncias que a seu favor militam, que o tribunal de 1ª instância usou, a nosso ver, de indevida benevolência, pelo que não se coloca a possibilidade de diminuição do «quantum» de tal pena parcelar. «Mutatis mutandis» se diga, em relação ao crime de detenção de arma proibida. No atinente á pena única, afigura-se-nos que na determinação da mesma, se cumpriram os legais critérios, e que, atentas as penas parcelares supra referidas, não merece censura.

    Termina, defendendo que deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se o decidido no acórdão recorrido.

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    O assistente não apresentou resposta.

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    O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal emitiu douto parecer a fls. 1069 a 1074, suscitando a questão prévia de irrecorribilidade em relação à pena aplicada pelo crime de detenção de arma proibida, por se verificar dupla conforme condenatória, afirmando improceder de forma manifesta e inexorável o fundamento da qualificação e medidas das penas, terminado o parecer nestes termos:

2.3.1 – É de rejeitar o recurso, por inadmissibilidade legal – nos termos dos arts. 434.º e 420.º, n.º1/b) do CPP –, no segmento em que o recorrente convoca o pedido de reexame da medida concreta da pena aplicada pelo crime de detenção de arma proibida;

2.3.2 – Na improcedência do mesmo recurso, é de confirmar a qualificação jurídica da conduta do arguido operada pela decisão recorrida[1], e bem assim a medida concreta de cada uma das correspondentes reacções criminais: penas parcelares de 15 anos e 6 meses e 1 ano e 4 meses, ambas de prisão; e pena única de 16 anos de prisão.

   

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     Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente apresentou resposta, conforme fls. 1078 a 1080, mantendo o já afirmado e defendendo a revogação do acórdão recorrido.

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     Não tendo sido requerida audiência de julgamento, o processo prossegue com julgamento em conferência, nos termos dos artigos 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal.

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     Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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     Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (neste sentido, o acórdão do Plenário da Secção Criminal, de 19 de Outubro de 1995, proferido no processo n.º 46580, da 3.ª Secção, Acórdão n.º 7/95, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de Dezembro de 1995, e BMJ n.º 450, pág. 72, que fixou jurisprudência, então obrigatória, no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.

    As conclusões deverão conter apenas a enunciação concisa e clara dos fundamentos de facto e de direito das teses perfilhadas na motivação (assim, acórdão de 25 de Março de 1998, proferido no processo n.º 53/98-3.ª Secção, in BMJ 475, pág. 502).

 

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      Questões propostas a reapreciação e decisão

 

      O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões onde o recorrente resume as razões de divergência com o deliberado no acórdão recorrido.

    

       Atendendo às conclusões apresentadas, as únicas questões propostas a debate são:

       Questão I – Alteração da qualificação jurídica. Homicídio simples? Conclusões 1.ª a 10.ª

       Questão II – Medida das penas parcelares e da pena conjunta – Conclusões 11.ª a 14.ª

    Oficiosamente, colocar-se-á a questão prévia da inadmissibilidade parcial do recurso, no que toca à pena aplicada pelo crime de detenção de arma proibida.

    Por outro lado, colocar-se-á a questão prévia da admissibilidade do presente recurso, na medida em que se verifica em larga medida, a repetição da motivação e conclusões do anterior recurso, no que toca a requalificação jurídica e medida das penas.

   

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       Apreciando. Fundamentação de facto.

      Factos Provados

1. O arguido manteve com CC, nascida a ..., uma relação amorosa, análoga à dos cônjuges, coabitando com a mesma, como se marido e mulher fossem, em comunhão de cama, mesa e habitação, durante, pelo menos, três anos e até finais de Agosto de 2012.

2. Após o termo do relacionamento e não se conformando com tal, o arguido continuou a procurar a CC, rondando a respectiva residência, localizada na Rua ..., abordando-a no sentido de retomar a relação e face à irredutibilidade daquela, em não aceder à sua pretensão, quando ambos se encontravam, discutiam.

3. No dia 3 de Setembro de 2012, cerca das 20h00, o arguido dirigiu-se à residência da CC, a fim de, uma vez mais, a tentar convencer a retomar o relacionamento amoroso que tinha mantido consigo e a convidar para irem passar férias juntos.

4. Tal encontro ocorreu no logradouro da citada casa e onde ocorreram os fatídicos factos, com várias árvores e produtos hortícolas, anexo à respectiva residência.

5. Perante a recusa daquela, iniciou-se uma discussão, entre ambos, formou, então, o propósito de a matar.

6. Em execução de tal propósito, o arguido, quando ambos passavam junto ao local, dirigiu-se a um coberto de lenha, onde, na sequência de alguns furtos cometidos nas proximidades, estava colocado uma arma de fogo, para, em caso de necessidade, afugentar eventuais assaltantes e empunhou-a, regressando para junto da CC, que havia continuado a caminhar.

7. Ao chegar junto da mesma, o arguido apontou, subitamente, a dita arma de fogo na direcção da CC e efectuou um disparo, que a atingiu no braço direito que foi lacerado ao nível do cotovelo com amputação quase total, ficando apenas preso pelos tecidos da face anterointerna, com perda óssea e na zona abdominal, onde lhe provocou uma perfuração, com 11 cm de comprimento por 5,5 cm de largura, verificando-se várias escoriações provocadas pelos impactos dos bagos de chumbo.

8. De seguida, encontrando-se a CC – que, embora ferida, se havia posto em fuga –, o arguido remuniciou a dita arma, tendo, para o efeito, puxado o fuste para trás, na direcção da coronha, assim permitindo a saída do cartucho percutido e empurrado, de seguida, novamente, o fuste para a frente, ao longo do cano, assim colocando um novo cartucho na câmara da arma e efectuou um novo disparo, visando a CC, onde a veio a atingir na cabeça, provocando-lhe extensas lesões, nomeadamente, fractura do osso maxilar, fractura cominativa dos ossos do crânio da base com perda de couro cabeludo, com extensos bordos irregulares, perda quase total da massa encefálica e lacerações das meninges.

9. Por força dos disparos efectuados pelo arguido, sofreu a CC, para além das demais lesões aí mencionadas, as extensas lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas descritas no relatório de autópsia de folhas 223 a 226, cujo teor se dá por reproduzido e integrado, para todos os efeitos legais - nomeadamente, ao nível da cabeça e no que concerne às partes moles, laceração extensa do couro cabeludo envolvendo a totalidade da abóbada craniana, com exposição de fragmentos ósseos resultantes de fractura extensa, cominutiva e com perda de substância, de todos os ossos da abóbada craniana, assim como da base do crânio; ao nível dos ossos da abóbada da cabeça, fractura extensa cominutiva e com perda de substância, de todos os ossos da abóbada craniana; ao nível dos ossos da base da cabeça, fractura extensa, cominutiva e com perda de substância de todos os ossos da base craniana; ao nível das meninges, laceração das meninges, com perda quase total, relacionados com as fracturas descritas ao nível da abóbada e base cranianas; ao nível do encéfalo, perda total do encéfalo, em virtude das extensas lesões traumáticas cranianas -, as quais foram causa directa, necessária e adequada da respectiva morte.

10. O arguido efectuou ambos os disparos em momento em que a CC se encontrava separada de si por escassos metros.

11. A arma utilizada pelo arguido para efectuar os disparos foi uma espingarda caçadeira de um cano de alma lisa, com o n.º de série 135122, arma de fogo longa, com sistema de repetição manual por acção do fuste – vulgarmente designada por pump action – de percussão central, com um só cano, de alma lisa, com cerca de 51 cm de comprimento, de calibre 12/76 – 12 Gauge, com cerca de 100,5 cm de comprimento total, com sistema de municionamento por depósito tubular, com capacidade para dois cartuchos de calibre 12/76 – 12 Gauge, encontrando-se em mau estado de conservação e em boas condições mecânicas e apta a disparar.

12. O trajecto descrito pelos projécteis – bagos de chumbo - disparados pelo arguido, no tórax e no membro superior da CC, foi da frente para trás, sendo o primeiro de cima para baixo e o segundo de baixo para cima.

13. Após ter efectuado os dois disparos, sobre a CC e ciente de que a havia morto, o arguido abandonou o local, tendo colocado a espingarda caçadeira no meio da vegetação, por baixo de uma árvore, a cerca de 17 metros do corpo daquela e entrou no seu veículo automóvel, abandonando o local, vindo a apresentar-se, posteriormente, numa esquadra policial, onde assumiu os factos.

14. Conhecia a elevada letalidade da arma utilizada, em disparos de curta distância, por força da forma de dispersão dos chumbos, em trajectos curtos.

15. O arguido não era titular de licença de uso e porte de arma.

16. Ao disparar, por duas vezes, sobre a CC, quis e conseguiu o arguido atingi-la em zonas do corpo que sabia albergarem órgãos vitais, a fim de lhe causar, como causou, a morte.

17. O arguido sabia que não lhe era lícito ter na sua posse, guardar, deter e usar a arma em causa, que sabia encontrar-se devidamente municiada e apta a disparar, em virtude de não ser titular quer de licença de uso e porte de arma e, não obstante, quis fazê-lo, servindo-se da mesma, da forma descrita, para matar a CC.

18. Agiu voluntária, livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.

Do pedido de indemnização civil

19. CC era divorciada, sucedendo-lhe como único e universal herdeiro o seu filho, BB, ainda menor e, assim representado pelo seu pai, na qualidade de representante legal, DD.

20. O Requerente celebrou 17 anos de idade, em ....

21. O Requerente frequenta o 12.º ano de escolaridade no Colégio ..., preparando-se e desejando obter um curso superior, após a conclusão da sua aprendizagem.

22. O Requerente pretende ingressar no Ensino Superior e frequentar o curso de Desporto da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto.

23. A falecida CC era empresária e explorava um estabelecimento de ensino, denominado “...”.

24. Era uma mãe atenta, carinhosa, afectuosa e dedicada, constituindo uma família unida e feliz.

25. Era uma mulher em plena força da vida, com 48 anos de idade, forte, saudável, divertida, com enorme alegria de viver e gozava de boa reputação no meio social e na comunidade.

26. O Requerente em consequência da morte da sua mãe e, nas circunstâncias em que a mesma ocorreu, sentiu forte emoção e abalo pela perda dela, com quem mantinha uma excelente relação.

27. O Requerente tinha uma relação de proximidade com a mãe, de amigos e confidentes, sendo muito unidos.

28. O Requerente sentiu-se muito triste, amargurado e transtornado pela morte da mãe, assim como, profundamente chocado, revoltado, inquieto e apreensivo pela forma em que a mesma morreu - inesperada, violenta, à queima-roupa.

29. Inclusive, transtornado, inseguro e ansioso, o Requerente não conseguiu pernoitar nesta casa nas noites seguintes

30. Presentemente encontra-se a ser acompanhado por apoio psicológico, pela Dr.ª EE.

31. Que o Requerente perdeu o necessário apoio económico e financeiro da CC, para a sua formação pessoal-profissional e de enriquecimento curricular.

32. A CC era o único sustento da sua família.

33. A título de despesas correntes mensais suportadas com o requerente, referem-se as de alimentação, vestuário e calçado, material didáctico e de estudo e transporte escolar, em montante mensal de cerca de 250,00 €.

34. Terá o requerente que suportar valor de propinas da faculdade, material escolar e meios de transporte.

Da contestação e da audiência de julgamento

35. O arguido não tem antecedentes criminais.

36. O arguido confessou a quase totalidade dos factos ora dados como provados.

37. Demonstrou arrependimento.

38. O arguido no interior do Estabelecimento Prisional está em tratamento por quadro depressivo grave e está medicado. Tem sintomatologia depressiva grave com ideação suicida. Sofreu já tratamento e acompanhamento médico por parte de .... O arguido não tem apresentado uma resposta positiva à medicação prescrita e a sintomatologia manteve-se grave e limitante. Em 25.10.2012 apresentou deslizamento cognitivo, que configura quadro de depressão grave com sintomatologia psicótica. Continua em estudo e acompanhamento.

39. AA é o primogénito da prole numerosa da união dos progenitores tendo o seu processo social primário de desenvolvimento da personalidade decorrido no contexto familiar com ambiente relacional afectivo, de condição financeira precária, suportada unicamente pelo exercício profissional do progenitor como motorista de transportes de passageiros. A mãe organizava a gestão doméstica quotidiana.

40. A escolarização terminou com a integração precoce do arguido no mercado de trabalho, pelos seus 13 anos de idade, após concluir o 1º ciclo do ensino básico, tendo exercido funções laborais nas áreas da construção civil, de ajudante de motorista e de empregado de escritório. Dedicou-se à venda ambulante durante cerca de 7 anos, explorou um restaurante, emigrou para a Suíça, país onde trabalhou como motorista durante cerca de 6 anos e, desde há alguns anos, dedicava-se ao comércio de pneus, constituindo a empresa ... Pneus – Importação e Exportação de Pneus, Lda., sociedade detida com os dois filhos. Neste trajecto profissional, AA autonomizou-se do agregado de origem pelos 20 anos de idade, estabeleceu domicílio em Lisboa com uma companheira, igualmente oriunda de ..., com quem contraiu matrimónio e edificou a instituição familiar com dois filhos tendo então emigrado para a .... Efectuava deslocações regulares a Portugal até regressar definitivamente há mais de 20 anos, reintegrando o agregado familiar.

41. Volvido algum tempo, o cônjuge abandonou o lar de família, o casal assumiu a separação tendo cada um dos filhos ficado com um dos progenitores. O mais velho permaneceu com arguido continuando a colaborar na oficina de pneus. Posteriormente o casal divorciou-se.

42. Com a autonomização do seu filho mais velho, AA permaneceu sozinho até ter estabelecido novo relacionamento amoroso e posterior convivência em união de facto durante uns 6 a 7 anos.

43. É referenciado pela família directa do arguido um acontecimento traumático ocorrido há cerca de 5 anos, em que terá sido vítima de um assalto violento na sua habitação, durante o qual foi violentamente agredido com um taco, causando-lhe lesões internas e a sujeição a várias intervenções cirúrgicas, motivo pelo qual terá acedido a acompanhamento psiquiátrico.

44. Sensivelmente em 2010, estabeleceu um terceiro relacionamento amoroso, desta vez, com CC, vítima mortal nos presentes autos, que passou a viver em casa do recluso com o filho daquela, menor, no entanto, as relações familiares estabelecidas eram de reduzida empatia. Aparentemente, a relação amorosa entre o casal decorria de modo harmonioso.

45. À data da ocorrência dos factos constantes na acusação dos presentes autos, AA vivia sozinho na sua habitação, por ter ocorrido a separação em finais de Agosto do ano transacto. Mantinha a sua ocupação de gestor da empresa de comercialização de pneus de automóveis, em condição financeira desafogada.

46. Com o termo da relação, a vítima regressou ao domicílio da sua progenitora, sito na Rua ..., local de ocorrência dos factos em julgamento.

47. No meio comunitário de residência mais amplo do que o circunscrito às redes vicinais são comentados comportamentos sociais desajustados de AA e a sua idoneidade, no entanto, este “conhecimento popular” não produziu qualquer queixa-crime na área de intervenção da GNR.

48. O arguido tem dificuldade em aceitar-se a si próprio manifestando sentimento de culpa e arrependimento persistindo ainda num estado confuso e de intensa emotividade face às consequências decorrentes dos actos descritos na acusação e à perda da vítima. Ainda não consegue reflectir com clareza sobre os prejuízos causados aos familiares da vítima, principalmente, ao filho.

49. A esta condição psíquica acresce uma ideação suicida, potencialmente concretizável que terá encontrado algum escape na sua ocupação quotidiana como faxina da biblioteca.

50. Após a ocorrência dos factos tem sido o filho mais novo que tem gerido a referida empresa uma vez que o filho mais velho do arguido é sócio-gerente de uma outra empresa.

51. Apesar de consternados com o choque, os familiares apoiam de forma irrestrita o recluso mantendo com ele uma proximidade relacional através de um regime regular de visitas. AA tem dificuldades em projectar o seu futuro face ao trauma “tortuoso” em que vive. Quando o recluso vier a ser libertado, não há intenção de regressar a ..., dado o impacto do crime a nível social. Filhos referem que irá viver com um deles noutra cidade.

52. Da avaliação de AA ressaltam as dificuldades relacionais amorosas nos últimos 10 anos sem aparente justificação, e a presente incapacidade em assumir uma qualquer actividade profissional ou de concretização de projectos pessoais e em enfrentar a reactividade social aos factos.

53. AA apresentava indicadores de algum mal-estar psíquico e de instabilidade amorosa nos últimos 10 anos concomitantes com os indicadores de sociabilidade e de capacidade de trabalho, de concretização social, arruinados com a ocorrência dos factos descritos na acusação dos presentes autos impondo-lhe um estado emocional confuso ainda à procura de uma explicitação própria sobre a sua natureza impulsiva e até, no limite do aceitável por si, hedionda.

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      Apreciando. Fundamentação de direito.

       Questão Prévia I – Admissibilidade parcial do recurso – (Ir)Recorribilidade quanto à pena parcelar, aplicada em medida igual ou inferior a oito anos de prisão e confirmada pelo Tribunal da Relação (no concreto caso, crime de detenção de arma proibida).

    Há que abordar a questão da admissibilidade do presente recurso, no que toca à pena aplicada pelo crime de detenção de arma proibida, face ao disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal.

      A questão foi colocada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no parecer emitido, a fls. 1072/3, dizendo que muito embora o recorrente a impugne também, o certo é estar já fora dos poderes de cognição do STJ o decidido pelas instâncias no que toca à medida concreta da pena aplicada pelo crime de detenção de arma proibida, por se verificar a denominada “dupla conforme”.

    O presente recurso foi interposto de acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Maio de 2014.

    Face à confirmação total pelo Tribunal da Relação do Porto da deliberação do Colectivo de Vila Nova de Gaia, somente estarão em reapreciação as questões relacionadas com o crime de homicídio qualificado e a pena única aplicada ao recorrente.

    Este Supremo Tribunal tem entendido, que em caso de dupla conforme total, como ora ocorre, à luz do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, são irrecorríveis as penas parcelares, ou únicas, aplicadas em medida igual ou inferior a oito anos de prisão e confirmadas pela Relação, restringindo-se a cognição às penas de prisão, parcelares e única, aplicadas em medida superior a oito anos.

    O presente recurso foi interposto de acórdão do Tribunal da Relação do Porto, tratando-se de um acórdão confirmatório, na totalidade, de condenação proferida na primeira instância em 31 de Outubro de 2013, na vigência, pois, do regime de recursos introduzido com a entrada em vigor da 15.ª alteração do Código de Processo Penal, operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, e que teve lugar em 15 de Setembro de 2007, tendo o processo tido início em Setembro de 2012, sendo que a pena parcelar aplicada pelo crime de detenção de arma proibida foi inferior a oito anos de prisão (concretamente, um ano e quatro meses de prisão).

    Haverá que ter em conta que o acórdão ora recorrido é um acórdão confirmativo, havendo na parte que nos interessa, ou seja, no que respeita à posição processual do ora recorrente, entre uma e outra decisões uma identidade total, completa, absoluta e plena, e como assim, como se procurará demonstrar, impeditiva de recurso relativamente à referida pena de um ano e quatro meses de prisão.

    A lei reguladora da admissibilidade dos recursos é a que vigora no momento em que é proferida a decisão objecto de recurso.

    Vejamos as disposições legais aplicáveis.

    É admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça nos casos contemplados no artigo 432.º do Código de Processo Penal, sem prejuízo de outros casos que a lei especialmente preveja, como explicita o artigo 433.º do mesmo diploma legal.

    No que importa ao caso presente rege a alínea b) do n.º 1 do artigo 432.º do Código de Processo Penal, que se manteve inalterada, e que estabelece que:

“1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º

       Com a entrada em vigor, em 15 de Setembro de 2007, da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, foi modificada a competência do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de recursos de decisões proferidas, em recurso, pelas relações, restringindo-se a impugnação daquelas decisões para este Supremo Tribunal, no caso de dupla conforme, a situações em que tenha sido aplicada pena de prisão superior a oito anos.

     

  Estabelecia o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto:

 «1 - Não é admissível recurso: (…)

       f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções.»

      

         A partir da alteração introduzida pela aludida Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, passou a estabelecer o artigo 400.º, n.º 1, na alínea f), do Código de Processo Penal:

«1 – Não é admissível recurso: (…)

f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos».

   

       (Os preceitos em causa actualmente em vigor têm-se mantido inalterados nas subsequentes modificações do Código de Processo Penal, operadas pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, pela Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, pela Lei n.º 115/09, de 12 de Outubro, pela Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto e pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).

      A alteração legislativa de 2007, no que tange a esta alínea f), teve um sentido restritivo, impondo uma maior restrição ao recurso, referindo a pena aplicada e não já a pena aplicável, quer no recurso directo, quer no recurso de acórdãos da Relação que confirmem decisão de primeira instância, circunscrevendo a admissibilidade de recurso das decisões da Relação confirmativas de condenações proferidas na primeira instância às que apliquem pena de prisão superior a oito anos.

      Com efeito, à luz do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, na redacção actual, só é possível o recurso de decisão confirmatória da Relação no caso de a pena aplicada ser superior a 8 anos de prisão.

      Já anteriormente, porém, à luz da redacção da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, introduzida em 1998 (Lei n.º 59/98), a restrição ora referida era defendida em acórdãos do Tribunal Constitucional, como no Acórdão n.º 64/2006, de 24 de Janeiro de 2006, proferido no processo n.º 707/2005, publicado in Diário da República, II Série, de 19 de Maio de 2006 (e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 64.º volume, 2006, págs. 447 a 477), que, em Plenário, com seis votos de vencido, reafirmando, por maioria, o juízo de não inconstitucionalidade constante do acórdão n.º 640/2004, de 12 de Novembro de 2004, da 3.ª Secção (com sumário em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 60.º volume, 2004, pág. 933), com o qual estava em contradição o acórdão n.º 628/2005, de 15 de Novembro de 2005, 2.ª Secção, publicado in Diário da República, II Série, de 23 de Maio de 2006 (e com sumário em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 63.º volume, 2005, pág. 892), decidiu “não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso interposto apenas pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça de um acórdão da Relação que, confirmando a decisão da 1.ª instância, o tenha condenado numa pena não superior a oito anos de prisão, pela prática de um crime a que seja aplicável pena superior a esse limite”.

       O acórdão em causa reiterou a jurisprudência do Tribunal Constitucional, segundo a qual, a Constituição não impõe um triplo grau de jurisdição ou um duplo grau de recurso, mesmo em Processo Penal.

      Acerca da nova formulação legal introduzida em Setembro de 2007, que conduziu a uma restrição do recurso e entendendo daí não decorrer violação do direito de recurso, por estar assegurado um duplo grau de jurisdição e não se impor um, aliás, não previsto duplo grau de recurso, tem-se pronunciado este Supremo Tribunal, conforme se colhe dos acórdãos apontados a seguir.

      No acórdão de 09-01-2008, processo n.º 4457/07-3.ª Secção, pode ler-se: Após a revisão do CPP, da nova redacção da al. f) do n.º 1 do art. 400º, resulta que é admissível recurso para o STJ de acórdão da Relação, proferido em recurso, que confirme decisão cumulatória que haja condenado o arguido em pena única superior a 8 anos de prisão, ainda que aos crimes parcelarmente considerados seja aplicável pena de prisão inferior a 8 anos, embora, no caso e no que respeita à medida concreta da pena, o recurso fique limitado à pena conjunta resultante do cúmulo.

      Como se extrai do acórdão de 03-04-2008, processo n.º 574/08 - 5.ª Secção, no domínio da actual versão do CPP, as als. e) e f) do n.º 1 do art. 400.º referem-se à pena aplicada e não à aplicável, sem menção da frase “mesmo em caso de concurso de infracções”. Houve, portanto, uma inversão do legislador quanto a esta questão da recorribilidade, restringindo drasticamente o recurso da Relação para o Supremo. Importa, por isso, não ir mais além do que a letra da lei. Daí que seja razoável concluir que, actualmente, ao contrário do que dantes sucedia, a questão da irrecorribilidade deve aferir-se pela pena única aplicada e já não atendendo às penas parcelares, isto é, o que importa é a pena que foi aplicada como resultado final da sentença, toda ela abrangida no âmbito do recurso, nos termos do art. 402.º, n.º 1, do CPP, salvo declaração em contrário por parte do recorrente.

      Segundo o acórdão de 18-06-2008, processo n.º 1624/08-3.ª, a lei reguladora da admissibilidade do recurso – e por consequência, da definição do tribunal de recurso – será a que vigorar no momento em que ficam definidas as condições e os pressupostos processuais do próprio direito ao recurso (seja na integração do interesse em agir, da legitimidade, seja nas condições objectivas dependentes da natureza e conteúdo da decisão: decisão desfavorável, condenação e definição do crime e da pena aplicável), isto é, no momento em que primeiramente for proferida uma decisão sobre a matéria da causa, ou seja, a da 1.ª instância.

     Sendo o acórdão de 1.ª instância proferido já na vigência do regime de recursos posterior à entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007, tendo a arguida sido condenada numa pena de 4 anos e 6 meses de prisão e tendo o Tribunal da Relação confirmado o decidido pela 1.ª instância, não é admissível recurso para o STJ, atento o disposto no art. 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, que determina a irrecorribilidade de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos (na redacção anterior, o critério da recorribilidade em caso de idêntica decisão nas instâncias – “dupla conforme” – partia da pena aplicável ao crime e não da pena concretamente aplicada).

      Segundo o acórdão de 18-06-2008, processo n.º 1971/08-3.ª “a nossa jurisprudência e doutrina são unânimes em reconhecer que a lei reguladora da admissibilidade do recurso é a vigente na data em que é proferida a decisão recorrida – lex temporis regit actum – e isto porque as expectativas eventualmente criadas às partes ao abrigo da lei antiga se dissiparam à face da lei nova, não havendo que tutelá-las”.

      Nos acórdãos de 15-07-2008, processo n.º 816/08-5.ª e de 14-08-2008, processo n.º 2523/08-5.ª, defende-se a obrigatoriedade de reponderação da medida da pena do concurso, se a aplicada nesse âmbito for superior a 8 anos de prisão, ainda que os crimes que fazem parte desse concurso, singularmente considerados, tenham sido punidos na 1.ª instância com penas inferiores ou iguais a tal limite e confirmadas pela Relação.

     Explicita-se aí: “Actualmente, se é a pena aplicada que constitui a referência da recorribilidade, essa pena tanto pode ser a referida a cada um dos crimes singularmente considerados, como a que se reporta ao concurso de crimes (pena conjunta ou pena única).

     O legislador aferiu a gravidade relevante como limite da dupla conforme e como pressuposto do recurso da decisão da Relação para o STJ pela pena efectivamente aplicada, quer esta se refira a um crime singular, quer a um concurso de crimes.

     Tal significa que o STJ está obrigado a rever as questões de direito que lhe tenham sido submetidas em recurso ou que ele deva conhecer ex officio e que estejam relacionadas com os crimes cuja pena aplicada tenha sido superior a 8 anos de prisão e também a medida da pena do concurso, se a aplicada nesse âmbito for superior a 8 anos de prisão, ainda que os crimes que fazem parte desse concurso, singularmente considerados, tenham sido punidos na 1.ª instância com penas inferiores ou iguais a tal limite e confirmadas pela Relação”.

     No acórdão de 10-09-2008, processo n.º 1959/08-3.ª, diz-se: “Por efeito da entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29-08, foi alterada a competência do STJ em matéria de recursos de decisões proferidas, em recurso, pelos Tribunais de Relação, tendo-se limitado a impugnação daquelas decisões para este Tribunal, no caso de dupla conforme, às situações em que seja aplicada pena de prisão superior a 8 anos – redacção dada à al. f) do n.º 1 do art. 400º do CPP – quando no domínio da versão pré - vigente daquele diploma a limitação incidia relativamente a decisões proferidas em processo por crime punível com pena de prisão não superior a 8 anos”.

    No acórdão de 29-10-2008, processo n.º 3061/08-5.ª, refere-se: “Considerando as datas dos veredictos da 1.ª e 2.ª instâncias, já em plena vigência da Lei 48/2007, será de observar a nova redacção conferida à alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, donde resulta a inviabilidade da interposição de recurso para o STJ, sendo o acórdão recorrido (da Relação) condenatório e confirmatório (em recurso) de pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, não superior, portanto, ao ali apontado limite de 8 anos”.

     Pode ler-se no acórdão de 13-11-2008, processo n.º 3381/08-5.ª: “No caso de concurso de infracções, tendo a Relação confirmado, em recurso, decisão de 1ª instância que aplicou pena de prisão parcelar não superior a 8 anos, essa parte não é recorrível para o STJ, nos termos do artigo 400, n.º 1, alínea f), do CPP, na versão da Lei n.º 48/2007, de 29-08, sem prejuízo de ser recorrível qualquer outra parte da decisão, relativa a pena parcelar ou mesmo só à operação de formação da pena única que tenha excedido aquele limite”.

     Como se retira dos acórdãos desta Secção de 07-05-2008, processo n.º 294/08; de 10-07-2008, processo n.º 2146/08; de 03-09-2008, processo n.º 2192/08; de 10-09-2008, processo n.º 2506/08; de 04-02-2009, processo n.º 4134/08; de 04-03-2009, processo n.º 160/09; de 17-09-2009, processo n.º 47/08.9PBPTM.E1, in CJSTJ 2009, tomo 3, pág. 188; e de 07-04-2010, processo n.º 1655/07.0TAGMR.G1.S1, todos com o mesmo relator, “com a revisão do Código de Processo Penal deixou de subsistir o critério do «crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos» para se estabelecer o critério da pena aplicada não superior a oito anos; daí que se eliminasse a expressão «mesmo no caso de concurso de infracções». Assim, mesmo que ao crime seja aplicável pena superior a 8 anos, não é admissível recurso para o Supremo, se a condenação confirmada não ultrapassar 8 anos de prisão. E, ao invés, se ao crime não for aplicável pena superior a oito anos de prisão, só é admissível recurso para o STJ se a condenação confirmada ultrapassar oito anos de prisão, decorrente de cúmulo, e restrito então à pena conjunta”.

    (Quanto a este último aspecto, cfr. acórdãos de 23-09-2009, processo n.º 27/04.3GBTMC.S1-3.ª; de 21-10-2009, processo n.º 296/06.4JABRG.G1.S1-3.ª.).

    Neste sentido, podem ainda ver-se os acórdãos de 21-01-2009, processo n.º 2387/08-3.ª, por nós relatado, não conhecendo da pena aplicada por crime de maus tratos a cônjuge, mas apenas de homicídio qualificado atípico e de pena única; de 11-02-2009, processo n.º 113/09-3.ª, no sentido de ser recorrível apenas a pena única, quando ultrapasse os 8 anos de prisão; de 25-03-2009, processo n.º 486/09-3.ª; de 15-04-2009, processo n.º 583/09-3.ª; de 16-04-2009, processo n.º 491/09-5.ª, referindo: “o recurso para o Supremo de acórdão da Relação que confirme decisão condenatória de 1.ª instância apenas tomará conhecimento das questões relativas aos crimes cujas penas parcelares ultrapassem aquele limite de 8 anos, e não as havendo, limitar-se-á à pena única, se superior a 8 anos”; de 29-04-2009, processo n.º 391/09-3.ª, por nós relatado, não conhecendo da questão relativa ao crime de detenção de arma, mas apenas de tráfico de estupefacientes e da pena única; de 07-05-2009, processo n.º 108/09-5.ª; de 14-05-2009, processo n.º 998/07.8PBVIS.C1.S1-5.ª, onde se afirma que “são irrecorríveis os acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”; de 27-05-2009, processo n.º 50/06.3GAOFR.C1.S1, por nós relatado, em que se conheceu apenas da medida da pena única fixada em 11 anos de prisão e não das questões relacionadas com os sete crimes em equação; de 27-05-2009, no processo n.º 384/07.0GDVFR.S1-3.ª; de 25-06-2009, processo n.º 145/02.2PAPBL.C1.S1-3.ª e de 10-12-2009, processo n.º 496/08.2GTABF.E1.S1-3.ª, proferido pelo mesmo relator do anterior, onde se diz: «Tendo havido confirmação total, em recurso, pela Relação, de acórdão condenatório em penas de prisão não superiores a 8 anos – arts. 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. f), do CPP – as soluções normativas sobre admissibilidade dos recursos para o STJ decorrentes da revisão de 2007 do processo penal, introduzidas pela Lei n.º 48/2007, não o permitem»; ou seja, «não é admissível recurso relativamente às penas parcelares e sobre as questões que lhe sejam conexas, e apenas a pena única, aplicada em medida superior a 8 anos de prisão, é passível de recurso»; de 17-09-2009, processo n.º 47/08.9PBPTM-E1-3.ª; do mesmo relator, de 23-09-2009, processo n.º 27/04.3GBTMC.S1-3.ª e processo n.º 463/06.0GAEPS.S1-5.ª; de 12-11-2009, processo n.º 200/06.0JA PTM.E1.S1-3.ª, onde se considera que a decisão de tribunal da Relação que confirmou as diversas penas parcelares (entre os 9 meses e os 4 anos de prisão) não é recorrível para o STJ, mas já o é a decisão que agravou a pena conjunta correspondente ao concurso de crimes por que o arguido foi condenado; de 14-01-2010, processo n.º 135/08.1GGLSB.L1.S1-5.ª; de 27-01-2010, processo n.º 401/07.3JELSB.L1.S1-5.ª; de 04-02-2010, processo n.º 1244/06.7PBVIS.C1.S1-3.ª; de 10-03-2010, processo n.º 492/07.7PBBJA.E1.S1; de 18-03-2010, no processo n.º 175/06.5JELSB.S1-5.ª e no processo n.º 538/00.0JACBR-B.C1.S1-5.ª; de 12-05-2010, processo n.º 4/05.7TACDV.S1-5.ª; de 09-06-2010, processo n.º 862/09.6TBFAR.E1.S1-5.ª; de 23-06-2010, processo n.º 1/07.8ZCLSB.L1.S1-3.ª; de 30-06-2010, processo n.º 1594/01.9TALRS.S1-3.ª; de 14-07-2010, processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1-3.ª; de 29-09-2010, processo n.º 234/00.8JAAVR.C2.S1-3.ª; de 20-10-2010, processo n.º 851/09.8PFAR.E1.S1-3.ª.

    No acórdão de 16-12-2010, proferido no processo n.º 893/05.5GASXL.L1.S1-3.ª, citando os supra referidos acórdãos de 13-11-2008, processo n.º 3381/08-5.ª; de 16-04-2009, processo n.º 491/09-5.ª; de 12-11-2009, processo n.º 200/06.0JA PTM.E1.S1-3.ª e de 12-05-2010, processo n.º 4/05.7TACDV.S1-5.ª, consigna-se que: 

I - No regime estabelecido pelos arts. 432.º, n.º 1, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, não é admissível  recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.

II - Nos casos de julgamento por vários crimes em concurso, em que tenha sido aplicada a cada um dos crimes pena de prisão não superior a 8 anos, confirmada pela Relação, e em que a pena única seja superior a 8 anos, o recurso da decisão da Relação só é admitido no que respeita à pena única, em virtude da conformidade (“dupla conforme”) no que respeita à determinação das penas por cada um dos crimes.

    E assim, conheceu o acórdão apenas da medida da pena única de 9 anos de prisão, num contexto em que o arguido foi condenado por três crimes de abuso sexual de criança, com as penas parcelares de 2 anos e 6 meses de prisão, de 5 anos de prisão e de 7 anos de prisão, e na pena única de 9 anos de prisão, tudo confirmado pelo tribunal da Relação.

    E ainda mais recentemente, podem ver-se, no mesmo sentido, os acórdãos de 19-01-2011, proferidos no processo n.º 6034/08.0TDPRT.P1.S1-3.ª e no n.º 421/07.8PCAMD.L1.S1-3.ª; de 17-02-2011, nos processos n.º 1499/08.2PBVIS.C1.S1-3.ª e n.º 227/07.4JAPRT.P2.S1-3.ª; de 10-03-2011, no processo n.º 58/08.4GBRDD-3.ª, de 23-03-2011, por nós relatado, no processo n.º 322/08.2TARGR.L1.S1 (restringindo-se a cognição à medida da pena aplicada pelo crime de uxoricídio e pela pena conjunta); de 24-03-2011, processo n.º 907/09.0GCVIS.C1.S1-5.ª; de 31-03-2011, no processo n.º 669/09.0JAPRT.S1-5.ª, CJSTJ 2011, tomo 1, pág. 227; de 13-04-2011, igualmente por nós relatado, no processo n.º 918/09.5JAPRT.P1.S1, restringindo-se a reapreciação à elaboração da pena conjunta; de 04-05-2011, processo n.º 626/08.4GAILH.C1.S1-3.ª (em caso de dupla conforme, de confirmação de penas parcelares inferiores a 8 anos pela Relação, mas em que a pena imposta seja superior a 8 anos de prisão, só pode ser discutida esta pena unitária no STJ); de 18-05-2011, processo n.º 811/06.3TDLSB.L1.S1-3.ª; de 24-05-2011, processo n.º 17/05.9GAAVR.C1.S1-3.ª (em que se defende ser recorrível apenas a pena única que ultrapasse os 8 anos de prisão, sendo o recurso rejeitado, por no caso concreto, embora de forma incorrecta, estar em causa no recurso apenas a pena de 8 anos de prisão aplicada por um dos crimes, no caso de tráfico de estupefacientes, sem se ter em conta a subsistente pena aplicada pela detenção de arma proibida); de 30-06-2011, processo n.º 479/09.5JAFAR.E1.S1-5.ª, donde se extrai: “Mandando a lei atender, para efeito de recurso a interpor de acórdão da Relação, à confirmação da decisão de 1.ª instância e à pena aplicada, o STJ só conhecerá do recurso interposto da decisão tomada em recurso pela Relação quanto aos crimes em que não haja confirmação da absolvição ou de condenação ou, quando, apesar de a decisão ser confirmada, a pena parcelar aplicada for superior a 8 anos de prisão. Tudo se passará quanto a cada um dos crimes como se para cada um deles tivesse sido instaurado um processo autónomo e nele tivesse sido aplicada uma determinada pena. Sempre que o agente tiver praticado diversos crimes que estejam numa relação de conexão e seja instaurado um único processo, haverá que verificar, em caso de recurso da decisão da Relação, se, relativamente a cada um dos crimes, estão reunidos os pressupostos de que a lei faz depender a respectiva recorribilidade, atentando em cada uma das penas parcelares, sempre que o critério de recorribilidade se aferir pela pena aplicada”; de 06-07-2011, processo n.º 774/08.0JFLSB.L1.S1, por nós relatado (não conhecimento do recurso da arguida, condenada na pena única de 5 anos de prisão, e restringindo-se a cognição, no caso do recurso do arguido, à pena única, com exclusão de vários crimes de falsificação de documento e de burla qualificada); de 13-07-2011, processo n.º 758/09.1JABRG.S1-3.ª, CJSTJ 2011, tomo 2, pág. 204 (rejeitado por inadmissível o recurso quanto aos crimes de violência doméstica, de ofensas à integridade física qualificada, de detenção de arma proibida, de ameaça, de ameaça agravado, e de dano, e a todas as questões conexas, relativas aos referidos crimes, conhecendo-se da pena relativa ao crime de homicídio qualificado na forma tentada e da pena conjunta); de 26-10-2011, processo n.º 14/09.5TELSB.L1.S1-3.ª, CJSTJ 2011, tomo 3, pág. 198 (no caso de concurso de crimes, só são recorríveis as decisões das Relações que, incidindo sobre cada um dos crimes e das correspondentes penas parcelares ou sobre a pena conjunta, apliquem ou confirmem pena de prisão superior a 8 anos); de 15-12-2011, processo n.º 17/09.0TELSB.L1.S1, por nós relatado (conhecendo do crime de tráfico de estupefacientes e pena do concurso e não dos crimes de falsificação de documento e de coacção tentada); de 11-01-2012, no processo n.º 131/09.1JBLSB.L1.S1 (irrecorribilidade das penas parcelares por roubo, restringindo-se a cognição à pena conjunta); de 21-03-2012, processo n.º 103/10.3PBBRR.L1.S1 (irrecorribilidade das penas parcelares, restringindo-se o recurso ao conhecimento da pena única aplicada); de 11-04-2012, processo n.º 1042/07.0PAVNG.P1.S1-3.ª (irrecorribilidade de todas as penas parcelares, sendo a mais elevada de 7 anos de prisão, e mesmo das penas únicas, que num caso, a Relação reduziu de 9 anos para 7 anos e 4 meses de prisão); de 18-04-2012, processo n.º 660/10.4TDPRT.P1.S1-3.ª, em que interviemos como adjunto, em caso em que, sendo as penas parcelares todas inferiores a 8 anos de prisão, as penas únicas aplicadas aos dois arguidos ultrapassam tal limite (8 anos e 3 meses, num caso, e 9 anos, no outro), mas que não foram reapreciadas, por do objecto do recurso delineado por cada arguido não constar a impugnação da pena conjunta; de 26-04-2012, processo n.º 438/07.2PBVCT.G1.S1-5.ª (Sendo aplicadas aos arguidos várias penas pelos crimes em concurso e verificada a dupla conforme, só é admissível recurso para o STJ quanto às penas parcelares superiores a 8 anos e/ou quanto à pena única superior também a 8 anos. A circunstância do arguido ser condenado numa pena (parcelar ou única) superior a 8 anos de prisão não assegura a recorribilidade de toda a decisão, portanto, de todas as condenações ainda que inferiores); de 03-05-2012, processo n.º 8/10.8PQLSB.L1.S1-5.ª; de 10-05-2012, processo n.º 1164/09.3JDLSB.L1.S1-5.ª; de 16-05-2012, processo n.º 206/10.4GDABF.E1.S1-3.ª (rejeitado o recurso do M.º P.º por as penas parcelares e únicas não excederem os 8 anos de prisão, face a acórdão confirmativo da Relação a conceder tratamento mais benéfico aos arguidos, na redução do número de crimes imputados e no correspondente abaixamento das penas); de 23-05-2012, processo n.º 18/10.5GALLE.E1.S1-3.ª (a decisão impugnada é irrecorrível, quanto às penas que ficam aquém do patamar de 8 anos, restringindo-se o objecto do recurso à pena conjunta aplicada de 9 anos de prisão); de 24-05-2012, processo n.º 281/09.4JAAVR.C1.S1-5.ª (o recurso não é admissível quanto ao crime de violência doméstica, restringindo-se ao conhecimento do crime de homicídio e respectiva pena parcelar aplicada, bem como à pena única fixada); de 12-09-2012, processo n.º 223/07.1GCVIS.C1.S1 (irrecorribilidade das penas parcelares); de 26-09-2012, processo n.º 460/10.1JALRA.C1.S1-3.ª (irrecorrível em relação a crime de detenção de arma, cognição restrita a penas de homicídio qualificado e pena única); de 3-10-2012, processo n.º 125/11.7PGALM.L1.S1-3.ª; de 28-11-2012, processo n.º 10/06.4TAVLG.P1.S1-3.ª; de 05-12-2012, processo n.º 250/10.1JALR.E1.S1-3.ª (o acórdão confirmatório da Relação é irrecorrível no que toca às penas aplicadas pelos crimes de detenção de arma proibida e de condução ilegal, conhecendo-se do recurso quanto a pena de homicídio qualificado e pena única); de 20-12-2012, processo n.º 553/10.5TBOLH.E1.S1-5.ª; de 22-01-2013, processo n.º 184/11.2GCMTJ.L1.S1-3.ª (verificada a dupla conforme em qualquer das parcelares está assegurado um grau de acerto decisório, não justificativo de mais um grau de recurso, formando-se caso julgado sobre essas penas parcelares e versando o recurso sobre a pena única, que excede os 8 anos de prisão); de 24-01-2013, processo n.º 184/03.6TASTB.E2.S1-5.ª; de 13-02-2013, processo n.º 401/07.3GBBAO.P1.S1-3.ª (irrecorribilidade das penas parcelares, restringindo-se o recurso ao conhecimento da pena única de 9 anos de prisão); de 14-03-2013, processo n.º 43/10.6GASTC.E1.S1-3.ª (havendo dupla conforme quanto às penas parcelares e única, como apenas a pena única excede 8 anos de prisão, somente quanto a ela é admissível recurso para o STJ) e processo n.º 832/11.4JDLSB.L1.S1-5.ª; de 2 de Maio de 2013, processo n.º 1947/11.4JAPRT.P1.S1-5.ª “Como não é possível recorrer para o STJ das decisões das Relações que confirmem a decisão de 1.ª instância, relativamente a crimes singulares a que não foi aplicada pena superior a 8 anos de prisão (e isto, evidentemente, com referência a quaisquer questões de direito com eles relacionados), deve ser rejeitado o recurso interposto para o STJ na parte respeitante ao crime de ameaça do artigo 153.º do Código Penal” (no mesmo sentido e ficando definitivamente resolvidas as questões relacionadas com os crimes pelos quais o recorrente foi condenado, o acórdão de 5-06-2013, processo n.º 1667/10.7TDLSB.L1.S1-5.ª); de 22-05-2013, processo n.º 210/09.5JBLSB.L1.S1-3.ª (irrecorribilidade quanto a crime de detenção de arma proibida, punido com 2 anos de prisão, dois roubos agravados, punidos com 6 anos cada e homicídio qualificado tentado com 8 anos, sendo apreciada a medida da pena única de 13 anos); de 29-05-2013, processo n.º 454/09.0GAPTB.G1.S1-3.ª (irrecorribilidade quanto a detenção de arma proibida, conhecendo-se de tráfico de estupefacientes e pena única); de 5-06-2013, processo n.º 113/06.5JBLSB.L1.S1-5.ª “Estando em causa questões relativas a cada um dos crimes e tendo o recorrente em 1.ª instância sido condenado por cada um deles a pena não superior a 8 anos de prisão, com confirmação pela Relação, o recurso não é admissível nessa parte e por isso não pode ser conhecido (consequentemente fica para apreciação somente a questão da determinação da pena única)”; de 26-06-2013, processo n.º 298/10.6PAMTJ.L1.S1-5.ª; de 04-07-2013, processo n.º 39/10.8JBLSB.L1.S1-3.ª (em causa três crimes de ocultação de cadáver, um de falsificação e um de detenção de arma, todos punidos com penas inferiores a 8 anos, tendo sido considerada irrecorrível a decisão impugnada no que respeita à condenação do recorrente pela prática de tais crimes); de 10-07-2013, processo n.º 413/06.4JAFAR.E2.S1-3.ª (irrecorribilidade quanto a burla qualificada punida com 7 anos de prisão, a falsificação de documento, branqueamento e falsidade de declaração, punidas com penas inferiores, restringindo-se a cognição à pena conjunta); de 12-09-2013, processo n.º 1445/09.6JAPRT.P1.S1-3.ª (irrecorribilidade das penas parcelares e de pena conjunta inferior a 8 anos e apreciação de uma outra pena conjunta); de 30-10-2013, processo n.º 806/09.5JAPRT.S1-3.ª; de 21-05-2014, processo n.º 200/08.5AESP.P1.S1-3.ª; de 10-09-2014, processo n.º 1027/11.2PCOER.L1.S1-3.ª (irrecorribilidade das penas parcelares fixadas em 5 anos e em 2 anos e 6 meses de prisão, sendo que a pena única de 5 anos e 9 meses de prisão foi substituída por pena relativamente indeterminada de 3 anos e 10 meses e 11anos e 9 meses, não se tendo tomado conhecimento por não integrar o objecto do recurso); de 24-09-2014, processo n.º 994/12.3PBAMD.L1.S1-3.ª (irrecorribilidade quanto à pena de seis anos de prisão aplicada por crime de incêndio); de 29-10-2014, processo n.º 418/07.8GFOER.L1.S1-3.ª; de 26-11-2014, processo n.º 65/10.7PFALM.L1.S1-3.ª (irrecorribilidade quanto a todos os crimes - dois roubos qualificados, extorsão tentada, detenção de arma proibida, tráfico de menor gravidade e falsificação de documento, sendo apreciada a pena conjunta); de 11-02-2015, processo n.º 83/13.3JAPDL.L1.S1-3.ª.

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      Esta solução quanto a irrecorribilidade de decisões proferidas, em recurso, pelo Tribunal da Relação, enquanto confirmativas da deliberação da primeira instância – no caso, relativamente apenas à pena aplicada pela prática do crime de incêndio – não ofende qualquer garantia do arguido, nomeadamente, o direito ao recurso, expressamente incluído na parte final do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição pela 4.ª Revisão Constitucional (introduzida pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro – Diário da República, I-A, n.º 218/97, de 20-09-1997, entrada em vigor em 5 de Outubro de 1997).

       O direito ao recurso em matéria penal inscrito como integrante da garantia constitucional do direito à defesa (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) está consagrado em um grau, possibilitando a impugnação das decisões penais através da reapreciação por uma instância superior das decisões sobre a culpabilidade e a medida da pena, sendo estranho a tal dispositivo a obrigatoriedade de um terceiro grau de jurisdição, por a Constituição, no seu artigo 32.º, se bastar com um duplo grau de jurisdição, já concretizado no caso dos autos, aquando do julgamento pela Relação.

     No caso em reapreciação, há uma afirmação de identidade de decisão completa, total, pois que o Tribunal da Relação do Porto confirmou o acórdão do Colectivo da 1.ª Vara de Competência Mista de Vila Nova de Gaia, estando-se, pois, perante a assunção de uma dupla conforme condenatória total, mostrando-se cumprido o duplo grau de jurisdição exercido pela Relação em via de recurso.

     O princípio da dupla conforme é assegurado através da possibilidade de os sujeitos processuais fazerem reapreciar, em via de recurso, pela 2.ª instância, a precedente decisão; por outro lado, impede, ou tende a impedir, que um segundo juízo, absolutório ou condenatório, sobre o feito, seja sujeito a uma terceira apreciação pelos tribunais.

     As garantias de defesa do arguido em processo penal não incluem o 3.º grau de jurisdição, por a Constituição, no seu artigo 32.º, se bastar com um 2.º grau, já concretizado no presente processo.

     O acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação em segunda instância, consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição.

     O Tribunal Constitucional tem sido chamado a decidir da constitucionalidade quanto à perspectiva de violação do direito ao recurso, a propósito das alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, concretamente se o direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição impõe um duplo recurso ou um triplo grau de jurisdição em matéria penal, sendo a resposta maioritariamente no sentido negativo - acórdãos n.º 189/2001, de 3 de Maio, proferido no processo n.º 168/01-1.ª Secção (Acórdãos do Tribunal Constitucional – ATC – volume 50, pág. 285), 215/2001, 336/2001, 369/2001, de 19 de Julho, 435/2001, de 11 de Outubro, 451/2003, de 14 de Outubro, processo n.º 527/03-1.ª Secção, 495/2003, de 22 de Outubro de 2003, processo n.º 525/03-3.ª Secção (citando os acórdãos n.º s 189/2001 e 369/2001), 102/2004, de 11 de Fevereiro, 390/2004, de 2 de Junho de 2004, processo n.º 651/03-2.ª Secção, versando sobre a alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, publicado in Diário da República, II Série, de 07-07-2004 e ATC, volume 59, pág. 543, 610/2004, de 19 de Outubro, 640/2004 (supra citado), 104/2005, de 25 de Fevereiro, 255/2005, de 24 de Maio, processo n.º 159/05-1.ª Secção, 64/2006 (supra citado), 140/2006, de 24 de Março, 487/2006, de 20 de Setembro, processo n.º 622/06 (ATC, volume 65, pág. 815, sumário), 682/2006, de 13 de Dezembro, processo n.º 844/06-2.ª Secção (ATC, volume 66, pág. 835, sumário), 263/2009, de 25 de Maio, processo n.º 240/09-1.ª Secção (ATC, volume 75, pág. 249), 551/2009, de 27 de Outubro, 3.ª Secção (ATC, volume 76, pág. 566, sumário) 645/2009, de 15 de Dezembro, processo n.º 846/09- 2.ª Secção (ATC, volume 76, pág. 575), 174/2010, de 4 de Maio, processo n.º 159/10-1.ª Secção, 175/2010, de 4 de Maio, processo n.º 187/10-1.ª Secção e 659/2011, de 21 de Dezembro, processo n.º 670/11, da 2.ª Secção.

         

        O Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar que o direito ao recurso como garantia de defesa do arguido não impõe um duplo grau de recurso.

      A apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas – neste sentido, o acórdão n.º 49/2003, de 29 de Janeiro, proferido no processo n.º 81/2002, da 3.ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, de 16-04-2003 e em ATC, volume 55, versando sobre caso de acórdão condenatório, que não confirma a decisão absolutória proferida em primeira instância e a interpretação do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/98.

      Neste acórdão considera-se que o direito ao recurso, no domínio do processo penal, se basta com a existência de um duplo grau de jurisdição, mesmo em situações de acórdãos condenatórios, proferidos pelas Relações, revogatórios de decisões absolutórias da 1.ª instância, neste sentido se pronunciando igualmente os supra referidos acórdãos n.º 255/2005, de 24 de Maio, processo n.º 159/05-1.ª Secção, n.º 487/2006, de 20 de Setembro, processo n.º 622/06, n.º 682/2006, de 13 de Dezembro, processo n.º 844/06-2.ª Secção (ATC, volume 66.º, pág. 835), n.º 424/2009, infra referenciado.

   

     Como se afirmava no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 44/2005, de 26 de Janeiro de 2005, proferido no processo n.º 950/04-1.ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, de 13 de Fevereiro de 2006, pronunciando-se sobre a alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º, e seguindo o citado acórdão n.º 49/2003 “…estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias. Tais fundamentos são a intenção de limitar em termos razoáveis o acesso ao STJ, evitando a sua eventual paralisação (…). Não se pode, assim, considerar infringido o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição (…) já que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas”.

      No mesmo sentido se pronunciaram, entre vários outros, o acórdão n.º 390/2004, de 2 de Junho de 2004, proferido no processo n.º 651/03-2.ª Secção, citado pelo anterior – versando sobre a alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, publicado in Diário da República, II Série, de 07-07-2004 e ATC, volume 59, pág. 543; acórdão n.º 2/2006, de 3 de Janeiro de 2006, da 2.ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, de 13-02-2006 e ATC volume 64, pág. 937, em sumário (Não é constitucionalmente imposto, mesmo em processo penal, um 3.º grau de jurisdição); o supra citado acórdão n.º 64/2006, de 24 de Janeiro de 2006, tirado em Plenário (face à contradição das soluções dos acórdãos n.º 628/2005 e n.º 640/2004), no processo n.º 707/2005, publicado no Diário da República, II Série, de 19-05-2006 e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 64.º, 2006, págs. 447 e seguintes (a Constituição não impõe um triplo grau de jurisdição ou um duplo grau de recurso, mesmo em Processo Penal); e acórdão n.º 140/2006, de 21 de Fevereiro de 2006, da 2.ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, de 22-05-2006 (e com sumário em ATC, volume 64, pág. 950).

   

     No mesmo sentido se tem pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente, nos arestos supra referidos e ainda de 06-02-2008, processo n.º 111/08-3.ª; de 03-04-2008, processo n.º 4827/07-5.ª; de 17-04-2008, processo n.º 903/08-3.ª; de 30-04-2008, processo n.º 110/08-5.ª; de 05-06-2008, processo n.º 1226/08-5.ª; de 03-09-2008, processo n.º 2510/08-3.ª; de 29-10-2008, processo n.º 3061/08 -5.ª; de 13-11-2008, processo n.º 4455/07-5.ª; de 27-11-2008, processo n.º 2854/08-3.ª; de 21-01-2009, processo n.º 2387/08; de 22-04-2009, processo n.º 480/09-3.ª; de 29-04-2009, processo n.º 391/09-3.ª; de 07-10-2009, processo n.º 35/01.6AFIG.C2.S1-3.ª; de 21-10-2009, processo n.º 306/07.8GEVFX.L1.S1 -3.ª, onde se pode ler: “o nosso sistema de recursos não abdica de um duplo grau de jurisdição em matéria penal, de acordo com o artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, aprovado para ratificação pela Lei n.º 29/78, de 12-06, que não impõe um triplo grau de jurisdição. Em consonância o artigo 5.º, n.º 4, da CEDH, limita-se, e só, a assegurar o direito ao recurso de qualquer pessoa condenada em pena de prisão ou a detenção. E nem se diga que a solução preconizada, atenta contra o direito fundamental do acesso ao direito e à justiça consagrado no artigo 20.º da CRP, porque o direito de defesa do arguido não exige, sempre e em todas as condições, mais do que um grau de recurso”.

     E ainda no citado acórdão de 29-10-2009, processo n.º 18/06.0PELRA.C1.S1-5.ª Secção, in CJSTJ 2009, tomo 3, pág. 224; de 13-10-2010, processo n.º 1252/07.0TABCL.G1.S1-3.ª; de 02-12-2010, processo n.º 263/06.8JFLSB.L1.S1-5.ª; de 19-01-2011, processo n.º 421/07.8PCAMD.L1.S1-3.ª; de 27-04-2011, processo n.º 712/00.9JFLSB.L1.S1-3.ª; de 13-07-2011, processo n.º 352/01.5TACBR.C1.S1-3.ª; de 09-11-2011, processo n.º 43/09.9PAAMD.L1.S1-3.ª, de 21-12-2011, processos n.º 130/10.0GCVIS.C1.S1-3.ª e n.º 37/06.6GBMFR.S1-3.ª (o direito ao recurso como direito de defesa, inscrito como garantia constitucional no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, satisfaz-se com o duplo grau de jurisdição ou um grau de recurso, não exigindo, no plano constitucional, a previsão e a admissibilidade de um triplo grau de jurisdição e segundo grau de recurso, sendo esta a jurisprudência firmada e constante do Tribunal Constitucional - cf. acórdão n.º 187/10, aliás, 175/10, de 4 de Maio); de 28-12-2011, processo (habeas corpus) n.º 150/11.8YFLSB.S1-3.ª; de 29-03-2012, processo n.º 334/04.5IDPRT.P1.S1 – 3.ª (o direito ao recurso, como garantia constitucional, postula apenas o duplo grau de jurisdição que não se confunde com o duplo grau de recurso); de 11-04-2012, processo n.º 1042/07.0PAVHG.P1.S1-3.ª; de 26-04-2012, processo n.º 438/07.2PBVCT.G1.S1-5.ª.

     

      Relativamente à questão da constitucionalidade do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, pronunciaram-se no mesmo sentido de não inconstitucionalidade os acórdãos n.º s 20/2007, de 17 de Janeiro-3.ª Secção (Diário da República, II Série, de 20-03-2007 e ATC, volume 67, pág. 831, sumário), 36/2007, de 23 de Janeiro de 2007, 2.ª Secção (ATC, volume 67, pág. 832), 346/2007, de 6 de Junho de 2007, 1.ª Secção, (ATC, volume 69, pág. 852), 530/2007, de 29 de Outubro de 2007, 3.ª Secção (ATC, volume 70, pág. 766, em sumário), 599/2007, de 11 de Dezembro de 2007, 2.ª Secção (ATC, volume 70, pág. 772, em sumário).

      A constitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na actual redacção, na medida em que condiciona a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, que decidiu não a julgar inconstitucional – acórdão n.º 263/2009, de 25 de Maio, processo n.º 240/09-1.ª Secção (ATC, volume 75, pág. 249), acórdão n.º 551/2009, de 27 de Outubro - 3.ª Secção, versando a questão, inclusive, ao nível do artigo 5.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do artigo 5.º do CPP (ATC, volume 76, pág. 566), acórdão n.º 645/2009, de 15 de Dezembro, processo n.º 846/2009 - 2.ª Secção (ATC, volume 76.º, pág. 575 - em sumário e com referência ao artigo 5.º, n.º 2, do CPP), o infra mencionado acórdão n.º 649/2009, de 15 de Dezembro - 3.ª Secção, confirmando decisão sumária que emitiu juízo de não inconstitucionalidade  (ATC volume 76, pág. 575, igualmente em sumário), e acórdão n.º 174/2010, de 4 de Maio, processo n.º 159/10-1.ª Secção.

     Por seu turno, o acórdão n.º 424/2009, de 14 de Agosto, proferido no processo 591/09-2.ª Secção, decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), conjugada com a norma do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 48/2007, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso para o STJ de acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão efectiva

     E, mais recentemente, no acórdão n.º 385/2011, de 27 de Julho de 2011, proferido no processo n.º 470/11, da 2.ª Secção, foi decidido “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que, apesar de ter confirmado a decisão de 1.ª instância em pena não superior a 8 anos, se pronunciou pela primeira vez sobre um facto que a 1.ª instância não havia apreciado”.

     Na fundamentação deste acórdão, tendo-se por adquirido que no caso a Relação mantivera a decisão condenatória da 1.ª instância, “apesar de ter ampliado os pressupostos factuais da mesma”, pode ler-se:

     “Ora, com uma reapreciação jurisdicional, independentemente do seu resultado, revela-se satisfeito esse direito de defesa do arguido, pelo que a decisão do tribunal de recurso já não está abrangida pela exigência de um novo controle jurisdicional.

     O facto de nessa reapreciação se ter ampliado a matéria de facto considerada relevante para a decisão a proferir, traduz precisamente as virtualidades desse meio de controle das decisões judiciais, não sendo motivo para se considerar que estamos perante uma primeira decisão sobre o thema decidendum, relativamente à qual é necessário garantir também o direito ao recurso.

     Na verdade, a ampliação da matéria de facto julgada provada não modifica o objecto do processo. Tal como na decisão da 1.ª instância, o acórdão do Tribunal da Relação que sobre ela recai limita-se a verificar se o arguido pode ser responsabilizado pela prática do crime de que estava acusado e, na hipótese afirmativa, a definir a pena que deve ser aplicada, o que se traduz num reexame da causa”.

     Referimos já o acórdão n.º 649/2009, de 15 de Dezembro de 2009, proferido no processo n.º 846/09, 3.ª Secção, do Tribunal Constitucional, o qual decidiu:

      “a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, na medida em que condiciona a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.

     Não julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, e artigo 5.º, n.º 2, do mesmo Código, interpretada no sentido de que, em processos iniciados anteriormente à vigência da Lei n.º 48/2007, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância, proferida após a entrada em vigor da referida lei, e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.”

     De igual modo, no acórdão n.º 643/2011, de 21 de Dezembro de 2011, proferido no processo n.º 624/11, da 3.ª Secção e na decisão sumária n.º 366/12, proferida no processo n.º 552/12, da 2.ª Secção, o Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre a interpretação normativa em causa, não a tendo julgado inconstitucional.

     Do acórdão deste Supremo Tribunal proferido no processo n.º 1324/08.4PPPRT.P1.S1, desta Secção, datado de 9 de Maio de 2012, aclarado em acórdão de 20 de Junho seguinte, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, que em 5 de Dezembro de 2012, pelo acórdão n.º 590/2012, proferido pela 1.ª Secção, decidiu, com um voto de vencido:

     «Julgar inconstitucional o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal (CPP), na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objecto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa».

    Pelo Ministério Público foi interposto recurso obrigatório deste acórdão para o Plenário, nos termos do artigo 79.º - D, n.º 1, da LTC, por as soluções dos acórdãos n.º 590/2012 e n.º 649/2009 divergirem em absoluto sobre a questão de saber se é constitucionalmente conforme “interpretar o artigo 400.º, n.º 1, alínea f) , no sentido de que havendo uma pena única superior a 8 anos de prisão, não pode ser objecto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal.»

     O acórdão recorrido veio a ser revogado pelo acórdão n.º 186/2013, de 4 de Abril de 2013, tirado em Plenário, proferido no processo n.º 543/12, da 1.ª Secção, com cinco votos a favor, três declarações de voto e cinco votos de vencido, onde se inclui a relatora do acórdão n.º 590/2012, tendo sido decidido:

    «Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objecto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão».

       

     Na mesma linha, o acórdão n.º 659/2011, de 21 de Dezembro, proferido no processo n.º 670/11, da 2.ª Secção, decidiu:

     “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de não ser admissível o recurso de acórdão condenatório proferido, em recurso, pela Relação, que confirma a decisão de 1.ª instância e aplique pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo no caso de terem sido arguidas nulidades de tal acórdão”.

     Através deste Acórdão n.º 659/2011, esclareceu-se que:

     «Também no caso dos autos, tendo sido assegurado aos arguidos um duplo grau de jurisdição (uma vez que tiveram a possibilidade de, face à mesma imputação penal, defender-se perante dois tribunais: o tribunal de 1." instância e o tribunal da Relação), a questão que se coloca é a de saber se, tendo sido arguidas nulidades do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, é inconstitucional limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, por aplicação da regra da dupla conforme, prevista na alínea f) do n.° 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal. (…) Importa, antes de mais, ter em consideração o regime de arguição e conhecimento das nulidades em processo penal, que garante, mesmo em caso de irrecorribilidade, a possibilidade de serem arguidas nulidades da decisão perante o tribunal que a proferiu (como, aliás, aconteceu no presente caso), tendo este poderes para suprir as eventuais nulidades cuja existência reconheça (cfr. artigos 379º nº 2, e 414°, n.° 4, do Código de Processo Penal).

     Ora, sendo certo, conforme se disse, que o artigo 32.° n.º 1, da Lei Fundamental, não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição em relação a quaisquer decisões penais condenatórias, resta verificar se, nos casos em que o Tribunal da Relação profere acórdão em que mantém a decisão condenatória da 1.ª instância e é arguida a nulidade de tal acórdão, se mostra cumprida a garantia constitucional do direito ao recurso, quando exige que o processo penal faculte à pessoa condenada pela prática de um crime a possibilidade de requerer uma reapreciação do objeto do processo por outro tribunal, em regra situado num plano hierarquicamente superior.

     Com uma reapreciação jurisdicional, independentemente do seu resultado, revela-se satisfeito esse direito de defesa do arguido, pelo que a decisão do tribunal de recurso já não está abrangida pela exigência de um novo controle jurisdicional. E o facto de, na sequência dessa reapreciação, terem sido arguidas nulidades do acórdão do Tribunal da Relação não constitui motivo para se considerar que estamos perante uma primeira decisão sobre o thema decidendum, relativamente à qual é necessário garantir também o direito ao recurso.

     Com efeito, a circunstância de os recorrentes terem arguido nulidades do acórdão do Tribunal da Relação não modifica o objeto do processo uma vez que, tal como a decisão da 1ª instância, o acórdão do Tribunal da Relação que sobre ela recai limita-se a verificar se o arguido pode ser responsabilizado pela prática do crime que estava acusado e, na hipótese afirmativa, a definir a pena que deve ser aplicada, o que se traduz num reexame da causa.

     O Acórdão do Tribunal da Relação constitui, assim, já uma segunda pronúncia sobre o objeto do processo, pelo que não há que assegurar a possibilidade de aceder a mais uma instância de controle, a qual resultaria num duplo recurso, com um terceiro grau de jurisdição.

     Por outro lado, existindo sempre a possibilidade de arguir as referidas nulidades perante o tribunal que proferiu a decisão, mesmo quando esta seja irrecorrível, a apreciação de nulidades do acórdão condenatório não implica a necessidade de existência de mais um grau de recurso, tanto mais em situações, como a dos autos, em que existem duas decisões concordantes em sentido condenatório (uma vez que o Tribunal da Relação confirmou a decisão da 1ª instância nesse sentido).

     Acresce que, se fosse entendido que a arguição da nulidade de um acórdão proferido em recurso implicaria, sempre e em qualquer caso, com fundamento no direito ao recurso em processo penal, a abertura de nova via de recurso, ter-se-ia de admitir também o recurso do acórdão proferido na terceira instância, com fundamento na sua nulidade, e assim sucessivamente, numa absurda espiral de recursos.

     Impõe-se, pois, concluir que não é constitucionalmente censurável, neste caso, a exclusão do terceiro grau de jurisdição e que a interpretação normativa objeto de fiscalização não viola o disposto no artigo 32. °, nº 1, da Constituição.».

     Este acórdão n.º 659/2011 foi corroborado pelo acórdão n.º 194/2012 da 3.ª Secção e acórdão n.º 399/2013, de 15 de Julho de 2013, processo n.º 171/13 da 2.ª Secção, este respeitante à alínea c) do n.º 1 do artigo. 400.º do CPP, mas seguindo de perto o acórdão n.º 659/2011. (Os dois acórdãos estão disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.).

     A decisão sumária n.º 114/2014, proferida no processo n.º 139/14-2.ª Secção, de 12 de Fevereiro de 2014 (proferida no âmbito do processo n.º 1027/11.2PCOER.L1.S1 desta 3.ª Secção), transpondo as razões expostas no acórdão n.º 659/2011, decidiu “não julgar inconstitucional a norma extraída da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de determinar a irrecorribilidade do acórdão do Tribunal da Relação ao qual seja imputada uma nulidade”.

     O recorrente reclamou para a conferência, tendo o acórdão n.º 290/2014, de 26 de Março de 2014, indeferido a reclamação.   

    

     Em suma, tendo-se alterado o paradigma de «pena aplicável» para «pena aplicada», o regime resultante da actual redacção da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal tornou inadmissível o recurso para o STJ de acórdãos condenatórios proferidos pelas Relações quando, confirmando decisão anterior, apliquem pena não superior a 8 anos de prisão.

    No sujeito caso concreto, como vimos, a pena aplicada ao recorrente pelo crime de detenção de arma proibida foi a de 1 ano e 4 meses de prisão, acontecendo que a confirmação pelo tribunal de recurso é total, integral, completa, absoluta.

     No caso em apreciação estamos perante uma identidade total de decisão, uma dupla conforme total, pois que o Tribunal da Relação do Porto confirmou o acórdão condenatório do Colectivo de Vila Nova de Gaia na totalidade, mantendo-se exactamente a factualidade assente, a qualificação jurídico-criminal e as penas aplicadas.

     Está-se, pois, perante dupla conforme condenatória total – o acórdão da Relação do Porto é confirmativo da deliberação então reaprecianda, na totalidade, estando-se perante uma situação de identidade total, em que a confirmação integral é alcançada de modo expresso, com conhecimento do mérito.

    O princípio da dupla conforme, impeditivo de um terceiro grau de jurisdição e segundo grau de recurso, que não pode ser encarado como excepção ao princípio do direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, é assegurado através da possibilidade de os sujeitos processuais fazerem reapreciar, em via de recurso, pela 2.ª instância, a precedente decisão; por outro lado, como revelação ou indício de coincidente bom julgamento nas duas instâncias, impede, ou tende a impedir, que um segundo juízo, absolutório ou condenatório, sobre o feito, seja sujeito a uma terceira apreciação pelos tribunais.

     Como se refere no acórdão de 16 de Setembro de 2008, processo n.º 2383/08-3.ª, subjaz a tal instituto a ideia de que a concordância de duas instâncias quanto ao mérito da causa é factor indiciador do acerto da decisão, o que, em casos de absolvição ou de condenação em pena de prisão de pequena ou média gravidade, prévia e rigorosamente estabelecidos pelo legislador, justifica a limitação daquele direito.

       Resulta do exposto que o acórdão da Relação é irrecorrível na parte em que confirma a pena aplicada pelo crime de detenção de arma proibida, ficando fora do recurso quaisquer questões relativas a tal crime, maxime, a pena aplicada, que é assim definitiva. (Anote-se que enquanto no anterior recurso o recorrente pretendia pena de espécie diferente, de multa, conforme conclusões 15.ª, 16.ª e 17.ª, no presente pretende redução para um ano de prisão, conforme conclusão 14.ª).

       Assim sendo, resta apreciar as questões relacionadas com o crime de homicídio qualificado – qualificação – e a pena conjunta.

   

                                                           *******

    

      Antes de abordarmos as questões propostas agora reduzidas a qualificação e dosimetria da pena, quer no que toca ao crime de homicídio qualificado, quer no que tange à pena conjunta, atenta a motivação ora apresentada e segmento conclusivo serem praticamente simétricos com os anteriormente apresentados no recurso interposto para a Relação do Porto, é de colocar uma questão prévia relacionada com a rejeição ou não de recurso em tais condições.

  

     Questão Prévia II – (In)Admissibilidade do recurso por reedição/renovação no presente recurso de parte substancial da motivação e das conclusões apresentadas no anterior recurso para o Tribunal da Relação do Porto

   

      O recorrente no recurso ora em apreciação, ressalvado um segmento, repete ipsis verbis, em jeito de segunda edição não revista nem ampliada, o alegado no anterior recurso, incluído o texto das conclusões.

     Vindo o presente recurso interposto de acórdão da Relação do Porto, ao cotejarmos a motivação e as conclusões ora apresentadas com as que foram formuladas no recurso dirigido ao acórdão de Vila Nova de Gaia (fls. 848 a 879) ressalta à evidência a quase total coincidência entre umas e outras, estando-se perante um mero decalque, uma cópia, uma “nova edição”, praticamente não revista do recurso anterior, uma reprodução quase integral, em que pouco de novo se acrescenta.

     O recorrente no recurso interposto da decisão de primeira instância apresentou uma motivação - de fls. 848 a 879 - com 20 conclusões. 

     No presente recurso – fls. 1029 a 1051 – o recorrente sintetiza as suas pretensões recursivas em 14 conclusões.

     Como vimos, ao longo da motivação o recorrente coloca a questão da qualificação jurídica nas conclusões 1.ª a 10.ª e a questão da medida da pena, nas conclusões 11.ª a 14.ª.

     Ora, no que respeita a estas questões, o presente recurso mais não é do que a mera repetição do anterior, repetindo o recorrente o que então alegara, o que com toda a clareza se alcança da leitura da motivação anterior e da actual.

    Percorrendo o segmento conclusivo, no que toca à matéria que ora nos ocupa, as conclusões 1.ª, 2.ª, 3.ª e 4.ª do presente recurso são a reprodução letra a letra do que se continha nas conclusões 1.ª, 2.ª, 3.ª e 4.ª do primeiro recurso, as conclusões 5.ª, 6.ª e 7.ª, são a repetição textual do que se continha nas conclusões 6.ª, 7.ª e 8.ª do recurso dirigido à Relação, as actuais conclusões 8.ª, 9.ª, 10.ª e 11.ª, repetem o texto das conclusões 10.ª, 11.ª, 12.ª e 13.ª do primeiro recurso - fls. 877 - e as conclusões 12.ª, 13.ª e 14.ª, são a transcrição das conclusões 18.ª, 19.ª e 20.ª do anterior recurso - fls. 878/9.

     As diferenças de um recurso para o outro têm a ver com a retirada do que se continha nas conclusões 5.ª e 9.ª e nas conclusões 14.ª a 17.ª, estas relacionadas com a pretensão de aplicação ao crime de detenção de arma proibida da prevista em alternativa pena de multa, que veio a deixar cair no presente recurso.

     O recorrente age como se estivesse de novo, em segundo “round”, a reagir contra o acórdão do Tribunal de Gaia, olvidando quase por completo a reapreciação realizada pela Relação do Porto.

     Em termos globais, o presente recurso mais não é do que a mera repetição do recurso anterior, sem qualquer inovação, melhoria ou acrescento, sem introduzir o recorrente qualquer mais valia, elemento novo, diversa perspectiva de observação e análise, quase parecendo esquecer que o acórdão a impugnar é agora outro.

     Sendo os argumentos agora utilizados, na sua totalidade, exactamente os mesmos que foram dirigidos ao acórdão da primeira instância, tal significa que, em rigor, o recorrente não impugna o acórdão da Relação, esquecendo-se que a decisão agora em reexame é esta e não a da 1.ª instância.

     Reeditando agora os argumentos e as questões anteriormente postas à consideração da Relação, limita-se o recorrente a devolver ao Supremo Tribunal, ressalvado o segmento relativo a pretensão de aplicação de pena de multa, exactamente as mesmas questões que colocadas foram à Relação do Porto, que sobre elas se pronunciou, agindo como se estivesse a recorrer, afinal, uma outra vez, em segunda via, da deliberação do Tribunal de Gaia.

     A discordância nesta sede só fará sentido se dirigida à solução perfilhada pela Relação, com argumentos novos, específicos, dirigidos ao novo acórdão, com outros enquadramentos, explicitando razões jurídicas novas, dirigidas à nova decisão, agora recorrida, que infirmem os fundamentos nesta apresentados, pois agora é o acórdão da Relação o objecto de recurso e não a já reapreciada decisão da 1.ª instância.

     Tendo esta sido objecto de conhecimento e decisão na Relação, o recurso com tais características só poderá ser entendido como mera repristinação do inconformismo com o deliberado pela 1.ª instância.

     No caso presente, não há um novo esforço argumentativo, limitando-se o recorrente a repetir a linha argumentativa explanada junto do Tribunal da Relação, e embora não ignore de todo a existência do acórdão da Relação do Porto, que critica fugazmente a fls. 1032 e 1034, no fundo, não diz rigorosamente nada de novo, ou diverso.

     De novo apenas a descabida referência ao artigo 79.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, a fls. 1045 e fls. 1049, devida certamente a mero lapso, por não estar em causa punição de crime continuado.

     Nestes casos é de colocar a questão de saber se o recurso é de rejeitar por manifesta improcedência.  

     Para uma corrente jurisprudencial o recurso nestas condições é de rejeitar.

     Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, de 14 de Novembro de 2002, proferido no processo n.º 3092-5.ª “Quando o STJ é confrontado com um recurso da Relação, são os fundamentos do decidido em 2.ª instância que importa verificar e, não, os da decisão de 1.ª instância já sufragados pelo tribunal recorrido.

      Daí que quando o recorrente se limita a uma espécie de recauchutagem (…) dos fundamentos de recurso que apresentou perante a Relação, sem nada de novo trazer à discussão, verdadeiramente não apresenta motivação.

      O recurso que em tudo reedita o pretenso inconformismo do recorrente perante o deliberado em 1.ª instância não pode ser conhecido - não deveria, mesmo, ter sido admitido – por carência absoluta de motivação - arts. 411.º, n.º 3 , 414.º, n.º 2, e  417.º, n.º 3, al. a), do CPP”.

     No mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos de 17-10-2002, processo n.º 2815/02, de 12-12-2002, processo n.º 3221/02, de 22-05-2003, processo n.º 1672/03 e de 27-05-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 209, onde se pode ler “é de rejeitar o conhecimento do recurso interposto para o STJ, no qual o recorrente se limita a reeditar toda a argumentação já expendida no recurso antes interposto para o Tribunal da Relação e à qual aí se deu a necessária resposta”.

     E igualmente no sentido de falta de motivação se pronunciou o acórdão de 22-09-2004, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 158, onde se sintetiza: “No recurso interposto do Tribunal da Relação para o STJ devem-se especificar as razões de discordância com o ali decidido, pelo que a renovação da argumentação da impugnação interposta inicialmente para aquele Tribunal, sem qualquer novidade, equivale a falta de motivação, conducente à sua rejeição liminar”.

     Ou, como se extrai do acórdão de 24-01-2007, processo n.º 4812/07- 3.ª : «A repetição das conclusões ante as instâncias de recurso, particularmente as da Relação perante o STJ, ignorando o teor da decisão proferida na Relação, a qual subsiste inimpugnada e não contrariada em ordem à reparação do erro, conduz à rejeição do recurso por manifesta improcedência, tudo se passando como se a motivação estivesse ausente».

     Ainda neste sentido, podem ver-se os acórdãos de 12-04-2007, nos processos n.ºs 255/07 e 516/07, ambos da 5.ª secção, e de 02-10-2008, processo n.º 4725/07 – 5.ª, onde se afirma: «Quando, no recurso para o STJ, o recorrente nada acrescentou ao que já havia alegado quando se dirigiu à Relação, limitando-se a repetir a motivação, à qual, nesse anterior recurso, já fora dada cabal resposta, que o recorrente ignorou em absoluto, o recurso apresenta-se como manifestamente infundado, por isso sendo rejeitado».

     Como consta do acórdão deste Supremo e desta 3.ª Secção, de 7 de Novembro de 2007, processo n.º 3990/07: «Quando a questão objecto do recurso interposto para o Supremo seja a mesma do recurso interposto para a Relação, tem o recorrente de alegar (motivando e concluindo) como fundamento do recurso, as razões específicas que o levam a discordar do acórdão da Relação: - É que o acórdão recorrido é o acórdão do tribunal superior - o tribunal da Relação -, que decidiu o recurso interposto e, não o acórdão proferido na 1ª instância.

      Não aduzindo o recorrente discordância específica relativamente ao acórdão da Relação, que infirme os fundamentos apresentados pela Relação, no conhecimento e decisão da mesma questão já suscitada no recurso interposto da decisão da 1ª instância, há manifesta improcedência do recurso assim interposto para o Supremo».

     No sentido de rejeição, mais recentemente, pode ver-se o acórdão de 30-10-2013, proferido no processo n.º 806/09.5JAPRT.S1-3.ª.

     Em sentido oposto pode citar-se, v. g., o acórdão de 10-10-2007, proferido no processo n.º 3315/07-3.ª (com um voto de vencido), aí se defendendo que a hipótese de rejeição em caso de reprodução da argumentação do recurso dirigida à Relação não está prevista na lei, explicitando, a propósito: “…os casos de rejeição do recurso, atenta a sua finalidade de reparação de eventual erro judiciário, de melhor decisão no plano substancial, ultrapassando o fim de mero “refinamento” teórico, levam a que se tenha presente que o recorrente pode discordar da decisão da Relação, repetindo os fundamentos antes invocados, por estar convicto de que aquela lhe não deu resposta, justificando a sua duplicação para o STJ e que, sem mais, se não lance mão daquele expediente radical”.  

     No mesmo sentido se pronunciou o acórdão do mesmo dia e secção, no processo n.º 2684/07, conhecendo-se, ainda, por obviamente admitidos, de recursos nestas condições, nos acórdãos de 17-10-2007, no processo n.º 3265/07 e de 17-04-2008, nos processos n.ºs 677/08 e 823/08, todos da 3.ª Secção, podendo ainda ver-se o acórdão de 22-10-2008, processo n.º 3274/08-3.ª.

      Num quadro de um mesmo tipo de impugnação diz-se no acórdão de 27-05-2010, processo n.º 58/08.4JAGDR.C1.S1-3.ª, in CJSTJ 2010, tomo 2, pág. 206: “Neste condicionalismo a rejeição do recurso não tem por contraste um alheamento, ou ostracização, da decisão do Tribunal da Relação, mas sim uma eventual persistência da mesma crítica que já foi dirigida à decisão de primeira instância por considerar que se mantêm as razões anteriormente deduzidas. A rejeição do recurso representaria neste condicionalismo uma insuportável desproporcionalidade perante a irregularidade praticada”.

     No acórdão de 19 de Janeiro de 2011, processo n.º 376/06.6L1.S1, desta Secção, após citar-se o acórdão de 7-11-2007, consta: «Porém, se nos afastarmos dessa perspectiva um tanto redutora ou restritiva, de ordem processual formal, e esgrimirmos numa vertente quiçá mais garantística da ratio do artº 32º nº1 da Constituição da República, poderá dizer-se que embora o recorrente reedite no presente recurso para o Supremo, as mesmas conclusões apresentadas no recurso interposto para a Relação -  e, por isso, as questões ventiladas no recurso são as mesmas, e, embora não aduza discordância específica relativamente ao acórdão da Relação, não explicitando razões jurídicas novas perante o acórdão da Relação, que infirmem os fundamentos apresentados pela Relação no conhecimento e decisão das mesmas questões -, não significa, contudo, que fique excluída a apreciação dessas mesmas questões mas agora relativamente à dimensão constante do acórdão recorrido, o acórdão da Relação, no que for legalmente possível em reexame da matéria de direito perante o objecto do recurso interposto para o Supremo, pois que o recurso enquanto remédio, é expediente legal para correcção da decisão recorrida (não seu mero aperfeiçoamento), como meio de impugnar e contrariar a mesma, embora, sem prejuízo de, se nada houver, de novo, a acrescentar relativamente aos fundamentos já aduzidos pela Relação na fundamentação utilizada para o julgamento dessas mesmas questões, e que justifique a alteração das mesmas, seja de concluir por manifesta improcedência do recurso, pois que caso concorde com a fundamentação da Relação, não incumbe ao Supremo que justifique essa fundamentação com nova argumentação».

     Acolhemos esta orientação nos acórdãos de 30-04-2008, no processo n.º 4723/07, de 25-06-2008, no processo n.º 449/08, de 03-09-2008, no processo n.º 3982/07, de 21-01-2009, no processo n.º 2387/08, de 06-07-2011, no processo n.º 774/08.0JFLSB.L1.S1, de 11-12-2012, processo n.º 951/07.1GBMTJ.E1.S1, e revendo-se, a partir do primeiro citado, a posição assumida nos acórdãos de 10-10-2007, no processo n.º 3197/07 e de 12-03-2008, no processo n.º 112/08, por a repetição/renovação de motivação não dever ser equiparada à sua falta e não estar prevista a possibilidade de rejeição de recurso para os casos em que o recorrente se limita a repetir a argumentação já apresentada no recurso interposto para o Tribunal da Relação.

       Mais recentemente, neste sentido se pronunciou o acórdão de 29-05-2013, processo n.º 1264/11.0PCSTB.E1.S1-3.ª, CJSTJ 2013, tomo 2, pág. 185, o acórdão de 10-04-2014, processo n.º 563/12.8PBEVR.E1.S1-3.ª e o acórdão de 24-09-2014, por nós relatado no processo n.º 994/12.3PBAMD.L1.S1.

      Pelo exposto, entende-se não ser de rejeitar o recurso, não sendo de colocar o óbice da inadmissibilidade do recurso por esta razão.

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     Questão I – Alteração da qualificação jurídica – Convolação para o crime base?

      Tendo sido condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º s 1 e 2, alínea b), do Código Penal, o recorrente, nas conclusões 1.ª a 10.ª, pugna pela integração da conduta dada por provada no crime de homicídio simples, p. p. pelo artigo 131.º do mesmo Código. 

     O Crime de Homicídio Qualificado

     Estabelece o artigo 132.º do Código Penal [na redacção dada pela 23.ª alteração do diploma, operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, entrada em vigor em 15 seguinte, que procedeu à republicação do Código Penal, e vigente à data da prática dos factos – 3 de Setembro de 2012 – e inalterado pelas subsequentes cinco modificações (introduzidas pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro (altera o regime jurídico do divórcio, modificando a redacção dos artigos 249.º e 250.º); pela Lei n.º 32/2010, de 2 de Setembro (alterando os artigos 111.º, 118.º, 372.º, 373.º, 374.º e 386.º e aditando os artigos 278.º-A, 278.º-B, 374.º-A e 374.º-B e 382.º-A, sendo que esta lei entrou em vigor apenas em 2 de Março de 2011); pela Lei n.º 40/2010, de 3 de Setembro (que alterando a lei que aprovou o CEPMPL – Lei n.º 115/09, de 12-10 - e a LOFTJ, em coexistência pacífica das duas versões, a da Lei n.º 3/99, de 13-01, e a da Lei n.º 52/2008, de 28-09 – altera, absolutamente fora deste quadro, o artigo 30.º, n.º 3, do CP, apenas suprimindo a expressão “salvo tratando-se da mesma vítima” para resolver um problema de crime continuado criado em Agosto de 2007); pela Lei n.º 4/2011, de 16 de Fevereiro (que a nível de Código Penal apenas deu nova redacção ao n.º 2 do artigo 374.º-A, que foi aditado pela Lei n.º 32/2010 e por isso a entrada em vigor teve lugar na data em que entrou em vigor a referida Lei n.º 32/2010, ou seja, em 2 de Março de 2011, conforme artigo 3.º, n.º 1), pela Lei n.º 56/2011, de 15 de Novembro (prescrevendo sobre crimes ambientais, apenas alterou a redacção dos artigos 274.º, 278.º, 279.º, 280.º e 286.º e aditou o artigo 279.º-A), que aprovaram, respectivamente, as 24.ª, 25.ª, 26.ª, 27.ª e 28.ª alterações ao Código Penal):

1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 – É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau.

      (Apenas se transcreve a qualificativa que se mostra pertinente no caso sub judice).

     Mais recentemente, já após a prática dos factos ora em causa, a Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, que procedeu à 29.ª alteração ao Código Penal e primeira alteração à Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, modificou, no que ora importa, e para além do mais, a redacção da alínea f) do n.º 2 do artigo 132.º, como melhor veremos infra.

    A Lei n.º 59/2004, de 26 de Agosto, procede à 32.ª alteração ao Código Penal, qualificando os crimes de homicídio e de ofensas à integridade física cometidos contra solicitadores, agentes de execução e administradores judiciais, dando nova redacção à alínea l).

     No n.º 2 do preceito, enumeram-se as “entre outras” [actualmente doze – fazendo as alíneas a) a m)] circunstâncias, susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior.

    (Se a expressão “entre outras” dá nota do carácter exemplificativo, não taxativo, do elenco enunciado, da susceptibilidade de revelação do especial tipo de culpa agravada decorre, necessariamente, a não automaticidade da verificação da qualificativa, sendo apenas sintomáticas. Donde, a enumeração de alguns – inicialmente, sete, actualmente, doze – dos factos-índice, susceptíveis de integração por situações análogas).

    O Homicídio Qualificado

     Segundo opinião dominante, o homicídio qualificado não é mais que uma forma agravada do homicídio simples, previsto no artigo 131.º do Código Penal, que constituirá, pois, a matriz, o tipo base, fundamental.

     O Código Penal de 1982, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, entrado em vigor em 1 de Janeiro de 1983 (artigo 2.º), em matéria de qualificação do homicídio, seguiu um método de combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão – assim, Figueiredo Dias, em Parecer (Homicídio Qualificado – Premeditação – Imputabilidade – Emoção Violenta), publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XII, 1987, tomo 4, págs. 49 a 55.

     (A verdade é que, lido o preâmbulo do diploma - III Parte Especial, n.ºs 18 a 36 - não se surpreende uma palavra sobre o tema, maxime, no ponto 28, em que é destacado apenas o crime de participação em rixa).

      Aí expende o Autor – fls. 52 – que “a agravação da culpa tem afinal a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples”.

      A aceitação de utilização de cláusulas gerais, de conceitos indeterminados, a não taxatividade das circunstâncias alinhadas no n.º 2, a concepção de tipo com carácter aberto, em suma, a compatibilidade do artigo 132.º do Código Penal com o princípio da legalidade tem suscitado dúvidas na Doutrina, no que toca ao respeito pelo princípio da tipicidade/legalidade e da possibilidade da analogia e interpretação declarativa.

      Logo no início da vigência do novo Código, que sucedia ao Código Penal de 1852/1886, foram as críticas refutadas por Figueiredo Dias e Eduardo Correia, defendendo ambos que as circunstâncias apontadas no n.º 2 não integram a ilicitude do facto, sendo antes elementos da culpa, pelo que a elas não será de opor o princípio da legalidade, que vale apenas para o tipo, e este encontra-se delimitado no n.º 1.

      Lopes Rocha, in Jornadas de Direito Criminal, Fase I - A Parte Especial do Novo Código Penal, Centro de Estudos Judiciários, Abril de 1983, pág. 354, referindo-se ao artigo 132.º, diz que “O n.º 2, como se ponderou no seio da Primeira Comissão Revisora, corresponde à intenção de colocar nas mãos dos juízes alguns critérios com base nos quais possam dar aplicação ao estatuído no n.º 1. A enunciação é por isso meramente enunciativa e exemplificativa, e não taxativa.

      A solução foi criticada, por perigosa, e por permitir o arbítrio do juiz, se não mesmo por contrariar certos princípios gerais como o do «nullum crimen sine lege» e o da proibição da analogia.

      Foi respondido que o n.º 2 não pretende alargar o tipo, representado no n.º 1 com a máxima amplitude, e que as circunstâncias daquele número deveriam ser tidas como elementos da culpa e não do tipo”.

      Conclui o Autor: “Sendo assim, já não há lugar a arbítrio quando se segue uma enumeração não taxativa”.

      Fernanda Palma, in O Homicídio Qualificado no Novo Código Penal Português, 1983, Revista do Ministério Público, ano 4.º, volume 15, pág. 59, relativamente à natureza da agravação do homicídio qualificado, defende tratar-se de “agravação da ilicitude e da culpa, conjuntamente. A descrição típica do homicídio qualificado não indica um conteúdo preciso para a agravação da ilicitude que prevê. Baseia a agravação da ilicitude num conceito normativo de contornos vagos «censurabilidade» ou «perversidade» do agente. Por isso ela terá de ser contrária ao princípio da legalidade, por deixar nas mãos do julgador a construção do tipo”.

       E no final da conferência, em trecho vazado a págs. 74, dizia que “as dificuldades que ela (técnica legislativa usada) nos anuncia devem pôr-nos já no caminho da sua reforma”.

        Teresa Serra, in Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, págs. 121/3, a este propósito escreveu: «Reprovar a existência de uma enumeração exemplificativa de circunstâncias, acusando-a de violar a proibição da analogia, conduziria, no caso em apreço, não a uma verdadeira, mas a uma falsa aporia», traduzida nas palavras do ditado popular “Preso por ter cão e preso por não o ter”.

        Defende a Autora uma nova leitura do preceito, porque “as duas partes do mesmo complementam-se entre si”, havendo que “atentar no preceito no seu conjunto”.

       E explicita: «Com a conjugação de uma cláusula geral e de uma enumeração exemplificativa, a técnica dos exemplos-padrão logra atingir uma unidade nova e superior evidenciada no preceito do artigo 132.º, a que, por razões óbvias, não podem já ser dirigidas as mesmas críticas”, consubstanciadas na consideração de que no carácter exemplificativo dos exemplos-padrão (com a admissibilidade da existência de outras circunstâncias, para além das que constam no n.º 2 do artigo 132.º, susceptíveis, também elas, de revelarem a especial censurabilidade ou perversidade do agente, conducente à aceitação de um homicídio atípico) residiria um convite à ampliação sem limites desses exemplos, numa instigação à analogia em direito penal - cfr. págs. 121/2.

      Nessa visão, a enumeração exemplificativa concretiza e determina a cláusula geral e o critério generalizador delimita a enumeração exemplificativa; cada uma das partes do preceito exerce uma interacção ou influência decisiva na outra, conduzindo a um resultado qualitativamente novo – cfr. págs. 122 e 127- conclusão 13.

      Prossegue a Autora, a págs. 123, dizendo: “A admissão de outras circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente está perfeitamente delimitada aos casos em que tais circunstâncias exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente ao Leitbild dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2. Por via de uma conclusão por analogia («Analogieschlusse») ou pela verificação de um efeito de analogia («Analogiewirkung»), tais circunstâncias são susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, podendo, nesse caso, afirmar-se a existência de um homicídio qualificado atípico” - cfr. pág. 126 - conclusão 8, in fine.

       Finaliza Teresa Serra, concluindo dever “afirmar-se a inteira compatibilidade dos exemplos-padrão com o princípio da legalidade e a função de garantia da lei penal, designadamente com a exigência da máxima determinação da lei penal e da proibição da analogia em Direito Penal” – cfr. pág. 127 - conclusão 14 - e pág. 123, in fine.

       Alguns anos após, aquando das modificações introduzidas pela terceira alteração do Código Penal, operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1 de Outubro de 1995, em Homicídios em Série, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal (30-10-1995 a 02-05-1996), Centro de Estudos Judiciários, edição de 1998, Volume II, Teresa Serra retoma a defesa do entendimento de que a interpretação do artigo 132.º tem de considerar o preceito no seu conjunto: a enumeração exemplificativa concretiza a cláusula geral e a cláusula geral delimita a enumeração exemplificativa.

      Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 28, afirma que o método utilizado se revela incensurável à luz do princípio da legalidade, citando Teresa Serra nas passagens assinaladas, a propósito da interacção dos dois números do artigo 132.º (págs. 122 e 127), sendo violador da legalidade o procedimento traduzido em fazer um apelo directo à cláusula geral.

       Esclarece que ao indagar-se da integração no tipo qualificado não se poderá “fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, antes deve-se em primeiro lugar fazer passar o caso pelo crivo dos exemplos-padrão e a fim de comprovar a existência de um caso expressamente previsto no art. 132º ou de uma situação valorativamente análoga”.

        Neste sentido, Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes contra as pessoas, Quid Juris, 2008, 2.ª edição, revista e actualizada de acordo com a Lei n.º 59/2007, a págs. 58, refere: “Em relação ao modus operandi deste tipo de crime pressupõe que em primeiro lugar se procure enquadrar o caso concreto em alguma das circunstâncias padrão previstas no n.º 2, e, depois de obter esse enquadramento, é necessário analisar se o n.º 1 está preenchido, sendo sempre insuficiente o enquadramento numa das circunstâncias tipo que são apresentadas para qualificar o homicídio, pois este só é qualificado em função do critério de uma culpa mais grave”.

       João Curado Neves no ensaio Indícios de culpa ou tipos de ilícito? – A difícil relação entre o n.º 1 e o n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, expende a págs. 722: «Caso se queira continuar a entender que a agravação da moldura penal prevista no artigo 132.º decorre de um teor de culpa superior ao que subjaz à forma básica do artigo 131.º, só resta a alternativa de defender que a previsão do n.º 1 constitui um tipo de culpa e não de ilícito».

       Relativamente à compatibilidade do artigo 132.º com o princípio da legalidade, aborda o tema de fls. 747 a 757, defendendo a págs. 749 que os problemas que têm surgido na aplicação do artigo 132.º revelam que a utilização das diversas alíneas como padrões que orientem a inclusão de casos não previstos se revela difícil ou inconvincente, e a págs. 752, que a interpretação com recurso a raciocínio analógico é contrária ao princípio da legalidade e incompatível com o n.º 1 do artigo 29.º da Constituição, pelo que deve o preceito, a ser interpretado nesse sentido, ser julgado inconstitucional. 

       Maria Margarida Silva Pereira, Direito Penal II - Os Homicídios, 2.ª edição, actualizada em Setembro de 2007, edição da AAFDL, 2008, a fls. 56/7, indica como os principais traços do artigo 132.º a exclusão da aplicação automática, a aferição da qualificação por um critério de culpa e a permissão do recurso à analogia, afirmando que “quem preenche uma das alíneas do art. 132.º não “entra” automaticamente no âmbito da norma”, só entrando quando, sujeito ao «crivo normativo» do n.º 1, se ajuíze que “há mesmo uma culpa especial”, sendo a aplicação do artigo 132.º uma “incumbência judicial”, outorgando-se ao juiz a possibilidade de construir ele próprio mais circunstâncias agravadoras.

      A Autora, a fls. 78 a 82, coloca a questão de saber “até onde deve aceitar-se a virtualidade expansiva dos exemplos-padrão, que ao legislador não repugnou nada ver proliferar por analogia”, até onde o julgador pode ir, criando analogicamente novos exemplos padrão, e até onde deve aceitar-se aquela virtualidade, e porque a proliferação dos exemplos constitui uma brecha no princípio da máxima determinação típica e um risco, entende não se dever «cometer uma vocação ampliadora às circunstâncias do art. 132º», já que não parece possível «vislumbrar um denominador comum, um tertium comparationis, ou seja, uma regra capaz de aferir da estreita compatibilidade entre uma eventual circunstância nova latente e as já patentes na lei».

       Augusto Silva Dias, em Materiais para o Estudo da Parte Especial do Direito Penal, n.º 5, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, revista e actualizada, AAFDL, 2007, pág. 24, começa por referir que “A técnica utilizada na qualificação do homicídio consiste numa cláusula geral de agravação (n.º 1), a «especial censurabilidade ou perversidade» do agente e um elenco de exemplos-padrão, exemplos-regra ou exemplos típicos (n.º 2)”.

       Numa leitura próxima da interacção e apreciação do preceito no seu conjunto a que alude Teresa Serra expende: “A qualificação resulta de uma conexão hermenêutica entre ambos os aspectos: os exemplos típicos explicitam o sentido da cláusula agravante e esta, por sua vez, funciona como correctivo normativo da objectividade daqueles”.

       A págs. 25/6, exprime a opinião de que “a compatibilização da abertura possibilitada pela expressão «entre outras» com o princípio da legalidade só é assegurada se ela não conduzir à dissolução do vínculo do juiz à lei (…) e se os exemplos das diversas alíneas puderem funcionar como padrão ou regra e não como exemplificação avulsa. Para que isso suceda, ao juiz apenas é concedido integrar nas alíneas do n.º 2 circunstâncias que, embora não estejam aí expressamente previstas, correspondem à estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de cada exemplo-padrão. Nestes casos é absolutamente vedado o recurso ao chamado «homicídio qualificado atípico», isto é, à qualificação do homicídio sem passar por nenhum dos exemplos-padrão do n.º 2, procedimento corrente na jurisprudência do STJ”.

      O Autor invoca como exemplos os acórdãos de 23 de Maio de 2002 e de 14 de Janeiro de 2004 - nota 22, a págs. 26.

       (Não obstante o esforço colocado no sentido de se verem/lerem estes acórdãos, não se conseguiu alcançar tal objectivo, devendo-se a dificuldade a eventual lapso de escrita na sua indicação).

       Prossegue, ainda, a págs. 30: “…Quando se trata de saber se um dado caso preenche ou não um dos exemplos típicos a questão de se a atitude do agente é especialmente censurável ou perversa fica suspensa. Esta só é considerada uma vez resolvida aquela, pois, se não é preenchido nenhum exemplo típico, não é legítimo indagar se o agente revelou uma especial censurabilidade ou perversidade”.

       Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes contra as pessoas, Quid Juris, 2008, 2.ª edição, pág. 54, defende que o recurso do legislador à técnica dos exemplos padrão - que funcionam para orientar o julgador, apontando factos e situações que podem fundamentar o juízo para uma culpa agravada - permite fundamentar a qualificação em factos que não estejam previstos no n.º 2, sem que haja violação do princípio da legalidade.

       Mais à frente, a págs. 61, a propósito do carácter aberto do tipo, expende: “A forma como o tipo está construído permite que se faça uma analogia em relação ao tipo orientador, ou seja, que a partir do padrão previsto nas várias alíneas se consiga enquadrar, no âmbito do Leitbild que está presente em cada uma, circunstâncias diferentes das expressamente referidas. Neste sentido admite-se que se faça uma analogia, mas sempre a partir de um dos três tipos de circunstâncias previstas (relações agente/vítima, motivações do agente, modo de execução do facto)”.

       Especifica depois, a págs. 65, dizendo: “Admitimos a analogia para concluir que determinada circunstância, embora não prevista expressamente, também se revela susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade, mas o tipo ainda não está preenchido, ele concretiza-se pelo critério da culpa mais grave. O tipo, em si, está consagrado no n.º 1 e concretiza-se pela especial censurabilidade; se o agente a revela não se chega a fazer analogia em relação ao tipo incriminador, a qualificação opera em sede de culpa que não necessita de estar tipificada como juízo de censura que é”.

      E finaliza, a págs. 65, in fine: “É a conjugação da técnica de um tipo de culpa agravada baseado no modelo dos exemplos-padrão que resulta uma maior clareza, que conduz à admissibilidade da compatibilidade do tipo de crime com os ditames do princípio da legalidade”.

       Victor Sá Pereira, Código Penal, Notas e Comentários, Livros Horizonte, 1987, págs. 176/180, comentava: «A especial ou maior gravidade é efeito da especial censurabilidade ou perversidade do agente (n.º 1), tanto quanto esta decorre dos padrões (determinados) do n.º 2 - ou de circunstâncias paralelas (indeterminadas) -, em clara actuação silogística. Mas, assim, a afirmação de que o tipo (sem mais) se encontra no n.º 1 não se ajusta à natureza indiciária e subsidiária do n.º 2, sedeado no terreno da culpa (…) A relação que se estabelece entre o n.º 1 e o n.º 2 exigem que eles disponham de natureza e posição por assim dizer comuns, no limbo do facto punível. Doutro modo, na verdade, o último seria diverso do primeiro e não poderia alimentá-lo. Por conseguinte, se o n.º 2 enquadra elementos da culpa, à culpa terá de referir-se o n.º 1. 

       Dizer que o tipo (sem mais) se resolve em cláusula geral com enumeração exemplificativa poderia aparentar a vantagem de exprimir, com a segunda a interceder na abrangência da primeira, a função de garantia, em face de qualquer atitude arbitrária.

      Mas, sem falarmos na antítese entre ilicitude e exemplificação (ou entre elementos e exemplos), não andaríamos longe, assim, da área dos tipos abertos, que a melhor doutrina firmemente rejeita. Ademais, a tipicidade do ilícito resultaria integrada ou interferida por dados exteriores, da província da culpa e despidos da fixidez ou certeza que lhe modela o ser, na mais pura incongruência, ou com substancial agressão dos princípios da legalidade e da tipicidade, como, ao cabo, pois, da citada função de garantia».

   

                                  

     Do alargamento, sucessivo, dos exemplos-padrão                             

 

    Pesem embora todas as críticas dirigidas ao recurso a exemplos padrão, a verdade é que esta técnica legislativa, com utilização de enunciados meramente exemplificativos e de conceitos indeterminados nesses exemplos - regra, não só se tem mantido, como tem sido sucessivamente ampliada/reforçada a respectiva previsão, ao longo destes mais de 32 anos de vigência do Código Penal de 1982 (entrado em vigor em 1 de Janeiro de 1983, conforme artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro), o que aconteceu por cinco ocasiões, com a adição, não só de novos exemplos típicos, com abertura/expansão do catálogo, como também de outras previsões normativas, mais abrangentes e compreensivas, dos sintomas pré-existentes.

 

      Assim aconteceu com o Decreto-Lei n.º 101-A/88, de 26 de Março, que emergiu da autorização legislativa conferida pela Lei n.º 43/1997, de 28 de Dezembro, que introduziu então as novas circunstâncias agravativas das alíneas h) e i), que vieram a dar origem à alínea h), na redacção de 1995, e que correspondente é à actual alínea l), acentuando-se no relatório desse diploma que a indicação das circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º é meramente exemplificativa e que as mesmas não são de funcionamento automático. (Legislador dixit!).

      Justifica o diploma a inclusão dos novos exemplos-padrão por poder revestir-se de particular eficácia preventiva e proporcionar ao julgador um critério legal preciso quando tiver de se decidir pela qualificação do homicídio.

      Coloca-se aqui uma questão, consistente em saber se se trata de um projecto de interpretação autêntica, genuína, ou antes da expressão de uma paternalista ajudinha ao aplicador do direito.

 

    Neste sentido, veja-se ainda o que resultou da terceira alteração ao Código Penal operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1 de Outubro de 1995.

    No ponto 7 do exórdio do diploma lê-se: “A mais importante alteração reside no abandono do modelo vigente de recurso a conceitos indeterminados ou de cláusulas gerais de valor enquanto critérios de agravamento ou de privilégio, de modo a obviar as dificuldades que têm sido reveladas pela jurisprudência e a que o legislador não se pode manter alheio”.

    O legislador referia-se então ao crime de furto e criminalidade patrimonial.

    Mas na mesma revisão, tendo-se abandonado essa técnica quanto ao crime patrimonial, manteve-se a mesma no homicídio qualificado, condensando numa única alínea – alínea h) – o que constava das anteriores alíneas h) e i) introduzidas pelo diploma de 1988, “expandindo” as previsões constantes das alíneas d) e e), e alterando a redacção da alínea g), com a exclusão do vocábulo “premeditação”, como ainda operou “a consagração de um tipo de ofensa à integridade física qualificado por circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente, a exemplo do que sucede no homicídio”.

    O artigo 146.º do Código Penal (actual artigo 145.º) “importou” para o domínio das ofensas à integridade física a técnica e o fundamento da qualificação do homicídio, passando a dispor o n.º 2: “São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º”

    Reportando-se a esta alteração de 1995, Teresa Serra, em Homicídios em Série, Jornadas …, 1998, supra citado, considera não muito felizes as alterações introduzidas no n.º 2 do artigo 132.º, critica as soluções introduzidas e a ausência de outras (como a eliminação da expressão entre outras do corpo do n.º 2), assinalando o que em seu entender corresponde a uma tendência para a subversão da técnica dos exemplos padrão, para além da surrealista alínea h) – “acusação” não aceite por Figueiredo Dias, no Comentário …, pág. 41 – e de ser altamente criticável o facto do artigo 146.º operar uma remissão pura e simples para as circunstâncias do artigo 132.º - págs.148, 150 e 153.

     A redacção de 1998 – Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro – deixou intocados, quer o n.º 1, quer o proémio do n.º 2 e a alínea a), limitando-se a multiplicar e alargar o catálogo dos exemplos-padrão, o que acontece com as novas situações previstas nas então alíneas b) e g) - com excepção da parte final “ou que se traduza na prática de crime de perigo comum”, já constante da parte final da alínea f) na redacção de 1995 e para aqui deslocada - e na alínea l), passando-se de oito para onze os exemplos-padrão.

     Para além destes novos índices, foi “expandido” o exemplo típico constante da alínea d) – ex-alínea c) – com o aditamento da expressão “ou de causar sofrimento” entre “matar” e “para excitação” e alterada a redacção da alínea j) – ex-alínea h) – colocando “Praticar” em vez de “Ter praticado” e retirando o qualificativo “público” que se seguia a “docente ou examinador”.

      As situações – novas – constantes das alíneas b) e l), aliás, já haviam sido propostas em 1995 – cfr. Teresa Serra, Homicídios em Série, …, pág. 153.

      A alteração do preceito operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro – para além de ter modificado a redacção da actual alínea f) – correspondente à ex - alínea e) – “expandindo” a agravação indiciada a (…) ódio (…) “gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo ou pela orientação sexual da vítima” – e da actual alínea l), com extensão a “todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos”, a “membro de comunidade escolar”, a “juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas”, introduziu uma nova situação padrão com a inclusão da previsão da alínea b), susceptível de indiciar o critério orientador da especial censurabilidade ou perversidade, passando para doze os exemplos-padrão previstos no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

      Neste contexto temporal, para Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, UCE, 2008, pág. 349 (e 2.ª edição actualizada, UCE, 2010, nota 3, pág. 400), o acréscimo destas novas circunstâncias legais pelos diplomas referidos revelava o propósito do legislador de evitar a insegurança da aplicação analógica das circunstâncias já existentes.

 

      O preceito veio ainda a sofrer posteriormente outras duas alterações.      

      A Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, que procedeu à 29.ª alteração ao Código Penal, modificou a redacção da alínea f) do n.º 2 do artigo 132.º, como melhor veremos infra.

      E a Lei n.º 59/2014, de 26 de Agosto, que procedeu à 32.ª alteração ao Código Penal, alterou a alínea l) do mesmo n.º 2, de modo a incluir crimes cometidos contra solicitadores, agentes de execução e administradores judiciais.       

     *

           

      O homicídio qualificado constitui um tipo especial de culpa agravada, evidenciado nas circunstâncias enunciadas no n.º 2, que têm carácter exemplificativo.

     Para Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, I, tradução espanhola, edições Bosch, 1981, de Santiago Mir Puig e Francisco Muñoz Conde, a págs. 363, 367/8, os exemplos padrão (Regelbeispiele) correspondem a modalidade especial do tipo base, a uma variante dependente do tipo básico, a elementos adicionais, expressando agravação de culpabilidade do tipo base; constituem regras de determinação judicial da pena (aplicação da pena), com um duplo significado: por um lado, a concorrência dos elementos de um dos exemplos representa apenas um indício da presença de um caso especialmente grave, que pode ser afastado pelo juiz mediante a valoração global do facto e do seu autor; por outro, pode o juiz admitir um caso especialmente grave, ainda que não se preencham os elementos de nenhum exemplo padrão.

      Segundo o mesmo Autor, ocorre caso especialmente grave sempre que as circunstâncias objectivas e subjectivas revelam a insuficiência da “penalidade típica ordinária” para a “retribuição judicial” do ilícito e da culpa, assim se justificando a formulação de exemplos típicos, que traduzem indício da presença dum caso especialmente grave.

      O Professor Eduardo Correia, autor do Anteprojecto, como se vê das Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Especial, edição da AAFDL, 1979, pág. 21, a propósito do artigo 138.º (correspondente ao actual 132.º), na sessão de 17 de Março de 1966, na sequência de questão suscitada pelo Professor Figueiredo Dias, disse: “A inclusão do n.º 2 corresponde à intenção de colocar nas mãos do juiz alguns critérios com base nos quais possa dar aplicação ao estatuído no n.º 1. Assim, frisa-se que a enumeração de várias alíneas no n.º 2 não é taxativa, antes meramente enunciativa e exemplificativa. Referem-se nela apenas alguns indícios ou elementos que permitem revelar a censurabilidade ou a perversidade do agente. Daqui se retiram dois efeitos. Por um lado, as circunstâncias enunciadas no n.º 2 não são elementos do tipo antes elementos de culpa. Portanto não são de funcionamento automático: pode verificar-se qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas e nem por isso se poder concluir pela «especial censurabilidade ou perversidade do agente». Por outro lado, como a enumeração é meramente exemplificativa, outras circunstâncias não descritas são susceptíveis de revelar a censurabilidade e a perversidade pressupostas no n.º 1».    

      Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 265, págs. 203 e ss., a propósito da técnica dos exemplos-padrão diz: “Trata-se de circunstâncias modificativas agravantes que o legislador se não contenta com indicar através de uma pura cláusula indeterminada de valor, mas que também não descreve com a técnica detalhada que utiliza para os tipos, antes nomeia através da sua exemplificação padronizada. Com uma dupla consequência. A de que, por um lado, a descrição feita constitui exemplo indiciador das situações que devem conduzir à agravação; podendo, todavia, o juiz negar aquele efeito indiciador mesmo a uma situação coincidente com um exemplo de que o legislador se serviu, se considerar – através da valoração global do caso – que a razão de ser da agravação se não verifica em concreto. E a de que, por outro lado, não sendo a enumeração da lei esgotante, mas só exemplificativa, o juiz pode no entanto considerar que a razão de ser da agravação vale apesar de a situação do caso não integrar a enumeração legal”.

      “O nosso CP reconheceu claramente a técnica dos exemplos-padrão no art. 132º-2”, assinalando o autor a identificação essencial com o texto por parte da jurisprudência, a propósito da acepção de “circunstâncias exemplificativas”, de que fala aquela - § 266 e nota 55.

      Já em 1987 no citado Parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência, tomo 4, págs. 49 e ss., dizia o mesmo Professor que “as circunstâncias contempladas no n.º 2 do art. 132º não são taxativas, nem implicam por si só a qualificação do crime; isto é, pode o juiz considerar como homicídio qualificado a conduta do agente que não se acompanhasse de qualquer das circunstâncias descritas, mas sim de outras, e pode, por outro lado, deixar de operar tal qualificação apesar da existência clara de uma ou mais dessas circunstâncias”.

      Face ao seu funcionamento não automático e à sua não taxatividade, tais circunstâncias só podem ser compreendidas enquanto elementos da culpa, como aliás resultou da discussão no seio da Comissão Revisora e foi expressamente defendido pelo Autor do Projecto e por nós próprios”.

      O mesmo Autor, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 26, refere: «…a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2».

      Adianta que a verificação desses elementos, por um lado, não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; por outro lado, a sua não verificação não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra “análogos”!) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador. E finaliza: “Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador - o Leitbildtatbestand (…) – que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º- 2”.

      O Mestre de Coimbra remete então para a situação próxima, versada in Direito Penal Português, As Consequências…, II, §§ 444 e ss., a respeito da atenuação especial da pena.

      Aí, no § 453, pág. 306, a propósito das circunstâncias descritas nas alíneas do artigo 72.º, n.º 2, do Código Penal, que constituem exemplos ilustrativos da situação especialmente atenuada contida na cláusula geral do artigo 73.º, n.º 1 (actual artigo 72.º) diz o Professor: passa-se aqui algo de análogo - não de idêntico -  ao que sucede com os exemplos padrão: por um lado, outras situações que não as descritas naquelas alíneas podem (e devem) ser tomadas em consideração, desde que possuam o efeito requerido de diminuir, por forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção; por outro lado, as próprias situações descritas nas alíneas não têm o efeito «automático» de atenuar especialmente a pena, mas só o possuirão se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido.

     Volvendo ao Comentário Conimbricense, págs. 26/27, defende que o método de qualificação seguido pelo legislador concede ao aplicador uma maior flexibilidade na valoração do caso concreto, permitindo um uso moderado e criterioso da qualificação, impeditivo da multiplicação ad nauseam das hipóteses respectivas.

      Os exemplos padrão constantes do artigo 132.º, n.º 2, configuram elementos constitutivos do tipo de culpa. Adianta que “muitos dos elementos constantes das diversas alíneas do art. 132º-2, em si mesmo tomados, não contendem directamente com uma atitude mais desvaliosa do agente, mas sim com um mais acentuado desvalor da acção e da conduta, com a forma de cometimento do crime. Ainda nestes casos, porém, não é esse maior desvalor da conduta o determinante da agravação, antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente, é dizer, o especial tipo de culpa do homicídio agravado”.

      Teresa Serra, Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, a págs. 120, refere que “A técnica dos exemplos-padrão estrutura-se (…) sobre uma cláusula geral concretizada através de uma enumeração casuística exemplificativa” e como referia Eduardo Correia, in Actas, p. 25, sempre foi sua intenção considerar as circunstâncias do n.º 2 do artigo 138.º (actual 132.º) como simples elementos da culpa. “ O n.º 2 não pretende alargar o tipo. O n.º 1 representa a máxima amplitude. Se a enumeração passasse a ser taxativa, então inutilizar-se-ia o n.º 1.”.

     As circunstâncias do n.º 2 têm uma função concretizadora da cláusula geral do tipo de culpa do n.º 1, introduzindo factores relevantes de determinação nessa cláusula geral que fundamentam o Leitbild dos exemplos-padrão. Nesta perspectiva, bem se compreende que a enumeração de circunstâncias do n.º 2 deva ser exemplificativa. Caso contrário, a razão por que o legislador optou por recorrer à utilização da cláusula geral do nº 1 e os fins que pretendeu atingir com essa opção frustrar-se-iam em boa medida.

     Cristina Líbano Monteiro na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano VI, Janeiro-Março, 1996, vol. 1.º, pág.121, em anotação ao acórdão do STJ, de 05-02-1992, pondo de lado o problema de saber se se encontra no artigo 132.º um verdadeiro tipo qualificado ou apenas uma regra de determinação de uma moldura penal agravada para certos homicídios, expende: «O artigo 132º prevê, como pressuposto do funcionamento da sua consequência jurídica mais pesada, uma culpa concreta agravada do «causante» da morte. O critério material contido no preceito - a evidenciação de uma «especial censurabilidade ou perversidade do agente» - redunda na verificação de que a personalidade do autor patenteada no facto justifica uma censura jurídico-penal de severidade acrescida. O mesmo é dizer: nessas circunstâncias, a pena é mais grave por ser mais «forte» o juízo de culpa».

     Faria Costa, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, pág. 250, em comentário ao artigo 146.º, a propósito do lugar paralelo do crime de ofensas à integridade física refere ser necessário que para além das lesões da integridade física, simples ou grave, ou a ocorrência de um dos resultados que nos termos do artigo 145.º são susceptíveis de conduzir a uma agravação da responsabilidade do agente, necessário se torna que a conduta do agente revele uma “censurabilidade acrescida susceptível de decorrer de uma das circunstâncias previstas pelo n.º 2 do art. 132.º, entre outras”, remetendo este Comentador no mais para o referido a propósito do artigo 132.º.

     

       O tipo especial de culpa


       As circunstâncias - exemplos padrão - enunciadas nas alíneas do artigo 132.º, n.º 2, do Código Penal, que estão concebidas como concretizações de modos de revelação de um tipo de culpa agravado, são elementos constitutivos de um tipo orientador (revelação de especial censurabilidade ou perversidade do agente) em que se revela uma imagem global do facto agravado correspondente a um especial conteúdo da culpa – Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, Tomo I, págs. 26/7.

      Neste sentido se tem pronunciado este Supremo Tribunal de Justiça de forma uniforme, mantendo uma interpretação do tipo do artigo 132.º como sendo baseado estritamente na culpa mais grave, revelada pelo agente, tendo como fundamento o facto do agente revelar especial censurabilidade ou perversidade no seu comportamento.

       O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 11 de Maio de 1983, BMJ n.º 327, pág. 458, pronunciou-se sobre o então novo tipo de ilícito, dizendo tratar-se de “homicídio qualificado, cujo tipo abarca uma série de casos que no Código de 1886 eram incriminadas autonomamente, como por exemplo, o parricídio, o infanticídio, o envenenamento…”, salientando então o seguinte:

1 - “As circunstâncias enunciadas no n.º 2 do artigo 132.º não são elementos do tipo, mas antes elementos da culpa e, consequentemente, não são de funcionamento automático (Actas das sessões da Comissão Revisora, BMJ, 286, pág. 21).

2 - A enumeração dessas circunstâncias é meramente exemplificativa: outras circunstâncias (não indicadas) são susceptíveis de revelar a especial censurabilidade e perversidade do agente”.

      É entendimento uniforme deste Supremo Tribunal o de que as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, os chamados exemplos-padrão, são meramente exemplificativas, não funcionando automaticamente e devem ser compreendidas enquanto elementos da culpa – vejam-se, a título exemplificativo, os acórdãos de 08-02-1984, BMJ n.º 334, pág. 258 (os factos apontados no n.º 2 não são elementos constitutivos de um homicídio especial, circunstância modificativa do tipo fundamental; são apenas o indício, confirmável ou não, de uma intensa culpa); de 08-02-1984, BMJ n.º 334, pág. 267; de 24-10-1984, BMJ n.º 340, pág. 235; de 20-03-1985, BMJ n.º 345, pág. 248; de 07-05-1986, BMJ n.º 357, pág. 211; de 26-11-1986, BMJ, n.º 361, pág. 283; de 25-06-1987, BMJ n.º 368, pág. 340; de 26-04-1989, BMJ n.º 386, pág. 237; de 19-04-1990, BMJ n.º 396, pág. 253; de 06-06-1990, BMJ n.º 398, págs. 264 e 269; de 20-12-1990, processo n.º 41848; de 03-04-1991, Colectânea de Jurisprudência 1991, tomo 2, pág. 15; de 16 e 18-10-1991, BMJ n.º 410, págs. 341 e 367; de 12-12-1991, processo 42640; de 06-05-1992, processo n.º 43109; de 13-01-1993, BMJ n.º 423, pág. 222; de 04-02-1993, BMJ n.º 424, pág. 360 e CJSTJ 1993, tomo 1, pág. 186; de 09-06-1993, BMJ n.º 428, pág. 284; de 23-06-1993, BMJ n.º 428, pág. 304; de 17-02-1994, BMJ n.º 434, pág. 292; de 17-03-1994, BMJ, n.º 435, pág. 518; de 04-07-1996, processo n.º 48.774, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 222 (face ao seu funcionamento não automático e à sua não taxatividade, tais circunstâncias - as descritas no n.º 2 do art. 132.º - só podem ser compreendidas enquanto elementos de culpa, exigindo-se, por isso, que, no caso concreto, elas exprimam, insofismavelmente, uma especial perversidade ou censurabilidade do agente); de 25-06-97, processo n.º 1253/96; de 16-12-1997, processo n.º 102/98; de 02-07-98, processo n.º 37/98; de 15-04-1998, processo n.º 74/98, BMJ n.º 476, pág. 238 (as circunstâncias qualificativas do n.º 2 do artigo 132.º do CP não são elementos do tipo, mas antes da culpa, não funcionando automaticamente, devendo exigir-se que exprimam, no caso concreto, de modo insofismável, uma especial perversidade ou censurabilidade do agente); de 17-03-1999, processo n.º 420/98-3.ª; de 07-12-1999, processo n.º 1034/99-3.ª, BMJ n.º 492, pág. 168 e CJSTJ 1999, tomo 3, pág. 234 (os exemplos regra, como elementos da culpa, implicam ainda um exame global dos factos de modo a chegar (ou não) à conclusão da especial censurabilidade ou perversidade); de 15-12-1999, processo n.º 946/99-3.ª; de 11-05-2000, processo n.º 75/00, CJSTJ 2000, tomo 2, pág. 188; de 13-12-2000, processo n.º 2753/00-3.ª, CJSTJ 2000, tomo 3, pág. 241 (haverá que proceder à definição da “imagem global do facto”, de modo a aí detectar essa particular forma de culpa que justifica o agravamento da moldura penal de um crime, que, pese embora a sua carga de ilícito, coexiste, por antinomia, com um homicídio onde a culpa pressuposta pode ser considerada como “normal”); de 10-01-2001, processo n.º 3221/00-3.ª; de 30-05-2001, processo n.º 876/01-3.ª, CJSTJ 2001, tomo 2, pág. 215; de 15-05-2002, processo n.º 1214/02-3.ª; de 14-11-2002, processo n.º 3316/02-5.ª; de 20-05-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 195; de 04-05-2005, processo n.º 652/05-3.ª; de 13-07-2005, processo n.º 1833/05-5.ª, in CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 244 (em caso em que o arguido mantinha uma relação amorosa com a vítima entrecortada por alguns desentendimentos e ciúmes de ambas as partes); de 13-07-2005, processo n.º 1843/05-3.ª, in CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 251 (a decisão sobre a integração do crime qualificado exige que se proceda à definição da imagem global do facto, de modo a logo aí detectar a particular forma de culpa que justifica a qualificação do homicídio); de 28-09-2005, processo 2537/05-3.ª, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173 (do mesmo relator do anterior com a mesma asserção); de 07-12-2005, processo n.º 2967/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 229; de 30-03-2006, processo n.º 783/06-5.ª, in CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 229; de 21-06-2006, processo n.º 1559/06-3.ª; de 21-06-2006, processo n.º 1913/06 (o crime de homicídio qualificado, previsto no artigo 132.º do Código Penal, é uma forma agravada de homicídio, em que a qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no n.º 1 da disposição, moldado por vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do n.º 2 do artigo 132.º); de 18-10-2006, processo n.º 2679/06-3.ª; de 05-09-2007, processo n.º 2430/07-3.ª; de 05-03-2008, processo n.º 210/08-3.ª, CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 243; de 02-04-2008, processo n.º 4730/07-3.ª; de 16-09-2008, processo n.º 2491/08-3.ª (do mesmo relator dos acórdãos de 13-07-2005 e de 28-09-2005); de 29-10-2008, processo n.º 3379/08-3.ª; de 12-11-2008, processo n.º 2826/08-3.ª; de 26-11-2008, processo n.º 3706/08-3.ª; de 10-12-2008, processo n.º 3703/08 - 3.ª; de 21-01-2009, processo n.º 2387/08-3.ª; de 18-02-2009, processo n.º 3775/08-5.ª; de 25-02-2010, processo n.º 108/08.4PEPDL.L1.S1-5.ª; de 03-03-2010, processo n.º 242/08.0GHSTC.C1.S1-3.ª; de 27-05-2010, processo n.º 11/04.7GCABT.C1.S1-3.ª; de 27-05-2010, processo n.º 58/08.4JAGDR.C1.S1-3.ª, CJSTJ 2010, tomo 2, pág. 206 (a qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação sendo um tipo de culpa; o especial tipo de culpa de homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente); de 09-06-2010, processo n.º 862/09.6TBFAR.E1.S1-5.ª; de 16-12-2010, processo n.º 231/09.8JAFAR.E1.S1-3.ª; de 24-03-2011, processo n.º 322/08.2TARGR.L1.S1-3.ª; de 13-07-2011, processo n.º 758/09.1JABRG.S1-3.ª, CJSTJ 2011, tomo 2, pág. 204 (Sendo elementos constitutivos do tipo de culpa, a verificação de alguma das circunstâncias que definem os exemplos-padrão não significa, por imediata consequência, a realização do tipo especial de culpa e a directa qualificação do crime, como, também por isso mesmo, a não verificação de qualquer dos modelos definidos do tipo de culpa não impede que existam outros elementos e situações que devam ser considerados no mesmo plano de valoração que está pressuposto no crime qualificado e na densificação dos conceitos bem marcados que a lei utiliza.

Mas, seja mediada pelas circunstâncias referidas nos exemplos–padrão, ou por outras elementos de idêntica dimensão quanto ao desvalor da conduta do agente, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que traduz e que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade, e que conforma o especial tipo de culpa no homicídio qualificado); de 23-11-2011, processo n.º 508/10.0JAFUN.S1-5.ª; de 30-11-2011, processo n.º 238/10.2JACBR.S1-3.ª; de 23-02-2012, processo n.º 123/11.0JAAVR.S1- 5.ª; de 27-06-2012, processo n.º 127/10.0JABRG.G2.S1-3.ª; de 17-04-2013, processo n.º 237/11.7JASTB.S1-3.ª e de 24-09-2014, processo n.º 994/12.3PBAMD.L1.S1-3.ª (Como é consabido, as circunstâncias contempladas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal não são taxativas nem implicam só por si a qualificação do crime; tais circunstâncias não são elementos do tipo e antes elementos da culpa, não sendo o seu funcionamento automático).

      Como referia o acórdão de 13-03-1997, processo n.º 1138/96-3.ª, SASTJ n.º 9, pág. 74, a enumeração das circunstâncias com “qualidade” para revelarem especial censurabilidade ou perversidade é exemplificativa e não taxativa. Por si mesmo não determinam a qualificação do crime, uma vez que elas afirmam-se de modo vivencial e essencial como elementos da culpa e não do tipo.

      Para Margarida Silva Pereira, Direito Penal II - Os Homicídios, AAFDL, 2008, págs. 40 e 41, “quem preenche uma das alíneas do art. 132º não «entra» automaticamente no âmbito da norma”, só entrando quando, sujeito ao «crivo normativo» do nº 1, se ajuíze que “há mesmo uma culpa especial”.

     A cláusula geral do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal

     Subjacente à declaração de especial censurabilidade ou perversidade está um maior grau de culpa, que o agente manifesta nas circunstâncias elencadas, o que motiva a agravação.

     Vejamos algumas das abordagens da concretização do critério generalizador em questão.

      

      Teresa Serra, Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, a págs. 63/64, expende: “… a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito.

      No artigo 132.º trata-se de uma censurabilidade especial, que existe quando “as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores.

     A especial perversidade supõe “uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade”.

     A págs. 63, refere que, dominantemente, entende-se que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto.

      Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense…, Tomo I, 1999, pág. 29, refere “O especial tipo de culpa do homicídio doloso é em definitivo conformado através da verificação da «especial censurabilidade ou perversidade» do agente.

      O pensamento da lei é o de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas.

      Para Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes contra as pessoas, Quid Juris, 2008, 2.ª edição, revista e actualizada de acordo com a Lei n.º 59/2007, a págs. 52/53, especial censurabilidade prende-se essencialmente com a atitude interna do agente, traduzida em conduta profundamente distante em relação a determinado quadro valorativo, afastando-se dum padrão normal. O grau de censura aumenta por haver na decisão do agente o vencer de factores que, em princípio, deveriam orientá-lo mais para se abster de actuar, as motivações que o agente revela, ou a forma como realiza o facto, apresentam, não apenas um profundo desrespeito por um normal padrão axiológico, vigente na sociedade, como ainda traduzem situações em que a exigência para não empreender a conduta se revela mais acentuada.

      A especial perversidade representa um comportamento que traduz uma acentuada rejeição, por força dos sentimentos manifestados pelo agente que revela um egoísmo abominável. A decisão de matar assenta em pressupostos absolutamente inaceitáveis. O agente toma a decisão sob grande reprovação atendendo à personalidade manifestada no seu comportamento. O agente deixa-se motivar por factores completamente desproporcionais, aumentando a intolerância perante o seu facto.

 

      Na jurisprudência, vejam-se, i. a.: acórdão de 15-12-1999, in BMJ n.º 492, pág. 327 - a especial censurabilidade está relacionada com um especial tipo de culpa fundamentado na atitude especialmente desvaliosa do arguido e a especial perversidade com um especial tipo de culpa, tendo por base a expressão no facto de qualidades especialmente desvaliosas da sua personalidade.

      Para o acórdão de 20-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 238 - «especial perversidade» e «especial censurabilidade» não são conceitos equivalentes, já que o primeiro se reporta às qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente, enquanto o segundo se refere à forma especialmente desvaliosa como o acto criminoso foi cometido.

      Segundo o acórdão de 21-06-2006, processo n.º 1913/06-3.ª, supra citado, o critério generalizador está traduzido na cláusula geral com a utilização de conceitos indeterminados – a especial censurabilidade ou especial perversidade do agente; as circunstâncias relativas ao modo de execução do facto ou ao agente são susceptíveis de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade e, assim, por esta mediação de referência, preencher e reduzir a indeterminação dos conceitos da cláusula geral.

     Segundo o acórdão de 17-01-2007, processo n.º 3845/06-3.ª - a especial censurabilidade repercute um mais acentuado desvalor do facto; a especial perversidade documenta qualidades desvaliosas na personalidade do agente, na sua conformação com o dever-ser conforme ao direito.

     Conforme o acórdão de 11-07-2007, processo n.º 1583/07-3.ª, a especial censurabilidade, referenciada ao juízo de culpa, repercute os casos em que a conduta do agente traduz, ao nível da efectivação do facto, uma forma de realização de modo especialmente desvaliosa; a especial perversidade repercute no facto uma personalidade estrutural particularmente desconformada ao direito, a ela se reserva aquela conduta que espelha qualidades da personalidade de forma especialmente desvaliosa.

     Como se extrai dos acórdãos de 18-03-2010, processo n.º 1374/07.8PBCBR.C2.S1-5.ª e de 23-11-2011, processo n.º 508/10.0JAFUN.S1-5.ª, com o mesmo relator – “em qualquer caso, a especial censurabilidade ou perversidade do agente não será mais do que a revelação de um desrespeito acrescido, ou de um desprezo extremo, do autor, pelo bem jurídico protegido. Traduz também um modo próprio do agente estar em sociedade, e, por tal via, inclusivamente, uma perigosidade merecedora de particular atenção”.

     Segundo o acórdão de 23-11-2011, processo n.º 1081/09.7JAPRT.P2.S1-3.ª – A censurabilidade especial de que fala o art. 132.º do CP reporta-se às circunstâncias em que a morte foi causada, que serão de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com certos valores, visível na realização do facto. A especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo e que denota qualidades desvaliosas da sua personalidade. 

     

     O exemplo padrão da alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal

     Embora no caso concreto esteja em causa uma situação em que houve uma vivência em união de facto de vítima e arguido durante cerca de três anos, abordar-se-á a relação conjugal até porque a inovação de 2007 abrangeu as duas situações e porque, embora diversas, podem as situações ser analisadas na perspectiva do fenómeno da violência doméstica, de cujas concretizações emergiu a necessidade da nova alínea. 

     Do relevo, no plano criminal,

     da Relação Conjugal e

     da Relação análoga à dos cônjuges - União de facto

     A relação conjugal e outras aparentadas, actualmente, integram um novo exemplo típico - o duodécimo, por ordem de consagração -, na previsão da alínea b).

     Como vimos, com a versão conferida pela 23.ª alteração do Código Penal, operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, para além do mais, foi aditada uma nova circunstância que passou a integrar a alínea b) do seguinte teor (actualmente em vigor e inalterada pelas subsequentes onze modificações):

     b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau.

     Anteriormente à alteração legislativa de Setembro de 2007, a Doutrina e a maioria da Jurisprudência nunca consideraram que no âmbito da relação conjugal, a agressão entre agressor e vítima, pudesse ser encarada como abrangida pela alínea a) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, então introduzida como exemplo - padrão, na formulação introduzida pela terceira alteração do aludido Código, com o Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, em vigor a partir de 1 de Outubro seguinte, do seguinte teor: «Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima», formulação esta, que veio então substituir a versão originária, de 1982, que dizia: «Ser descendente ou ascendente, natural ou adoptivo, da vítima».

     A razão de ser da agravação prevista em tal alínea a), segundo Eduardo Correia, Direito Criminal, 1965, II, pág. 354, estava em que as relações de família ligam-se a deveres de respeito, amizade, subordinação ou disciplina e o agente, violando-os, revela uma maior capacidade criminosa pelo não respeito dos motivos inibitórios do crime que a tais relações devem andar ligados.

     Teresa Serra, in Homicídios em Série, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, 1995/1996, CEJ, edição de 1998, pág. 152, nota 31, reportando-se à mencionada alínea a) do n.º 2, referia-se à anacrónica qualificação do homicídio em função dos laços familiares, bem como a dificuldade e o desconforto do legislador quando é obrigado a lidar com a criminalidade no meio familiar, quando a questão que se coloca com maior acuidade é a dos maus tratos de crianças e mulheres no meio familiar.

     Igualmente para Sousa Brito, na Comissão de Revisão do Código Penal em 1989, a solução era anacrónica, não justificável político-criminalmente, defendendo que a agravação só se justificaria quando existisse uma especial inferioridade da vítima.  

     Fernando Silva, em Direito Penal Especial, Crimes contra as pessoas, Quid Juris, na 1.ª edição, de 2005, a págs. 65 - cfr. nota 45 a págs. 68 - e pág. 69 da edição de 2008 - defendia que a relação entre cônjuges ficara de fora deste âmbito, sendo substancialmente diferente da prevista e duvidoso de que a mesma se pudesse integrar no âmbito do espírito do legislador, embora pudesse em determinados casos ser incluída no âmbito do art. 132.º, mas carecendo de outra justificação e fundamentação, dando como exemplo o aqui citado acórdão de 3 de Abril de 1991 (cfr. infra menção mais detalhada a este acórdão).

     Augusto Silva Dias, em Materiais para o Estudo da Parte Especial do Direito Penal, n.º 5, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, revista e actualizada, AAFDL, 2007, a págs. 26, considera o conjugicídio, como de resto ocorre com o fratricídio, fora da estrutura de sentido e do concreto conteúdo de desvalor do exemplo - padrão, sendo ambos «candidatos negativos» à alínea a).

     

     Na jurisprudência, entendeu-se ser possível integrar a relação conjugal nesta alínea a), no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-11-1993, in BMJ n.º 431, pág. 214, com o argumento de que sendo o casamento uma fonte de relações familiares (artigo 1576.º do Código Civil) e sendo tão fortes os laços jurídicos, morais, e sentimentais da união conjugal, que se compreende, sem dúvida de peso, que o uxoricídio possa igualmente ser punido, em abstracto, não pelo artigo 131.º, mas em conformidade com a agravação do disposto no artigo 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal (no caso reapreciado acabou por manter-se a condenação do arguido por homicídio simples, porque assim fora acusado e condenado na primeira instância).

     No sentido de integração da relação conjugal, de forma assumida, no âmbito do exemplo-padrão da alínea a), pronunciou-se o acórdão de 03-04-1991, Colectânea de Jurisprudência 1991, tomo 2, pág. 15 e BMJ n.º 406, pág. 314, onde se ponderou: «Considera-se ser merecedor de intensa reprovação o facto de a vítima de homicídio ser mulher do agente que, ao matá-la, violou gravemente o dever de respeito e de cooperação que a lei lhe impõe (artigos 1672º e 1674º do Código Civil), não se descortinando por parte daquela qualquer atitude que, mínima e humanamente, permita compreender a sua brutal atitude».

     De igual modo, no acórdão de 25-09-1997, BMJ n.º 469, pág. 359, onde se ponderou que «embora se não possa aplicar directamente aqui a circunstância da alínea a) do artigo 132.º do Código Penal, a verdade é que a enumeração deste normativo é meramente exemplificativa, como se infere da expressão “entre outras”, não podendo, pois, deixar de pesar, e gravemente, o facto de a vítima ser mulher do arguido e mãe dos seus filhos».

    Em sentido diverso, veja-se o acórdão do STJ de 19-06-2008, processo n.º 438/08-5.ª, CJSTJ 2008, tomo 2, pág. 258, confirmando acórdão da Relação de Coimbra de 11-07-2007, que alterou a qualificação da 1.ª instância, convolando para simples o homicídio qualificado, p. p. pelos artigos 131.º e 132.º n.º 2, alínea d), concorrendo a circunstância qualificativa traduzida em o agente ser cônjuge da vítima, por correspondência de estrutura valorativa à alínea a) do mesmo n.º 2. 

           

    Como se referiu supra, a relação conjugal, actualmente, integra um novo exemplo típico - o duodécimo, por ordem de consagração -, na previsão da alínea b).

    

     A nova formulação do elenco de factores índice, com a introdução da nova alínea b), “reivindicada” por Manuela Valadão Silveira, no trabalho Sobre o crime de maus tratos conjugais, in Revista de Direito Penal, volume I, n.º 2, ano 2002, edição da Universidade Autónoma de Lisboa, pág. 44, vem consagrar a inserção, de forma autónoma, no quadro das situações padrão, do conjugicídio e situações paralelas, para além de outras.

    É assim introduzida uma nova situação padrão qualificativa de homicídio, passando a ser susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade, a circunstância de o agente praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro sexo ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau.

     A consagração da importância da relação conjugal e “associadas”, como referimos no acórdão de 2 de Abril de 2008, proferido no processo n.º 4730/07, no acórdão de 21 de Janeiro de 2009, proferido no processo n.º 2387/08, de 16 de Dezembro de 2010, proferido no processo n.º 231/09.8JAFAR.E1.S1 e de 24 de Março de 2011, no processo n.º 322/08.2TARGR.L1.S1, versando todos casos de homicídio de cônjuge mulher e no acórdão de 30-11-2011, proferido no processo n.º 238/10.2JACBR.S1, de Santa Comba Dão, onde foi abordada a qualificativa em sede de união de facto, no entanto, afastada (cfr. ainda, com interesse para o tema, abordando a temática da violência doméstica, o acórdão de 2 de Julho de 2008, por nós proferido no processo n.º 3861/07, versando caso de maus tratos conjugais e ainda a providência de habeas corpus de 13 de Julho de 2011, n.º 552/11.0PRT-A.S1-3.ª, in CJSTJ 2011, tomo 2, pág. 189 - surge como sendo de 13 de Junho, mas a data é feriado municipal de Lisboa, Santo António), justifica-se como corolário da evolução legislativa no tratamento destas matérias, que tem tido em vista o fenómeno da violência doméstica (conjugal), violência familiar e os maus tratos familiares, como, mais especificamente, decorre de várias iniciativas da Assembleia da República, e de diversos diplomas legais, da forma que de seguida se expõe.

     Vejamos então a evolução legislativa, no sentido da recente inclusão/consagração, nos exemplos - regra, da chamada defesa contra a violência doméstica.

     A questão da violência intra - familiar foi abordada no Conselho da Europa que no Anexo II - Exposição de Motivos Relativa ao Projecto de Recomendação Sobre a Violência no Seio da Família - elaborada pelo Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna, aprovado na 33.ª Sessão Plenária do Comité Director para os Problemas Criminais (Abril de 1984), especificou o conceito de violência física no seio da família, excluindo a violência sexual, como «Qualquer acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade» (cfr. BMJ n.º 335, págs. 5 a 22).
 
    No plano do direito interno, na consecução destes objectivos de política criminal, temos a considerar os seguintes diplomas legais:

- Lei n.º 95/88, de 17 de Agosto, estabelecendo as garantias dos direitos das associações de mulheres.
- Lei n.º 61/91, de 13 de Agosto - Garante protecção adequada às mulheres vítimas de violência.
- Decreto-Lei n.º 423/91, de 30 de Outubro (alterado pelas Leis n.º 10/96, de 23-03, e n.º 136/99, de 28-08, e Decreto-Lei n.º 62/2004, de 22-03), aprovando o regime jurídico de protecção às vítimas de crimes violentos, entretanto, revogado pela Lei n.º 104/2009.

- Decreto Regulamentar n.º 4/93, de 22-02, alterado pelo Decreto Regulamentar n.º 1/99, de 15-02), que regulamentou o anterior.

- Resolução da Assembleia da República n.º 31/99, de 25 de Março, in Diário da República, Série I-A, n.º 87, de 14-04-1999, proclamando a necessidade de regulamentação da legislação que garante a protecção às mulheres vítimas de violência.

- Resolução do Conselho de Ministros n.º 55/99, de 27 de Maio, publicada no Diário da República, Série I-B, n.º 137, de 15 de Junho de 1999, aprovando o I Plano Nacional Contra a Violência Doméstica.
- Lei n.º 107/99, de 3 de Agosto - Cria a rede pública de casas de apoio às mulheres vítimas de violência. (Regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 323/2000, de 19-12 e revogada pela Lei n.º 112/2009, de 16-09).
- Lei n.º 129/99, de 20 de Agosto - Aprova o regime aplicável ao adiantamento pelo Estado da indemnização devida às vítimas de violência conjugal, entretanto revogada pela Lei n.º 104/2009.

- A alteração ao Código Penal, com a nova redacção dada ao artigo 152.º, e ao Código de Processo Penal, com a reformulação da redacção dos artigos 281.º e 282.º, operada pela Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio.

- I Relatório Intercalar de Acompanhamento do Plano Nacional Contra a Violência Doméstica, elaborado pela Comissão de Peritos para o acompanhamento da execução de tal plano, em Maio de 2000, definindo violência doméstica como «Qualquer conduta ou omissão que inflija, reiteradamente, sofrimentos físicos, sexuais, psicológicos ou económicos, de modo directo ou indirecto (por meio de ameaças, enganos, coacção ou qualquer outro meio), a qualquer pessoa que habite no mesmo agregado doméstico ou que, não habitando, seja cônjuge ou companheiro ou ex-cônjuge ou ex-companheiro, bem como ascendentes ou descendentes» - cfr. “Violência Doméstica”, Seminário realizado em Lisboa, em 16 de Junho de 2000, promovido pela Procuradoria - Geral da República e pelo Ministério para a Igualdade.

- Decreto-Lei n.º 323/2000, de 19 de Dezembro, regulamentando a Lei n.º 107/99, cria a rede pública de casas de apoio às mulheres vítimas de violência. (Revogado pela Lei n.º 112/2009, de 16-09).

- Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, definindo medidas de protecção para as situações de união de facto.

- Resolução do Conselho de Ministros n.º 88/2003, publicada no Diário da República, Série I-B, n.º 154, de 07-07-2003, aprovando o II Plano Nacional Contra a Violência Doméstica, e definindo a violência doméstica.
- Resolução da Assembleia da República n.º 17/2007, de 12-04-2007, publicada no Diário da República - I Série, n.º 81, de 26-04-07, pronunciando-se sobre a iniciativa “Parlamentos unidos para combater a violência doméstica contra as mulheres”.
- Resolução do Conselho de Ministros n.º 82/2007, de 06-06-2007, aprovando o III Plano Nacional para a Igualdade - Cidadania e Género (2007-2010)Diário da República, I Série, n.º 119, de 22-06-2007.
- Resolução do Conselho de Ministros n.º 83/2007, de 06-06-2007, aprovando o III Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (2007-2010) - Diário da República, I Série, n.º 119, de 22-06-2007.

- Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto – publicada no Diário da República, I Série, n.º 168, entrada em vigor em 15 de Setembro de 2007 - que define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio (Diário da República, I Série, n.º 99), que aprova a Lei Quadro da Política Criminal, proclamando como objectivo específico prevenir, reprimir e reduzir a criminalidade violenta, incluindo a violência doméstica e os maus tratos, englobando os casos de violência doméstica e de maus tratos entre os crimes de prevenção e de investigação prioritária, como resulta dos artigos 2.º, alínea a), 3.º, alínea a) e 4.º, alínea a) e respectivo Anexo, onde se explicita que o período abrangido vai de 1 de Setembro de 2007 a 1 de Setembro de 2009.

- Lei n.º 38/2009, de 20 de Julho, publicada no Diário da República, 1.ª Série, n.º 138, entrada em vigor em 1 de Setembro de 2009 - que define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2009-2011, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio (Diário da República, I Série, n.º 99), que aprova a Lei Quadro da Política Criminal, proclamando igualmente como objectivo específico prevenir, reprimir e reduzir a criminalidade violenta, incluindo a violência doméstica e os maus tratos, englobando os casos de violência doméstica e de maus tratos entre os crimes de prevenção prioritária e de investigação prioritária, como resulta dos artigos 2.º, alínea a), 3.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, alínea a) e respectivo Anexo, que delimita com precisão o período temporal abarcado, compreendido entre 1 de Setembro de 2009 e 31 de Agosto de 2011.

- Lei n.º 104/2009, de 14 de Setembro – Aprova o regime aplicável ao adiantamento pelo Estado das indemnizações devidas às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica, revogando a Lei n.º 129/99, de 20 de Agosto, e o Decreto-Lei n.º 423/91, de 30 de Outubro.

- Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, estabelecendo o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, revogando a Lei n.º 107/99, de 3 de Agosto e o Decreto-Lei n.º 323/2000, de 19 de Dezembro.

    O diploma previu a aplicação por parte dos tribunais de dois instrumentos fundamentais de protecção às vítimas do crime de violência doméstica, os meios técnicos de teleassistência e de controlo à distância.

    Entretanto, esta Lei foi alterada pela Lei n.º 19/2003, de 21 de Fevereiro (29.ª alteração ao Código Penal), que modifica os artigos 35.º, n.º 1 e 36.º, n.º 7, e pelo artigo 173.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento para 2015), Diário da República, 1.ª Série, n.º 252, de 31 de Dezembro de 2014), foi alterado o artigo 46.º.

- Portaria n.º 229-A/2010, de 23 de Abril, Suplemento n.º 79, aprovando o modelo de documento comprovativo da atribuição do estatuto de vítima, previsto no n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 112/2009, estabelecendo os direitos e deveres que aquele estatuto importa – meios técnicos de teleassistência e meios técnicos de controlo à distância vigorando para distritos do Porto e Coimbra.

- Decreto-lei n.º 120/2010, de 27 de Outubro (Diário da República, I Série, n.º 209, de 27 de Outubro de 2010) - Regula a constituição, o funcionamento e o exercício de poderes e deveres da Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes, em regulamentação da Lei n.º 104/2009, de 14 de Setembro, alterando o Decreto-Lei n.º 206/2006, de 27 de Outubro, e revogando o Decreto Regulamentar n.º 4/93, de 22 de Fevereiro, alterado pelo Decreto Regulamentar n.º 1/99, de 15 de Fevereiro.

- Resolução do Conselho de Ministros n.º 100/2010, publicada no Diário da República, I Série, n.º 243, de 17-12-2010, que aprova o IV Plano Nacional contra a Violência Doméstica (2011-2013).  

- Resolução do Conselho de Ministros n.º 5/2011, publicada no Diário da República, I Série, n.º 12, de 18-01-2011, que aprova o IV Plano Nacional para a Igualdade – Género, Cidadania e não Discriminação, 2011-2013.

      De relevar a autonomização da «Área estratégica n.º 9 - Violência de Género», onde depois de se afirmar que “a violência de género é um obstáculo à concretização dos objectivos da igualdade, desenvolvimento e paz e viola, dificulta ou anula o gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais” e de se acentuar que “a violência de género está associada a estereótipos, assimetrias de poder e representações sociais  que condicionam atitudes e identidades de masculinidade e feminilidade e conduzem à reprodução das desigualdades. Está relacionada com as desigualdades de género e intimamente ligada aos processos de socialização”, se conclui que “Importa apostar no desenvolvimento de políticas e medidas que combatam a violência de género em todas as suas dimensões, promovendo a eliminação dos estereótipos de género e uma cultura de não violência”.

      Mas não deixa de anotar-se que “Este domínio exige uma particular articulação entre este Plano, o IV Plano Nacional contra a Violência Doméstica e o II Plano Nacional contra o Tráfico de Seres Humanos”.

      No contexto, há que anotar que Portugal assinou em 6 de Março de 1997 a Convenção Europeia Relativa à Indemnização das Vítimas de Crimes Violentos, a qual de acordo com o Aviso n.º 148/97, publicado in Diário da República, I Série – A, n.º 108, de 10-05-1997, entraria em vigor em 1 de Fevereiro de 1998, sendo que pelo Aviso n.º 135/2001, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 301, de 31 de Dezembro, foi tornado público que, contrariamente a tal Aviso, entraria em vigor em 1 de Dezembro de 2001.        

     A Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, que procedeu à 29.ª alteração ao Código Penal, modificou a redacção dos artigos 69.º, 120.º, 132.º, 152.º, 204.º, 207.º, 213,º, 224.º, 231.º, 240.º, 347.º, n.º 3 e 359.º do Código Penal, aditou o artigo 348.º-A, procedeu a alteração sistemática ao Código Penal e introduziu a primeira alteração à supra referida Lei n.º 112/2009, de 16-09.
     A alínea f) do n.º 2 do artigo 132.º, passa a ter a seguinte redacção “Ser determinado por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela identidade de género da vítima”.

    

     A propósito da inovação de Setembro de 2007, Maia Gonçalves, in Código Penal Português Anotado e Comentado, 18.ª edição, 2007, pág. 509, referia: “Aqui se inclui uma nova circunstância qualificativa do homicídio, que é a relação conjugal ou análoga, incluindo-se a união de facto, ainda que entre pessoas do mesmo sexo. Trata-se de reflexo, na lei, da actual visão da comunidade sobre as uniões de facto e a sexualidade”.

     Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, no Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris, 2008, pág. 344, nota 24, afirmam: “É outrossim o terreno dos laços familiares (ou equiparados), a partir da relação matrimonial e alargado a casos que o legislador tomou como análogos, do mesmo passo que com extensão para lá da própria cessação das atinentes relações, pelo entendimento de que tal não destruiu de todo os referidos laços, bem como de que, apesar de tudo, eles continuam a impor-se ao respeito dos que naquelas intervieram”.

    

    Maria Margarida Silva Pereira, em Direito Penal II - Os Homicídios, 2.ª edição, actualizada em Setembro de 2007, AAFDL, 2008, de fls. 100 a 103, a propósito da inclusão em 2007 no artigo 132.º de casos em que a maior gravidade do facto depende de qualidades ou relações especiais do autor, expende: “É evidente que a ideia, antes expendida, de que a família poderia ver-se incólume ao agravamento no caso de homicídio entre cônjuges claudicou. Sensível ao problema criminal dos maus tratos conjugais evidenciados socialmente em grau crescente, e coerente com a sua incriminação de uma forma agravada, o legislador vem entender que qualidades ou relações como as descritas agravam potencialmente a censurabilidade ou a perversidade com que o homicídio é praticado e integra estes comportamentos no artigo 132.º.

     Ora, trata-se sem dúvida, de comportamentos cuja incriminação em sede de homicídio qualificado se articula com a especial ilicitude, que o legislador reconhece aos crimes de maus-tratos e de violência doméstica (hoje vertidos no artigo 132.º com a epígrafe genérica de violência doméstica). Temos, assim, que a qualidade ou relação especial do autor com a vítima, que reconhecidamente agrava a ilicitude deste crime, repercute na nova alínea do artigo 132.º”.

     Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2.ª edição actualizada, Outubro de 2010, diz a propósito, na página 401: “Os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade. A Lei n.º 59/2007 veio alargar ainda mais esta tutela penal, prescindindo mesmo da existência de laços familiares básicos entre a vítima e o agente, ao incluir o homicídio de ex-cônjuge, de pessoa com quem o agente “tenha mantido” relação análoga à dos cônjuges e mesmo de progenitor de descendente comum em 1.º grau. Deste modo, incluem-se sob a tutela penal as relações familiares pretéritas e as relações parentais não familiares. É certo que as relações familiares, presentes e pretéritas, e as relações parentais são também aquelas que permitem uma maior desinibição, mas essa desinibição não pode constituir um factor de tolerância da violência, fundando o legislador precisamente nessas relações um juízo de censura penal agravado”.

    

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      Na jurisprudência deste Supremo Tribunal podem ver-se concretizações deste exemplo padrão, versando relações análogas a cônjuges, nos acórdãos de 26-03-2008, processo n.º 292/08.3.ª; de 19-06-2008, processo n.º 2043/08-5.ª; de 29-04-2009, processo n.º 434/07.0PAMAI.S1-3.ª; de 21-10-2009, processo n.º 589/08.6PBVLG.S1-3.ª; de 07-04-2010, processo n.º 202/08.1GBPSR.E1.S1-3.ª; de 05-05-2010, processo n.º 90/08.8GCCNT.C1.S1-3.ª; de 19-05-2010, processo n.º 459/05.0GAFLG.G1.S1-3.ª; de 27-05-2010, processos n.º 517/08.JACBR.C1.S1-5.ª; de 6-10-2011, processo n.º 88/09.9PJSNT.L1.S1-5.ª; de 23-11-2011, processo n.º 1081/09.7JAPRT.P2.S1-3.ª; de 23-11-2011, processo n.º 1064/10.4JDLSB.L1.S1-3.ª e n.º 508/10.0JAFUN.S1-5.ª; de 8-03-2012, processo n.º 131/10.9JAFAR.E1.S1-5.ª; de 5-07-2012, processo n.º 2663/10.0GBBABF.S1-5.ª; de 12-09-2012, processo n.º 1221/11.6JAPRT.S1-3.ª; de 15-05-2013, processo n.º 154/12.3JDLSB.L1.S1-3.ª, CJSTJ 2013, tomo 2, pág. 180 – Morte de companheira grávida – art.132.º, n.º 2, alíneas b) e c); de 29-05-2013, processo n.º 2012/11.0JAPRT.P1.S1-5.ª; de 7-05-2014, processo n.º 250/12.7JABRG:G1:S1-3.ª; de 4-06-2014, processo n.º 298/12.1JDLSB.L1.S1-3.ª, CJSTJ 2014, tomo 2, pág. 208.

     E foram versados crimes de homicídio qualificado nas mesmas situações, na forma tentada, nos casos dos acórdãos de 13-07-2011, processo n.º 758/09.1JABRG.S1-3.ª, CJSTJ, 2011, tomo 2, pág. 204; de 15-11-2012, processo n.º 858/11.8PBSNT.L1.S1-5ª; de 5-06-2013, processo n.º 1675/11.0JAPRT.P1.S1-5.ª; de 27-02-2014, processo n.º 798/12.3GCBNV.L1.S1-5.ª.

     Em alguns casos foi considerado não se mostrar preenchido o exemplo padrão, como no acórdão de 30-11-2011, processo n.º 238/10.2JACBR.S1-3.ª, em que não foi considerada a integração da concreta situação vivenciada pelo arguido e vítima no quadro legal da união de facto; no acórdão de 17-10-2013, processo n.º 27/12.0GPPSR.S1-5.ª, é afastada a alínea b) e provado apenas relacionamento amoroso anterior, dando-se como verificado motivo fútil e aplicada pena de 19 anos de prisão.


                                                          *****

A Relação Conjugal na jurisprudência do Supremo Tribunal

Ainda antes da alteração legislativa de Setembro de 2007, com a inclusão da circunstância da referida alínea b), o Supremo Tribunal de Justiça, para além dos já indicados casos em que a conduta homicida de cônjuge foi incluída na alínea a) do n.º 2 do artigo 132.º, em alguns casos, integrou a conduta homicida dentro da relação conjugal/familiar, como integrando crime de homicídio agravado atípico, nos termos do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal.

            Assim aconteceu:

Em casos de Uxoricídio

 

        Acórdão de 03-04-1991, BMJ n.º 406, pág. 314 e Colectânea de Jurisprudência 1991, tomo 2, pág. 15 – Considera-se ser merecedor de intensa reprovação o facto de a vítima de homicídio ser mulher do agente que, ao matá-la, violou gravemente o dever de respeito e de cooperação que a lei lhe impõe (artigos 1672º e 1674º do Código Civil), não se descortinando por parte daquela qualquer atitude que, mínima e humanamente, permita compreender a sua brutal atitude.

       Acórdão de 28-02-2002, processo n.º 226/02 - 5.ª - Após afastamento dos possíveis exemplos regra (meio particularmente perigoso e insidioso e frieza de ânimo) considera-se a configuração de homicídio agravado atípico tendo em conta uma realização do facto de forma especialmente desvaliosa, integrando-se a conduta no n.º 1 do artigo 132.º do C. Penal.

     Acórdão de 30-10-2003, processo n.º 3252/03 – 5.ª, in CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208 - Versou caso de homicídio qualificado atípico, concretamente de uxoricídio, e afirmando: afastados do caso os possíveis exemplos padrão de agravamento ou qualificação, não fica afastada a possibilidade de qualificação do homicídio, caso a realização do facto de forma especialmente desvaliosa, revele especial perversidade ou censurabilidade do agente.

      Acórdão de 02-04-2008, processo n.º 4730/07, relatado pelo relator do presente.

       Caso ocorrido em 9 de Janeiro de 2006, em que o arguido, na cozinha da residência do casal, mata a mulher, disparando à distância de um metro um tiro de caçadeira dirigido às pernas, fazendo tombar a vítima e recarregando a arma e estando a mulher prostrada, ensanguentada, cerca de 3 ou 4 minutos após, dispara outro tiro, dirigido ao mesmo alvo, deixando-a a agonizar, tendo uma filha de 13 anos presenciado o primeiro disparo e acorrido logo na sequência do segundo tiro.

     Acórdão de 21-01-2009, processo n.º 2387/07, igualmente relatado pelo ora relator - Situação ocorrida em 04 de Dezembro de 2006, em que o arguido com um machado agrediu na cabeça por várias vezes a mulher com quem estava casado há mais de 2 anos, tendo convivido maritalmente um com o outro oito anos antes.   

     No caso, entendeu-se não caber a situação na alínea a), sendo a consideração da relação conjugal existente entre arguido e vítima, reportada ao concreto tempo da acção e ao quadro legislativo existente, um outro sintoma, uma circunstância paralela, uma situação análoga, um índice com estrutura valorativa semelhante ou aproximada ao previsto, que poderá contribuir, analisada no contexto de uma visão global do caso, e em conjugação com outros elementos, para avaliação da questão de saber se se estará perante, ou não, uma situação análoga demonstrativa ou indiciatória da existência/presença de uma especial censurabilidade ou perversidade, ou face tão só a matéria a ter em conta ao nível da dosimetria da pena.

      Nestes dois casos foi considerado que “A não integração na alínea a) do n.º 2 do artigo 132.º não impede que se tenha em consideração que sendo a vítima esposa do arguido, este violou o dever especial de não cometer o facto, por vinculado aos deveres conjugais, maxime, os de respeito e de cooperação (este traduzido na obrigação de socorro e auxílio mútuos) - artigos 1672.º e 1674.º do Código Civil”.

       Em caso de homicídio de companheira

      Acórdão de 26-06-1991, processo n.º 41910, AJ, n.º 20 – “Comete o crime de homicídio qualificado, o arguido que não hesita em matar a mulher com quem vivia, no lugar de esposa, há mais de 20 anos. Essa convivência, como marido e mulher, deveria ter-lhe criado o sentimento de a proteger, de a amparar, de a tratar com carinho e não de lhe tirar a vida, por suspeitas, aliás, infundadas, de infidelidade.

     Apenas uma personalidade mal formada, perigosa e perversa procede desta forma, alheia ao respeito que os mais próximos lhe devem merecer”. 

     Acórdão de 29-03-2007, processo n.º 647/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 1, pág. 238, sendo relator por vencimento o mesmo dos acórdãos de 28-02-2002, de 03-10-2002 e de 30-10-2003, o primeiro e este supra referidos, estando em causa crime cometido contra a pessoa com quem o arguido vivera em comunhão de vida, em situação análoga à dos cônjuges, durante cerca de 25 anos, com um filho, mas vivendo em quartos separados há 12 anos, considera-se não ser descabido considerar, nas apontadas circunstâncias, de ilicitude extrema, em que foi negada qualquer possibilidade de defesa por parte da vítima, o homicídio agravado, tendo em conta, no caso, uma realização do facto como ficou descrito, de forma especialmente desvaliosa - dando um tiro enquanto a vítima dormia -, numa palavra, especialmente censurável, entendendo-se como integrado crime de homicídio agravado, p. p. nos artigos 131.º e 132.º, n.º 1, do Código Penal, repondo-se a decisão da primeira instância.

Em caso de tentativa de homicídio da mulher

    Acórdão de 26-06-2002, processo n.º 1868/02-3.ª – Mantida a incriminação pelo artigo 132.º, n.º 1, do Código Penal, entendendo-se que perante as circunstâncias apuradas, nomeadamente, o facto de o arguido encostar o cano do revólver à boca da ofendida sua mulher, com a intenção de lhe tirar a vida, no decorrer de uma discussão, e de haver disparado um tiro - quando a ofendida tinha ao colo uma filha de ambos, com  20 meses de idade – e os factos que se seguiram (a assistente pediu ao arguido para a socorrer, mas só passado algum tempo e depois de aquela lhe prometer que não relataria o que se havia passado, porque “senão para a próxima não errava” é que a conduziu ao Centro de Saúde), conferem à conduta do arguido uma especial censurabilidade.

       Em caso de homicídio de ex-namorada

 

      Acórdão de 13-02-2008, processo n.º 4729/07-3.ª, em que interviemos, como adjunto. - No caso é confirmada a qualificação feita pelas instâncias, integrando a conduta do arguido no artigo 132.º, n.º 1, do Código Penal, em situação concreta em que releva o modo de execução, com o arguido a dar murros e pontapés na cabeça da ex-namorada, com quem vivera cerca de 2/3 meses, e então amiga que se deslocara a sua casa, arrancando-lhe vários tufos de cabelo, esganando-a com as próprias mãos, projectando álcool etílico sobre ela, ateando-lhe fogo quando ainda estava viva, determinando a violência dos golpes grande jorro de sangue, tudo revelador de uma enorme brutalidade, uma enorme crueldade para com a vítima e a denotar especial censurabilidade e perversidade.

      Acórdão de 18-03-2010, processo n.º 1374/07.8PBCBR.C2.S1-5.ª - Embora sendo de concluir pelo não preenchimento de qualquer das alíneas do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, ocorre um crime de homicídio qualificado, desta feita atípico, por a conduta do arguido se revelar à mesma altamente censurável, quando o crime foi motivado pela ruptura de namoro por iniciativa da vítima e pela recusa desta em reatar o relacionamento afectivo antecedente, que perdurou durante mais de um ano.

                                                                       *         

      Noutros casos, a hipótese de enquadramento no homicídio qualificado atípico é considerada, mas afastado no concreto este tipo de qualificação.

      Acórdão de 27-05-2004, processo n.º1389/04-5.ª, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 204.

     Em caso de uxoricídio é afastada a qualificação atípica efectuada na primeira instância e corroborada pela Relação.

      Fundamenta-se a opção nestes termos: “O recurso à figura jurídica do homicídio qualificado atípico, isto é, a sua qualificação sem recurso a nenhuma das agravantes padrão previstas nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 132º do C. Penal deve ser feito ou levado a cabo com alguma parcimónia”, afastando-se no caso concreto a configuração da especial censurabilidade ou perversidade por actuar o arguido movido por motivos relacionados com a desconfiança da fidelidade da mulher.

      Acórdão de 24-05-2007, processo n.º 1602/07 – 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 206, com o mesmo relator dos acórdãos, supra citados, de 28-02-2002, de 03-10-2002, de 30-10-2003 (n.º 3252/03), de 27-05-2004 e de 29-03-2007.

      Em caso de uxoricídio, em que o marido, em 3-10-2004, mata a mulher com quem estava casado desde Agosto de 2001, com dois tiros de caçadeira, é revogado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que configurara homicídio qualificado atípico, com consequente reposição do decidido em 1.ª instância, por considerar que no caso concreto as circunstâncias de ilicitude e culpa encontram no tipo comum todos os elementos de valoração e por o arguido ter sido substancialmente atingido ao menos na honra por comportamentos censuráveis da vítima (insultos com que se sentia humilhado), afastando-se o quadro de uma actuação inteiramente «a frio».

    Revertendo ao caso concreto.

    O recorrente insurge-se contra a solução de verificação do exemplo padrão em causa, pugnando pela integração da conduta no tipo de crime de homicídio simples.

    Como flui da matéria de facto provada o arguido e a vítima viveram durante cerca de três anos como se casados fossem.

    Resulta do facto provado n.º 1 que “O arguido manteve com CC, nascida a 13/12/1963, uma relação amorosa, análoga à dos cônjuges, coabitando com a mesma, como se marido e mulher fossem, em comunhão de cama, mesa e habitação, durante, pelo menos, três anos e até finais de Agosto de 2012”. (Realce nosso).

    A questão em apreciação deverá ser vista à luz da solução legal introduzida em 2007, que alargando a listagem existente, inclui, entre os exemplos-regra, para além do conjugicídio, várias outras situações, nomeadamente a de união de facto, tratando-se de um novo padrão, indício, sintoma, guia, exemplo, modelo, indicador de situação, que abstractamente poderá ser susceptível de indicar, de sugerir – e apenas isso – que a acção do agente atinge o grau (especial) de culpa revelador de especial censurabilidade ou perversidade.

    O acórdão de primeira instância foi parco na fundamentação, referindo praticamente apenas a situação vivenciada, justificando a crítica que lhe lançou o acórdão da Relação.

    Na verdade, a propósito da integração do exemplo-padrão disse, a fls. 789, o acórdão da 1.ª Vara Mista de Vila Nova de Gaia:   

    «Indo agora ao encontro do caso concreto, provou-se que o arguido e assistente (SIC) durante um período de cerca de 10 meses (SIC) mantiveram “uma relação amorosa” (facto 1.º dos provados).

    Ora, a factualidade que resulta provada, s.m.o., não pode deixar de integrar tal cláusula. Arguido e vítima, CC, mantiveram “uma relação análoga aos cônjuges”.

    Não há dúvidas quanto a esta qualificativa, pois aqui o tipo protege dos (SIC) laços básicos de parentesco».

    Em primeiro lugar, dir-se-á ressaltar a notória falta de revisão do texto, constando a referência a “assistente” quando devia estar “vítima” (o assistente é o filho da vítima), como de resto assinalou a Relação, e depois, de uma forma algo difícil de entender, refere-se a propósito da duração da relação amorosa um período de cerca de dez meses quando provado ficou que a relação durou pelo menos três anos.

    Para além destes lapsos, verifica-se, como bem observa a Relação, completa ausência de indicação de concretas circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade com que a morte da vítima foi causada pelo recorrente, defendendo o acórdão de Gaia que a relação análoga à dos cônjuges mantida entre recorrente e vítima afinal bastaria para preencher o exemplo-padrão constante da alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

    O acórdão ora recorrido após enunciar as circunstâncias em que o crime de homicídio foi perpetrado pelo recorrente conforme consta dos factos provados, expende, a fls. 974/5:

    “Estamos, pois, perante um típico caso passional mal resolvido, em que o homicida não aceita a decisão da companheira de fazer cessar o relacionamento amoroso, procurando um indefensável exercício de posse sobre outrem que o rejeita e em colisão directa com o seu direito de liberdade nesse domínio. Persistente, ele na obsessão de a voltar a ter e ela na rejeição desse propósito, levou a que na discussão que no último encontro que ele procurou se tenha gerado nele o propósito de a matar, o que levou ao extremo de, não tendo logrado consegui-lo com um primeiro disparo de arma que para isso procurou, já que a não tinha consigo, tenha voltado a municiar a arma e a perseguisse na fuga que entretanto ela desenvolveu, pese embora gravemente ferida, desfechando-lhe depois um segundo tiro, agora mortal pois que a atingiu na cabeça. Esta intensidade homicida do recorrente, bem espelhada no remuniciamento da arma e na perseguição à vítima que ferira gravemente com um primeiro disparo como forma de reagir a uma persistente rejeição de com ele retomar a vida em comum, não deixa margem para se concluir coisa diferente que não seja considerar como uma especial censurabilidade da morte da companheira que o fora mas já não desejava ser.

    É verdade que, como refere o recorrente, é «a partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu, como “efeito de indício”, [que] interessará ver se não concorrerão outros factos que, funcionando como “contraprova”, eliminem a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado».[2] Porém, não só não indica que outros factos de entre os julgados provados poderiam funcionar como contraponto atenuador da especial censurabilidade revelada pelo facto integrador do exemplo-padrão como se não se vê que existam. Refere, é certo, que não tem antecedentes criminais, confessou a prática dos factos, demonstrou arrependimento e que matou a vítima no calor de uma discussão mas isso pouco ou nada releva para o efeito porque são factos alheios às circunstâncias que rodearam a morte da vítima. De todo o modo, o que importa enfatizar é que não só se provaram factos que integram o exemplo-padrão como também o critério geral do n.º 1 do art.º 132.º do Código Penal. Pelo que bem andou o acórdão recorrido considerar qualificado o crime de homicídio cometido pelo recorrente.(…)”.

    Analisando.

    Há que avaliar a conduta global do recorrente com vista a perscrutar uma especial censurabilidade da sua culpa - acórdãos de 03-04-1991, Colectânea de Jurisprudência 1991, tomo 2, pág. 15 e BMJ n.º 406, pág. 314; de 18-10-1991, processo n.º 42.116, BMJ n.º 410, pág. 367 (para que o crime de homicídio se possa considerar qualificado, nos termos do artigo 132.º do Código Penal, é essencial que a conduta do agente, analisada no seu conjunto, deva merecer um apreciável cariz de repulsa, que o faz distinguir dos casos vulgares e deve ser objecto, à partida, de um maior juízo de censura); de 27-09-2000, processo n.º 280/2000-3.ª, BMJ n.º 499, pág. 122 e CJSTJ 2000, tomo 3, pág. 179; de 13-12-2000, processo n.º 2753/00-3.ª, CJSTJ 2000, tomo 3, pág. 241; de 13-07-2005, processo n.º 1843/05-3.ª, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 251; de 13-07-2011, processo n.º 758/09.1JABRG.S1-3.ª, CJSTJ, 2011, tomo 2, pág. 204; a imagem global do facto, a que alude Figueiredo Dias, in Comentário…, pág. 26; a ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto, na expressão de Teresa Serra, Homicídio Qualificado …, pág. 63: a ponderação final da atitude do agente, como refere Augusto Dias, loc. cit., pág.  29.

      Face ao quadro factual dado por provado, na análise a efectuar há que ter em atenção o modo de actuação do arguido e o reflexo da sua personalidade na conduta levada a cabo.

    A situação pretérita recente, o relacionamento do arguido com CC durante cerca de três anos, como se fossem casados, e mantido até poucos dias antes (cerca de uma semana, uma vez que de acordo com o FP 45 a separação ocorreu em finais de Agosto de 2012), atendendo aos laços de afecto e da comunhão de vida, deveria ter funcionado como travão para a acção do arguido.

      A reacção do arguido é manifestamente desproporcional em relação à manifestação de vontade da vítima de não querer continuar com a relação amorosa.

     Como salienta o acórdão de 23-11-2011, proferido no processo n.º 1081/09.7JAPRT.P2.S1-3.ª, a agravante da alínea b), de funcionamento não automático como as demais previstas no artigo 132.º do CP, arranca do pressuposto de que as relações familiares não legitimam o exercício de direitos ou o cumprimento de obrigações de forma chocante e absolutamente intolerável, antes se devendo desenvolver, a bem dos seus membros e da comunidade, num clima de salutar equilíbrio.

      Como bem refere o acórdão de 23-11-2011, processo n.º 508/10.0JAFUN.S1-5.ª, em caso de morte de ex-companheira, o passado de relacionamento afectivo entre arguido e vítima deveria, em condições de normalidade, constituir um refreamento para quaisquer impulsos agressivos. É na ultrapassagem desse travão que se revela uma atitude especialmente censurável. Tanto mais que o modo como o crime foi perpetrado acentua o quadro especialmente desvalioso. O cometimento de crime passional, debaixo de emoção mais ou menos violenta ou sob o domínio dos afectos, não neutraliza a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado.

      E no acórdão de 27-05-2010, processo n.º 517/08.9JACBR.C1.S1-5.ª, em situação em que o arguido mata a ex - mulher, pondera-se que a razão de ser da agravação da alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal é a de que, para o comum das pessoas, os laços afectivos estabelecidos, designadamente pela via do casamento, são um factor de refreamento, que não existiria quando a potencial vítima é outra qualquer pessoa.   

      No acórdão de 15-11-2012, processo n.º 858/11.8PBSNT.L1.S1-5.ª, em caso de tentativa de homicídio de mulher, afirma-se que o passado de relacionamento afectivo entre arguido e vítima deveria em condições de normalidade, constituir um refreamento para quaisquer impulsos agressivos, sendo na ultrapassagem desse travão que se revela um atitude especialmente censurável.

    Indiciador de culpa acrescida é o modo de execução, disparando o arguido arma de fogo, de forma súbita, a curta distância, praticamente decepando a vítima com o primeiro disparo – como consta do FP 7, o arguido efectuou um disparo, que a atingiu no braço direito que foi lacerado ao nível do cotovelo com amputação quase total, ficando apenas preso pelos tecidos da face anterointerna, com perda óssea e na zona abdominal, onde lhe provocou uma perfuração, com 11 cm de comprimento por 5,5 cm de largura – ressaltando o sangue frio para remuniciar a arma e atirar pela segunda vez quando a vítima procurava afastar-se – como consta do FP 8, o arguido remuniciou a dita arma (…) efectuou um novo disparo, visando a CC, onde a veio a atingir na cabeça, provocando-lhe extensas lesões, nomeadamente, fractura do osso maxilar, fractura cominativa dos ossos do crânio da base com perda de couro cabeludo, com extensos bordos irregulares, perda quase total da massa encefálica e lacerações das meninges.

     O arguido agiu com manifesta superioridade conferida pela posse da arma de fogo, sendo os tiros direccionados a zonas vitais, sobretudo, o segundo tiro, tendo-se em conta que após o primeiro disparo ficava a vítima gravemente ferida desprotegida, indefesa e absolutamente incapaz de se opor a tal tipo de agressão, manifestando o recorrente firmeza de intenção criminosa, manifesta insensibilidade, absoluta indiferença e total desprezo e falta de respeito pelo valor da vida humana, abandonando o local com a vítima já morta “ciente de que a havia morto”, - factos provados sob os n.º s  7, 8, 10 e 13.

     Como consta do FP 10, o arguido efectuou ambos os disparos em momentos em que a CC se encontrava separada de si por escassos metros.

    A insistência do recorrente na consumação do segundo disparo, para a zona – absolutamente vital – então visada e atingida, de modo a certificar o decesso da vítima, não pode deixar de traduzir culpa acrescida.

     O tipo de actuação confirma o efeito indiciante resultante da verificação do exemplo-padrão; o homicídio em apreciação ocorreu num quadro circunstancial de onde resulta que o arguido agiu com a intenção conscientemente formada de tirar a vida à sua recente ex-companheira, o que fez munido de arma de fogo, desferindo dois tiros de forma súbita e inesperada, circunstâncias estas que, por si só, bastam para a acrescida censurabilidade e demonstrando comportamento desvalioso.

    A insistência na execução do acto delituoso mostra uma acrescida vontade de matar, impondo a conclusão de que a qualificação do crime é inquestionável.

    No caso presente o arguido tinha, em relação à vítima, especiais deveres de se abster de assumir comportamentos violentos, pois aquela fora até há bem pouco tempo a sua companheira, sendo a conduta reveladora da especial intensidade da culpa do arguido.

   A conduta do arguido traduz uma marca visível de sinal contrário aos deveres específicos emergentes da relação de igualdade de direitos e deveres suposta na união de facto.

      Como refere Fernando Silva, loc. cit., pág. 70, ao referir-se a cônjuges, mas de transpor para caso de relação análoga «A decisão de matar o cônjuge traduz, desde logo, a manifestação de um comportamento especialmente grave, próprio de quem vence contra motivações acrescidas, manifestando um elevado grau de culpa, na medida em que o agente, ao cometer tal facto, contraria, em absoluto, aquela que deveria ser a sua atitude perante o seu cônjuge. O comportamento do agente que decide matar o seu cônjuge, perante o qual assumiu um especial compromisso que o coloca perante deveres de protecção e proximidade, é merecedor de um juízo de censura agravada».

     Conclui-se, assim, pela adequação da subsunção feita nas instâncias, confirmando-se ter o arguido cometido um crime de homicídio qualificado, p. p. pelo artigo 132.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal. 

     Questão II – Medida da pena aplicada pelo homicídio qualificado

       O recorrente nas conclusões 11.ª a 14.ª pugna pela redução da pena aplicada pelo homicídio e da pena única.

     A moldura abstracta penal cabível ao crime de homicídio qualificado é de prisão de doze a vinte e cinco anos.

      Dentro desta moldura funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, designadamente:

- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

- A intensidade do dolo ou da negligência;

- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

- A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

                                                              *******

     No domínio da versão originária do Código Penal de 1982, alguma jurisprudência, dizendo basear-se em posição do Professor Eduardo Correia (Actas das Sessões, pág. 20), segundo a qual o procedimento normal e correcto dos juízes na determinação da pena concreta, em face do novo Código, seria o de utilizar, como ponto de partida, a média entre os limites mínimo e máximo da pena correspondente, em abstracto, ao crime, adoptou tal orientação, considerando-se em seguida as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depusessem a favor do agente ou contra ele, sendo exemplos de tal posição os acórdãos de 13-07-1983, BMJ n.º 329, pág. 396; de 15-02-1984, BMJ n.º 334, pág. 274; de 26-04-1984, BMJ n.º 336, pág. 331; de 19-12-1984, BMJ n.º 342, pág. 233; de 11-11-1987, BMJ n.º 371, pág. 226; de 19-12-1994, BMJ n.º 342, pág. 233; de 10-01-1987, processo n.º 38627 – 3.ª, Tribuna da Justiça, n.º 26; de 11-11-1987, BMJ n.º 371, pág. 226; de 11-05-1988, processo n.º 39401 – 3.ª, Tribuna da Justiça, n.ºs 41/42.

     Manifestou-se contra esta interpretação Figueiredo Dias em Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 277, págs. 210/211.

     A refutação de tal critério foi feita por Carmona da Mota, in Tribuna da Justiça, n.º 6, Junho 1985, págs. 8/9 e Alfredo Gaspar, em anotação ao acórdão de 2 de Maio de 1985, in Tribuna da Justiça, n.º 7, págs. 11 e 13, dando-se conta, em ambos os casos, de que o primeiro aresto em que se verificou uma inflexão na jurisprudência foi o acórdão da Relação de Coimbra de 09-11-1983, in Colectânea de Jurisprudência 1983, tomo 5, pág. 73.

     Posteriormente, e ainda antes de 1995, partindo da ideia de que a culpa é a medida que a pena não pode ultrapassar nem mesmo lançando apelo às necessidades de prevenção, mesmo que acentuadas, começou a considerar-se não ser correcto partir-se dum ponto médio dos limites da moldura penal para a agravação ou atenuação consoante o peso relativo das respectivas circunstâncias, como vinha sendo entendido, salientando-se que a determinação da medida da pena não depende de critérios aritméticos. Neste sentido, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16-12-1986, BMJ n.º 362, pág. 359; de 25-11-1987, BMJ n.º 371, pág. 255; de 22-02-1989, BMJ n.º 384, pág. 552; de 09-06-1993, BMJ n.º 428, pág. 284; de 22-06-1994, processo n.º 46701, CJSTJ 1994, tomo 2, pág. 255. E no acórdão de 27-02-1991, in A. J., n.º 15/16, pág. 9 (citado no acórdão de 15-02-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 216), decidiu-se que na fixação concreta da pena não deve partir-se da média entre os limites mínimo e máximo da pena abstracta. A determinação concreta há-de resultar de a adaptar a cada caso concreto, liberdade que o julgador deve usar com prudência e equilíbrio, dentro dos cânones jurisprudenciais e da experiência, no exercício do que verdadeiramente é a arte de julgar.

    Anteriormente, não manifestando preocupações de adesão à pena média, pronunciaram-se, v. g.,  os acórdãos de 21-06-1989, BMJ n.º 388, pág. 245 e de  17-10-1991, BMJ n.º 410, pág. 360.

     Hans Heinrich Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1194, diz: “o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena”.

     Definindo o papel que cabe à culpa na determinação concreta da pena, nos termos da teoria da margem de liberdade (Claus Roxin, Culpabilidade y Prevención en Derecho Penal, págs. 94 -113) é ele o seguinte: a pena concreta é fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa), limites esses que são determinados em função da culpa do agente e aí intervindo dentro desses limites os outros fins das penas (as exigências da prevenção geral e da prevenção especial).

     A partir de 1 de Outubro de 1995 foram alterados os dados do problema, passando a pena a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena.

     A terceira alteração ao Código Penal operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1 de Outubro seguinte, proclamou a necessidade, proporcionalidade e adequação como princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental, introduzindo a inovação, com feição pragmática e utilitária, constante do artigo 40.º, ao consagrar que a finalidade a prosseguir com as penas e medidas de segurança é «a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», ou seja, a reinserção social do agente do crime, o seu retorno ao tecido social lesado.

     Com esta reformulação do Código Penal, como se explica no preâmbulo do diploma, não prescindiu o legislador de oferecer aos tribunais critérios seguros e objectivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa, dispondo o n.º 2 que «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».

     Em consonância com estes princípios dispõe o artigo 71.º, n.º 1, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”; o n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º 3, que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, injunção com concretização adjectiva no artigo 375.º, n.º 1 do CPP, ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada. (Em sede de processo decisório, a regulamentação respeitante à determinação da pena tem tratamento autónomo relativamente à questão da determinação da culpabilidade, sendo esta tratada no artigo 368.º, e aquela prevista no artigo 369.º, com eventual apelo aos artigos 370.º e 371.º do CPP).

      Figueiredo Dias, em Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, no tema Fundamento, Sentido e Finalidades da Pena Criminal, págs. 65 a 111, diz que o legislador de 1995 assumiu, precipitando no artigo 40.º do Código Penal, os princípios ínsitos no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, (princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso) e o percurso doutrinário, resumindo assim a teoria penal defendida:

1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.

2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.

3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.

4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.

      No dizer de Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, edição 1998, AAFDL, pág. 25, «a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial».

     Américo Taipa de Carvalho, em Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 322, afirma resultar do actual artigo 40.º que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção.

     Está subjacente ao artigo 40.º uma concepção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.

     Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena que vai constar da decisão o juiz serve-se do critério global contido no referido artigo 71.º do Código Penal (preceito que a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, deixou intocado, como de resto aconteceu com o citado artigo 40.º), estando vinculado aos módulos - critérios de escolha da pena constantes do preceito.

    Como se refere no acórdão de 28-09-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71.º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

     Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar.

     O referido dever jurídico-substantivo e processual de fundamentação visa justamente tornar possível o controlo - total no caso dos tribunais de relação, limitado às «questões de direito» no caso do STJ, ou mesmo das relações quando se tenha renunciado ao recurso em matéria de facto – da decisão sobre a determinação da pena.

     Estando a cognoscibilidade em recurso de revista limitada a matéria de direito, coloca-se a questão da controlabilidade da determinação da pena nesta sede.

     Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 218 (e pág. 224 na 4.ª edição actualizada de Abril de 2011), defende que a questão da determinação da espécie e da medida da sanção criminal redunda numa verdadeira questão de direito.

    Segundo Maria João Antunes, em Consequências Jurídicas do Crime, Lições 2007-2008, págs. 19 e 20, no procedimento de determinação da pena trata-se de autêntica aplicação do direito – na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, por imposição do artigo 71.º, n.º 3, do CP. Consequentemente, há uma autonomização do processo de determinação da pena em sede processual penal (artigos 369.º, 370.º e 371.º do CPP) e a possibilidade de controlo da decisão sobre a determinação da pena em sede de recurso, ainda que este seja apenas de revista.

           

     Figueiredo Dias, em Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, edição de 1993, págs. 196/7, § 255, após dar conta de que se revela uma tendência para alargar os limites em que a questão da determinação da pena é susceptível de revista, afirma estarem todos de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda estar plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e relativamente à determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, esta será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.

     Ainda de acordo com o mesmo Professor, na mesma obra de 1993, § 280, pág. 214 e repetido nas Lições ao 5.º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito, ou de «determinação concreta da pena»).

     As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

     Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».

     Anabela Miranda Rodrigues em “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, págs. 147 e ss., como proposta de solução defende que a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e que será definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

     Adianta que “é o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – protecção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada - que justifica que se fale  de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exacta, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (óptima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que  considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral”.

     Apresenta três proposições em jeito de conclusões e da seguinte forma sintética:

    “Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais.

     Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”.

     E finaliza, afirmando: “É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, directamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente”.

     Uma síntese destas posições sobre os fins das penas foi feita no acórdão de 10-04-1996, processo n.º 12/96, in CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 168, nos seguintes termos: “ O modelo de determinação da medida da pena no sistema jurídico-penal português comete à culpa (juízo de apreciação, de valoração, que enuncia o que as coisas valem aos olhos da consciência e o que deve ser do ponto de vista da validade lógica e da moral ou do direito) a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena, mas disso já cuidou, em primeira mão, o legislador, quando estabeleceu a moldura punitiva.

     Acontece, porém, que outras exigências concorrem naquele modelo: a prevenção geral (dita de integração) que tem por função fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite é dado, no máximo, pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e, no mínimo, fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Cabe à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro dessa função, rectius, moldura de prevenção que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares) de advertência ou de segurança”.

     Ainda do mesmo relator, e a propósito de caso de tráfico de estupefacientes, diz-se no acórdão de 08-10-1997, processo n.º 356/97-3.ª, in Sumários de Acórdãos, Gabinete de Assessoria do STJ, n.º 14, volume II, págs. 133/4: «As “exigências de prevenção” variam em função do tipo de criminalidade de que se trata. Na criminalidade relacionada com o tráfico de estupefacientes, com todo o seu cortejo de lesão de bens jurídicos muito relevantes, a carecerem de adequada protecção pelo direito penal - além do efeito propulsor de outras formas de criminalidade, nomeadamente contra as pessoas e contra o património, a que, a justo título, se tem chamado de “flagelo social”  - são de considerar as particulares exigências de prevenção, tanto geral como especial».

     Uma outra formulação, em síntese, na esteira de Figueiredo Dias, “As consequências jurídicas do crime 1993”, § 301 e ss., é a que consta dos acórdãos do STJ de 17-09-1997, processo n.º 624/97; de 01-10-1997, processo n.º 673/97; de 08-10-1997, processo n.º 874/97; de 15-10-1997, processo n.º 589/97, sendo os três últimos publicados in Sumários de Acórdãos do Gabinete de Assessoria do STJ, n.º 14, Outubro de 1997, II volume, págs. 125, 134 e 145, e de 20-05-1998, processo n.º 370/98, este publicado na CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 205 e no BMJ n.º 477, pág. 124, todos da 3.ª Secção e do mesmo relator, nos seguintes termos: “A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.

     Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime, e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal”. No sentido deste último segmento, ver do mesmo relator, os acórdãos de 08-10-1997, processo n.º 976/97 e de 17-12-1997, processo n.º 1186/97, in Sumários de Acórdãos, n.º 14, pág. 132 e n.º s 15/16, Novembro/Dezembro 1997, pág. 214.   

     A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cfr. acórdãos de  09-11-2000, processo n.º 2693/00-5.ª; de 23-11-2000, processo n.º 2766/00 – 5.ª; de 30-11-2000, processo n.º 2808/00-5.ª; de 28-06-2001, processos n.ºs 1674/01-5.ª, 1169/01-5.ª e 1552/01-5.ª; de 30-08-2001, processo n.º 2806/01-5.ª; de 15-11-2001, processo n.º 2622/01 – 5.ª; de 06-12-2001, processo n.º 3340/01-5.ª; de 17-01-2002, processo 2132/01-5.ª; de 09-05-2002, processo n.º 628/02-5.ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, processo n.º 585/02 – 5.ª; de 23-05-2002, processo n.º 1205/02 – 5.ª; de 26-09-2002, processo n.º 2360/02 – 5.ª; de 14-11-2002, processo n.º 3316/02 – 5.ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, processo n.º 3399/03 – 5.ª; de 04-03-2004, processo n.º 456/04 – 5.ª, in CJSTJ 2004, tomo 1, pág. 220; de 11-11-2004, processo n.º 3182/04 – 5.ª; de 23-06-2005, processo n.º 2047/05 - 5.ª; de 12-07-2005, processo n.º 2521/05 – 5.ª; de 03-11-2005, processo n.º 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, processo n.º 2555/06 – 3.ª; de 14-02-2007, processo n.º 249/07 – 3.ª; de 08-03-2007, processo n.º 4590/06 – 5.ª; de 12-04-2007, processo n.º 1228/07 – 5.ª; de 19-04-2007, processo n.º 445/07 – 5.ª; de 10-05-2007, processo n.º 1500/07 – 5.ª; de 14-06-2007, processo n.º 1580/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 220; de 04-07-2007, processo n.º 1775/07 – 3.ª; de 05-07-2007, processo n.º 1766/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 242; de 17-10-2007, processo n.º 3321/07 – 3.ª; de 10-01-2008, processo n.º 907/07 – 5.ª; de 16-01-2008, processo n.º 4571/07 – 3.ª; de 20-02-2008, processos n.ºs 4639/07 – 3.ª e 4832/07-3.ª; de 05-03-2008, processo n.º 437/08 – 3.ª; de 02-04-2008, processo n.º 4730/07 – 3.ª; de 03-04-2008, processo n.º 3228/07 – 5.ª; de 09-04-2008, processo n.º 1491/07 – 5.ª e processo n.º 999/08-3.ª; de 17-04-2008, processos n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07 – 3.ª; de 21-05-2008, processos n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5.ª secção; de 29-05-2008, processo n.º 1001/08 – 5.ª; de 03-09-2008, no processo n.º 3982/07-3.ª; de 10-09-2008, processo n.º 2506/08 – 3.ª; de 08-10-2008, nos processos n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3.ª secção; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 – 3.ª; de 29-10-2008, processo n.º 1309/08-3.ª; de 21-01-2009, processo n.º 2387/08-3.ª; de 27-05-2009, processo n.º 484/09-3.ª; de 18-06-2009, processo n.º 8523/06.1TDLSB-3.ª; de 1-10-2009, processo n.º 185/06.2SULSB.L1.S1-3.ª; de 25-11-2009, processo n.º 220/02.3GCSJM.P1.S1-3.ª; de 03-12-2009, processo n.º 136/08.0TBBGC.P1.S1-3.ª; de 28-04-2010, processo n.º 126/07.0PCPRT.S1-3.ª; de 10-11-2010, processo n.º 145/10.9JAPRT.P1.S1-3.ª; de 29-06-2011, processo n.º 21/10.5GACUB.E1.S1-3.ª; de 15-12-2011, processo n.º 17/09.0TELSB.L1.S1; de 05-12-2012, processo n.º 250/10.1JALRA.E1.S1; de 5-06-2013, processo n.º 7/11.2GAADV.E1.S1-3.ª; de 11-06-2014, processo n.º 14/07.0TRLSB.S1-3.ª.

     Na determinação da medida concreta da pena deve o Tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, atender a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente, abstendo-se no entanto de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido.

     O limite mínimo da pena a aplicar é assim determinado pelas razões de prevenção geral que no caso se façam sentir; o limite máximo pela culpa do agente revelada no facto; e servindo as razões de prevenção especial para encontrar, dentro daqueles limites, o quantum de pena a aplicar – cfr. Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, págs. 227 e ss..

     Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente, ou como diz o acórdão de 22-09-2004, processo n.º 1636/04-3.ª, in ASTJ, n.º 83: “a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível”.

     Ou, como expressivamente se diz no acórdão deste STJ de 16-01-2008, processo n.º 4565/07 - 3.ª: «A norma do art. 40.º do CP condensa em três proposições fundamentais o programa político-criminal sobre a função e os fins das penas: a) protecção de bens jurídicos; b) a socialização do agente do crime; c) constituir a culpa o limite da pena mas não o seu fundamento.

    O modelo do C P é de prevenção: a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do art. 40.º determina, por isso, que os critérios do art. 71.º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição.

    O modelo de prevenção acolhido – porque de protecção de bens jurídicos – estabelece que a pena deve ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva, e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

     Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.

    Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente».

    

    Revertendo ao caso concreto.

     Neste particular, ter-se-ão em conta as concretizações dos critérios legais estabelecidas pela decisão de primeira instância, que recolheu os elementos necessários e suficientes para o efeito e teve em vista os parâmetros legais a observar, bem como o contexto de actuação do arguido, e que foram acolhidas pelo acórdão recorrido, havendo apenas que considerar algumas especificidades do caso ora submetido a reapreciação.

      Sobre a questão da determinação da medida concreta da pena, após referir a moldura penal abstracta, discorreu o acórdão recorrido, de fls. 976 a 978, nos termos que seguem (excluídas as notas de rodapé):

     “Depois, o grau de ilicitude dos factos é o mais elevado no que concerne ao crime de homicídio qualificado, considerando que «a violação do direito à vida é o bem primeiro, o suporte de todos os bens da tutela jurídica» (…). A intensidade do dolo é máxima, pois que em ambos os casos directo, sendo plena a sua consciência da ilicitude dos factos que praticou. Aliás, o modo como foi perpetrado o homicídio, com o desfecho de um primeiro tiro que apenas feriu, gravemente, é certo, a vítima, por ele perseguida quando ainda assim procurou fugir ao encontro com o destino que ele lhe traçara, seguido de um segundo tiro, falhado, bem o sabemos pois que o cartucho não deflagrou e, por fim, de um terceiro, esse sim fatal porque a atingiu na cabeça, todos a curta distância da vítima, denota uma vincada vontade de a matar. O motivo que levou ao crime é relevante e não destituído de valor, sabendo-se neste domínio que foi resultado da não conformação do recorrente com a recusa da vítima em reatar o relacionamento amoroso que com ele tivera, sendo certo, no entanto, que esse era um direito que a ela assistia. As necessidades da prevenção geral são naturalmente elevadas nestes crimes, tanto mais que vivenciamos na nossa sociedade um período de crescente violência contra as pessoas. É certo que em benefício do recorrente se assinala ter confessado a prática do crime, embora o valor disso deva ser calibrado pela circunstância dele sido visto pela testemunha FF a abandonar o local da ocorrência dos factos; bem como se anota a seu favor a inserção social, embora com a necessária parcimónia pois que se assinala as suas recorrentes dificuldades nos relacionamentos amorosos nos últimos 10 anos; e a ausência de antecedentes criminais, ainda que tal não signifique mais que isso e, designadamente, «um comportamento anterior bom, entendido este como um superior comportamento que transcenda o comummente havido pela generalidade dos cidadãos de quem a sociedade espera, no mínimo, que se conformem com as regras estabelecidas e as acatem, sendo que não se provou que o comportamento, anterior e posterior, do arguido ultrapassasse o que é exigido do cidadão comum»; bem como o declarar-se arrependido, embora isso pouco ou praticamente nenhum valor tenha pois que isso difere de estar efectivamente arrependido, pois que se não vislumbra estar tal declaração de arrependimento alicerçada em factos susceptíveis de a demonstrarem, como poderia ser o caso, por exemplo, da reparação, na medida do possível, do danos causados com a morte da vítima. Finalmente, embora alegue não se descortina a presença de um quadro depressivo que limitava a capacidade de valorar e discernir (diminuição da culpa) à data do homicídio. Pelo contrário, o acórdão é decisivamente afirmativo em contramão do alegado, como se pode ver do seguinte trecho dele colhido: «O Tribunal colectivo … retira daí conclusão de que o arguido estava à data dos factos capaz de “avaliar a ilicitude dos actos por si praticados e de se determinar de acordo com essa avaliação”, ie, o arguido à data dos factos era imputável não sofrendo de qualquer imputabilidade diminuída».

     Aqui chegados, ressalta à evidência que as penas parcelares de 15 anos e 6 meses de prisão considerada no acórdão recorrido para punir o crime de homicídio fica significativamente aquém da mediana legal e a do crime de detenção de arma proibida fica ainda mais longe da que lhe corresponde.

    Destarte, ponderando tudo o que atrás dissemos, fica claro que não subsistem razões algumas para que as penas sejam reduzidas. Pelo que resulta prejudicada a pretensão do recorrente de se refazer o cúmulo jurídico das penas em que foi condenado”.

                                                                ****

      Vejamos se no caso em reapreciação é de manter, ou antes reduzir, a pena aplicada pelo crime de homicídio qualificado, como defende o recorrente que pretende a sua fixação em 12 anos de prisão como expressa na conclusão 14.ª.

  

                                                           **********

     Sendo uma das finalidades das penas a tutela dos bens jurídicos – artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal - definindo a necessidade desta protecção os limites daquelas, há que ter em atenção o bem jurídico tutelado no tipo legal em causa.

     O bem jurídico tutelado nas normas incriminadoras de homicídio é a vida humana inviolável, reflectindo a incriminação a tutela constitucional da vida, que proíbe a pena de morte e consagra a inviolabilidade da vida humana - Parte I, Título II, Direitos, liberdades e garantias, Capítulo I, Direitos, liberdades e garantias pessoais - artigo 24.º da Constituição da República – estando-se  face à mais forte tutela penal, sendo  a vida e a sua inviolabilidade que conferem sentido ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito à liberdade que estruturam e densificam o Estado de direito.

     Como se extrai da Constituição da República Portuguesa Anotada, de Gomes Canotilho e Vital Moreira, 2007, volume I, págs. 446/7, “O direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto”.

     O direito à vida é a conditio sine qua non para gozo de todos os outros direitos.

     Nos termos do artigo 2.º, n.º 1, 1.ª parte, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei, tratando-se essencialmente de um direito a não ser privado da vida, um direito a não ser morto – neste sentido, Vera Lúcia Raposo, O direito à vida na jurisprudência de Estrasburgo, in Jurisprudência Constitucional, n.º 14, pág. 59 e ss.

     Analisando a conduta do recorrente.

   

     No caso presente é elevadíssimo o grau de ilicitude dos factos, atenta a gravidade das consequências da conduta do arguido, tirando a vida à ex-companheira.

     O grau de culpa é muito acentuado, com elevada intensidade do dolo, na modalidade de directo, pela manifestação da vontade firme dirigida ao facto, à concretização do resultado final.

     É, pois, muito elevado o grau de culpa no quadro da especial censurabilidade própria do tipo qualificado.

    O recorrente actuou com surpresa, de forma súbita, utilizando arma de fogo, assim agindo com superioridade.

     A actuação do arguido foi extremamente censurável.

     Em consequência da sua conduta, a vítima sofreu todas as lesões descritas. 

     O recorrente ultrapassou as barreiras do afecto, pondo termo à vida daquela que tinha sido a sua companheira durante tês anos, agindo por ter sido contrariado, por não aceitar o exercício da liberdade de autodeterminação de CC, com inteira e ostensiva indiferença pela vida alheia.

      Como se extrai do acórdão de 23-11-2011, deste Supremo Tribunal, proferido no processo n.º 1064/10.4JDLSB.L1.S1 - 3.ª Secção, “não atenua a responsabilidade do arguido a circunstância de ter actuado por ciúme, inconformado com o termo do relacionamento marital. Este facto, contrariamente ao alegado pelo recorrente, é revelador da sua intolerância e desprezo para com a vítima e para com o direito desta à sua autodeterminação, enquanto pessoa livre e autónoma”, sendo aplicada a pena de 20 anos de prisão pelo crime homicídio, e incluindo punição por maus tratos, foi considerado não merecer censura a aplicada pena única de 22 anos de prisão.

      E como se retira do acórdão de 31-01-2012, processo n.º 894/09.4PBBRR.S1-3.ª, o motivo passional não poderá nunca ser valorado positivamente em termos atenuativos, gerais ou especiais, como por vezes se pretende.

      Refere João Curado Neves, in “A problemática dos crimes passionais”, pág. 715: “Na maior parte dos casos o homem mata a mulher que pretende pôr termo ao matrimónio ou à ligação amorosa. Este acto tem normalmente origem em características da personalidade do agente e desenvolvimento da relação. Caracteristicamente o marido ou amante ocupa ou pretende uma posição de superioridade no casal e não consegue suportar a inversão da relação de poderes que culmina no termo da relação por iniciativa da mulher. Neste caso não há razão para desculpar o agente total ou parcialmente. A pretensão do marido não merece qualquer tipo de protecção, pois ele procura realizar objectivos ilegítimos, como sejam a restrição da liberdade da sua parceira, maxime, negando-lhe a possibilidade de escolher livremente em que relações amorosas se quer envolver e que tipo de vida pretende levar. Ao invés de uma suposição ainda recorrente, o homicida passional não mata por amor, quando muito por amor próprio”, apud acórdão de 26-04-2012, processo n.º 293/10.5JALRA.C1.S1-5.ª.

      Citando o mesmo Autor e obra, págs. 693 e 715, veja-se o acórdão de 23-11-2011, proferido no processo n.º 508/10. 0JAFUN.S1-5.ª, onde após referir-se que «Por “homicídio passional” entende-se o crime cometido, em regra, “repentinamente, na sequência de um impulso emocional súbito”, que resulta “geralmente de um conflito familiar ou amoroso”, em que “caracteristicamente o marido ou amante ocupa ou pretende uma posição de superioridade no casal e não consegue suportar a inversão da relação de poderes que culmina no termo da relação por iniciativa da mulher” e pondera, a final: “ O passado de relacionamento afectivo entre arguido e vítima deveria, em condições de normalidade, constituir um refreamento para quaisquer impulsos agressivos. É na ultrapassagem desse travão que se revela uma atitude especialmente censurável. Tanto mais que o modo como o crime foi perpetrado acentua o quadro especialmente desvalioso. O cometimento de crime passional, debaixo de emoção mais ou menos violenta ou sob o domínio dos afectos, não neutraliza a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado”.

     No mesmo sentido de que o crime passional não constitui atenuante, veja-se o acórdão de 4-06-2014, processo n.º 298/12.1JDLSB.L1.S1-3.ª, CJSTJ 2014, tomo 2, pág. 208.

      Ao tirar a vida a CC, que contava então 48 anos, para além da perda da vida desta, e exactamente em resultado dessa definitiva privação de vida, o comportamento desviante do arguido conduziu à produção de efeitos colaterais, com intenso grau de lesividade de direitos de personalidade de outrem, no caso, do assistente BB, filho daquela, que ficou privado de sua Mãe aos 16 anos (cfr. FP 20), com todo o extenso rol de nefastas e devastadoras consequências a nível pessoal descritas nos FP 26 a 32.

   Com a sua conduta, o arguido privou-o, definitiva e irremediavelmente, da companhia de sua Mãe.

      São intensas as necessidades de prevenção geral.

      Na realização dos fins das penas as exigências de prevenção geral constituem nos casos de homicídio uma finalidade de primordial importância.

      A função de prevenção geral que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial tem de ser eminentemente assegurada, sobrelevando, decisivamente, as restantes finalidades da punição.

      Como expende Figueiredo Dias, em O sistema sancionatório do Direito Penal Português, inserto em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, pág. 815, “A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; numa palavra, como estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida”.

      Como se expressou o acórdão do STJ de 04-07-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 225, com o recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos.  

      Versando a forte necessidade de prevenção geral nestes casos, no acórdão do STJ, de 17-03-1994, BMJ n.º 435, pág. 518, dizia-se: pode afirmar-se sem exagero que o homicídio voluntário se banalizou, constituindo, com o tráfico de droga, o tipo de ilícito que este Supremo Tribunal mais vem julgando ultimamente.

    Segundo o acórdão de 8-07-1999, processo n.º 580/99, SASTJ, n.º 33, pág. 92, nos crimes de homicídio são intensas as exigências de defesa do ordenamento jurídico e da paz social, dada a extrema sensibilidade da comunidade em relação aos mesmos e a premente necessidade de os prevenir. Haverá que ter sempre bem presente que o bem jurídico tutelado por estas infracções é, de entre todos, o mais elevado – a vida – pelo que, salvo circunstância de excepcional valor atenuativo, não sejam admissíveis nestes crimes abrandamentos do respectivo sancionamento.

      E como referido no acórdão deste Supremo Tribunal de 11-07-2007, processo n.º 1583/07-3.ª, a criminalidade violenta, em que se integra o crime de homicídio, assume alguma preocupação comunitária em crescendo, pelo que, para confiança da colectividade na lei, em nome de uma desejável tranquilidade e segurança de respeito pela vida humana, as necessidades de prevenir a prática de tal crime são muito presentes.

     Como acentua o acórdão de 26-03-2008, processo n.º 292/08-3.ª, versando situação em que o arguido tirou a vida à sua companheira de muitos anos, as exigências de prevenção geral são particularmente fortes, inserindo-se os factos no fenómeno denominado “violência doméstica”, aliás na sua vertente mais condenável, a do homicídio, sendo inquestionável a necessidade de fixação de penas eficazes, que não excedam, obviamente, os limites da culpa.    

     Trata-se de crime gerador de grande alarme social e repúdio das pessoas em geral, face à enorme intranquilidade que gera no tecido social, que vem assumindo uma prática frequente, sendo elevadas as exigências de reafirmação da norma violada.

      Noutra perspectiva, o homicídio qualificado integra o conceito de “criminalidade especialmente violenta”, na “definição” do artigo 1.º, alínea l), do Código de Processo Penal (alínea intocada na alteração operada no preceito pela Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto), tendo no caso presente sido cometido mediante o recurso a arma de fogo, pelo que se impõe uma pena com efeito dissuasor, em nome de fortes e sentidas necessidades de prevenção geral. 

             

       No que toca a prevenção especial avulta a personalidade do arguido na forma como actuou, de forma imperturbada, actuando com absoluta indiferença e insensibilidade pelo valor da vida e dignidade da pessoa humana, não se esgotando na mera prevenção da reincidência, sendo indiscutível que carece de socialização.

      Como refere Américo Taipa de Carvalho, a propósito de prevenção da reincidência, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 325, trata-se de dissuasão necessária para reforçar no delinquente o sentimento da necessidade de se auto-ressocializar, ou seja, de não reincidir.

      E no caso de infractores ocasionais, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora o único sentido da prevenção especial.

      No que toca a antecedentes criminais do recorrente, nada há a registar. 

      Teremos a considerar ainda as condições pessoais e vivência do arguido expressas nos FP 38 a 53.

     Por último, ter-se-ão em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, fazendo-se a comparação do caso concreto com situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, não se perdendo de vista a especificidade do caso sujeito.

     E na sequência, haverá que equacionar a necessidade ou desnecessidade de intervenção correctiva deste Supremo Tribunal. 

      A este propósito, dir-se-á que a necessidade de adequação da pena às concretas circunstâncias do caso não dispensa a necessidade de observância das exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uniformização de critérios e a necessidade de atender, por razões de justiça relativa aos padrões geralmente adoptados na jurisprudência.

      Neste sentido, seguem-se, a título informativo, exemplos de casos cabíveis na alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, na versão actual, em que a vítima é definida em função do tipo da especial relação com o agressor, ou em situações análogas à da referida alínea, pela circunstância de ser ou ter sido casado(a) ou unido(a) de facto, até porque alguns dos casos apontados são anteriores àquela inovação:

19-04-2006, processo n.º 671/06 -3.ª – (Uxoricídio) – 21 anos

29-03-2007, processo n.º 647/07-5.ª, in CJSTJ 2007, tomo 1, pág. 238, com um voto de vencido - Caso de homicídio qualificado atípico de companheira (comunhão de vida durante 25 anos, com um filho), com recurso do Ministério Público, e confirmando o decidido na 1.ª instância, alterado pela Relação do Porto – 15 anos  e 6 meses de prisão 

13-02-2008, processo n.º 4729/07-3.ª – (Ex-companheira) – 21 anos

26-03-2008, processo n.º 292/08-3.ª – (Ex-companheira) – 20 anos

02-04-2008, processo n.º 4730/07-3.ª – (Uxoricídio) – 18 anos

21-05-2008, processo 1224/08-5.ª – (Uxoricídio) – 17 anos (em concurso com homicídio de sogra – 12 anos)

19-06-2008, processo n.º 2043/08-5.ª – (União de facto) – redução de 21 para 19 anos, com voto de vencido no sentido da manutenção.

21-01-2009, processo n.º 2387/08-3.ª – (Uxoricídio - atípico) – 16 anos 

19-03-2009, processo n.º 315/09-3.ª – (Uxoricídio) – 18 anos 

29-04-2009, processo n.º 434/07.0PAMAI.S1-3.ª – (Ex-companheira - regime jovem adulto) – 16 anos

27-05-2009, processo n.º 58/07 1PRLSB.S1-3.ª – Conjugicídio (marido) – 21 anos

17-09-2009, processo n.º 434/09.5YFLSB-3.ª – (Uxoricídio) – 14 anos 

21-10-2009, processo n.º 589/08.6PBVLG.S1-3.ª – (Ex-companheira) – 18 anos 

25-02-2010, processo n.º 108/08.4PDL.L1.S1-5.ª – (Uxoricídio e frieza ânimo) – 20 anos

07-04-2010, processo n.º 202/08.1GBPSR.E1.S1-3.ª – (União de facto) – 17 anos

05-05-2010, processo n.º 90/08.8GCCNT.C1.S1 - 3.ª – (União de facto) – 16 anos

19-05-2010, processo n.º 459/05.0GAFLG.G1.S1-3.ª – (União de facto) – 20 anos

27-05-2010, processo n.º 517/08.9JACBR.C1.S1-5.ª – (Ex-mulher) – 18 anos

16-12-2010, processo n.º 231/09.8JAFAR.E1.S1-3.ª – (Uxoricídio) – 15 anos (pena não objecto de recurso).

24-03-2011, processo n.º 322/08.2TARGR.L1.S1-3.ª – (Uxoricídio e frieza ânimo) - 21 anos

09-06-2011, processo n.º 132/08.7JAGRD.C1.S1-5.ª – (Uxoricídio) – 16 anos (e não 19 fixada pelas instâncias)

16-06-2011, processo n.º 600/09.3JAPRT.P1.S1-5.ª – (Uxoricídio) – 16 anos (e não as penas de 20 anos e de 18 anos aplicadas na primeira instância e na Relação) 

07-09-2011, processo n.º 1112/10.8PBAMD.S1-3.ª – (Uxoricídio) – 17 anos

6-10-2011, processo n.º 88/09.9PJSNT.L1.S1-5.ª – (União de facto) – 16 anos 

20-10-2011, processo n.º 1909/10.9JAPRT.S1-3.ª – (Uxoricídio+meio insidioso e frieza ânimo) – 23 anos

23-11-2011, processo n.º 1081/09.7JAPRT.P2.S1-3.ª – (União de facto) – 19 anos 

23-11-2011, processo n.º 1064/10.4JDLSB.L1.S1-3.ª – (União de facto) – 20 anos (e incluindo punição por maus tratos - pena única de 22 anos)

23-11-2011, processo n.º 508/10.0JAFUN.S1-5.ª – (Ex-companheira) – 17 anos (e não 19)

08-03-2012, processo n.º 131/10.9JAFAR.E1.S1-5.ª – (União de facto) – 19 anos   

26-04-2012, processo n.º 293/10.5JALRA.C1.S1-5.ª – (Uxoricídio, agravado em função da utilização de arma) – 18 anos (pena única-19 anos)

24-05-2012, processo n.º 281/09.4JAAVR.C1.S1-5.ª – (Uxoricídio) – 16 anos em substituição da pena de 19 anos aplicada nas instâncias

5-07-2012, processo n.º 2663/10.0GBABF.S1-5.ª – (União de Facto) – 18 anos / (e não 21)
12-09-2102, processo n.º 1221/11.6JAPRT.S1-3.ª – (União de Facto e frieza ânimo) –18 anos
19-12-2012, processo n.º 1140/09.6JACBR.C1.S1-3.ª - (Uxoricídio) – 19 anos (não questionada  a medida da pena)
15-05-2013, processo n.º 154/12.3JDLSB.L1.S1-3.ª, CJSTJ 2013, tomo 2, pág. 180 – Morte de companheira grávida – art.132.º, n.º 2, als. b) e c) – 19 anos
29-05-2013, processo n.º 1264/11.0PCSTB.E1.S1-3. – Uxoricídio – 16 anos e 6 meses
29-05-2013, processo n.º 2012/11.0JAPRT.P1.S1-5.ª – Ex-mulher e al. i) – 16 e não 18.
26-09-2013, processo n.º 641/11.0JDLSB.L1.S1-5.ª – Ex-mulher e uso de arma – 18 anos (crimes passionais)

6-02-2014, processo n.º 1454/12.8PAALM.L1.S1-5.ª – Conjugicídio de marido + meio insidioso + frieza de animo – 16 anos

07-05-2014, processo n.º 250/12.7JABRG.G1.S1-3.ª – União de Facto – 21 anos

04-06-2014, processo n.º 298/12.1JDLSB.L1.S1-3.ª, CJSTJ 2014, tomo 2, pág. 208 – União de Facto – 17 anos

     Como já referimos, em alguns casos foi considerado não se mostrar preenchido o exemplo padrão, como no acórdão de 30-11-2011, processo n.º 238/10.2JACBR.S1.3.ª em que não foi considerada a integração da concreta situação vivenciada pelo arguido e vítima no quadro legal da união de facto, mas apenas a alínea i), sendo o arguido condenado na pena de 18 anos de prisão e no acórdão de 17-10-2013, processo n.º 27/12.0GPPSR.S1-5.ª, é afastada a alínea b) e provado apenas relacionamento amoroso anterior, dando-se como verificado motivo fútil e aplicada pena de 19 anos de prisão.

       Concluindo.

       Nestas condições e tendo em conta todo o exposto, tendo sido respeitados os parâmetros legais, cremos que se não justificará no caso intervenção correctiva deste Supremo Tribunal, no que toca à pena aplicada pelo crime de homicídio qualificado, cometido pelo recorrente, pelo que será de manter a pena de 15 anos e 6 meses de prisão, que atenta a moldura penal abstracta a ter em conta, de 12 a 25 anos de prisão, não afronta os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas – artigo 18.º, n.º 2, da CRP –, nem as regras da experiência comum, antes é adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico e não ultrapassa a medida da culpa do recorrente.

 

    II Questão – 2 - Medida da pena conjunta

 

    O recorrente pede redução da pena conjunta aplicada, na decorrência de pretendida redução das parcelares, concretizando na conclusão 14.ª a pena de 12 anos e 4 meses de prisão.

    O acórdão recorrido aborda a questão de fls. 978 a 980, começando por referir de forma escusada ao trânsito em julgado, pois que o cúmulo é de efectuar nos termos do artigo 77.º e não 78.º do Código Penal, terminado nestes termos:

“Baixando ao caso concreto, diremos que do conjunto dos factos ressalta à evidência a conexão existente entre os dois crimes cometidos pelo recorrente, pois que a arma por ele ilicitamente detida foi o objecto que procurou para provocar a morte da vítima. Por outro lado, os crimes por ele praticados reconduzem-se a uma mera pluriocasionalidade, embora não totalmente alheia ou desligada da sua personalidade pois que, como vimos, tem evidenciado dificuldades injustificadas de relacionamento amoroso nos últimos 10 anos e o homicídio que perpetrou andou paredes meias com a sua fracassada, por não correspondida, pretensão de reatar o relacionamento amoroso com a vítima.

Assim sendo, se considerarmos que a pena de prisão foi concretizada pelo Tribunal a quo num ponto próximo do terço inferior da pena abstracta aplicável teremos que concluir que foi justamente calibrada, não sendo, por isso, merecedora de censura. Pelo que, como no mais, também nesta parte o recurso não merece provimento.

                                                             *******

    Estabelece, quanto a regras de punição do concurso de crimes, o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, que operou a terceira alteração ao Código Penal, em vigor desde 1 de Outubro de 1995 (e inalterado pelas subsequentes trinta e uma modificações legislativas, operadas, nomeadamente, e mais recentemente, pelas Leis n.º 59/2007, de 4 de Setembro, n.º 61/2008, de 31 de Outubro, n.º 32/2010, de 2 de Setembro, n.º 40/2010, de 3 de Setembro, n.º 4/2011, de 16 de Fevereiro, n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, n.º 60/2013, de 23 de Agosto, n.º 2/2014, de 6 de Agosto, n.º 59/2014, de 26 de Agosto, n.º 69/2014, de 29 de Agosto e n.º 82/2014, de 30 de Dezembro), que:

     “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

     E nos termos do n.º 2, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias, tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

      O que significa que no caso presente, a moldura penal do concurso é de 15 anos e 6 meses a 16 anos e 10 meses de prisão. 

    No que concerne à determinação da pena única, deve ter-se em consideração a existência de um critério especial na determinação concreta da pena do concurso, segundo o qual serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação da medida da pena do concurso.

     Maia Gonçalves, in Código Penal Anotado e Comentado, 15.ª edição, pág. 277, salientava que “na fixação da pena correspondente ao concurso entra como factor a personalidade do agente, a qual deve ser objecto de especial fundamentação na sentença. Ela é mesmo o aglutinador da pena aplicável aos vários crimes e tem, por força das coisas, carácter unitário”.

    Como se lê em Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 420, págs. 290/1, estabelecida a moldura penal do concurso, a pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 72.º-1 (actual 71.º-1), um critério especial: o do artigo 78.º (actual 77.º), n.º 1, 2.ª parte, segundo o qual na determinação concreta da pena do concurso serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que obriga logo a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação da medida da pena do concurso.

     E no § 421, págs. 291/2, acentua o mesmo Autor que na busca da pena do concurso, “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”.

     Acrescenta ainda: “De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.

     Como se extrai do acórdão deste Supremo Tribunal de 6 de Maio de 2004, in CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 191, a propósito dos critérios a atender na fundamentação da pena única, nesta operação o que releva e interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz uma personalidade propensa ao crime, a dar indícios de projecto de uma carreira, ou é antes, a expressão de uma pluriocasionalidade que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido, mas antes numa conjunção de factores ocasionais, sem repercussão no futuro – cfr. na esteira da posição do citado Autor, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 08-07-1998, CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 246; de 24-02-1999, processo n.º 23/99-3.ª; de 12-05-1999, processo n.º 406/99-3.ª; de 27-10-2004, processo n.º 1409/04-3.ª; de 20-01-2005, processo n.º 4322/04-5.ª, in CJSTJ 2005, tomo I, pág. 178; de 17-03-2005, no processo n.º 754/05-5.ª; de 16-11-2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 210; de 12-01-2006, no processo n.º 3202/05-5.ª; de 08-02-2006, no processo n.º 3794/05-3.ª; de 15-02-2006, no processo n.º 116/06-3.ª; de 22-02-2006, no processo n.º 112/06-3.ª; de 22-03-2006, no processo n.º 364/06-3.ª; de 04-10-2006, no processo n.º 2157/06-3.ª; de 21-11-2006, in CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 228; de 24-01-2007, no processo n.º 3508/06-3.ª; de 25-01-2007, nos processos n.ºs 4338/06-5.ª e 4807/06-5.ª; de 28-02-2007, no processo n.º 3382/06-3.ª; de 01-03-2007, no processo n.º 11/07-5.ª; de 07-03-2007, no processo n.º 1928/07-3.ª; de 14-03-2007, no processo n.º 343/07-3.ª; de 28-03-2007, no processo n.º 333/07-3.ª; de 09-05-2007, nos processos n.ºs 1121/07-3.ª e 899/07-3.ª; de 24-05-2007, no processo n.º 1897/07-5.ª; de 29-05-2007, no processo n.º 1582/07-3.ª; de 12-09-2007, no processo n.º 2583/07-3.ª; de 03-10-2007, no processo n.º 2576/07-3.ª; de 24-10-2007, no processo nº 3238/07-3.ª; de 31-10-2007, no processo n.º 3280/07-3.ª; de 09-04-2008, no processo n.º 686/08-3.ª (o acórdão ao efectuar o cúmulo jurídico das penas parcelares não elucida, porque não descreve, o raciocínio dos julgadores que orientou e decidiu a determinação da medida da pena do cúmulo); de 25-06-2008, no processo n.º 1774/08-3.ª; de 02-04-2009, processo n.º 581/09-3.ª, por nós relatado, in CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 187; de 21-05-2009, processo n.º 2218/05.0GBABF.S1-3.ª; de 29-10-2009, no processo n.º 18/06.0PELRA.C1.S1-5.ª, in CJSTJ 2009, tomo 3, pág. 224 (227); de 04-03-2010, no processo n.º 1757/08.6JDLSB.S1-5.ª; de 10-11-2010, no processo n.º 23/08.1GAPTM-3.ª.

    Na expressão dos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, de 20-02-2008, proferido no processo n.º 4733/07 e de 8-10-2008, no processo n.º 2858/08, desta 3.ª Secção, na formulação do cúmulo jurídico, o conjunto dos factos fornece a imagem global do facto, o grau de contrariedade à lei, a grandeza da sua ilicitude; já a personalidade revela-nos se o facto global exprime uma tendência, ou mesmo uma “carreira”, criminosa ou uma simples pluriocasionalidade.

                                                              *******

    Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso - cfr., i. a., de 12-09-2012, processos n.º 223/07.1GCVIS.C1.S1-3.ª e 2745/09.0TDLSB.L1.S1-3.ª; de 06-02-2013, processo n.º 639/10.6PBVIS.S1-3.ª; de 14-03-2013, processo n.º 224/09.5PAOLH.S1 e n.º 13/12.0SOLSB.S1, ambos desta secção e do mesmo relator; de 10-07-2013, processo n.º 413/06.4JAFAR.E2.S1-3.ª; de 12-09-2013, processo n.º 1445/09.6JAPRT.P1.S1-3.ª; de 04-06-2014, processo n.º 186/13.4GBETR.P1.S1-3.ª.

 

    Revertendo ao caso concreto.

    A pena conjunta visa corresponder ao sancionamento de um determinado trecho de vida do arguido condenado por pluralidade de infracções.

    Há que valorar o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do recorrente, em todas as suas facetas.                         

    Como vimos, o acórdão ora recorrido tomou posição sobre a conexão entre os factos cometidos e a presença de pluriocasionalidade.

                                                                    *******

    Na elaboração da pena conjunta impõe-se fazer uma nova reflexão sobre os factos em conjunto com a personalidade do arguido, em ordem a adequar a medida da pena à personalidade que nos factos se revelou.

    Importa ter em conta a natureza e diversidade ou igualdade/similitude dos bens jurídicos tutelados, ou seja, a dimensão de lesividade da actuação global do arguido.

    E como referiu o supra citado acórdão de 27 de Junho de 2012, a pena única não pode deixar de ser perspectivada nos efeitos que possa ter no comportamento futuro do agente em função da sua maior ou menor duração. No mesmo sentido os acórdãos de 22 de Janeiro de 2013, processo n.º 651/04.4GAFLG.S1-3.ª, de 4 de Julho de 2013, processo n.º 39/10.8JBLSB.L1.S1-3.ª sobre o ponto e, citando neste particular os acórdãos do mesmo relator, de 9 de Fevereiro de 2011, processo n.º 19/05.5GAVNG.S1-3.ª e de 23 de Fevereiro de 2011, processo n.º 429/03. 2PALGS.S1-3.ª.

     No mesmo sentido, o acórdão de 2 de Fevereiro de 2011, processo n.º 217/08.0JELSB.S1, igualmente da 3.ª Secção, citando expressamente Figueiredo Dias no passo assinalado (§ 421 págs. 291/2).

     No caso presente estamos perante um quadro de dois crimes cometidos com acentuada gravidade, não se indiciando propensão ou inclinação criminosas.

      Na verdade, a facticidade dada por provada não permite formular um juízo específico sobre a personalidade do arguido que ultrapasse a avaliação que se manifesta pela própria natureza dos factos praticados, não se mostrando provada tendência radicada na personalidade, ou seja, que o ilícito global seja produto de tendência criminosa do agente, antes correspondendo no singular contexto ora apreciado, a um episódio isolado de vida, circunscrito ao dia 3 de Setembro de 2012, restando a expressão de uma mera ocasionalidade procurada pelo arguido.

     No caso presente é evidente a conexão e estreita ligação entre o crime de homicídio qualificado e de detenção de arma, cometidos na mesma ocasião, sendo este instrumental daquele.

     Em suma: A pena unitária tem de responder à valoração, no seu conjunto e inter conexão, dos factos e personalidade do arguido.

      Ponderados todos os elementos disponíveis, considerando a dimensão e a gravidade global do comportamento delituoso do arguido, não se estando perante uma situação que espelhe uma “carreira criminosa”, a sequência da prática dos crimes, o carácter instrumental da detenção da arma proibida, estando em causa violação de bens jurídicos com diferente natureza, a evidente conexão entre as infracções, a forma intensa de dolo no homicídio, ponderando o contexto em que tudo se passou, procedendo a uma avaliação da gravidade do ilícito global e a personalidade do arguido evidenciada pelas condutas analisadas, atendendo a que a prática dos factos revela desconformidade aos valores tutelados pelo direito, embora não sendo de reconduzi-la a uma tendência desvaliosa, mas antes dentro de um quadro de acidentalidade de cometimento, procedendo-se a uma ponderação da gravidade do ilícito global, não havendo que introduzir factor de compressão, mantém-se a pena conjunta fixada em 16 anos de prisão, que não se mostra contrária às regras da experiência, sendo proporcional à dimensão do ilícito global.

     Decisão

      Pelo exposto, acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em:

I – Rejeitar o recurso interposto pelo arguido AA, no que toca à questão da medida da pena aplicada pelo crime de detenção de arma proibida;

II – No mais, julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.

      Custas pelo recorrente, nos termos dos artigos 374.º, n.º 4, 513.º, n.º s 1, 2 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro (rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24 de Abril, e com as alterações introduzidas pela Lei n.º 43/2008, de 27 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28 de Agosto, pelo artigo 156.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Suplemento n.º 252), pelo artigo 163.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril e pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro), o qual aprovou – artigo 18.º – o Regulamento das Custas Processuais, publicado no anexo III do mesmo diploma legal, uma vez que de acordo com os artigos 26.º e 27.º daquele Decreto-Lei, o novo regime de custas processuais é de aplicar aos processos iniciados a partir de 20 de Abril de 2009, e o presente processo teve início em Setembro de 2012.

      Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

                                                 Lisboa, 25 de Fevereiro de 2015

Raul Borges (Relator)

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[1] - Sem prejuízo de, com observância do procedimento imposto pelo n.º 3 do art. 424.º do CPP, e bem assim do respeito pelo princípio da proibição de reformatio in pejus normativamente densificado no art. 409.º do mesmo código, poder vir a ser ponderada a sua correcção, quanto ao crime de homicídio qualificado, tendo em conta a agravante geral cominada no citado art. 86.º, n.º 3 da Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio.

[2] Tirado do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-05-2008, no processo n.º 3979/07 - 5.ª, publicado em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/criminal/criminal2008.pdf, citado pelo recorrente. Sendo certo, diga-se em abono da verdade, que essa decisão corresponde a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça, como se pode ver dos seus acórdãos de 21-10-2009, no processo n.º 589/08.6PBVLG.S1 e de 12-09-2013, no processo n.º 680/11.1GDALM.L1.S1, ambos publicados em http://www.dgsi.pt.