Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
125/06.9TBMMV-C.C1.S1
Nº Convencional: 7ª. SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: PRESCRIÇÃO
FUNDAMENTOS
INÍCIO DA PRESCRIÇÃO
EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
EXCEÇÃO PERENTÓRIA
NEGLIGÊNCIA
TEMPO
LIQUIDAÇÃO DA HERANÇA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
ALIMENTOS
Data do Acordão: 09/22/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / TEMPO E SUA REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS / PRESCRIÇÃO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / PRAZO DA PRESTAÇÃO.
Doutrina:
- Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, 2.ª edição, 83.
- António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, 2.ª edição revista e actualizada, Almedina, 2015, 154/155, 172/174, 197, 202/203, 207/208.
- Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 686.
- Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, Almedina, 2002, 105 e 107, 109.
- Luiz da Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil em comentário ao Código Civil Português, vol. III, Coimbra Editora, 1930, 628.
- Manuel Augusto Domingues de Andrade, - António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, 2.ª edição revista e actualizada, Almedina, 2015, 196 e 197.
- Manuel Augusto Domingues de Andrade, Orações de Sapiência da Faculdade de Direito de Coimbra, 220; Teoria Geral da Relação Jurídica, Coimbra 1953, 465, 466.
- Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, 1123, 1125.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2010, 6.ª edição, 380/381
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 296.º, 298.º, N.º1, 279.º, AL.B), 304º, N.º 1, 306.º, N.º1, 308.º, N.ºS 1 E 2, 309.º, 318.º E SS., 323.º, N.º2, 777.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 576.º, N.º3.
Sumário :
I - A prescrição, cujo nome (praescriptio) e raízes mergulham no húmus fecundo do direito romano, assenta no reconhecimento da repercussão do tempo nas situações jurídicas e visa, no essencial, tutelar o interesse do devedor.

II – O fundamento específico da prescrição reside na negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo tido como razoável pelo legislador e durante o qual ser legítimo esperar o seu exercício, se nisso estivesse interessado. Negligência que faz presumir ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos o torna (o titular) indigno de protecção jurídica (dormientibus non succurrit jus)».

III - Ainda que olhada, sob o ponto de vista da moral e do direito natural, com certo desfavor (os antigos qualificaram-na como impium remedium ou impium praesidium), a prescrição continua a ser reclamada pela boa organização das sociedades civilizadas, apresentando-se, entre nós, como uma excepção não privativa dos direitos de crédito (art.º 298º do Cód. Civil) e, por isso mesmo, inserida na sua parte geral, no capítulo relativo ao tempo e à sua repercussão sobre as relações jurídicas (art.ºs 296º a 327º do Cód. Civil).

IV - À prescrição estão sujeitos todos e quaisquer direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos dela (art.º 298º, n.º 1, do Cód. Civil) e, uma vez completado o prazo prescricional, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer forma, ao exercício do direito prescrito (art.º 304º, n.º 1, do Cód. Civil), desse modo, bloqueando e paralisando a pretensão do credor, na configuração de excepção peremptória (art.º 576º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil).

V - O inicio do prazo é «factor estruturante do próprio instituto da prescrição, existindo, a tal propósito, no Direito comparado dois grandes sistemas: o objectivo e o subjectivo».

VI - O primeiro «é tradicional, dá primazia à segurança e o prazo começa a correr assim que o direito possa ser exercido e independentemente do conhecimento que disso tenha ou possa ter o respectivo credor, sendo compatível com prazos longos». O segundo privilegia, porém, a justiça, iniciando-se o prazo apenas «quando o credor tiver conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu direito e joga com prazos curtos». 

VII - Nesta matéria, o art.º 306º, n.º 1, do Cod. Civil, adoptou o sistema objectivo, que dispensa qualquer conhecimento, por parte do credor, dos elementos essenciais referentes ao seu direito, iniciando-se o decurso do prazo de prescrição «quando o direito puder ser exercido.

VIII – Tal expressão constante dessa disposição (art.º 306º, n.º 1, do Cod. Civil) deve ser interpretada no sentido de o prazo de prescrição se iniciar quando o direito estiver em condições (objectivas) de o titular o poder actuar, portanto desde que seja possível exigir do devedor o cumprimento da obrigação, o que, no caso de obrigações puras, ocorre a todo tempo.

IX - Uma vez iniciado o prazo de prescrição de qualquer direito, a respectiva contagem prossegue a menos que ocorra qualquer suspensão ou interrupção (art.ºs 318º e ss do Cód Civil), não relevando sequer a sua transmissão (art.º 308º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Civil).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Relatório

I – Por apenso à acção especial de liquidação de herança vaga em benefício do Estado, instaurada pelo Ministério Público na sequência dos óbitos de AA, ocorrido em 28.11.1997, no estado de solteira, e de sua mãe BB, falecida no estado de viúva, em 24.01.1998, que corre termos na Instância Local de Montemor-o-Velho/comarca de Coimbra, CC e mulher DD vieram reclamar créditos no montante global de €36.517,32, alegando que, enquanto familiares daquelas, desde 1946 até à data dos respectivos óbitos prestaram alimentos e serviços vários e custearam despesas das falecidas, que descriminam e que ascendem ao valor supra referido, sendo pois titulares desses créditos sobre a herança.

O Ministério Público contestou por impugnação e excepcionou a prescrição dos créditos reclamados relativos aos anos de 1946 a 1994.

No despacho saneador, foi a excepção julgada improcedente e, inconformado com a decisão, o Ministério Público apelou, com êxito, tendo a Relação de Coimbra decidido pela prescrição dos créditos reclamados referentes ao período entre 1946 e 05 de Novembro de 1994.

Agora, inconformada, interpôs a reclamante DD recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as conclusões que se transcrevem:

1. Conforme se alcança dos autos, EE faleceu a 23 de Fevereiro de 1946 e AA faleceu a 28 de Novembro de 1997, no estado de solteira, sem descendentes e sem ter feito testamento ou doação por morte.

2. À data da morte deixou como única e universal herdeira a sua mãe, BB, que veio a falecer a 24 de Janeiro de 1998, no estado de viúva, sem descendentes ou ascendentes e sem que lhe sobreviessem irmãos ou seus descendentes.

3. Por douta sentença proferida nos autos principais transitada em julgado em 27.02.2012, declararam-se vagas para o Estado as heranças abertas por óbito de AA e de BB.

4. Posteriormente os reclamantes CC e mulher, DD, notificados que foram nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1134°, n.° 1 do Código de Processo Civil (CPC), na redacção então aplicável (ora artigo 940°).

5. Na sequência de tal notificação, por apenso aos autos de acção especial de liquidação de herança vaga em benefício do Estado, das heranças de AA e de BB, CC e mulher, DD, vieram na qualidade de credores das heranças, reclamar créditos no montante global de 36.517,32€, constituídos desde 23 de Fevereiro de 1946 até à data da interposição do requerimento.

6. Notificado, o Ministério Público deduziu impugnação, arguindo a excepção peremptória de prescrição relativamente aos créditos reclamados reportados aos anos de 1946 a 1994, com base no disposto no artigo 309° do Código Civil.

7. Os reclamantes responderam à excepção, pugnando pela sua improcedência, o que veio a ser decidido, no saneador, por se entender que antes do acórdão do STJ a declarar vagas as heranças, os reclamantes não podiam exercer os seus alegados direitos sobre as mesmas.

8. Contudo, a Relação de Coimbra, na sequência do recurso do Ministério Público, considerou que o prazo prescricional começou a correr ininterruptamente com a prática dos vários actos que constituem a fonte da obrigação e não com o trânsito do acórdão do STJ.

9. Ocorre, porém, que a reclamante apesar de muito respeitar o douto acórdão proferido em segunda instância com o mesmo não concorda nem se conforma, porquanto considerar que a douta sentença tirou a decisão correta e legal.

10. Com efeito o douto despacho proferido aplicou ao caso dos autos o n.° 1 do artigo 306° do Código Civil que estipula que o prazo de prescrição só começa a correr quando o direito puder ser exercido.

11. E efectivamente os reclamantes não podiam exercer o seu direito antes de proferido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que apenas em 27.02.2012 se clarificou definitivamente que seria o Estado o beneficiário das heranças.

12. E assim tendo presente a situação dos autos o douto despacho julgou que a prescrição apenas se iniciou após a prolação do acórdão do STJ, porque "...entre a data dos óbitos e o trânsito em julgado da sentença que declarou vagas as heranças em benefício do Estado não podia ser exercido o direito dos reclamantes...".

13. A contagem do prazo de prescrição de (20) vinte anos, como de resto contabiliza o Ministério Público, iniciou-se em 27.02.2012 e só terminará em 27.02.2032.

14. De modo que tendo os reclamantes apresentado o seu requerimento de reclamação de créditos em 31.10.2014, o seu direito não se acha prescrito como de resto muito bem se decidiu em primeira instância.

15. Mesmo que assim não se entenda, o que não se concede mas por dever de oficio se concebe, sempre se acrescentará o já alegado em sede de resposta à excepção, designadamente que por força do formalismo especial do presente apenso os reclamantes apenas poderiam deduzir a sua reclamação após notificação judicial para os termos e os efeitos do artigo 940° do CPC (Novo), notificação que apenas ocorreu em 22.10.2014.

16. Pelo que mesmo aplicando-se ao caso dos autos o artigo 322° do Código Civil que refere a prescrição dos direitos de herança ou contra ela não se completa antes de decorridos (6) meses, depois de haver pessoa por quem ou contra quem, os direitos possam ser invocados, ainda assim a reclamação de créditos foi apresentada muito antes do prazo de prescrição de haver complementado.

O Ministério Público ofereceu contra-alegação a pugnar pelo insucesso da revista.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir da única questão suscitada no recurso e que versa sobre a prescrição dos créditos reclamados anteriores a 1994.

II - Fundamentação de facto

A factualidade a ter em conta é a seguinte:

1. AA faleceu a 28.11.1997, no estado de solteira, sem descendentes, não tendo feito testamento ou doação por morte.

2. À data da morte deixou como única e universal herdeira a sua mãe, BB, que veio a falecer a 24.01.1998, no estado de viúva e sem descendentes ou ascendentes, sem que lhe sobreviessem irmãos ou seus descendentes, não tendo outorgado testamento ou feito doação por morte.

3. O Ministério Público instaurou na extinta comarca de Montemor-o-Velho, a acção nº 125/06.9TBMMV, para liquidação a favor do Estado das heranças abertas por óbito das supra identificadas AA e BB.

4. Na referida acção, CC e mulher DD deduziram a habilitação do CC como herdeiro da falecida BB.

5. Por sentença de 07.06.2010, foi o pedido de habilitação de CC e mulher DD julgado improcedente e declaradas vagas para o Estado as heranças abertas por óbito de AA e de BB.

6. Esta sentença foi confirmada pelo acórdão da Relação de Coimbra de 17.05.2011, que por sua vez foi confirmado pelo acórdão de 09.02.2012 do Supremo Tribunal de Justiça, que transitou em julgado em 27.02.2012.

7. Neste processo de liquidação de herança vaga em benefício do Estado, os Reclamantes deduziram a reclamação em 31.10.2014.

III – Fundamentação de direito

A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente (art.ºs 635º, n.º 4 , e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil[1]), passam, como já se disse, pela análise e resolução da única questão jurídica colocada a este tribunal e que se prende com a prescrição dos créditos reclamados anteriores a 05 de Novembro de 1994.

As instâncias divergiram na solução encontrada para a questão, enquanto a 1ª instância considerou que tais créditos não se encontravam prescritos, a Relação entendeu, ao invés, que se verificava a prescrição desses créditos.

Apreciemos, então, o delineado diferendo dilucidando que instância o terá equacionado e solucionado em conformidade com as regras estabelecidas para a prescrição de créditos. A prescrição, cujo nome (praescriptio) e raízes mergulham no húmus fecundo do direito romano[2], assenta no reconhecimento da repercussão do tempo nas situações jurídicas e visa, no essencial, tutelar o interesse do devedor[3].

É um ponto discutido, mas segundo a doutrina dominante, o fundamento específico da prescrição reside na negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo tido como razoável pelo legislador e durante o qual seria legítimo esperar o seu exercício, se nisso estivesse interessado[4]. Negligência que faz presumir ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos o torna (o titular) indigno de protecção jurídica (dormientibus non succurrit jus)» [5].

Outras razões, porém, existem para justificação do instituto prescricional, assim sintetizadas:

1 – a certeza ou segurança jurídica, a exigir que as situações de facto que se constituíram e prolongaram por muito tempo, sobre a base delas se criando a expectativa e organizando planos de vida, se mantenham, não podendo ser atacadas por anti-jurídicas[6].

2 – a protecção dos obrigados, especialmente os devedores, contra as dificuldades de prova, a que estariam expostos no caso do credor vir exigir o que já haja, porventura, recebido. O devedor pode realmente ter pago sem exigir recibo, ou pode tê-lo perdido. Ninguém vai «conservar recibos, quitações ou outros comprovativos anos e anos a fio»[7].

3- a pressão ou estímulo educativo sobre os titulares dos direitos no sentido de não descurarem o seu exercício ou efectivação, quando não queiram abdicar deles.

Ainda que olhada, sob o ponto de vista da moral e do direito natural, com certo desfavor (os antigos qualificaram-na como impium remedium ou impium praesidium)[8], a prescrição continua a ser reclamada pela boa organização das sociedades civilizadas, apresentando-se, entre nós, como uma excepção não privativa dos direitos de crédito (art.º 298º do Cód. Civil) e, por isso mesmo, inserida na sua parte geral, no capítulo relativo ao tempo e à sua repercussão sobre as relações jurídicas (art.ºs 296º a 327º do Cód. Civil).

À prescrição estão sujeitos todos e quaisquer direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos dela (art.º 298º, n.º 1, do Cód. Civil) e, uma vez completado o prazo prescricional, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer forma, ao exercício do direito prescrito (art.º 304º, n.º 1, do Cód. Civil), desse modo, bloqueando e paralisando a pretensão do credor[9], na configuração de excepção peremptória (art.º 576º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil).

Focando-nos, agora, nos créditos reclamados, vemos que se reportam às seguintes despesas alegadamente suportadas com as duas falecidas, cujas heranças foram declaradas vagas a favor do Estado:

    a) funeral da BB – (€498,80);

 b) ajuda económica, desde 1946 até ao decesso daquelas – (€13.697,85);

     c) acompanhamento médico da AA – (€2.455,84);

      d) instalação da energia eléctrica – (€99,76);

      e) cuidados prestados na sua habitação – (€1.131,20);

      f) cuidado dos prédios desde 1946 – (€3.413,40);

      g) pagamento das contribuições prediais também desde 1946 – (€439,65).

A génese temporal de alguns desses créditos remonta a 1946, prolongando-se até aos óbitos da AA (28.11.1997) e de sua mãe, BB, ocorrido a 24.01.1998, pelo que a sua eventual prescrição está dependente da determinação do inicio da contagem do prazo, no fundo, a verdadeira divergência entre as instâncias e cuja dilucidação constitui o nó górdio do recurso. Aliás, como assinala António Menezes Cordeiro[10], o inicio do prazo é inquestionavelmente «factor estruturante do próprio instituto da prescrição, dele dependendo, depois, todo o desenvolvimento subsequente, existindo, a tal propósito, no Direito comparado dois grandes sistemas: o objectivo e o subjectivo».

O primeiro «é tradicional, dá primazia à segurança e o prazo começa a correr assim que o direito possa ser exercido e independentemente do conhecimento que disso tenha ou possa ter o respectivo credor, sendo compatível com prazos longos»[11]. O segundo privilegia, porém, a justiça, iniciando-se o prazo apenas «quando o credor tiver conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu direito e joga com prazos curtos».  

Nesta matéria, o art.º 306º, n.º 1, do Cod. Civil, adoptou o sistema objectivo[12], que, como atrás se salientou, dispensa qualquer conhecimento, por parte do credor, dos elementos essenciais referentes ao seu direito, iniciando-se o decurso do prazo de prescrição «quando o direito puder ser exercido», sendo que a injustiça a que tal sistema possa dar lugar é temperada pelas regras atinentes à suspensão e interrupção da prescrição (art.ºs 318º a 327º, do Cód. Civil). A expressão constante daquela disposição (art.º 306º, n.º 1, do Cod. Civil), “quando o direito puder ser exercido” deve ser interpretada no sentido de o prazo de prescrição se iniciar quando o direito estiver em condições (objectivas) de o titular o poder actuar, portanto desde que seja possível exigir do devedor o cumprimento da obrigação[13], isto é, ocorre a partir do momento em que o credor tem a possibilidade de exigir do devedor que realize a prestação devida e, uma vez iniciado o prazo de prescrição de qualquer direito, a respectiva contagem prossegue a menos que ocorra qualquer suspensão ou interrupção (art.ºs 318º e ss do Cód Civil), não relevando sequer a sua transmissão (art.º 308º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Civil).

Retomando o foco sobre os créditos reclamados vê-se que nenhum deles está sujeito a qualquer condição suspensiva ou termo inicial (pelo menos nada foi alegado, a tal propósito), constituindo, assim, obrigações sem prazo, também chamadas “obrigações puras”, cujo cumprimento pode ser exigido a todo o tempo (art.º 777º, n.º 1, do Cód. Civil).

Os reclamantes podiam, pois, exigir directamente das falecidas o pagamento de cada um dos créditos, logo que constituídos, e consequentemente iniciou-se, então, ou melhor no respectivo dia seguinte (art.ºs 296 e 279º, b), do Cód. Civil), o curso do respectivo prazo de prescrição (art.º 306º, n.º 1, do Cód. Civil). Nada os impedia de exercer os invocados direitos junto daquelas, em tempo oportuno, tanto mais que as mesmas disponham de património, não tendo necessidade, de modo algum, em aguardar pela clarificação de que seria o Estado o beneficiário das heranças.

Essa decisão e a subsequente instauração do processo especial de liquidação de herança vaga em benefício do Estado apresentam-se, de todo, irrelevantes, para este efeito, pois tratando-se os créditos reclamados de obrigações puras em que o credor tem a possibilidade de exigir do devedor que realize a prestação devida, a todo o tempo[14], o prazo prescricional começou a correr a partir da respectiva génese temporal (art.º 306º, n.º 1, do Cód. Civil) e não com o trânsito do acórdão do STJ que declarou vagas as heranças.

Ponderando que, no caso vertente, os créditos foram reclamados a 31.10.2014 e a notificação do Ministério Público para os impugnar ocorreu no dia 26.11.2014, ou seja para lá dos cinco dias a que alude o n º 2 do art.º 323º do Cód. Civil, há que considerar, por um lado, que o prazo prescricional se interrompeu no dia 05 de Novembro de 2014 e, por outro, que todos os créditos anteriores a 5 de Novembro de 1994 se encontram prescritos, por sobre eles ter decorrido o prazo ordinário de prescrição de vinte anos, (art.º 309º do Cód. Civil).

Nesta conformidade, improcedem as conclusões da recorrente, a quem não assiste razão para se insurgir contra o decidido pela Relação, que não merece os reparos que lhe aponta nem viola as disposições legais que indica.

IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se negar a revista e confirmar consequentemente o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


*


Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).

*


Lisboa, 22 de setembro de 2016


António Joaquim Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

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[1] Na versão aprovada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, uma vez que os recursos têm por objecto decisão proferida já depois de 01 de Setembro de 2013 e o processo referente à reclamação de créditos é posterior a 01 de Janeiro de 2008 (cfr. os seus art.ºs 5º, n.º 1, 7º, n.º 1, e 8º).
[2] Cfr, a este propósito, Luiz da Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil em comentário ao Código Civil Português, vol. III, Coimbra Editora, 1930, pág. 628, e António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, 2ª edição revista e actualizada, Almedina, 2015, págs. 172 a 174.
[3] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, 2ª edição revista e actualizada, Almedina, 2015, págs. 154/155 e 197.
[4] Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2010, 6ª edição, pág. 380 e Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, pág. 1123.
[5] Manuel Augusto Domingues de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Coimbra 1953, pág. 465, e Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, pág. 686.
[6] Manuel Augusto Domingues de Andrade, Orações de Sapiência da Faculdade de Direito de Coimbra, pág. 220.
[7] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, 2ª edição revista e actualizada, Almedina, 2015, págs 196 e 197.

[8] Manuel Augusto Domingues de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Coimbra 1953, pág. 466.
[9] Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2010, 6ª edição, págs. 380 e 381, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, pág. 1125, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, 2ª edição revista e actualizada, Almedina, 2015, págs 207 e 208, e Luis Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, Almedina, 2002, págs. 105 e 107.

[10] Tratado de Direito Civil, V, 2ª edição revista e actualizada, Almedina, 2015, pág. 202.
[11]António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, 2ª edição revista e actualizada, Almedina, 2015, pág. 202.
[12]António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, 2ª edição revista e actualizada, Almedina, 2015, págs. 202 e 203.
[13] Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, 2ª edição, pág. 83.
[14] Luis Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, Almedina, 2002, pág. 109.