Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3ª SECÇÃO | ||
Relator: | RAÚL BORGES | ||
Descritores: | DESPACHO QUE DESIGNA DIA PARA A AUDIÊNCIA ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA COMUNICAÇÃO AO ARGUIDO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO DECISÃO CONTRA JURISPRUDÊNCIA FIXADA | ||
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Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 06/18/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | REJEITADO O RECURSO | ||
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Sumário : | I - A vexata quaestio da alteração do enquadramento jurídico da conduta imputada ao arguido em figura criminal mais grave e da consequente necessidade ou não de lhe dar conhecimento de tal modificação culminou, em termos jurisprudenciais, com a prolação do “Assento” n.º 3/2000, de 15-12-1999 (Proc. n.º 43073, DR Série I-A, n.º 35, de 11-02-2000), que reformulou o “Assento” n.º 2/93, de 27-01-92, fixando a seguinte doutrina: «Na vigência do regime dos Códigos de Processo Penal de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do respectivo enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento e, se requerido, prazo ao arguido da possibilidade de tal ocorrência, para o que o mesmo pudesse organizar a respectiva defesa». II - É nesta linha que se situa a alteração introduzida ao processo penal pela Lei 48/2007, de 29-08, estabelecendo o n.º 3 do art. 424.º do CPP que «Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias». III - Este normativo tem aplicação no caso de o tribunal verificar, por iniciativa própria, que, face aos factos provados, o enquadramento jurídico-criminal se deve fazer por modo diverso, integrando a conduta em outro preceito incriminador e face a essa alteração, não prevista, desconhecida do arguido, a fim de se evitar uma decisão surpresa – a exemplo do que ocorre no processo civil com o art. 3.º do CPC, mas aqui com raízes e razões mais ponderosas e visando a salvaguarda de interesses mais profundos e de garantias de defesa constitucionalmente acauteladas –, haverá a necessidade de dar a conhecer a possível alteração de qualificação. IV - Da necessidade de conciliar a possibilidade de procurar o correcto enquadramento jurídico-criminal dos factos com o respeito pelas garantias de defesa emerge um dever de prevenção, de comunicação ao arguido da possível nova qualificação, de modo a propiciar o exercício do contraditório. V - Mas, como esclarece Paulo Pinto de Albuquerque (em anotação ao art. 424.º, n.º 3, do CPP, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 1164), o dever adicional de notificação é limitado aos casos de alteração “não conhecida do arguido”, tendo a limitação o propósito de subtrair do âmbito do dever de notificação no tribunal de recurso as situações em que a alteração já é conhecida do arguido. VI - Assim, se, no despacho que marcou dia para julgamento, for corrigida deficiência de que enfermava a acusação e, consequentemente, alterada a qualificação dos factos – possibilidade de ao arguido ser também aplicada determinada pena acessória –, notificando-se o arguido e o seu mandatário desse despacho, e concedendo-se, por isso, a possibilidade de aquele, em 20 dias, contestar não só a acusação mas ainda a referência ao acréscimo de punição, mostra-se cumprido o dever de comunicação, não ocorrendo qualquer violação da doutrina consagrada no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/2008. | ||
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Decisão Texto Integral: | AA, arguido no processo comum singular n.º 1972/06.7TDPRT do 2º Juízo Criminal do Porto -1ª secção e recorrente no processo nº 6467/08, da 4ª secção, do Tribunal da Relação do Porto, veio interpor recurso extraordinário, ao abrigo do artigo 446º do Código de Processo Penal, por alegadamente, o acórdão de 17-12-2008 proferido naquele processo ter violado o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência n.º 7/2008, ao julgar improcedente a arguição de nulidade da sentença de 1ª instância, não obstante ter alterado a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º do CPP. O recorrente apresentou a motivação de fls. 28 a 48, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição, incluindo os realces): I. O Douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de que agora se recorre foi proferido contra jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão n° 7/2008, publicado no Diário da República, n° 146, Série I, de 2008/07/30. II. Com efeito, aquele Acórdão julgou improcedente a alegada nulidade prevista na alínea b) do n° 1 do artigo379° do Código de Processo Penal. Porquanto, III. A acusação do Ministério Público a fls. 35 e 36 dos autos fica-se pela autoria material de um de “Condenação de veículo em estado de embriaguez”, p. e p. pelo artigo 292° n° 1 do Código Penal, não fazendo qualquer referência a pena acessória de inibição de conduzir, prevista no artigo 69° do Código Penal, nem se indica a disposição legal que prevê a sua cominação. IV. Não obstante, a Meritíssima Juiz do Tribunal de primeira instância, para além de condenar o arguido pelo crime de que vinha acusado (artigo 292° n° 1 do Código Penal), condenou-o ainda pelo artigo 69° n° 1 alínea a) do Código Penal, na proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 12 (doze) meses. V. Compulsados os autos, verificou-se que o Ministério Público não acusou o arguido com base no artigo 69° n° 1 alínea a) do Código Penal, e mais se verifica que apesar da alteração da qualificação jurídica não se deu cumprimento ao disposto nos artigos 358° e 359° do CPP. VI.A Meritíssima Juiz do Tribunal de primeira instância estava obrigada a comunicar essa alteração da qualificação jurídica dos factos ao arguido, mas não o fez, violando nessa medida as garantias de defesa do arguido (artigo 32° da Constituição da República Portuguesa) e condenando o arguido por qualificação jurídica diferente da acusação sem dar cumprimento ao disposto nos artigos 358° e 359° do CPP. VII. Inconformado com o decidido pelo Tribunal de primeira instância, o arguido recorreu daquela sentença pugnando, no que aqui importa, pela sua nulidade ao abrigo da alínea b) do n° 1 do artigo 379° do Código de Processo Penal. VIII. Não obstante, o Venerando Tribunal da Relação do Porto acordou em declarar improcedente a invocada nulidade, com o fundamento de que o lapso (por omissão) da acusação ficou suprido quando no despacho judicial que designou data para a audiência o Tribunal notificou o arguido da acusação, à qual acrescentou a menção à pena acessória do artigo 69° n° 1 alínea a) do Código Penal, ficando dessa forma assegurado o direito de defesa do arguido. IX. Conclui ainda que não era de aplicar a Jurisprudência fixada pelo STJ, por via do Acórdão n° 7/2008. X. Todavia, o Douto Acórdão ora em crise faz uma interpretação errada do Acórdão que fixa jurisprudência n°7/2008, porquanto não releva o aspecto mais proteccionista, garantístico e formalista do arguido e dos seus direitos de defesa, ideias essas desenvolvidas na argumentação daquele Acórdão. XI. Sendo inquestionável que quer o caso sub judice, quer o caso do qual se partiu para fixar jurisprudência se enformam dentro dos mesmos moldes factuais, é inevitável que aquele tenha de ser decidido de forma conforme ao que foi fixado neste. XII. Para tanto, necessário será ter presente que a qualificação jurídica dos factos em sede de acusação não se circunscreve à indicação da norma que prevê o tipo de crime ou crimes. Da alínea f) do n° 3 do artigo 283° do Código de Processo Penal, têm também de ser indicadas as normas que estabelecem a respectiva punição, ou seja, a espécie e a medida das sanções jurídico-criminais aplicáveis, quer sanções penais principais ou acessórias, pois também estas são verdadeiras penas. XIII. De modo que, além da indicação da norma que prevê o tipo de crime ou crimes, têm de ser indicadas as normas que estabelecem a respectiva punição. XIV. Ao arguido têm que ser dado conhecimento do exacto conteúdo jurídico-criminal da acusação, ou seja, da incriminação e da precisa dimensão das consequentes respostas punitivas, dando-se com isso expressão aos princípios da comunicação da acusação e da protecção global e completa dos direitos de defesa, expressos no artigo 32° n° 1 da Constituição da República Portuguesa. XV. Por isso, qualquer alteração que se verifique da qualificação jurídica dos factos feita na acusação, em especial, qualquer alteração que importe um agravamento das sanções penais, tem necessariamente de ser dada a conhecer ao arguido através do "instituto da alteração dos factos", previsto nos artigos 358° e 359° do Código Processo Penal. XVI. Com efeito, “o instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa ao arguido. O que a lei pretende é que aquele não (...) venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente se defender”. XVII. Aliás, o processo penal tem que ser um processo equitativo e justo, não sendo admissível, num Estado de Direito, a possibilidade de ao arguido ser aplicada uma pena sem que disso seja prevenido e avisado, i.e., sem que lhe seja dado oportuno e adequado conhecimento da possibilidade do que nela possa vir a ser condenado. XVIII. Esta ideia fundamentou aliás o Acórdão n° 279/95, que “julgou inconstitucional a interpretação (...) nos casos em que a convolação conduzisse à condenação do arguido em pena mais grave, sem que o mesmo fosse prevenido da nova qualificação jurídica e sem que lhe fosse dada oportunidade de defesa, sob a argumentação de que o arguido não tem que ser sacrificado no altar da correcta qualificação jurídico-penal da matéria de facto e que uma eventual alteração final do enquadramento jurídico desta não tem necessariamente de fazer-se à custa do sacrifício dos seus direitos de defesa, sendo que para assegurar esta defesa basta que lhe seja dado conhecimento prévio da nova qualificação". XIX. “E o mesmo Tribunal, pelo acórdão n° 445/97, reiterou aquela doutrina, proferindo decisão de inconstitucionalidade com força obrigatória gera” (Acórdão do STJ n° 7/2008, D.R., n° 146, Série I, de 2008-07-30). XX. Pelo que a decisão que declara improcedente a arguida nulidade constante da alínea b) do n° 1 do artigo 379° do Código de Processo Penal não só vai contra a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no aludido Acórdão n° 7/2008, como assenta ainda numa interpretação inconstitucional, na medida em que viola aquele Acórdão do Tribunal Constitucional, dotado de força obrigatória geral. XXI. E nem se diga que por ser uma pena acessória e, portanto, dependente da aplicação da pena principal, a sua aplicação resulta directa, imediata e automaticamente da cominação desta pena principal... Aquela não é efeito automático desta, constituindo antes uma sanção autónoma, ideia esta que resulta do artigo 30° n° 4 da Constituição da República Portuguesa e artigo 65° n° 1 do Código Penal (porquanto prevêem que “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”. XXII. Assim, ao condenar-se o aqui Recorrente na pena acessória cuja indicação da disposição legal que a comina foi omitida na acusação contra ele deduzida e sem que da respectiva alteração tivesse sido prevenido, nos termos do artigo 358° n°s 1 e 3, há que concluir-se que a sentença enferma da nulidade prevista na alínea b) do n° 1 do artigo 379° do Código de Processo Penal. XXIII. Desta forma, a decisão aqui Recorrida foi proferida contra a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão n° 7/2008, porquanto ali se fixou a seguinte jurisprudência: “Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substância psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do n° 1 do artigo 69° do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos n°s 1 e 3 do artigo 358° do Código de Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b) do n° 1 do artigo 379° deste último diploma legal”. XXIV. Pelo que deve aquele Acórdão ser revisto e conformado com a jurisprudência ali fixada. Termina pedindo a procedência do recurso. Cumprido o disposto no artigo 439º do CPP, o Ministério Público respondeu conforme fls. 80/1, emitindo parecer no sentido de constituir um absurdo lógico que a alteração não substancial só possa ocorrer durante o julgamento e não antes, como de facto ocorreu. Defende que não se acha violado nem o princípio da lealdade, do contraditório, nem do julgamento justo do arguido, tal como resulta do artigo 6º do CEDH, nem o arguido, nem o seu advogado, foram apanhados de surpresa com o objecto do processo para o qual os mesmos foram notificados aquando da designação de dia para julgamento, conformando-se com o mesmo. Entende como manifesto que o recurso não deve proceder. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal emitiu douto parecer de fls. 89 a 93, defendendo que o acórdão recorrido não decidiu, nem sequer divergiu, ao menos intencionalmente, da jurisprudência fixada, na medida em que se limitou a considerar que a situação factual que no caso concreto apreciava era diferente da tida em conta no acórdão de fixação; (…) as situações de facto enunciadas no Acórdão n.º 7/2008 e que por em oposição de julgados obrigaram à fixação do direito, não são totalmente coincidentes com a apreciada no caso recorrido; (…) não se vislumbra que estejamos em presença de acórdãos que tenham versado de modo oposto sobre a mesma questão jurídica, pressuposto indispensável para que se verifique oposição de julgados, antes pelo contrário; no fulcro, por faltar um dos requisitos substanciais para admissão do recurso, entende que deve o mesmo ser rejeitado. Colhidos os vistos, cumpre apreciar. Estabelece o artigo 446º, nº 1, do CPP, que é admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo. Nos termos do nº 2 do preceito, o recurso pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público. O recorrente, arguido no processo, tem legitimidade e o recurso é tempestivo, pois que interposto nos 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado do acórdão que confirmou a decisão condenatória. Em causa está a eventual violação da jurisprudência uniformizadora fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/2008, de 25 de Junho de 2008, publicado in DR, I Série, n.º 146, de 30-07-2008, nos seguintes termos: «Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do n.º 1 do artigo 69º do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 358º do Código de Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379º deste último diploma legal». Apreciando. Enquadramento da situação O ora recorrente, arguido no processo comum singular n.º 1972/06.7TDPRT do 2º Juízo Criminal -1ª secção do Porto, foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, na pena de 8 meses de prisão e nos termos do disposto no artigo 69º, nº 1, alínea a), do C. Penal, mais foi decidido condenar o mesmo arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 12 meses. Na acusação do Ministério Público não havia qualquer referência à pena acessória de proibição de conduzir, nem a indicação da aplicação do artigo 69º, n.º 1, alínea a), do Código Penal. Aquando do recebimento da acusação foi incluída no respectivo despacho a referência à citada disposição legal relativa à pena acessória. O arguido, bem como o Mandatário, foram notificados de tal despacho. O arguido suscitou em recurso a nulidade de sentença, prevista no artigo 379º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, por na qualificação jurídica do crime a acusação do Ministério Público ter-se ficado pela indicação de “…autoria material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez”, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, não se fazendo qualquer referência à pena acessória de inibição de conduzir, nem se indicando a disposição legal que prevê a sua cominação. Como referiu o arguido nas conclusões 5ª e 6ª de tal recurso “o Ministério Público não acusou o arguido com base no artigo 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal, e mais se verifica que apesar da alteração da qualificação jurídica não se deu cumprimento ao disposto nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal. A Meritíssima Juiz “a quo” estava obrigada a comunicar essa alteração de qualificação jurídica ao arguido, não o fez e, em violação das garantias de defesa do arguido (artigo 32º, nº 1 da CRP), condenou o arguido por qualificação jurídica diferente da acusação sem dar cumprimento ao disposto nos artigos 358º e 359º do CPP”. O Tribunal da Relação do Porto pelo citado acórdão de 17-12-2008 desatendeu a arguição de nulidade. O arguido interpôs então o presente recurso, alegando violação da doutrina consignada no A.U.J. (acórdão de uniformização de jurisprudência) n.º 7/2008. Desde já pode adiantar-se que não há uma identidade absoluta e integral entre a situação versada nos dois acórdãos em causa no acórdão de fixação de jurisprudência e o que se passou no processo onde foi julgado e condenado o arguido, sendo a situação de facto diversa. Não estando aqui e agora em causa apreciar o mérito do acórdão recorrido, por que fora do âmbito deste processo, vejamos a forma como o mesmo abordou a questão da alegada nulidade e como marcou as reais diferenças que este caso tem relativamente aqueloutro. No recurso para a Relação estava em causa a questão de saber se a sentença recorrida era nula, por força do artigo 379º, nº 1, alínea b), do CPP, por, conforme se alegava, ter sido alterada a qualificação jurídica feita na acusação, ao arrepio do disposto no artigo 358º nºs. 1 e 3, do CPP; Versando a alegada nulidade diz o acórdão recorrido: «Com relevância, os autos demonstram que: - É certo que na acusação pública de fls. 35-36, descreve-se factualidade que no entender do MP se subsume -se à prática pelo arguido, do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º nº 1, do C. Penal. E também ali se demonstra que na acusação pública, em termos de qualificação jurídica e incriminação, inexiste qualquer referência à punibilidade da conduta descrita em termos da sua integração no art. 69º nº 1, al. a), do CPP. No entanto e como consta do despacho judicial que além do mais, designou data para a audiência (cfr. fls. 44-45), ali bem consta que o Mertº Juiz …recebeu a acusação deduzida pelo MP, pelos factos ali descritos, os quais integram a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez; e suprindo um evidente lapso (por omissão) da acusação, alterou a qualificação jurídica, acrescentando que os factos são previstos e punidos, além do art. 292º nº 1, do C. Penal, também nos termos do art. 69º nº 1, al. a), também do C. Penal. Este despacho, exarado em 4/07/2007 foi devidamente notificado, quer ao Advogado do arguido (notificação postal enviada em 5/07/2007), quer ao próprio arguido-recorrente, em 6/11/2007 (cfr. fls. 68). A audiência de julgamento iniciou-se em 17/06/2008 sendo certo que até então e mesmo no seu decurso, o arguido não veio invocar a nulidade ora “sub-judice”. A introdução do nº 3 ao art. 358º, do CPP (por via da Lei nº 59/98, de 25/08) visou assegurar o direito de defesa do arguido em relação à própria qualificação jurídica dos factos; a obrigação de o prevenir da nova qualificação jurídica, assim eliminando qualquer surpresa incriminatória, possibilitando que o arguido a discuta ou dela se defenda. Ora, no caso dos autos, o recorrente não foi surpreendido, na sentença, com uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação; na verdade e como já acima se referiu, logo no despacho que designou data para o julgamento, o Mertº Juiz corrigiu o lapso da acusação, aditando nova incriminação, devidamente notificada ao arguido e seu defensor. E com a notificação de tal despacho, o arguido-recorrente foi devidamente prevenido da nova qualificação jurídica dos factos descritos na acusação; foi-lhe assim assegurado o direito de defesa, quer para efeitos da contestação, quer para efeitos de audiência. E porque o recorrente já estava prevenido da alteração da qualificação jurídica dos factos alinhados na acusação, fácil é de concluir que o tribunal, aquando da audiência, nada tinha, quanto à matéria, de comunicar ao recorrente (cfr. v. g. Ac. desta Relação, de 17/12/03 – www.dgsi.pt ). Não é, pois, caso de aplicação da Jurisprudência fixada pelo STJ, por via do Acórdão nº 7/2008. Improcede, pois, a invocada nulidade». No caso presente não está em causa uma alteração factual, mas tão só uma alteração de qualificação jurídica. O tribunal não é inteiramente livre na qualificação jurídico-criminal dos factos, não tendo como único limite a ressalva da proibição da reformatio in pejus. No fundo em causa está a alteração da qualificação jurídica de conduta imputada ao arguido, não constante da acusação ou da pronúncia e o cumprimento do dever de comunicação ao arguido dessa modificação em tempo oportuno, para que este, atempadamente, possa preparar a sua defesa relativamente a esse dado novo, cumprindo-se o contraditório e as garantias de defesa. Esta problemática da requalificação jurídica, de diverso tratamento subsuntivo, relativamente ao que constava da acusação ou da pronúncia, dantes não enquadrada especificamente, já que na versão originária do Código de Processo Penal de 1987 apenas se referenciava a alteração - substancial ou não substancial - dos factos (artigos 1º, n.º 1, alínea f), 284º, n.º 1, 303º, n.º 1, 309º, n.º 1, 358º, 359º e 379º, n.º 1, alínea b), do CPP), ficou clarificada a partir de 1 de Janeiro de 1999, data em que entrou em vigor a Reforma de 1998, com a extensão do princípio do contraditório ao tratamento de subsunção aos preceitos incriminadores. Com efeito, o n.º 3 do artigo 358º do Código de Processo Penal foi aditado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, passando a estabelecer que “O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”, devendo então o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunicar a alteração ao arguido e conceder-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
A propósito desta problemática da alteração da qualificação jurídica da conduta do arguido dada por provada e da necessidade do prévio conhecimento por parte do arguido dessa alteração, ou se se quiser do dever de comunicação da alteração, seguiremos de perto o que expusemos, noutro contexto, no acórdão de 25-03-2009, por nós relatado, no processo n.º 314/09. Esta problemática constituiu uma vexata quaestio, que na perspectiva do caso concreto então em equação e que originou todos os desenvolvimentos conhecidos, tinha a ver com os poderes cognitivos do tribunal superior quanto ao enquadramento jurídico – criminal da matéria de facto assente na 1ª instância, questão que já se colocava à luz dos artigos 447º e 448º do Código de Processo Penal de 1929, com a possibilidade de convolação para infracção diversa da acusação e de convolação para infracção diversa com base em factos não acusados - ver a este propósito o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/99, processo n.º 403/91-2ª secção, in DR - II Série, n.º 58, de 10-03-1999. No domínio do Código de Processo Penal de 1987, a questão conheceu vários desenvolvimentos ao longo de quase oito anos, tudo a partir, na sua expressão mais nítida e conhecida, de uma decisão da Comarca do Funchal, relativa a crime de tráfico de estupefacientes, em que o Supremo Tribunal de Justiça, na cognição de recurso directo interposto de acórdão do Colectivo do Funchal, em acórdão de 26 de Fevereiro de 1992, alterou, oficiosamente, a qualificação jurídica dos factos constantes do acórdão recorrido (quanto ao número de vezes em que o crime, já convolado na primeira instância, havia sido cometido, passando de crime continuado de tráfico agravado de estupefacientes para dois crimes de tráfico agravado) e consequente agravamento da punição imposta na 1ª instância, tendo a solução encontrada por base o entendimento de que não correspondia a alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples modificação do enquadramento jurídico dos mesmos factos, quer em relação ao tipo legal do crime, quer em relação ao número de vezes em que o crime convolado havia sido cometido. Desse acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-02-1992 foi interposto recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, que deu origem ao acórdão deste Supremo Tribunal, de 27 de Janeiro de 1993, o incontornável Assento n.º 2/93, publicado in DR - I Série – A, n.º 58, de 10-03-1993 e no BMJ n.º 423, págs. 47 e segs., no qual se estabeleceu, com efeitos obrigatórios, a doutrina de que “Para os fins dos artigos 1º, alínea f), 120º, 284º, n.º 1, 303º, n.º 3, 309º, n.º 2, 359º, n.ºs 1 e 2 , e 379º, alínea b) do Código de Processo Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave”. Nesta linha jurisprudencial, insere-se ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Junho de 1995, Acórdão n.º 4/95, proferido no processo n.º 47407-3ª, publicado in DR - I Série - A, n.º 154, de 06-07-1995 e BMJ n.º 448, pág.107 e segs., fixando jurisprudência, então obrigatória para os tribunais judiciais, no sentido de que “O tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico - penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus”. Na abordagem desta específica questão importa ter em atenção a posição do Tribunal Constitucional, expressa em vários acórdãos, como o Acórdão n.º 279/95, de 31-05-1995, publicado in DR, II Série, de 28-07-1995 e BMJ n.º 451 (Suplemento), pág. 129, que revogou o citado Assento n.º 2/93, a fim de a decisão recorrida ser “reformulada em consonância com o decidido sobre a questão de inconstitucionalidade”, o Acórdão n.º 330/97, de 17-04-1997, proferido no processo n.º 254/95 – 1ª secção, publicado in DR, II Série, n.º 151, de 03-07-1997 e BMJ n.º 466, pág. 115, o Acórdão n.º 445/97, de 25-06-1997, proferido no processo n.º 154/97, in DR - I Série – A, n.º 179, de 05-08-1997 e BMJ n.º 468, pág. 53, que tendo em conta o juízo de inconstitucionalidade do mencionado assento de 1993, expresso no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 279/95 já referido e ainda nos acórdãos n.º 16/97, publicado no DR, II Série, n.º 50, de 28-02-1997, e n.º 58/97, declarou inconstitucional, com força obrigatória geral - por violação do princípio constante do n.º 1 do artigo 32º da Constituição -, a norma ínsita na alínea f) do n.º 1 do artigo 1º do CPP, em conjugação com os artigos 120º, 284º, n.º 1, 303º, n.º 3, 309º, n.º 2, 359º, n.ºs 1 e 2, e 379º, alínea b), do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do referido Assento de 1993, a que se seguiu, como passo sequencial do mesmo processo do Funchal, o acórdão do STJ de 13-11-1997, que na sequência dos acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 279/95 e 445/97, reformulou o Assento n.º 2/93, fixando então a seguinte doutrina obrigatória: “Ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta exista, o Tribunal pode proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente dê conhecimento e, se requerido, prazo, ao arguido, da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo possa organizar a respectiva defesa jurídica”. Mas, por o acórdão de 13 de Novembro de 1997, para além da aludida reformulação, ter ainda decidido, quanto ao julgamento do feito penal, que “Não há lugar, pelas razões indicadas na fundamentação, a revisão da decisão recorrida”, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, originando o Acórdão n.º 518/98, de 15-07-1998, proferido no processo n.º 45/98, in DR, II Série, n.º 261, de 11-11-1998 e BMJ n.º 479, pág. 190, o qual veio então a definir o sentido e alcance da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do citado Acórdão n.º 445/97, nos termos seguintes: “o tribunal que proceda a uma diferente qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, que importe a condenação do arguido em pena mais grave, antes de a ela proceder, deve prevenir o arguido de tal possibilidade, dando-lhe, quanto a ela, oportunidade de defesa”, revogando então o acórdão recorrido, a fim de ser reformulado em conformidade com essa declaração de inconstitucionalidade, com o sentido e alcance então explicitados, sendo de atender ainda ao Acórdão n.º 519/98, também de 15 de Julho de 1998, proferido no processo n.º 541/97, in DR, II Série, n.º 287, de 14-12-1998, fazendo igualmente aplicação da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do acórdão n.º 445/97, e ao Acórdão n.º 295/99, de 12-05-1999, publicado in DR, II Série, n.º 163, de 15-07-1999, fazendo do mesmo modo aplicação da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do acórdão n.º 445/97, com o sentido de dever ser dada oportunidade ao arguido para organizar a sua defesa em função da nova qualificação jurídico-penal dos factos e finalmente o “Assento” nº 3/2000, de 15 de Dezembro de 1999, prolatado no processo n.º 43073, publicado in DR-I Série - A, n.º 35, de 11-02-2000, que reformulou o Assento n.º 2/93, fixando a seguinte doutrina: “Na vigência do regime dos Códigos de Processo Penal de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do respectivo enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento e, se requerido, prazo ao arguido da possibilidade de tal ocorrência, para o que o mesmo pudesse organizar a respectiva defesa”. Fazendo aplicação destes acórdãos do Tribunal Constitucional, pode ver-se o Acórdão n.º 356/2005, proferido no processo n.º 535/2003, de 06-07-2005, publicado in DR, II Série, nº 202, de 20-10-2005, em que se pode ler que “o aditamento do n.º 3 ao artigo 358º do CPP efectuado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, veio expressamente impor, no seguimento daquela jurisprudência, a audição do arguido quando o tribunal altera a qualificação dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”. Nesta linha evolutiva da enunciada solução jurisprudencial se situa a alteração operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, com a introdução do n.º 3 do artigo 424º do Código de Processo Penal, o qual estabelece: “Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias”. Este normativo terá aplicação no caso de o tribunal verificar por iniciativa própria, que face aos factos provados, o enquadramento jurídico – criminal se deveria fazer por modo diverso, integrando a conduta em outro preceito incriminador e face a essa alteração, não prevista, desconhecida do arguido, a fim de se evitar uma decisão surpresa, a exemplo do que ocorre no processo cível com o artigo 3º do CPC, mas aqui com raízes e razões mais ponderosas e visando a salvaguarda de interesses mais profundos e assegurar as garantias de defesa constitucionalmente acauteladas, haverá a necessidade de dar a conhecer a possível alteração de qualificação. Há que conciliar a possibilidade de procurar o correcto enquadramento jurídico criminal dos factos com o respeito pelas garantias de defesa, daí emergindo um dever de prevenção, de comunicação ao arguido da possível nova qualificação, de modo a propiciar o exercício do contraditório. Em anotação ao artigo 424º, n.º 3, do CPP, Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 1164, esclarece que o dever adicional de notificação é limitado aos casos de alteração “não conhecida do arguido”, tendo a limitação o propósito de subtrair do âmbito do dever de notificação no tribunal de recurso as situações em que a alteração já é conhecida do arguido. Revertendo ao caso concreto. No caso em apreciação, certo é que a acusação, a imputar a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, não continha qualquer referência à pena acessória de proibição de conduzir, sendo completamente omissa, maxime, relativamente ao preceito legal que a prevê; não constava da acusação a indicação de aplicabilidade de tal pena. |