Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S3521
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA GRANDÃO
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA
Nº do Documento: SJ20080123035214
Data do Acordão: 01/23/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - A eficácia probatória de um documento contratual circunscreve-se à materialidade das declarações nele contidas e já não também à sua exactidão.
II - Por isso, o facto de estar provado que os outorgantes disseram o que consta de tal documento, não invalida a necessidade de alcançar o sentido último das suas declarações.
III - Em sede de interpretação de contratos formais, é lícito o recurso a elementos extrínsecos.
IV - Assim, não obstante as partes terem celebrado um contrato que denominaram de prestação de serviços, deve o mesmo ser qualificado de trabalho por se evidenciar que o autor (vendedor/comissionista de automóveis) cumpria um horário de trabalho fixado pela ré (que se dedica à comercialização de veículos automóveis), que lhe fornecia os equipamentos necessários ao exercício da actividade, incluindo um veículo automóvel, obedecia às ordens que recebia dos seus superiores hierárquicos, a quem prestava contas, no final de cada dia, das tarefas realizadas, permanecia integrado em equipas de vendas organizadas pela ré, desempenhando tarefas em tudo idênticas àquelas que eram desenvolvidas pelos seus colegas vendedores, que integravam, como trabalhadores, os quadros da ré.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1 – Relatório

1.1
AA intentou, no Tribunal do Trabalho de Lisboa, acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho contra “Garagem V..., Automóveis S.A.”, pedindo – com fundamento na natureza laboral da relação jurídica que vigorou entre as partes – que a demandada seja condenada a pagar-lhe os componentes retributivos, pretensamente em dívida, discriminados no petitório inicial.
A Ré contesta a pretensão do Autor, sustentando que o vínculo aprazado configura um contrato de prestação de serviço, de onde não emergem os créditos reclamados.
1.2.
Instruída e discutida a causa, a 1ª instância afirmou a natureza laboral do contrato ajuizado, considerando que o Autor foi trabalhador subordinado da Ré desde 1/9/97 até 31/10/03 e, por via disso, condenou a demandada a pagar-lhe:
A- entre Setembro de 1997 e 31 de Outubro de 2003, a título de férias, subsídio de férias e de Natal, a quantia que se vier a apurar em execução de sentença, correspondente ao salário base acrescido da média anual dos valores auferidos pelo A. a título de comissões de vendas;
B- a quantia que se vier a apurar em execução de sentença, relativa ao subsídio de refeição por cada dia de trabalho efectivo prestado pelo A. desde 1/9/97 até 31/10/03;
C- a quantia que se vier a apurar em execução de sentença, relativa ao trabalho suplementar prestado pelo A. em dia semanal, aos sábados, domingos e feriados, bem como em horário nocturno;
D- os respectivos juros de mora, sobre as referidas quantias, à taxa legal, desde a liquidação até integral pagamento.
Debalde apelou a Ré, visto que o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou integralmente a sentença da 1ª instância.
1.3.
Continuando irresignada, a Ré pede a presente revista, onde confere o seguinte núcleo conclusivo:
1- as partes celebraram um contrato de prestação de serviços, constante do título por elas assinado, datado de 1/8/97, que se encontra junto aos autos como doc. n.º 1 da p.i., aqui dado como inteiramente reproduzido;
2- a Ré dedicava-se à comercialização de veículos automóveis, possuindo para o efeito: um quadro de vendedores, integrados na empresa por contrato de trabalho, e um conjunto de vendedores/comissionistas, ligados à empresa por contrato de prestação de serviços;
3- de harmonia com o referido no dito contrato, o Recorrido obrigou-se, expressamente, a exercer a sua actividade para a Recorrente como vendedor-comissionista: com inteira liberdade; sem sujeição às ordens e à direcção da Recorrente; a prestar apenas o resultado da sua actividade, com total independência; auferindo, pelo resultado do seu trabalho, uma retribuição mensal fixa, sem prejuízo de poder vir a auferir também comissões sobre as vendas, nos termos que viessem a ser fixados pela Recorrente para o conjunto dos vendedores-comissionistas;
4- aceitaram, ainda, as partes que o contrato podia ser revogado por qualquer delas com o aviso prévio de um mês, prazo considerado suficiente por ambas nos termos dos arts. 1156º e 1172º do Código Civil;
5- as partes convencionaram também, por escrito, no citado contrato de prestação de serviços, que quaisquer alterações ou modificações a esse contrato, bem como quaisquer cláusulas acessórias ao mesmo, só produzirão efeitos, entre as partes, se constarem de documento escrito e assinado por ambos os outorgantes, vinculando-se, assim, ao regime previsto no art. 223º do C.C.;
6- tendo ambas declarado, também por escrito, e no citado contrato, que no omisso se aplicariam as disposições dos arts. 1154º e segs. do C.C.;
7- a recorrente colocou à disposição do recorrido uma viatura de serviço, para as visitas angariadoras de clientes e como forma de demonstração e promoção da marca, e disponibilizava 20.000$00 mensais para gastos de gasolina;
8- para recebimento das quantias que lhe eram pagas pela recorrente, o recorrido entregava àquela recibos modelos 6 do Código do IRS, aí se intitulando “empresário em nome individual”;
9- tais recibos que totalizam 76, são os que constam do doc. n.º 4, junto com a P.I.,constituindo, cada um deles, uma Factura/Recibo, própria da actividade de empresário em nome individual – mencionando o n.º de contribuinte de empresário em nome individual (141888970) – indicando a retenção, até uma certa altura de 17% e, depois, de 19% de IVA e de 20% de IRS, sobre cada um dos valores neles indicados;
10- a R. nunca pagou ao A. subsídios de refeição, de férias e de Natal e trabalho suplementar ou nocturno (ao contrário, naturalmente, do que sucedia com os vendedores ligados por contrato de trabalho);
11- a R. nunca atribuiu ao A. folgas de compensação;
12- a R. nunca efectuou descontos para a Segurança Social relativos ao A.;
13- a R. pagava aos “vendedores-comissionistas”, como o A., um vencimento-base superior, em 20.000$00/25.000$00, ao dos vendedores que reconhecia como pertencentes aos quadros da empresa;
14- a estes últimos a R. pagava um subsídio de refeição, de montante concretamente não apurado, sendo que ao A. não pagava esse subsídio;
15- o A. não provou qualquer facto que, de alguma forma, fosse susceptível de pôr em causa a sua vontade declarada no contrato escrito que celebrou com a R., acima transcrito e dado como provado;
16- tendo em conta o disposto nos arts. 223º, 374º n.ºs 1 e 2, 376º n.ºs 1 e 2, 393º n.º 1 e 394º n.º 1 do C.C., e sendo certo que nem o A. nem a R. deduziram qualquer incidente de falsidade do documento que consubstancia o acordo celebrado, quer relativamente à letra, quer relativamente à assinatura, quer relativamente ao seu conteúdo,
17- o documento referido, quanto aos factos nele contidos, que forem contrários aos interesses do declarante, faz prova plena desses factos, sendo de salientar que não é admissível a produção de prova testemunhal relativamente a convenções constantes de documento particular que beneficie da força probatória plena, nos termos dos arts. 233º, 393º n.º 2 e 394º n.º 1 do C.C..
18- assim, o contrato que as partes quiseram celebrar, e que celebraram efectivamente, foi um típico contrato de prestação de serviços e não um contrato de trabalho;
19- face ao exposto, as decisões da 1ª instância e da Relação, decidindo como decidiram, fizeram uma errada aplicação da lei aos factos validamente provados, suportando-se, mesmo assim erradamente, em factos que consideraram provados por prova testemunhal que, no caso, não era legalmente permitida;
20- foram violados, entre outros, os arts. 223º, 374º n.ºs 1 e 2, 376º n.ºs 1 e 2, 393º n.ºs 1 e 2, 394º n.º 1, 1152º e 1154º do C.C., bem como o art. 1º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo D.L. n.º 49.408, de 24/11/69.
1.4.
O Autor não apresentou contra-alegações.
1.5.
A Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, cujo douto Parecer não mereceu qualquer reacção das partes, sustenta a negação da revista.
1.6.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2- FACTOS

A 1ª instância, com a anuência expressa da Relação, fixou a seguinte matéria de facto:
1- a R. dedica-se à actividade de venda de automóveis;
2- entre Setembro de 1997 e 31/10/03, o A. dedicou-se à venda de veículos automóveis comercializados pela R., ao abrigo de um acordo escrito celebrado entre as partes, de que consta cópia a fls. 18 e 20;
3- durante aquele período, o A. permaneceu integrado em equipas de vendas organizadas pela R., cumprindo os horários que esta determinou, conforme escalas de serviço juntas a fls. 21 a 109;
4- a actividade do A. era exercida nas instalações da R. nos stands da Rua ..., da Av. ..., da Rua ..., nos salões de exposição onde a R. se fazia representar e ainda em deslocações a empresas e particulares para angariar clientela;
5- o horário a cumprir pelo A., bem como pelos restantes membros das equipas de venda, era:
- nos dias úteis, entre as 9h e as 20h (com cerca de 1h30 para almoço), com folga aos sábados e domingos;
- no período em que o A. prestou serviço no “Colombo” (entre Setembro de 1997 e Setembro de 1999), em regime de 2 turnos, entre as 10h e as 17h ou entre as 17h e as 24h;
- nos períodos em que trabalhou na Av. ..., o horário que a R. estabeleceu era das 9h às 20h;
- aos sábados, quando estava de serviço na Rua ...e na Rua da ..., das 10h às 13h;
6- nos dias em que não estava escalado para serviço nos stands, o A. tinha de comparecer no stand às 9h, para participar na reunião diária, onde estavam presentes todos os vendedores e o Chefe de Vendas;
7- após a reunião, saia para a rua em trabalho de prospecção;
8- às 18h, tinha de voltar ao stand para a reunião de fim de dia, onde apresentava o relatório dos contactos que tinha estabelecido durante o dia;
9- na reunião da equipa de vendedores referida em 6-, o Chefe de Vendas, SR. MS, definia os objectivos a atingir pelos vendedores, fazia o ponto de situação e anunciava as directivas da R. no tocante à organização do stand de vendas;
10- o A. tinha que comparecer nas reuniões semanais, que normalmente tinham lugar à 3ª feira, por volta das 20h, com o Director Comercial da R., Sr. FC;
11- diariamente, no final da tarde, sempre que o A. ou algum dos seus colegas vendedores, tinham passado o dia em serviço externo, era realizada uma reunião, por volta das 19h, entre o Chefe de Vendas e os vendedores, entre os quais o A. se incluía, para que dessem conhecimento à R., através de relatório, dos contactos mantidos durante o dia, no exterior das instalações do stand de vendas;
12- das tarefas realizadas tinha o A. que dar diariamente conta do seu trabalho ao Sr. MS, que coordenava os vendedores;
13- se algum vendedor desobedecesse às instruções transmitidas pelo Chefe de Vendas, este comunicaria tal facto ao Director Comercial;
14- as tarefas desempenhadas pelo A. eram idênticas às desempenhadas pelos seus colegas vendedores, Sr. AP e Sr. AF, trabalhadores dos quadros da R.;
15- os referidos AP e AF estavam integrados nas normas “escalas” de serviço que o A.;
16- as “escalas” referidas em 3- e 15- eram feitas pelo Chefe de Vendas e destinavam-se à organização interna dos serviços de vendas, quer nos stands, quer nas visitas a clientes, quer nas deslocações para outros stands;
17- a R. não autorizava “trocas” de escalas apenas quanto ao serviço no stand;
18- durante o período referido em 2-, o A. não trabalhou para qualquer outra entidade;
19- a R. colocou à disposição do A. uma viatura de serviço, para as visitas angariadoras de clientes e como forma de demonstração e promoção da marca, e disponibilizava 20.000$00 mensais para gastos de gasolina;
20- no mês de férias, os referidos 20.000$00 não eram pagos ao A.;
21- para recebimento das quantias que lhe eram pagas pela R., o A. entregava àquela recibos modelo 6 do Código do IRS, aí se intitulando “empresário em nome individual”;
22- a R. nunca pagou ao A. subsídios de refeição, de férias e de Natal e trabalho suplementar ou nocturno;
23- até Março/Abril de cada ano, o A. carecia de comunicar à R. em que período pretendia gozar férias;
24- estando “dispensado” de comparecer ao serviço durante 22 dias úteis por ano;
25- durante esse período, a R. não pagava ao A. a média das comissões que o mesmo recebia;
26- os períodos em que o A. se podia ausentar careciam de ser articulados pela R. com os períodos de férias dos restantes vendedores;
27- sendo anualmente elaborado um mapa de férias, como o junto a fls. 110, que era submetido à aprovação da Direcção da R.;
28- os vendedores “do quadro” AP e AF estavam integrados nos mesmos mapas de férias que o A.;
29- aquando da contratação do A., a R. obrigou-se a pagar-lhe a quantia fixa mensal de 100.000$00, 12 vezes por ano;
30- acrescida de comissões, em montante variável, sobre as vendas pelo mesmo efectuadas;
31- até à sua saída da R., esta sempre pagou ao A. a referida quantia fixa de 100.000$00 (equivalente a € 498,80), acrescida das comissões mensais variáveis antes mencionadas, nos montantes constantes dos documentos juntos por cópia a fls. 111 a 186;
32- a R. nunca atribuiu ao A. folgas de compensação;
33- o A. remeteu à R. uma carta datada de 25/9/03, junta por cópia a fls. 1 a 7, por esta recebida em 29/9/03, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
34- a R. nunca efectuou descontos para a Segurança Social relativas ao A.;
35- a R. pagava aos “vendedores-comissionistas”, como o A., um vencimento-base superior em cerca de 20.000$00/25.000$00 aos dos vendedores que reconhecia como pertencentes aos quadros da empresa;
36- a estes últimos a R. pagava um subsídio de refeição, de montante concretamente não apurado.
São estes os factos.

3- DIREITO

3.1.
O objecto da presente revista é, no essencial, absolutamente idêntico àquele que se configurava no processo n.º 1831/06, que envolvia a mesma Ré e cujo Acórdão, também por nós relatado, foi proferido em 24 de Outubro de 2006.
Compreende-se, por isso, que essa decisão seja seguida aqui de muito perto.
Num e noutro caso, a controvérsia das partes reconduz-se à questão de saber se o contrato aprazado entre ambas deve ser qualificado como contrato de trabalho subordinado – é a tese dos respectivos Autores – ou como contrato de prestação de serviço – é o entendimento da Ré.
Essa qualificação é decisiva para concluir se são, ou não, devidos ao demandante os créditos retributivos ora reclamados.
Subscrevendo a tese do Autor, no que respeita à qualificação do contrato, as instâncias condenaram a Ré a pagar-lhe as prestações remuneratórias que consideraram em dívida.
Retomando a tese que sempre defendeu ao longo da acção, a Ré questiona o entendimento perfilhado, continuando a sustentar que o vínculo em análise deve ser qualificado como contrato de prestação de serviço, com a inevitável consequência que daí decorre: a sua absolvição do pedido.
Temos, pois, que o objecto da revista se circunscreve à qualificação do contrato.
Todavia, a censura da recorrente assume uma configuração específica, conforme flui do núcleo conclusivo recursório: ancorando-se na força probatória plena que atribui ao texto escrito do contrato, aduz que as instâncias não podiam dar como provada – embora o tenham feito – qualquer factualidade que contrariasse esse texto, sendo que este, em sua opinião, não consente qualquer dúvida sobre a vontade negocial expressa pelas partes: a de celebrar um contrato de prestação de serviços.
Por isso, a nossa atenção deve centrar-se, “prima facie”, no acervo factual coligido pelas instâncias.
3.2.1.
Neste domínio probatório, refere a recorrente que o texto do contrato, “… quanto aos factos nele contidos que forem contrários aos interesses do declarante, faz prova desses factos, sendo de salientar que não é admissível a produção de prova testemunhal relativamente a convenções constantes de documento particular que beneficie da força probatória ____ …”.
E, logo a seguir, conclui:
As instâncias, “… decidindo como decidiram, fizeram uma errada aplicação da lei aos factos validamente provados, suportando-se, mesmo assim erradamente, em factos que consideraram provados por prova testemunhal que, no caso sub-judice, não era legalmente permitida”.
Embora não identifique, como devia, a factualidade que considera ilegalmente dada como provada, não é difícil concluir que a recorrente se está a reportar aos factos constantes dos pontos n.ºs 3 a 16, 23, 24 e 26 a 28.
Como se vê, vem expressamente aduzida a violação da força probatória que decorre do texto contratual em apreço.
Estando em causa, por isso, a violação de regras do direito probatório material, nenhuma dúvida se suscita sobre a legalidade da sua sindicância por este Supremo Tribunal, face à previsão contida nos arts. 722º n.º 2 e 729º n.º 2 do Código de Processo Civil.
Deste modo, é altura de enfrentar a censura produzida.
3.2.2.
A nossa análise deverá incidir, desde logo, sobre os argumentos que a recorrente convoca, a começar pelo tipo de prova admissível.
Não se questiona que o documento em causa, onde se acha titulado o contrato dos autos, constitui um documento particular que, por não ter sido impugnado pelas partes, goza de força probatória plena – art.º 376º do Cód. Civil.
Com efeito, recuando ao art. 374º n.º 1, para o qual remete aquele art.º 376º, ali se consigna que “A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular considerando-se verdadeiras quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado (…)”.
E “o documento particular, cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento” (n.º 1 do citado art.º 376º).
Por outro lado, “os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos previstos para a prova por confissão” (n.º 2).
Finalmente, dispõe o art. 394º n.º 1 do mesmo Código que “É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores”.
Arrimando-se aos preceitos transcritos, sustenta a recorrente – como se disse – que está vedada a produção de qualquer prova, designadamente testemunhal, que possa eventualmente contrariar o texto do contrato ajuizado.
Vejamos.
A proibição da prova testemunhal, contra ou para além das declarações provadas por documento particular com força probatória plena, radica na consabida falibilidade daquele meio de prova e no consequente perigo da sua eventual prevalência sobre a prova documental já adquirida.
Não obstante, vem sendo entendido que a proibição enunciada no art. 394º n.º 1 não deve assumir carácter absoluto, sob pena de vir a ser porventura comprometida, de modo intolerável, a justiça do caso concreto.
Vaz Serra defende a admissibilidade da prova testemunhal, desde que ela seja acompanhada de circunstâncias que tornem verosímil a convenção contrária ao documento que com ela se pretende demonstrar e, bem assim, quando exista um começo de prova por escrito, isto é, qualquer escrito proveniente daquele contra quem a acção é dirigida e que indicie a veracidade do facto alegado (B.M.J. 112/193 e R.L.J. 103º, pág. 13).
Mais expressivamente, sustenta Mota Pinto que “… constitui excepção à regra do artigo 394º e, por isso, deve ser permitida, a prova por testemunhas, no caso do facto a provar estar já tornado verosímil por um começo de prova por escrito. Também deve ser admitida tal prova testemunhal existindo já prova documental susceptível de formar a convicção da verificação do facto alegado, quando se trate de interpretar o conteúdo de documentos ou completar a prova documental” (C.J., 1985, III, pág.9).
No caso dos autos, defende o Autor que o contrato foi executado em termos parcialmente divergentes do texto respectivo.
Mais em concreto – e designadamente – alega que esse modo de execução lhe impunha a observância de um horário de trabalho fixado pela Ré e a sua submissão a ordens que dela emanavam.
Importa reconhecer que esta versão contraria frontalmente o teor das cláusulas 1ª, 2ª e 3ª do contrato.
Sucede, porém, que o Autor juntou aos autos inúmeras “escalas de serviço”, nas quais era imposta a todos os “vendedores” e, portanto, também a ele, a observância de horários de trabalho, quer nos dias úteis, quer aos sábados e no trabalho por turnos – fls. 21 a 109 – e, bem assim, uma “Comunicação Interna” contendo um mapa de férias, onde o Autor se achava incluído – fls. 110.
Estes documentos não podem deixar de ser entendidos como um suporte documental bastante para que, a partir dele, se pudesse complementar, mediante prova por testemunhas, a assinalada versão do Autor.
É dizer que essa versão já se acobertava em “… prova documental susceptível de formar a convicção da verificação do facto alegado”.
Consequentemente, nada impedia que as instâncias aceitassem a produção de prova testemunhal sobre a matéria, alargando-a, inclusivamente, a outra factualidade também carreada ao petitório inicial.
3.2.3.
Ainda neste domínio probatório – e porque a recorrente tanto insiste na força inatacável do documento escrito – convém recordar que o citado art. 376º também assinala que “… a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão” (n.º 2).
No caso dos autos, é inegável que o texto contratual contém vários indicadores, assumidos pelas partes, que apontam para a existência de um contrato de prestação de serviços, a começar pela própria designação dada no vínculo e prosseguindo com as cláusulas que anunciam a autonomia prestacional e a independência do Autor bem como a faculdade de revogação do contrato, por qualquer das partes, com o aviso prévio de um mês.
Mas, a par disso, também ficou convencionada a remuneração mensal fixa de 100.000$00, cuja previsão se aproxima já, ao invés, do vínculo laboral.
Quer isto dizer que, no caso, a confissão global não se harmoniza, necessária e exclusivamente, com um ou outro dos modelos contratuais em confronto, sendo que a força probatória plena, emergente da “confissão”, pode ser contrariada por meio da prova do contrário, onde se mostre não ser verdadeiro o facto que dela foi objecto – art.º 347º do Código Civil.
3.2.4.
Tentámos analisar, até aqui, os argumentos da recorrente, todos eles reconduzíveis à eficácia das provas e ao correspondente âmbito de aplicação.
E, neste domínio restrito, a solução atingida já diverge notoriamente daquela que nos vinha proposta.
Mas a argumentação decisiva – a começar por aquele que julgamos ser o enquadramento correcto da questão em análise – é a que vem de seguida.
Não podemos ignorar que o objecto do pleito visa a qualificação jurídica do vínculo estabelecido.
O que está em causa, pois, é a interpretação do negócio jurídico celebrado, havendo que fixar o seu sentido e alcance, bem como os efeitos que visou produzir.
Neste contexto, caberá dizer que a eficácia probatória do documento contratual se circunscreve à materialidade das declarações nele contidas e já não também à sua exactidão (cfr. Acs. deste Supremo de 3/5/77 e de 6/3/80 in B.M.J. 267/125 e 295/369 respectivamente).
Por isso, essa eficácia probatória apenas evidencia a conformidade da vontade então declarada, deixando intocada a relação material subjacente.
O facto de estar provado que os outorgantes disseram o que consta de tal documento, não invalida a necessidade de alcançar o sentido último das suas declarações.
E, em sede de interpretação de contratos formais, não se questiona a legitimidade do recurso a elementos extrínsecos – cfr., por todos, o Ac. Deste S.T.J. de 31/10/79 in B.M.J. 290/340.
Convém recordar que o contrato dos autos – qualquer que seja a respectiva qualificação – tem duas componentes: a componente estática (coincidente com a sua formalização) e a componente dinâmica (coincidente com o seu desenvolvimento efectivo).
Sendo assim, nada poderá impedir que um dos contratantes possa invocar em juízo a desconformidade entre o clausulado – ou parte dele – do contrato e os termos em que o mesmo veio a ser efectivamente executado, podendo daí resultar uma qualificação jurídica diversa daquela que os outorgantes lhe atribuíram.
Conforme se anota no Acórdão desta Secção de 3/5/06, “… A força probatória do documento (contratual) poderá … não se reflectir directamente na relação material subjacente, quando se constate, na prática, que a relação jurídica subsistente entre as partes tem sido desenvolvida em termos divergentes relativamente ao estabelecido contratualmente ou a qualquer declaração negocial por alguma delas emitida” (ver. n.º 572/06).
Bem se compreende que assim seja: é que não estará em causa, na espécie, a incidência da prova sobre o conteúdo das declarações emitidas, mas antes sobre o comportamento posterior dos contratantes, em ordem a saber que tipo contratual veio por eles a ser implementado.
Esta indagação é importante – quando não decisiva – em todos os contratos de execução continuada.
A este respeito, escreve Albino Mendes Baptista (in “Jurisprudência do Trabalho Anotada”, 3ª ed., pág. 56, nota 7):
“Tendo em conta a frequência com que, nas relações de trabalho, o acordado e o realmente executado entram em contradição, só pela execução efectiva é possível determinar, com alguma frequência, a vontade das partes, tanto mais que a relação emergente do contrato pode sofrer uma crise de identidade relativamente do momento inicial da celebração”.
E, neste contexto, cita Heinrich E. Horster:
“Para a qualificação jurídica de um negócio é decisiva, não a designação acolhida pelas partes ou o efeito jurídico desejado por elas, mas sim o conteúdo do negócio. Em caso de contradição entre o acordado e o realmente executado, prevalece a execução efectiva”.
Este entendimento não poderá deixar de ser inteiramente acolhido nos negócios consensuais – como é o caso – em que releva sobretudo o conteúdo real, decorrente da prática das partes, reservando-se ao documento respectivo uma função subsidiariamente interpretativa.
De resto – e como bem salienta a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta – “… a vingar a tese defendida pela Recorrente, estaria aberto o caminho à fraude às leis laborais”.
E esclarece:
“Com efeito, bastaria que as entidades patronais e os trabalhadores subscrevessem contratos que qualificassem de prestação de serviços e com um clausulado idêntico ao do contrato de trabalho celebrado entre o Autor e a Ré, para que o vínculo contratual estabelecido entre as partes assumisse a natureza jurídica de um contrato de prestação de serviços uma vez que, na óptica da Recorrente, mesmo que o trabalhador realizasse a sua prestação com subordinação jurídica ao beneficiário da actividade, ou mesmo que se verificasse a presunção de laboralidade prevista no artigo 12º do Código do Trabalho, o trabalhador estaria impedido de provar em juízo, através de prova testemunhal, que a sua actividade era efectivamente executada com subordinação jurídica ao credor da prestação”.
3.2.5.
As considerações expostas estão – assim o cremos – em absoluta consonância com os critérios interpretativos legais (arts. 236º e segs do Cod. Civil).
Na verdade:
- quando o declaratário desconhece a vontade real do declarante, a declaração negocial deve ser interpretada de acordo com o que faria um declaratário normal, com base em todas as circunstâncias por ele conhecidas ou susceptíveis de o serem;
- nos próprios negócios formais, apenas se exige (e nem sempre) que o sentido da declaração tenha “… um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso” – art.º 238º;
- nos negócios onerosos, em caso de dúvida, deve prevalecer o sentido que “… conduza ao maior equilíbrio das prestações” – art.º 237º;
- na tarefa interpretativa, importa designadamente atender “… aos termos do negócio, aos interesses nele compreendidos, ao seu mais razoável tratamento, ao objectivo do declarante, às negociações preliminares e aos usos” (Vaz Serra in R.J.M. 111ª/120);
- nessa tarefa, haverá que relevar também – como aqui particularmente importa – os modos de conduta das partes, posteriores ao negócio formalizado (cfr. Rui Alarcão in B.M.J. 84/334).
Sendo assim, devemos concluir que toda a factualidade alegada pelas partes era, no caso, susceptível de relevar para a decisão do pleito, podendo sobre ela ser produzida – como foi qualquer meio de prova.
3.3.
Perante a solução dada à questão anterior, a qualificação do contrato há-de ser feita à luz da factualidade fixada pelas instâncias.
Esta tarefa não parece difícil pois, como vimos, a censura da recorrente não se dirige tanto à qualificação extraída da factualidade dada como provada mas, essencialmente, à forma como foi recolhido esse acervo factual.
Já cuidaram as instâncias de enunciar exaustivamente os critérios legais de diferenciação entre os dois vínculos em confronto e, bem assim, os índices que cabe coligir no caso de não se comprovar directamente uma situação de subordinação jurídica por banda do prestador.
Importa apenas recordar que a diferenciação fundamental entre aqueles dois módulos contratuais se reporta ao resultado do trabalho prestado, como característica estruturante da prestação de serviço, em contraposição à actividade subordinada que caracteriza o vínculo laboral.
Cabe também sublinhar que os índices atendíveis tomados per si, assumem uma patente relatividade, impondo-se que o juízo de aproximação a cada modelo se faça no contexto global do caso concreto.
Fixando-nos na especificidade dos autos, verifica-se que:
- o Autor sempre cumpriu um horário de trabalho fixado pela Ré, que lhe fornecia os equipamentos necessários ao exercício da sua actividade;
- o Autor obedecia às ordens que recebia dos seus superiores hierárquicos, a quem prestava contas, no final de cada dia, das tarefas por ele realizadas;
- enquanto ao serviço da empresa, o Autor sempre permaneceu integrado em equipas de vendas organizadas pela Ré, desempenhando tarefas em tudo idênticas àquelas que eram desenvolvidas pelos seus colegas vendedores, que integravam, como trabalhadores, os quadros da Ré;
- com efeito, o Autor, tal como esses trabalhadores, integravam as mesmas escalas de serviço, do mesmo modo que o mapa de férias também era conjunto;
- ademais, a Ré não autorizava a troca de escalas relativamente ao serviço a realizar no stand e os períodos de ausência ao serviço, por banda do Autor, careciam de ser articulados pela Ré com os períodos de ausência dos demais trabalhadores;
- por fim, também resulta provado que a Ré disponibilizou ao Autor uma viatura de serviço, pagando-lhe 20.000$00 mensais para gastos de combustível.
Perante estes elementos, o assinalado juízo global não pode deixar de apontar para a existência de um vínculo de subordinação jurídica, ou seja, para a verificação de um contrato de trabalho.
Com efeito, é notório o controlo, exercido pela Ré, sobre a actividade prestada pelo Autor, em absoluta consonância com a efectiva inserção deste na organização funcional da empresa.
Neste contexto, não pode relevar minimamente o “nomen júris” atribuído pelas partes no texto do contrato nem, tão-pouco, alguns desvios que se provou existirem relativamente ao modelo laboral, sobretudo na área tributária e na omissão de pagamento de férias, subsídios de férias e de Natal.
Como oportunamente sublinha a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, “… a subsistência de certos requisitos formais, mais consentâneos com o contrato de prestação de serviços, assume um diminuto valor, na medida em que apenas visava manter a aparência de uma situação de autonomia que, na realidade, não existia”.
Improcede, pois, a tese da recorrente.

4- DECISÃO

Em face do exposto, nega-se a revista e confirma-se integralmente o Acórdão da Relação.

Custas pela recorrente.

Lisboa 23 de Janeiro de 2008

Sousa Grandão (relator)
Pinto Hespanhol
Vasques Diniz