Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05P546
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CARVALHO
Descritores: HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
MEIO INSIDIOSO
FRIEZA DE ÂNIMO
Nº do Documento: SJ200503170005465
Data do Acordão: 03/17/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 1620/04
Data: 11/30/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : 1 - No conceito de meio insidioso cabem todos aqueles que possam rotular-se de traiçoeiros, desleais ou perigosos. A traição constitui um meio insidioso e pode ser definida como um ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso.
2 - A traição e a deslealdade estão presentes no homicídio em causa, pois a vítima não sabia nem podia adivinhar que o encontro que a sua mulher lhe pediu para ter consigo naquele local, sob pretexto desconhecido - e convém lembrar que ela, combinada com o arguido, tinha-se reconciliado com o seu marido só para mais facilmente o poderem matar - lhe ia ser fatal, pois aí, a coberto da vegetação e da negritude nocturna, estava não só ela como o arguido, preparados para o atacarem e lhe tirarem a vida.
3 - Tendo havido uma fortíssima reflexão sobre os meios empregues, uma execução ponderada, calculada e mantida por muito tempo, tendo sido o acto perpetrado "a sangue frio", pois não houve qualquer discussão ou emoção mais forte que o desencadeasse, para além de que a morte resultou de dez golpes desferidos na cabeça da vítima por instrumento contundente, estamos perante uma "frieza de ânimo", já que esta indica firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução criminosa.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A" foi julgado no Tribunal Colectivo da Comarca de Abrantes e, por Acórdão de 2004-03-05, julgando-se a acusação e o pedido de indemnização cível parcialmente procedentes, foi decidido quanto à parte criminal, além do mais e após haver sido dado cumprimento ao disposto no art.º 358, n.º 3, do C. P. Penal (fls. 1357 a 1421 e 1423 a 1425):

a) Absolver o arguido da autoria material de um crime de detenção ilegal de arma de defesa, p. p. p. art.º 6.º, n.º 1, da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, na redacção da Lei n.º 98//01, de 25 de Agosto, e da autoria material, em concurso real com tal crime, de um crime de detenção de arma proibida, p. p. p. art. art.s 3., n.º 1, al. d), do Dec.-Lei n.º 207-A/75, de 17 de Abril, e 275, do C. Penal;

b) Condenar o arguido pela prática como co-autor, na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. p. p. art.ºs 26.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. h) e 1.ª e 2.ª parte da al. i), todos do C. Penal, na pena de 20 (vinte) anos de prisão.

Do acórdão da 1ª instância recorreram para o Tribunal da Relação de Évora o arguido, pretendendo a sua absolvição, e a assistente, entendendo que o montante da pena de prisão era insuficiente e que alguns montantes indemnizatórios deviam ser superiores, mas esse Tribunal, por Acórdão de 30 de Novembro de 2004, decidiu rejeitar o recurso da assistente B no que tange à vertente criminal, por falta de legitimidade e de interesse em agir, e negar provimento aos recursos do arguido e da assistente (o desta, face ao acima exposto, apenas na parte cível) e, em consequência, manter-se a decisão da 1ª instância.

2. Do acórdão da Relação de Évora recorre agora o arguido para este Supremo Tribunal de Justiça e, da sua fundamentação, retira as seguintes conclusões:

- Oficiosamente e no cumprimento da jurisprudência fixada pelo Ac. de STJ de 19/10/95, publicado no DR 1ª S.-A de 28/12/95, V.ªs Exas. conhecerão da existência ou não dos vícios enunciados no art. 410 n.º 2 do C.P.P.

- Os factos dados como provados, atento as circunstâncias de lugar, modo e tempo em que ocorreram são insusceptíveis de qualificar o crime de homicídio em causa nos autos.

- Entende-se assim que o acórdão recorrido viola os dispostos nos artigos 131 e 132 n.º 1 e 2 h) e i) os quais deviam ter sido interpretados no sentido de só serem aplicados perante provas concretas e irrefutáveis, o que in casu não aconteceu.

- Considerada que seja correctamente valorada a matéria dada como provada e respectivo enquadramento jurídico efectuadas pelo Tribunal a quo sempre se impõe uma substancial redução na pena de prisão aplicada ao recorrente, em obediência aos princípios da adequação e humanidade das penas e tendo em atenção as condições do recorrente, nomeadamente ser primário, estar bem inserido social e familiarmente com a família constituída (esposa e dois filhos) e ainda a sua idade.

3. Respondendo ao recurso, o M.º P.º na Relação do Porto pronunciou-se pelo seu não provimento.

O Excm.º P.G.A. neste Supremo teve vista nos autos.

4. Colhidos os vistos e realizada a audiência com o formalismo legal, cumpre decidir.

As principais questões a decidir são:
1ª- Se o Supremo Tribunal de Justiça deve conhecer, ainda que oficiosamente, dos vícios da matéria de facto previstos no art. 410, n.º 2, do CPP, que o recorrente invocou perante a Relação.

2ª- Se o homicídio deve ou não considerar-se qualificado pelas circunstâncias h) e i) do n.º 2 do art.º 132 do C. Penal.

3ª- Se a pena deve ser reduzida, ainda que se mantenha a qualificação do crime.

Os factos provados são os seguintes:
1) A nasceu e residiu em Cabeço de Vide e aí trabalhou de 1991 a 2002, exercendo a profissão de massagista na estância termal ali existente.

2) A conheceu C, como cliente das termas de Cabeço de Vide, em Outubro de 2001.

3) Depois dessa data, A e C iniciaram, entre si, um relacionamento amoroso, apesar de serem casados, respectivamente, com D e E pessoas com quem viviam, existindo dois filhos do casamento do A e uma filha do casamento da C.

4) A C, em data situada entre 18 de Dezembro de 2001 e 25 de Maio de 2002, deu conhecimento a sua filha, B, de que pretendia viver com o A, como se de mulher e marido se tratasse, juntamente com a B.

5) Em 18 de Dezembro de 2001, C e o marido, E, instauraram a acção de divórcio por mútuo consentimento com o n.º 554/2001, do 3º juízo do Tribunal Judicial de Abrantes, por iniciativa da C a que o marido anuiu.

6) A relação amorosa entre A e C foi-se desenvolvendo, com encontros entre ambos cada vez mais frequentes, por vezes mais do que um durante a semana, na casa da C, na Calçada de São José, em Abrantes, numa altura em que esta se encontrava separada de facto do marido e na zona de Peniche, onde a C passou a trabalhar, a partir dos começos do Verão de 2002.

7) A ganhava, mensalmente, cerca de quatrocentos e cinquenta e dois euros e vinte e seis cents.

8) C era remunerada pelo seu trabalho em montante não apurado e, em 28 de Outubro de 2002, o saldo da conta bancária aberta por sua ordem no Banco Totta & Açores, com o n.º 50688163020, era no montante de quinhentos e quarenta e nove euros e catorze cents.

9) A e C, em data não apurada, elaboraram, entre si, um plano que visava tirar a vida ao marido da C, de modo a que o seu falecimento pudesse ser considerado um acidente.

10) Invocando os superiores interesses de sua filha B, C convenceu E de que o melhor para todos seria a reconciliação e o termo do mencionado processo de divórcio.

11) E anuiu à proposta e, em 27 de Maio de 2002, ele e a C, por acordo, requereram o fim daquela acção, o que foi deferido e homologado por sentença transitada em julgado, tendo ambos reatado a vida em comum.

12) A partir de data não precisamente determinada, mas situada nos começos do Verão de 2002, C foi trabalhar para a Consolação, perto de Peniche, onde durante a semana tomava conta de uma idosa, vindo passar os fins de semana a Abrantes com o marido e a filha.

13) Nesse período temporal manteve-se a relação amorosa de C com A.

14) C, em data não apurada, mas seguramente anterior a 18 de Dezembro de 2001, subtraiu ao marido e fez sua a pistola "Tanfoglio Giuseppe", modelo GT 27, com o n.º de série D48346 de calibre 6,35 mm, de funcionamento semi-automático, de movimento e acção simples, de percussão central e indirecta, com o cano de 64 milímetros de comprimento e seis estrias de sentido dextrógiro, com o carregador próprio para sete munições e com segurança por fecho e posição intermédia do cão, em condições de efectuar disparos, efectuando frequentemente fracas percussões, não ejectando a cápsula deflagrada após o disparo, recuando o cão mas sem retenção à retaguarda, avançando logo de seguida, interrompendo assim a sequência do automatismo.

15) C, sabendo que aquela pistola estava registada em nome do seu marido, não mais a devolveu ao marido, mesmo sabendo que não era detentora de documento que autorizasse a posse de tal objecto.

16) C pediu ao seu irmão F que abrisse uma conta no Banco Totta & Açores (balcão de Abrantes), em nome deste, mas apenas para ser movimentada no interesse dela, com o que o F concordou.

17) Assim, em 21 de Dezembro de 2001 foi aberta na dependência de Abrantes do referido banco, a conta individual n.º 50688163/020, sendo único titular o F, conta que a C provisionou inicialmente com o equivalente a 1496,39 euros e que, movimentando-a em exclusivo, através de cheques previamente assinados pelo seu irmão e, também através de um cartão de débito, apresentou, a partir de 27 de Julho de 2002, um saldo que se cifrava em 609,56 euros, e em 28 de Outubro de 2002, em 549,14 euros.

18) C e A, em momento temporal não determinado, acordaram o dia 31 de Outubro de 2002, como o dia em que teria lugar a execução do plano.

19) Nesse dia, uma Quinta-feira, véspera de feriado, C saiu de Consolação depois do almoço e encontrou-se com A, depois das 16 horas, entre Montalvo e Martinchel, Abrantes.

20) Pelas 17 horas e 39 minutos e 45 segundos, C recebeu um telefonema de sua filha, tendo aquela dito a esta que já falara com o pai e que ela estava autorizada a festejar a "Noite das Bruxas", fora de casa, devendo regressar a casa até às 00 horas e 30 minutos.

21) Nesse mesmo dia, E havia anteriormente proibido a B de sair de casa nessa noite.

22) A e C permaneceram naquela zona, por mais algum tempo, e, entre as 20 horas e as 21 horas, deslocaram-se à casa herdada por E, sita em Chão de Lopes Pequeno, de onde retiraram uma roçadoura mecânica, com motor a gasolina, dotada de um depósito de combustível e que ali era guardada por este, objecto que trouxeram consigo no veículo em que se fizeram transportar.

23) C sempre considerou a roçadoura mecânica um objecto muito perigoso, porque, segundo ela, incendiava-se com muita facilidade.

24) Seguidamente, A e C regressaram à zona de Martinchel no veículo em que se faziam transportar.

25) Então, tomaram a estrada que liga aquela localidade a Montalvo, a E.M. n.º 1213, e chegados a uma distância não determinada, mas seguramente superior a seiscentos e vinte metros do início do primeiro viaduto sobre o IP-6, hoje A-23, no sentido Martinchel-Amoreira, saíram da estrada e entraram numa clareira situada à esquerda da faixa de alcatrão, atento aquele sentido de marcha, a qual se encontrava rodeada de vegetação composta por árvores, arbustos, mato e erva e pararam.

26) Após isto, C, na sequência do prévio plano elaborado em conjunto com A e no sentido de tirarem a vida a E, telefonou, às 23 horas, 03 minutos e 55 segundos, através do seu telemóvel, para o marido e solicitou-lhe a presença no local cuja localização exacta lhe forneceu, atraindo-o, assim, àquele local.

27) E, que se encontrava disponível, de imediato se dispôs para ali se dirigir e às 23 horas, 18 minutos e 10 segundos, através do seu telemóvel, fez um telefonema para C e dirigiu-se para o local indicado por esta, tendo ali chegado algum tempo depois.

28) Uma vez ali chegado, E estacionou o carro na mencionada clareira que, atento o sentido de marcha que trazia, se situava à sua direita e imobilizou o seu veículo, um VW Golf CL, cinzento, com matrícula OL.

29) Então, de nada desconfiando, E saiu da sua viatura, onde deixou a sua pistola de calibre 6,35 mm "Browning", marca "MAB" (Manufactures D´Armes de Bayonne), com o n.º de série 226765, municiada com seis munições no carregador e envolta no respectivo coldre, a qual ficou na zona dos pés do condutor e dirigiu-se à C, que se encontrava nas imediações.

30) De seguida, em condições não exactamente apuradas, C e A desferiram com objecto de natureza contundente, não exactamente determinado, com a intenção de tirarem a vida a E, diversas pancadas na zona da cabeça de E, o que directa e necessariamente lhe determinou a morte.

31) Com a conduta descrita C e A provocaram no corpo de E as seguintes lesões:
- ferida contusa de bordos escoriados na região frontal mediana e esquerda, atingindo o olho esquerdo e a região malar esquerda, fusiforme, oblíqua para a frente e para a esquerda, com a dimensão de 7 x 3 cms.;
- ferida na região fronto-temporal esquerda, irregularmente rectangular, com 3 x 2 cms.;
- ferida na região parietal esquerda, fusiforme, oblíqua para a frente e para a esquerda, que media 5 x 2 cms.;
- ferida na região bi-parietal, de contorno triangular, de base anterior, com 3,5 x 2 cms.;
- ferida na região parietal direita, fusiforme, oblíqua para a frente e para a esquerda, com 3,5 x 1 cm.;
- ferida na região parietal posterior direita, fusiforme, paralela ao plano sagital, com 7 x 1,5 cms.;
- ferida na região parietal posterior direita em forma de "T", com 3 x 2 cms.;
- ferida na região occipital direita, de contorno triangular, de base posterior, com 2,5 x 2,5 cms.;
- ferida na região mastoideia esquerda, linear, com 3 cms. de comprimento;
- ferida na região retro-auricular esquerda, com 2 x 2 cms. e outra no pavilhão auricular esquerdo, na região do hélix.

32. As condutas de A e de C causaram ainda no marido desta:
- infiltração hemorrágica de todo o couro cabeludo e aponevrose epicraniana da metade esquerda da região frontal do músculo temporal esquerdo;
- fractura múltipla esquirolosa com afundamento da metade esquerda do frontal com perda de substância óssea, que se prolongou para o temporal e parietal esquerdos;
- fractura linear parieto-temporal direita;
- fracturas múltiplas esquirolosas dos andares anterior e médio da base do crânio;
- fractura do malar esquerdo e dos ossos próprios do nariz;
- laceração do pólo frontal direito e de todo o lobo frontal esquerdo, focos de contusão nos lobos frontais e temporais e nos núcleos cinzentos da base do hemisfério cerebral esquerdo;
- hemorragia leptomeníngea na convexidade e na base;
- hemorragia intra-ventricular cerebral;
- infiltração hemorrágica do tecido cerebral subcutâneo e músculos da face posterior do ombro direito, numa área de cerca de 6 cms. de diâmetro e hemorragias sub-endocárdicas na parede ventricular esquerda, o que tudo lhe determinou, directa e necessariamente, a perda da vida.

33. Logo após isto, em execução do mencionado plano e com a intenção de fazerem crer a terceiros que E tinha sofrido um acidente de viação, A e C pegaram no corpo do falecido e introduziram-no no interior do seu VW Golf, na zona do passageiro da frente, com a cabeça para baixo e os pés para cima.

34. Seguidamente, C e A espalharam gasolina e acendalhas no interior do veículo, a fim de facilitar a propagação das chamas no interior do veículo, tendo também colocado a roçadoura mecânica no interior da viatura.

35. Após isso, de forma não apurada, C e A fizeram circular o veículo Golf, numa distância de cerca de seiscentos metros, em direcção a Amoreira e pararam a viatura na metade direita da via, atento o seu sentido de marcha, Martinchel/Amoreira.

36. Então, C e A tentaram direccionar o VW Golf no sentido de uma ribanceira, com várias dezenas de metros de desnível, que ficava à esquerda, atento o sentido de marcha Martinchel/Amoreira, e onde pretendiam que o veículo se despenhasse.

37. Por forma não apurada, A lançou fogo para dentro do veículo Golf, o qual, por força da gasolina espalhada e vaporizada no seu interior, explodiu de imediato, originando a projecção do vidro pára-brisas e atingindo A na face.

38. A explosão e a combustão subsequente obstaram ao controle da trajectória do veículo.

39. Por isso, o veículo entrou na valeta direita da estrada, atento o seu sentido de marcha, tendo percorrido cerca de 20 metros, após o que se imobilizou fora da estrada, com o corpo de E no seu interior, o qual foi parcialmente consumido pelas chamas.

40. Após isso, A abandonou o local em direcção a Martinchel, enquanto C se dirigiu a sua casa na Calçada de São José, em Abrantes, onde chegou pouco depois da meia noite.

41. C veio a falecer, em 04 de Novembro de 2002, por suicídio.

42. Em 04 de Fevereiro de 2003, na residência de A, em Cabeço de Vide, foi encontrada a espingarda caçadeira com a coronha e os canos serrados de calibre 12, para cartuchos de caça, de marca "ML" (Manufactures Liegeoise d’Armes de Feu), de modelo não referenciado, com o n.º de série 30666, de tiro unitário múltiplo, com dois canos justapostos, basculantes, de alma lisa, com 390 mms. de comprimento, de percussão central e indirecta, com dois percutores e dois gatilhos, sendo o primeiro correspondente ao cano direito, com ausência de extractor e inexistência de segurança e com o comprimento total reduzido a 630 mms., a qual se encontra em condições de disparar com o cano direito.

43. O fuste da caçadeira apreendida no interior da residência de A tem que ser retirado para que os canos da mesma arma basculem o suficiente para permitir a introdução de cartuchos nos mesmos.

44. Ao agir como fica descrito, A fê-lo de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que tal comportamento era proibido por lei.

45. A é casado há cerca de dezanove anos, tem uma filha com dezassete anos de idade e um filho com oito anos de idade.

46. A concluiu o 9.º ano de escolaridade, beneficia de apoio familiar e é primário.

47. E era pai de B e nascera a 20 de Janeiro de 1953.

48. E trabalhava no Tribunal Judicial de Abrantes e tinha a categoria profissional de escrivão de direito.

49. E estava sempre disposto a ajudar, era dotado de uma personalidade extrovertida, estando particularmente ligado à sua única filha, B.

50. E auferia o vencimento mensal ilíquido de 1582,68 euros, recebendo regular e habitualmente, todos os meses, importâncias líquidas que variavam entre 1369,38 euros e 1187,02 euros.

51. A morte de E e a suspeita do envolvimento de sua mãe e do arguido na mesma morte constituíram para B um choque, causando-lhe desgosto.

52. E tinha pela filha carinho e atenção.

53. Ao receber a notícia da morte de E, B ficou descontrolada e teve imensa dificuldade em encarar o velório e o funeral.

54. B viu afectada a sua alegria de viver, sentindo alterado todo o seu modo de vida, o que lhe causou angústia e dor, encontrando-se ainda hoje traumatizada.

55. B nasceu em 08 de Fevereiro de 1984.

56. B encontrava-se a estudar na Escola Secundária Dr. Solano de Abreu, a repetir o 11º ano de escolaridade e devido à morte de seu pai, viu o seu rendimento escolar piorar, não tendo tido aproveitamento no ano lectivo de 2002/2003.

57. B sofreu uma agravação da instabilidade psicológica que já tinha, tendo dificuldade em reger, por si, a sua vida e os seus bens.

58. Após a morte de seus pais, B teve o apoio de familiares e foi viver para a casa dos avós maternos por período não inferior a oito dias nem superior a um mês, tendo regressado, após tal período temporal, à casa onde morava com seus pais, indo posteriormente viver para o rés-do-chão da casa onde morou com seus pais.

59. B necessitou de receber acompanhamento psiquiátrico, o que ainda se mantém, com necessidade de tomar medicamentos para o efeito.

60. B está actualmente matriculada no Intep, na Figueira da Foz, para frequência de curso técnico de serviços jurídicos, curso que tem a duração de três anos.

61. E ia buscar e levar à escola B e preocupava-se com esta e esta com ele.

62. Na própria noite dos factos B telefonou várias vezes a E para o procurar localizar.

63. E, antes dos factos objecto destes autos, era uma pessoa que gozava de saúde regular.

64. E suportava as despesas de B com a roupa e vestuário, com sapatos e calçado em geral, com os livros e material escolar, com a alimentação diária, com despesas de saúde e entregava-lhe quantias para o carregamento do telemóvel e para despesas de lazer, despendendo no total montante mensal médio em montante não determinado.

65. E faleceu no estado de casado com C, em primeiras núpcias de ambos, segundo o regime de comunhão geral de bens, sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de sua última vontade, sobrevivendo-lhe a sua única filha, B e sua esposa, C, tendo esta falecido no estado de viúva, sem deixar testamento ou outra disposição de sua última vontade e deixando uma única filha, B.

QUESTÕES DE FACTO
Repetidamente (1) vem este Supremo Tribunal de Justiça decidindo o seguinte:
«Pretendendo os interessados solicitar o reexame da matéria de facto fixada em 1.ª instância por decisão final de tribunal colectivo, terão que o fazer directamente para a Relação e nunca per saltum para o Supremo, uma vez que este só julga de direito. É que, tendo os recorrentes ao seu dispor o Tribunal da Relação para discutir a decisão de facto do tribunal colectivo e tendo aquele tribunal mantido tal decisão, vedado lhe está pedir ao Supremo Tribunal uma reapreciação da decisão de facto tomada pelo Tribunal da Relação e, muito menos, directamente do acórdão sobre os factos do tribunal colectivo de 1.ª instância» (2).

«A competência das relações, quanto ao conhecimento de facto, esgota os poderes de cognição dos tribunais sobre tal matéria, não podendo pretender-se colmatar o eventual mau uso do poder de fazer actuar aquela competência, reeditando-se no Supremo Tribunal de Justiça pretensões pertinentes à decisão de facto que lhe são estranhas, pois se hão-de haver como precludidas todas as razões quanto a tal decisão invocadas perante a Relação, bem como as que o poderiam ter sido» (3).
(...)
Ora, o reexame/revista (pelo STJ) exige/subentende a prévia definição (pelas instâncias) dos factos provados (art. 729 n. 1 do CPC).
E, no caso, a Relação - avaliando a regularidade do processo de formação de convicção do tribunal colectivo a respeito dos factos (re)impugnados no recurso - manteve-os, em definitivo, no rol dos «factos provados».
A revista alargada ínsita no art. 410 n. 2 e 3 do CPP pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do Código de Processo Penal de 1987) um único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação) e destinava-se a suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso, havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos aspectos de direito instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada»).
Essa revista alargada (do STJ) deixou, porém, de fazer sentido - em caso de prévio recurso para a Relação - quando, a partir da reforma processual de 1998 (Lei 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (art.ºs 427 e 428 n. 1).
Actualmente, com efeito, quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal colectivo, de duas uma: se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432 d), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça e, se o não visar, dirige-o, «de facto e de direito», à Relação, caso em que da decisão desta, se não for «irrecorrível nos termos do art. 400», poderá depois recorrer para o STJ (art. 432.b).
Só que, nesta hipótese, o recurso - agora, puramente, de revista - terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais «erro(s)» - das instâncias «na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa») (4).
(...)
O recurso de revista terá assim que circunscrever-se a questões «exclusivamente» de direito. Pois que - insiste-se - as questões «de facto» (5) deverão considerar-se definitivamente decididas pela Relação.

O recorrente, porém, conhecedor desta jurisprudência, apela para a possibilidade deste Supremo Tribunal conhecer oficiosamente dos vícios da matéria de facto.
É certo que o STJ tem essa possibilidade, pois em alguns casos a matéria de facto estabelecida pelas instâncias não possibilita uma decisão jurídica, por conter manifestas insuficiências, contradições ou erros.
Porém, no caso dos autos, os esforços do recorrente para tentar ludibriar a impossibilidade que a lei lhe impõe de suscitar questões de facto perante este Tribunal não têm êxito, pois os factos provados não evidenciam qualquer dos vícios a que se reporta o art.º 410, n. 2, do CPP.
E, assim, a matéria de facto considera-se definitivamente adquirida.
HOMICÍDIO QUALIFICADO OU SIMPLES?
Como os autores notam (6) , o legislador português optou por determinar que o homicídio qualificado não é mais do que uma forma agravada do homicídio simples previsto no art.º 131 do C. Penal ("Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos").
Não há, pois, diversos tipos criminais de crimes contra a vida, mas apenas um, que é o crime base, sendo que há circunstâncias que especialmente o agravam (crime qualificado) e outras que especialmente o atenuam (crime privilegiado). Por isso, também está fora de questão que se considere o crime base o de homicídio qualificado, não sendo o homicídio simples mais do que uma forma atenuada daquele.
A qualificação do crime vem prevista no art.º 132 e aí o legislador não quis organizá-la de uma forma taxativa, antes optou por uma fórmula aberta, embora cingida a certos parâmetros, que deixa ao aplicador uma margem de ponderação das circunstâncias, por forma a casuisticamente determinar se este ou aquele facto integra o conceito legal de homicídio qualificado.
Isso é feito pela afirmação genérica de um especial tipo de culpa, que vem assim descrito no n.º 1: "Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos".
Mas aliou-se essa formulação genérica à "chamada técnica dos exemplos-padrão («Regelbeispieltechnik» (7), em que a cláusula geral seria constituída por um tipo de culpa (art.º 132, n.º 1) combinado com uma exemplificação não definitiva e facultativa (art.º 132 n.º 2)" "(8).
Alguns desses exemplos padrão, estão formulados no n.º 2 do art.º 132 deste modo: «É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;
b) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;
c) Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima;
d) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;
e) Ser determinado por ódio racial, religioso ou político;
f) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime;
g) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;
h) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;
i) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;...».
Que estas circunstâncias estão enunciadas a título meramente exemplificativo, é uma afirmação inequívoca, pois resulta directamente da lei, quando refere que são essas «entre outras». E, como não podia deixar de ser, é essa a Jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal (9).
Mas a técnica legislativa resultante da conjugação do n.º 1 com o n.º 2 do art.º 132, leva a que possa ocorrer um homicídio em que se verifica alguma das circunstâncias previstas no n.º 2 e, contudo, não se trata de um homicídio qualificado, pois, no caso concreto, aquela circunstância não revela "especial censurabilidade ou perversidade" (n.º 1), como pode suceder o contrário, a circunstância não estar prevista no n.º 2, mas poder ser substancialmente análoga (10), e integrar-se no tipo especial de culpa do n.º 1. (11)
Vem a doutrina entendendo, embora dividida (12), que os exemplos-padrão prendem-se essencialmente com a questão da culpa, mais do que com a ilicitude, pois ainda que se refiram a um maior desvalor da conduta (por exemplo, o homicídio cometido na pessoa do pai ou do filho), não é essa circunstância, por si, que determina a qualificação do crime, antes a especial censurabilidade ou perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa (13).
Como se diz no Acórdão deste STJ de 1996/12/11, in proc. n.º 188/97 (www.dgsi.pt), "A qualificação do crime de homicídio qualificado não é consequência irrevogável da existência de qualquer das circunstâncias constantes do n.º 2 do artigo 132.º do CP. Essencial, é que, as circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade distintas (pela sua anormal gravidade) daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio simples».
Importa precisar o que é a especial censurabilidade ou perversidade.
Permitimo-nos aqui citar, mais uma vez, Teresa Serra (ob. referida, págs. 63 a 65).

«Como se sabe, a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.°, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores...Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala BINDER. Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor, Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente...Importa salientar que a qualificação de especial se refez tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete».

No caso dos autos, o tribunal recorrido manteve a decisão da 1ª instância, designadamente sobre a qualificação jurídica do crime como homicídio qualificado, p.p. nos art.ºs 131 e 132, n.ºs 1 e 2, als. h) e 1.ª e 2.ª parte da al. i), todos do C. Penal, com a seguinte fundamentação:
"No caso em análise, provou-se essencialmente que, em data não apurada, o arguido e a C decidiram tirar a vida ao E, decisão que vieram a efectivar no dia 2002-10-31, sendo que, previamente à execução da referida decisão e em conformidade com o plano de fazer crer que tal morte se teria verificado acidentalmente, no dia 2002-10-31 o arguido e a C foram a uma casa herdada pela vítima donde retiraram uma máquina roçadoura que funcionava a gasolina e depois, às 23 h 03 m 35 s desse dia, a esposa da vítima telefonou a esta para a atrair ao local onde o esperava acompanhada do arguido. A vítima respondeu a tal solicitação da esposa prontificando-se a dirigir-se ao local como solicitado por ela, tendo previamente efectuado um telefonema a esta e, chegada ao local, a vítima, apesar de ter consigo uma arma de defesa municiada, porque de nada desconfiava, saiu do seu veículo e dirigiu-se à C sua esposa tendo então, em circunstâncias não exactamente apuradas, a C e o arguido desferido com objecto de natureza contundente, não exactamente determinado, e com intenção de tirarem a vida à vítima, diversas pancadas na zona da cabeça desta, o que directa e necessariamente lhe determinou a morte.

Esta factualidade apurada permite-nos concluir, como concluiu o Tribunal Colectivo, que, agindo como agiram, o arguido e a falecida esposa da vítima cometeram em co-autoria um crime de homicídio qualificado, pois procuraram uma situação de surpresa e de menor capacidade de defesa por parte da vítima atraindo-a a esposa de noite ao local onde se encontravam à sua espera e aí depois a atacando de forma inesperada e imprevista, o que integra o meio insidioso previsto naquela al. h), do n.º 2 do art.º 132.º, do C. Penal.

O referido termo ‘meio insidioso’ abrange, entre outros, a espera, a emboscada, a traição, a surpresa ou qualquer fraude (cf. Ac. S. T. J., de 91-12-11, in B. M. J. 412/183).
Mas acresce ainda que da factualidade apurada também resulta ter havido, da parte dos co-autores do crime em causa, uma preparação dos factos com algum cuidado e bem assim uma encenação de um acidente de viação que veio a revelar-se frustrada, o que revela reflexão sobre os meios empregues e frieza de ânimo na execução dos factos, assim se mostrando também in casu preenchidas as circunstâncias agravantes previstas na primeira e na segunda parte da referida al. i) do n. 2, do art.º 132 do C. Penal.

Termos em que se reconhece que, tal como foi decidido pela 1.ª instância, o crime de homicídio em análise se encontra bem qualificado pelas circunstâncias que se assinalaram."

Ora, sobre o uso de "meio insidioso", o recorrente vem invocar que "o facto do crime ter ocorrido na berma de uma estrada pública, numa véspera de feriado que causou fim de semana prolongado e a uma hora de muito movimento rodoviário, até porque se tratava da "Noite das Bruxas" é susceptível de afastar as referidas qualificativas. Pois a haver "meio insidioso" e ainda que este abarque a surpresa, jamais a surpresa se concretizaria perante uma mais que eventual presença de testemunhas oculares."

Esta argumentação, porém, pouco ou nada tem a ver com os factos provados, pois o local foi escolhido pelo arguido e pela mulher da vítima para perpetrar o assassínio e, portanto, era o mais adequado a ocultar da vista de qualquer improvável transeunte o que se iria passar. Não escolheram, pois, a "berma de uma estrada pública", mas uma "clareira situada à esquerda da faixa de alcatrão, atento aquele sentido de marcha, a qual se encontrava rodeada de vegetação composta por árvores, arbustos, mato e erva".

Por outro lado, o local não se situava numa povoação ou perto dela, mas em plena estrada municipal (tomaram a estrada que liga aquela localidade a Montalvo, a E.M. n.º 1213, e chegados a uma distância não determinada, mas seguramente superior a seiscentos e vinte metros do início do primeiro viaduto sobre o IP-6, hoje A-23, no sentido Martinchel-Amoreira...).

Por fim, passava das 23 horas e, portanto, era de noite.
Temos, assim, que a vítima foi atraída, à noite, a um local isolado e escondido. Só quem passasse a pé pela estrada poderia ver ou ouvir qualquer coisa. Pouco importa que fosse véspera de feriado e de fim-de-semana prolongado, pois não é por esse facto que há mais gente a passear a pé numa estrada municipal, em local afastado das povoações, para mais durante a noite. Na verdade, nos nossos dias, pode dizer-se, sem exagero, que não há praticamente ninguém que faça percursos a pé pelas estradas, muito menos nas noites de feriados, em que por regra as pessoas procuram encontrar-se com a família ou com os amigos, ou ficar em casa a descansar...

Tem este Supremo Tribunal de Justiça entendido que «No conceito de meio insidioso...cabem todos aqueles que possam rotular-se de traiçoeiros, desleais ou perigosos". «A traição constitui um meio insidioso e pode ser definida como um ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso» (14).

Ora, a traição e a deslealdade estão presentes no homicídio em causa, pois a vítima não sabia nem podia adivinhar que o encontro que a sua mulher lhe pediu para ter consigo naquele local, sob pretexto desconhecido - e convém lembrar que ela, combinada com o arguido, tinha-se reconciliado com o seu marido só para mais facilmente o poderem matar - lhe ia ser fatal, pois aí, a coberto da vegetação e da negritude nocturna, estava não só ela como o arguido, preparados para o atacarem e lhe tirarem a vida.

Diz ainda o recorrente que "Quanto à reflexão sobre os meios empregues e frieza de ânimo na execução dos factos o douto acórdão reporta-se a actos praticados após a morte da vitima o que só por si afasta a sua aplicabilidade ao crime de homicídio pois este consuma-se com a morte da vitima constituindo os actos posteriores, um crime impossível."
Esta afirmação do recorrente choca frontalmente com toda a matéria de facto provada.

Na verdade, o homicídio foi planeado antes de 27 de Maio de 2002 (factos 9 e 11) e foi executado em 31 de Outubro, pelo que foi friamente pensado durante pelo menos 5 meses. De resto, esse tempo foi o necessário para a mulher da vítima voltar a ganhar a confiança desta, após o levar a desistir de um processo de divórcio por mútuo consentimento, alegadamente porque tal seria importante para a filha do casal.
Por outro lado, o dia do assassinato foi escolhido com antecedência pelo arguido e pela mulher da vítima e o acto foi executado de acordo com um plano que consistia em atrair a vítima a um local ermo e escondido, saindo a vítima de casa a conduzir o seu automóvel, matarem-no em conjugação de esforços e depois simularem um acidente de viação, com o veículo da vítima a despenhar-se por uma ribanceira (estando ela já morta) e a incendiar-se, para assim se apagarem os vestígios.

Houve, pois, uma fortíssima reflexão sobre os meios empregues e houve também enorme frieza de ânimo na execução, a qual foi muito ponderada, calculada e mantida por muito tempo. Para mais, o acto criminoso foi executado "a sangue frio", pois não houve qualquer discussão ou emoção mais forte que desencadeasse o acto. Para além de que a morte resultou de dez golpes desferidos na cabeça da vítima por instrumento contundente, como se evidencia pelas várias e profundas lesões que o relatório da autópsia revela.

A frieza de ânimo indica a firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução criminosa e, como se vê, existiu em toda a sua plenitude.
Curiosamente, a frieza de ânimo já não foi tão forte depois do crime, já que o arguido cometeu uma série de erros de execução, que impediram a planeada simulação de acidente rodoviário e que lhe atiraram para a face estilhaços de vidro na explosão incendiária do veículo.

Assim, a conduta do arguido integra prática de um crime de homicídio qualificado, p.p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. h) e i), do Código Penal, tal como foi decidido pelas instâncias.

MEDIDA DA PENA:
O crime ora imputado ao recorrente é punível, em abstracto, com prisão de 12 a 25 anos.
Qual a pena concreta que deve ser aplicada?
Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem se perder de vista a culpa do agente.

Numa concepção moderna, a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa "que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada..." (Anabela Miranda Rodrigues, "A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade", Coimbra Editora, pág. 570).
"É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica (mesma obra, pág. seguinte).

A prevenção especial, por seu lado, é encarada como a necessidade de socialização do agente, embora no sentido, modesto mas realista, de o preparar para no futuro não cometer outros crimes.
"Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas..." (ainda a mesma obra, pág. 575). "Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado" (pág. 558).
O Código Penal espelhou estas preocupações nos artigos 70º e 71º.
Dá-se preferência às penas não privativas da liberdade, mas tal tem de ser feito de uma forma fundamentada, pois há que apurar criteriosamente se a pena não detentiva realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art.º 70º).
E «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Na determinação da pena, o tribunal atenderá a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele...» (art.º 71º).
Ora, no caso dos autos, a ilicitude e o dolo são muitíssimo elevados, dado o modo de execução dos factos e a pluralidade de circunstâncias qualificativas (insídia, frieza de ânimo, reflexão sobre os meios).
Há que ter em conta o elevado alarme social que este tipo de situações, de criminalidade muito violenta contra as pessoas, suscita na comunidade, com repercussões negativas em sede de prevenção geral de integração.
A favor do arguido pondera-se a circunstância de não apresentar antecedentes criminais e de beneficiar de apoio familiar, (é casado há cerca de 19 anos, tem dois filhos sendo uma filha de 17 anos e um filho de 8 anos), com reflexos positivos em sede de prevenção geral de integração e especial de socialização. Tinha 37 anos de idade e tem o 9º ano de escolaridade.
Não confessou os factos e não mostra arrependimento.
Tudo ponderado, considera-se ajustada a pena de 20 (vinte) anos de prisão que lhe foi aplicada pelas instâncias, assim se negando provimento ao recurso.

5. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso e em manter integralmente o douto Acórdão recorrido.

Condena-se o recorrente nas custas do processo, com 8 UC de taxa de justiça.

Notifique.

Lisboa, 17 de Março de 2005
Santos Carvalho,
Costa Mortágua,
Rodrigues da Costa,
Quinta Gomes.
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(1) Por ser uma jurisprudência muitas vezes repetida, reproduz-se aqui profusamente o Ac. lavrado no processo n.º 2369/04-5, em que foi relator o Conselheiro Carmona da Mota e no qual o ora relator foi adjunto.
(2) Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos, Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, «O Novo Código e os Novos Recursos», 2001, edição policopiada, ps. 9/10.
(3) Ibidem.
(4) «Salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe [ou «anule», no caso dos «meios proibidos de prova»] a força de determinado meio de prova» (art. 722.2 do CPC).
(5) Ou «de direito» delas instrumentais e, por isso, «não exclusivamente de direito».
(6) Ver por todos, o "Comentário Conimbricense do Código Penal", 1999, I, pág. 25.
(7) «Técnica dos exemplos da regra».
(8) "Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena", Teresa Serra, 2000, pág. 15.

(9) Acs. STJ de 2002/11/14, proc. 3316/02, de 1991/12/12, proc. 42640, de 1992/05/06, proc. n.º 43109, de 1997/12/16, proc. n.º 102/98, de 1990/12/20, proc. 41848, etc., todos eles in www.dgsi.pt.
(10) "Comentário Conimbricense...", ob. cit. pág. 26.
(11) Teresa Serra, ob. cit., págs. 67 e segs., na esteira de Wessels, designa o primeiro caso por homicídio simples atípico e o segundo por homicídio qualificado atípico.
(12) "Comentário Conimbricense...", ob. cit., pág. 27.
(13) Leal Henriques e Simas Santos assinalam no "Código Penal Anotado", II, pág. 61 e segs., que não é exacta a afirmação do Ac. do STJ de 1990/06/06 de que "no caso de parricídio a regra é a de que se verifica especial censurabilidade ou perversidade", pois esta tem de ser sempre comprovada.
(14) Acs. STJ de 1997/05/14, proc. 1050/97 e de 1996/11/11, proc. 152/97.