Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
052654
Nº Convencional: JSTJ00008499
Relator: HEITOR MARTINS
Descritores: ACÇÃO DE DESPEJO
POSSE JUDICIAL
RECURSO
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ19460322052654
Data do Acordão: 03/22/1946
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DG IªS 09-04-1946; BOMJ ANO6, 63; RLJ 78,404
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO.
Decisão: UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO 3/1946
Área Temática: DIR PROC CIV - PROC ESP / RECURSOS.
Legislação Nacional: D 10774 DE 1925/05/19 ARTIGO 5.
D 11023 DE 1925/08/15.
L 1825 DE 1925/12/21.
CPC39 ARTIGO 1043 - 1050.
CCIV867 ARTIGO 11.
Sumário :
"O artigo 5 do Decreto n. 10774 e aplicavel as acções de posse ou entrega de predios urbanos em que a oposição tenha por base a subsistencia de um arrendamento".
Decisão Texto Integral: Acordam do Supremo Tribunal de Justiça, secções reunidas.

A, viuva, e seus filhos menores B e C, do Fundão, alegando ter sido registada definitivamente a seu favor a transmissão, por herança, de uma morada de casas de altos e baixos sita na Rua Capelo e Ivens, daquela vila, requereram a posse, ou entrega judicial, do res-do-chão do dito predio, detido, segundo eles, sem titulo legitimo, por D e mulher, visto estes se recusarem a entrega-lo.


Contestaram os requeridos dizendo que habitam o res-do-chão referido como arrendatarios e por ele pagam a renda mensal de 17 escudos, em virtude do contrato verbal celebrado em 19 de Março de 1933 com E, sogra e avo dos requerentes, e que não foi reduzido a escrito por negligencia desta, mantendo-se a mesma situação depois da sua morte, por a ora requerente se recusar a titular o arrendamento, não havendo assim detenção abusiva e antes o uso de um legitimo direito que pretendem manter e assegurar.


Na sua resposta negaram os requerentes que a E houvesse arrendado o res-do-chão de que se trata, sendo por emprestimo que os requeridos começaram a habita-lo, e não obstante recusam-se a sua entrega.
Dizem tambem não ser verdade que aquela E se negasse a reduzir a escrito o pretenso contrato e nem ela podia celebrar um arrendamento valido por ter apenas direito e acção a tres quartas partes do predio. Por sua morte tornou-se impossivel a renovação do arrendamento, por este ser juridicamente inexistente; e e falso que a requerente A houvesse sido solicitada para reduzir tal arrendamento a escrito.


A sentença, considerando o arrendamento nulo, condenou os recorridos a entregar o res-do-chão, e a Relação de Coimbra, em agravo dos requeridos, rejeitou o recurso sem dele tomar conhecimento, por o valaor da acção ser de 1000 escudos e caber, portanto, na alçada do tribunal de comarca, e por não ser aplicavel ao caso o artigo 5 do decreto n. 10774, de 19 de Maio de 1925, esclarecido pelo decreto n. 11023 e confirmado pela lei n. 1825, de 21 de Dezembro do mesmo ano, mas sim o artigo 1049 do Codigo de Processo Civil, o qual não permite recurso em tais condições.
Tambem, por igual motivo, a Relação não admitiu recurso para este Supremo Tribunal, o qual foi, no entanto, mandado receber, mediante o competente recurso de queixa. subindo o agravo, foi-lhe negado provimento pelo acordão de folha 162, de que vem interposto o presente recurso para o tribunal pleno, com fundamento em oposição sobre a mesma questão de direito e no dominio da mesma legislação entre este acordão e os de 25 de Junho de 1941 e 9 de Junho de 1942, recurso que foi mandado seguir pelo acordão de folha.... e que, minutado pelas partes e pelo Ministerio Publico na forma legal, esta em termos de ser apreciado.
O que tudo visto:


Não e duvidosa a oposição alegada entre o acordão recorrido e os que lhe foram opostos, e por isso não ha necessidade de novamente se ventilar esta questão.


Tambem não ha duvida de que a oposição teve lugar no dominio da mesma legislação.
Perante a oposição, cumpre ao tribunal fixar definitivamente a certeza do direito.
O problema reduz-se a saber se o artigo 5 do decreto n. 10774, na parte em que permite recurso ate ao Supremo das sentenças que decretem despejo de predios urbanos, seja qual for o valor da causa, abrange as acções especiais de posse ou entrega de tais bens.
No acordão recorrido decidiu-se pela negativa; os acordãos em confronto consideraram aplicavel o artigo e dele fizeram aplicação.


As razões das duas doutrinas são, em resumo, as seguintes:
Do acordão recorrido as acções de posse tem, no Codigo de Processo Civil (artigos 1043 a 1050), regulamentação especial que exclui a aplicabilidade do artigo 5 do decreto n. 10774. Tal artigo refere-se unicamente ao despejo, e este não tem lugar nas acções de posse ou entrega de bens; e, como lei de excepção que e, não pode o seu preceito aplicar-se por analogia a casos nele não previstos, sendo por isso de observar o disposto no artigo 1049 do referido Codigo, pelo qual so ha recurso, em tais acções, quando o valor delas exceda a alçada do tribunal, o que, no caso vertente, se não verificava.


Nos acordãos opostos reconhece-se que no vigor do texto o citado artigo 5 respeita unicamente as acções de despejo, mas, como as acções de posse tendem a obter a desocupação dos predios, o seu objectivo e alcance vem afinal a ser o mesmo das acções de despejo, e, portanto, o espirito da lei, dominando a interpretação literal, dado o fim que o legislador teve em vista, abrange todas as acções em que, directa ou indirectamente, se ordene a desocupação de predio urbano arrendado.


Esta e, sem duvida, a boa doutrina.


Perante a alarmante crise da habitação em seguida a guerra de 1914, os legisladores dos paises por ela afectados, entre eles o nosso, promulgaram leis de circunstancia, profundamente atentatorias, sem duvida, dos lidimos direitos de propriedade, mas impostas por exigencias de caracter social.
Foi o decreto n. 10774 uma dessas leis e com ela quis o legislador que as sentenças em que se decretassem despejos de predios urbanos fossem, para maior segurança do direito, recorriveis ate ao Supremo Tribunal de Justiça, sem atenção as alçadas.


Ora a posse ou entrega de predios urbanos, quando ordenada, equivale ao despejo, visto que o ocupante tem de sair e entregar o predio livre e desembaraçado.
Assim, se o ocupante e um arrendatario, tanta protecção juridica merece em casos tais como em caso de sentença que decrete o despejo.
Se assim não fosse, frustrar-se-ia o intuito da lei, de acautelar os direitos dos inquilinos, pois os senhorios, impossibilitados do recurso as acções de despejo, servir-se-iam, para os seus fins, dos meios indirectos, como o de acção de posse ou reivindicação ante os quais os inquilinos ficavam sem defesa.
Como e sabido, um dos fins primaciais da interpretação das leis consiste em deduzir dos seus preceitos os principios em que foram baseadas e tirar destes principios todas as necessarias consequencias, porque, como ensina Coviello, a letra da lei e o ponto de partida da interpretação, sendo o seu pensamento o ponto de chegada.


Ja se viu que a letra da lei não favorece, no caso presente, interpretação diferente da adoptada no acordão recorrido, mas, em contrapartida, o seu espirito, tal como emerge da vontade da propria lei e da ordem juridica que a determinou, conduz, sem hesitação, a solução oposta.
Impõe-na o sistema legal vigente em materia de direito de habitação e de inquilinato.
O proprio acordão recorrido o reconhece quando diz:
"Atendendo ao espirito da lei, ou fim que o legislador teve em vista, bem se compreende e justifica uma interpretação ampliativa que abranja as sentenças de quaisquer acções ou processos que visem, directa ou indirectamente, o despejo".


Em face destas considerações de boa hermeneutica, e em que a analogia não entrava, a decisão contraditoria do acordão não se explica, porque os grandes obstaculos que se opuseram a conclusão logica que se impunha - a analogia e o preceito do artigo 1049 do Codigo de Processo Civil - são verdadeiramente inoperantes.


A analogia, inaplicavel em face do artigo 11 do Codigo Civil, não era o meio de interpretação a empregar, mas sim o da interpretação extensiva, como o proprio acordão enunciou, visto não ser ela vedada com respeito as leis de excepção, como e o artigo 5 do decreto n. 10774.
O argumento tirado do artigo 1049 tem simples valor aparente e não devia, por isso, ter concorrido para impedir a decisão aconselhada pela vontade da lei, cujo sentido foi expressamente reconhecido e declarado no acordão em recurso.


Na verdade, porque o Codigo de Processo Civil não curou dos casos previstos nas leis especiais, ressalvadas pelo artigo 3, n. 3, do decreto-lei n. 29950, não colide o citado artigo 1049 com o artigo 5 do decreto n. 10774, interpretado como vem de fazer-se.


O artigo 1049 aplica-se nos casos em que não seja o arrendamento o titulo de oposição a posse ou entrega de bens; o artigo 5 do decreto n. 10774 so se aplica quando se trate de predio urbano arrendado e o opoente seja o arrendatario.
Não ha incompatibilidade alguma, como se ve, entre os dois preceitos, que bem se coordenam e harmonizam, porque e diverso o ambito de cada um deles.
Por tais fundamentos, e concedido provimento ao recurso, revogado o acordão recorrido e o de 2 instancia, por ele confirmado, devendo o processo baixar a Relação para, pelos mesmos juizes, sendo possivel, conhecer do objecto do agravo interposto da sentença certificada a folhas 39 e seguintes.


Custas pelos recorridos.


E como consequencia da doutrina exposta se lavra o seguinte assento:
O artigo 5 do decreto n. 10774 e aplicavel as acções de posse ou entrega de predios urbanos em que a oposição tenha por base a subsistencia de um arrendamento.


Lisboa, 22 de Março de 1946

Heitor Martins - Rocha Ferreira - Oliveira Pires -
- Teixeira Direito - Pedro de Albuquerque - Roberto Martins - Baptista Rodrigues - Julio de Seabra - A. Cruz Alvura - F. Mendonça - Baptista da Silva - Raul Duque - Sampaio e Melo - Magalhães Barros.