Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08S3084
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BRAVO SERRA
Descritores: FAT
PRESTAÇÃO AGRAVADA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: SJ200812100030844
Data do Acordão: 12/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
I - A responsabilidade do Fundo de Acidentes de Trabalho - que veio a suceder ao Fundo de Garantia e Actualização de Pensões – é legalmente desenhada em função da ocorrência de determinadas condições previstas na lei, sendo que, tratando-se de uma responsabilidade garantística ou subsidiária das obrigações decorrentes de um acidente de trabalho que eclodiu no domínio de uma dada legislação e que impendiam, em primeira via, sobre e entidade primitivamente responsável, será essa legislação a regente do caso.
II - O novel regime jurídico que veio a ser consagrado pelo Decreto Lei n.º 185/2007, de 10 de Maio, ao proceder à introdução do n.º 5 do art. 1.º, do Decreto Lei n.º 143/99, de 30 de Abril – nos termos do qual “o FAT responde apenas pelas prestações que seriam devidas caso não tivesse havido actuação culposa” –, por não poder ser perspectivado como tendo tido o desiderato de interpretar anteriores comandos legais, só deve ser considerado para os casos ocorridos após a entrada em vigor do primeiro dos indicados Decretos-Leis.
III - Condenada definitivamente a entidade empregadora a pagar “prestações agravadas” (por virtude da sua actuação culposa) aos beneficiários de um acidente de trabalho ocorrido no âmbito da vigência da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, caso essa entidade venha, posteriormente à condenação, a ser declarada insolvente, o Fundo de Acidentes de Trabalho é responsável pelo pagamento dessas mesmas prestações, não se aplicando ao caso a alteração introduzida no respectivo regime jurídico pelo Decreto Lei n.º 185/2007, de 10 de Maio.
Decisão Texto Integral:
I


1. Por acórdão proferido pela Relação do Porto em 15 de Maio de 2000, confirmado pelo acórdão deste Supremo de 21 de Março de 2001, foi: –

– a co-ré, R... – S... de C..., Ldª, condenada: –
– a pagar à autora, AA, em duodécimos e no seu domicílio, com início em 20 de Junho de 1997, a pensão anual e vitalícia de Esc. 442.723$00 – até esta atingir a idade da reforma, e, a partir dessa idade, ou quando afectada de doença física ou mental que diminuísse sensivelmente a sua capacidade de trabalho, a pensão de Esc. 486.996$00 –, pensão a que acrescia, em Dezembro de cada ano, uma prestação suplementar de igual montante ao duodécimo a pagar nesse mês;
– a pagar a essa autora Esc. 184.418$00, referentes a despesas de funeral, Esc. 700$00, a título de despesas com deslocações ao Tribunal, e Esc. 2.000.000$00, a título de danos não patrimoniais sofridos pela morte de seu marido, vítima de acidente de trabalho, além de juros;
– a pagar ao autor BB, e enquanto o mesmo mantivesse o respectivo direito, nos termos da alínea d) do nº 1 da Base XIX da Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965, a pensão anual, devida a partir de 20 de Junho de 1997, de Esc. 295.148$00, acrescida, em Dezembro de cada ano, de prestação suplementar de igual montante;
– a pagar a este autor a quantia de Esc. 2.000.000$00 a título de dano não patrimonial pela morte de seu pai, além de juros;
– a pagar a ambos os autores Esc. 3.500.000$00, pela perda do direito à vida do sinistrado;
– condenada a co-ré, Companhia de S... T..., S.A., enquanto responsável subsidiária, a pagar àqueles autores as prestações «normais».


Em 10 de Novembro de 2006, a então autora AA, nos autos pendentes pelo Tribunal do Trabalho de Barcelos e nos quais foram tirados os mencionados acórdãos do Tribunal da Relação do Porto e do Supremo Tribunal de Justiça, formulou requerimento em que, após referir que tinha sido declarada a insolvência da executada e que tinha solicitado à co-ré seguradora o pagamento das prestações «normais» e juros, peticionava a notificação do Fundo de Acidentes de Trabalho para “proceder ao pagamento do agravamento das pensões atribuídas à requerente e seu filho menor, juros e tudo o mais a que legalmente” estivesse obrigado.

Determinada a notificação do Fundo de Acidentes de Trabalho, e após vir este a sustentar que o peticionado devia ser indeferido, foi, por despacho de 31 de Maio de 2007, entendido, por um lado, que aquele Fundo era responsável pelo pagamento do «agravamento» das pensões; por outro, que o não era pelo pagamento das compensações por danos não patrimoniais, o qual, aliás, nem sequer estava pedido, não sendo, identicamente, responsável pelo pagamento de juros.

Sequentemente, julgou aquele despacho improcedente a pretensão do Fundo de Acidentes de Trabalho no que respeitava “ao pagamento da quota-parte do agravamento das pensões”, devendo, assim, aquela entidade assumir esse pagamento.

Do assim decidido agravou o Fundo de Acidentes de Trabalho para o Tribunal da Relação do Porto, o qual por acórdão de 7 de Abril de 2008, concedeu provimento ao agravo.


2. Desse acórdão veio recorrer a autora, ora exequente, AA.

A Desembargadora Relatora do Tribunal da Relação do Porto admitiu o recurso interposto, dizendo ser o mesmo de “revista, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo”.

Já neste Supremo Tribunal, o relator entendeu que o recurso se afigurava como o próprio, tendo em vista o que se prescreve no nº 1 do artº 721º do Código de Processo Civil.


3. Rematou a requerente do incidente processado no Tribunal do Trabalho de Barcelos a alegação adrede produzida com o seguinte quadro conclusivo: –

1. É o objecto do presente recurso delimitado à questão de se saber se é de aplicar ao caso em apreço (responsabilidade pelo pagamento do agravamento das pensões atribuídas aos aqui recorrentes tendo em conta a declaração de insolvência da Ré entidade patronal) as alterações introduzidas pelo D.L. nº 185/2007, de 10 de Maio ao D.L. nº 142/99, de 30 de Abril, no que toca à limitação da responsabilidade do FAT.
2. O acórdão recorrido concedeu provimento ao recurso do FAT, concluindo pela aplicação da redacção dada pelo D.L. 185/2007, ao caso em apreço, uma vez que à data do despacho judicial recorrido (e não obstante já se encontrarem verificados todos os pressupostos legais para fazer operar a responsabilidade do FAT – incapacidade económica da entidade patronal objectivamente caracterizada em processo de insolvência) já se encontra[vam] em vigor as referidas alterações, ou seja, esta[va] excluída da responsabilidade do FAT o pagamento de quaisquer agravamentos de pensões.
3. Com a entrada em vigor do referido D.L. nº 185/07, a redacção da alínea a), no nº 1 do artigo 1º do D.L. nº 142/99, de 30/04, mantém-se.
4. Sendo, no entanto, aditado um nº 5 que vem excluir, da responsabilidade do FAT aquilo que até à data lhe competia, ou seja, responder pelo pagamento dos agravamentos das pensões – Artigo 1º, nº 5 do D.L. nº 142/99, de 30/04 com a redacção introduzida pelo D.L. nº 185/2007, de 10/05.
5. Assim, e como muito bem defende o próprio recorrente, o D.L. nº 185/2007, de 10/05, procedeu à alteração, entre outros, do artigo 1º do D.L. 142/99, de 30/04.
6. Dúvidas, portanto, não existem de que e, até, pelo menos, 11 de Maio de 2007, cabia ao FAT (como anteriormente ao FGAP) assegurar o pagamento das prestações por morte, com ou sem agravamentos, posição essa que o próprio FAT não contraria e até aceita.
7. Assim, da leitura das alterações introduzidas pelo D.L. 185/07, de 10 de Maio, bem como, do seu preâmbulo verifica-se que a orientação que presidiu à elaboração daquele normativo, no que à questão ora em análise diz respeito, foi o de ‘limitar (nosso sublinhado) as suas (FAT) responsabilidades às previstas no artigo 296º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto, visando excluir (nosso sublinhado) ... da responsabilidade do FAT o pagamento da parte correspondente ao agravamento das pensões resultante de actuação culposa por parte da entidade empregadora, ... ’.
8. Trata-se, pois, de uma alteração profunda ao regime jurídico do FAT e de suas competências, que não cabe nos estreitos propósitos de uma lei com efeitos retroactivos, ou seja, de uma lei interpretativa, que aliás, para o ser sempre seria necessário que o legislador manifestasse esse particular escopo, por forma clara e inequívoca, o que, entende-se, salvo melhor opinião, não acontece[ ] no caso em apreciação, surpreendendo-se antes, no preciso segmento normativo em questão, uma atitude de ruptura com o direito anterior, designadamente, no que toca ao novo âmbito da competência do FAT.
9. Deste modo, não se vislumbra[m] quaisquer fundamentos que permitam afirmar que o legislador tenha visado uma interpretação autêntica, isto é retroactiva (nº 1 do artigo 13º do Código Civil), do normativo em causa.
10. A interpretação ora defendida, da aplicação do D.L. 185/07, de 10/05 para o futuro, é, pois, no entender dos ora recorrentes, a que melhor se harmoniza com o espírito da lei, e a que impede descriminações de tratamento entre beneficiários/sinistrados de acidentes de trabalho submetidos ao mesmo regime (por exemplo acidentes ocorridos antes de 01/01/2000), como simples consequência do momento em que se verificava e/ou decidia a impossibilidade de pagamento pelos responsáveis pelo acidente de trabalho e consequente responsabilização do FAT perante os beneficiários/sinistrados. Ou seja, com a interpretação ora defendida evita­-se que, dos sinistrados/beneficários por acidentes de trabalho ocorridos antes de 10/05/2007, uns fossem pagos pelo FAT dos agravamentos de pensões e outros não o fossem, unicamente porque tal verificação e/ou decisão ocorreu antes ou depois de tal data.
11. Ao que se acresce o facto de que, no caso em apreço, os pressupostos legais necessários para fazer operar a responsabilidade do FAT ocorreram antes da referida alteração legislativa.
12. Assim, pese embora a argumentação explanada no acórdão recorrido acerca da entrada em vigor do mencionado D.L. nº 185/2007, de 10/05 e ao facto do despacho recorrido ser posterior ao mesmo, face ao teor literal das normas examinadas, ao fim visado pelo legislador (ratio legis) e tendo sobretudo em conta que não erigindo o legislador qualquer critério (designadamente o das datas da decisão judicial, do seu trânsito em julgado ou de qualquer acto processual) para a definição da competência do FAT, é apenas à data do acidente que deverá atender-se, prevalecendo o regime jurídico em vigor à data da ocorrência deste acidente mortal.
13. Assim, perante a sequência cronológica dos factos supra enunciados e em face das regras e princípios gerais estabelecidos, não pode proceder a posição defendida pelo acórdão objecto do presente recurso, sob pena de se ver[em] gravemente prejudicados os direitos dos recorrentes/beneficiários, devendo-se, não obstante a alteração introduzida pelo D.L. nº 185/2007 ao artigo 1º do D.L. nº 142/99, manter o doutamente decidido no despacho recorrido.
14. Posto isto, facilmente se pode concluir que o acórdão recorrido violou a lei substantiva, designadamente o disposto nos artigos 12º, do Código Civil e no artigo 1º do D.L. 142/99, contribuindo para uma denegação da justiça traduzida na errada aplicação e interpretação do direito, não permitindo, assim aos recorrentes obter a necessária e justa reparação pela perda do sinistrado, marido e pai dos ora recorrentes.

Não houve qualquer resposta à alegação da recorrente.

A Ex.ma Magistrada do Ministério Público neste Supremo exarou «parecer» no qual propugnou pela procedência da revista.

Notificado esse «parecer» às partes, nenhuma delas se veio a pronunciar sobre o mesmo.

Corridos os «vistos», cumpre decidir.

II


1. Está em causa, neste recurso, a questão de saber se, condenada definitivamente a entidade empregadora a pagar aos beneficiários de um acidente de trabalho «prestações agravadas», caso essa entidade venha, posteriormente à condenação, a ser declarada insolvente, o Fundo de Acidentes de Trabalho é responsável pelo pagamento dessas mesmas prestações, tendo em conta a alteração introduzida no regime jurídico pelo Decreto-Lei nº 185/2007, de 10 de Maio.

E, como nos autos em presença não é minimamente posta em causa a factualidade consistente na condenação sofrida nos termos descritos no precedente «relatório», bem como a declaração de insolvência da então ré empregadora, não se justifica a enunciação de qualquer matéria de facto relevante para se alcançar a solução jurídica a conferir ao problema em causa.

O acórdão recorrido perfilhou a perspectiva de que, no caso, não era de impor ao Fundo de Acidentes de Trabalho a responsabilidade pelo pagamento das «prestações agravadas».

Fê-lo carreando a seguinte fundamentação: –

(…)
Questão a apreciar.
Da responsabilidade do Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT) pelo pagamento da quota-parte correspondente ao agravamento das pensões.
No despacho recorrido fez-se aplicação do disposto no art. 1º nº 1 al.a) do DL 142/99 de 30.4 com o fundamento de que a lei não distingue entre pensões ‘normal’ e ‘agravada’.
O recorrente considera que a partir de 11.5.2007, e por força do disposto no art. 1º nº 5 do DL 142/99 de 30.4 (com a redacção dada pelo DL 185/2007 de 10.5), não responde pelas pensões ‘agravadas’. Que dizer?
Nos termos do disposto no nº 5 do art. 1º do DL 142/99 de 30.4 – na redacção dada pelo DL 185/2007 –, ‘verificando-se alguma das situações referidas no nº 1 do art. 295º, e sem prejuízo do nº 3 do art. 303º, todos da Lei 99/2003 de 27.8, o FAT responde apenas pelas prestações que seriam devidas caso não tivesse havido actuação culposa’ (as remissões efectuadas para os artigos do C. do Trabalho consideram-se feitas para a Lei 100/97 de 13.9 nos termos constantes do art. 4º do DL 185/2007).
Tal significa que se anteriormente o FAT respondia pelo pagamento das pensões agravadas, assim já não é a partir de 11.5.2007. E ser[ão] de aplicar as novas alterações ao caso em análise?
Defendemos que o DL 142/99 (na redacção dada pelo DL 185/2007) é aplicável. Senão vejamos.
Tendo o acidente ocorrido em 16.6.1997 ao mesmo é aplicável a Lei 2127 de 3.8.1965 e o Decreto 360/71 de 21.8 no que respeita à reparação dos danos emergentes decorrentes do acidente, nomeadamente, quanto à natureza das prestações e modo de cálculo das mesmas.
Mas já não [são] de aplicar aqueles diplomas (ou os vigentes à data do acidente) quando se está a definir a ‘responsabilidade’ do FAT.
Com efeito, o F AT é garante do pagamento das prestações devidas por acidente de trabalho só a partir do momento em que tenha sido proferida decisão judicial no sentido da verificação dos pressupostos da sua responsabilidade.
Ora, quando o Juiz é chamado a verificar da existência de tais pressupostos deve ter em conta a lei vigente à data em que profere a decisão.
E a conclusão a que se chegou não ofende o disposto no art.12º do C.Civil.
Na verdade, com a nova redacção dada ao art. 1º do DL 142/99 de 30.4, o legislador quis regular ‘ex novo’ o conteúdo da responsabilidade do FAT, sem cuidar de qualquer conexão especial com determinado facto. Ou seja, ao caso é aplicável o disposto na última parte do nº 2 do art. 12º do C.Civil. Neste sentido é a posição do Prof. Baptista Machado ao referir que ‘são de aplicação imediata as normas que dispõem directamente sobre o conteúdo das situações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem’ (sobre a aplicação no tempo do Novo Código Civil, 1968, pg.354).
Com efeito, se os sinistrados/beneficiários têm direito a receber determinada pensão (no caso agravada, cabendo o referido pagamento à entidade patronal), o conteúdo dessa obrigação é definida pela Lei em vigor à data do acidente – no caso a Lei 2127. Mas este ‘crédito’ dos sinistrados/beneficiários é garantido pelo FAT se verificados determinados pressupostos. E neste último caso está-se perante o modo de efectivação do direito e não já perante a definição desse mesmo direito.
Em conclusão: à data do despacho judicial que apreciou e determinou a responsabilidade do FAT estava em vigor o DL 142/99 (na redacção dada pelo DL 185/2007), a determinar a sua aplicação ao caso, atento o disposto no art.12º nº 2 última parte do C.Civil.
Por isso não pode o despacho recorrido manter-se.
(…)”


2. O acidente a que os autos se reportam ocorreu no domínio da Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965, prescrevendo-se no nº 1 da sua Base XLV que para assegurar o pagamento das prestações, por incapacidade permanente ou morte, da responsabilidade de entidades insolventes, é constituído na Caixa Nacional de Seguros e Doenças Profissionais um fundo, gerido em conta especial e denominado Fundo de Garantia e Actualização de Pensões.

Esse gizado Fundo veio a ser regulamentado pela Portaria nº 427/77, de 30 de Junho, a qual, no seu nº 1, veio a dispor que a Caixa Nacional de Seguros e Doenças Profissionais, na qualidade de gestora do Fundo de Garantia e Actualização de Pensões, fica autorizada a, por ordem do respectivo tribunal, assegurar o pagamento de pensões resultantes de acidentes de trabalho ou doenças profissionais sempre que, em execução judicial da entidade responsável, se verifique a impossibilidade de pagamento das correspondentes prestações por insuficiência de meios e enquanto se verificar essa impossibilidade.

Na sequência da entrada em vigor da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro –, em cujo artº 39º, nº 1, se voltou a estabelecer que a garantia de pagamento das prestações, por incapacidade permanente ou morte e das indemnizações por incapacidade temporária estabelecidas nos termos da presente lei que não possam ser pagas pela entidade responsável por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, ser[á] assumida[ ] e suportada[ ] por fundo dotado de autonomia administrativa e financeira, a criar por lei, no âmbito dos acidentes de trabalho, nos termos a regulamentar – veio a lume o Decreto-Lei nº 142/99, de 30 de Abril, por via do qual veio a ser criado o Fundo de Acidentes de Trabalho, que, como é referido no exórdio deste diploma, “na sua essência, substitui o Fundo de Actualização de Pensões de Acidentes de Trabalho”, além de assumir “ainda novas competências que lhe” eram cometidas por aquela Lei.

No recurso em apreço, não é discutida a situação jurídica em que se encontra a entidade patronal, sobre a qual recaiu a condenação judicial transitada que lhe impôs a obrigação de pagar aos autores as pensões e indemnizações nos termos da Base XVII da Lei nº 2.127, não sendo também discutido que, não fora a vigência do Decreto-Lei nº 185/2007, o Fundo de Acidentes de Trabalho seria responsabilizado pelo pagamento das prestações «agravadas» em face da declaração de insolvência de que foi alvo a entidade empregadora.

O se que discute, como se deixou dito, é se, ponderando que a então ré seguradora foi condenada no pagamento, a título subsidiário, das prestações, «ditas normais», ao Fundo de Acidentes de Trabalho, perante a declaração de insolvência da então ré empregadora – esta responsabilizada a título «principal» –, incumbe, ou não, por força da alteração introduzida pelo Decreto-Lei nº 185/2007 no artº 1º do Decreto-Lei nº 142/99, o pagamento das pensões que eram devidas pela empregadora declarada insolvente.

Na realidade, a alteração legislativa levada a efeito pelo Decreto-Lei nº 185/2007, e no que agora releva, consistiu na conferência de nova redacção ao artº 1º do Decreto-Lei nº 142/99, introduzindo nele os números 4, 5, 6 e 7, vindo a prescrever-se naquele nº 5 que, verificando-se algumas das situações referidas no n.º 1 do artigo 295.º, e sem prejuízo do n.º 3 do artigo 302.º, todos da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, o FAT responde apenas pelas prestações que seriam devidas caso não tivesse havido actuação culposa.

A normação agora contida nos referidos números 4, 5, 6 e 7 não era surpreendida no domínio da primitiva redacção do Decreto-Lei nº 142/99, vindo o aresto em sindicância a sustentar, em súmula, que, no caso, porque a «responsabilidade» do Fundo de Acidentes de Trabalho foi definida num momento em que já estava em vigor aquela normação – pois que tal definição teria ocorrido com a prolação de “decisão judicial no sentido da verificação dos pressupostos da sua responsabilidade” –, devia a mesma ser considerada aplicável.

Diversa é, como se viu, a postura da ora recorrente.

Vejamos, pois.


3. O problema ora equacionado foi já objecto de veredicto por banda deste Supremo Tribunal.

Ocorreu esse veredicto por intermédio do Acórdão tirado em 10 de Setembro de 2008 na revista nº 6/2008, ainda inédito, também subscrito pelo ora relator.

Aí, a dado passo, foi escrito: –

“(…)

À data em que foi proferida a decisão da 1.ª instância (16 de Janeiro de 2007) e no momento da interposição do recurso de apelação, com a respectiva alegação (9 de Fevereiro de 2007), não tinha, ainda, sido publicado o Decreto-Lei n.º 185/2007, de 10 de Maio, daí que não se colocava o problema que só veio a ser levantado no recurso de revista.

Porque se trata de questão a ajuizar segundo as normas que regulam a problemática da sucessão de leis, a sua apreciação prende-se com a indagação, interpretação e aplicação de regras de direito, matéria que é do conhecimento oficioso, pois que, de harmonia com o disposto no artigo 664.º do Código de Processo Civil, no que concerne, ‘o juiz não está sujeito às alegações das partes’.

Nesta conformidade, não se encontra este Supremo impedido de conhecer da questão em causa.

Face ao texto da primitiva versão do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril, que, omitia qualquer referência à limitação da responsabilidade do FAT às prestações que seriam devidas se não tivesse havido actuação culposa da entidade empregadora (ou seu representante), entendia-se que, verificada a situação de incapacidade económica das entidades responsáveis pela reparação, ao FAT incumbia efectuar o pagamento das prestações a que os lesados tinham direito, contemplando a obrigação de garantir o pagamento, em caso de terem serem fixadas prestações agravadas, os respectivos montantes (assim, o Acórdão deste Supremo de 10 de Abril de 2002, supra referido).

O Decreto-Lei n.º 185/2007, de 10 de Maio, no assumido propósito de alterar ‘o regime jurídico do Fundo dos Acidentes de Trabalho, criado pelo Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril’ (artigo 1.º), aditou, ao artigo 1.º deste último diploma, um inciso com o n.º 5, de acordo com o qual, ‘o FAT responde apenas pelas prestações que seriam devidas caso não tivesse havido actuação culposa’.

Segundo o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 185/2007, de 10 de Maio, o legislador pretendeu ‘excluir da responsabilidade do FAT o pagamento da parte correspondente ao agravamento das pensões resultante de actuação culposa por parte da entidade empregadora’.

Intui-se do modo como o legislador se exprimiu que a norma que, na lei nova, limita a medida da responsabilidade do FAT, não tem a natureza de lei interpretativa, o que, a verificar-se, conduziria, em face do disposto no artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil, à sujeição do caso em apreciação, à regra da limitação da responsabilidade consignada naquele n.º 5.

De acordo com o disposto no artigo 12.º do Código Civil, ‘[a] lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos’ (n.º 1); e ‘[q]uando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor’ (n.º 2).

Sobre a sua aplicação no tempo, o Decreto-Lei n.º 185/2007, de 10 de Maio, estabelece no n.º 1 do artigo 5.º que, ‘[s]em prejuízo do disposto no número seguinte, o presente decreto-lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação’; e, no n.º 2, que ‘[o] disposto no artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril, com a redacção do presente decreto-lei, produz efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2008.

Não contendo a lei nova qualquer disposição de que resulte a sua aplicação retroactiva, nem decorrendo da análise dos termos em que o legislador se expressou o intuito de regular directamente situações jurídicas constituídas antes da sua entrada em vigor, ou seja situações emergentes de acidentes de trabalho anteriormente ocorridos, não pode o novo regime ser observado para o caso dos autos.
(…)”

As considerações extraídas do acórdão de que parte acima se encontra extractada são totalmente transponíveis para o caso sub specie, sendo que, como se depara claro, a circunstância de o acidente dos autos ter eclodido na vigência da Lei nº 2.127, e não no domínio da Lei nº 100/97, em nada altera a postura que se retira daquele aresto, já que o que se torna relevante é, justamente, o facto de o novel regime que veio a ser consagrado pelo Decreto-Lei nº 185/2007, ao proceder à introdução do nº 5 do artº 1º do Decreto-Lei nº 142/99, por não poder ser perspectivado como tendo tido o desiderato de interpretar os anteriores comandos legais, tal como se deparavam no ordenamento jurídico, só dever ser observado para os casos ocorridos após a entrada em vigor do primeiro dos indicados Decretos-Leis, não se devendo olvidar que o Fundo de Acidentes de Trabalho veio o «suceder» ao Fundo de Garantia e Actualização de Pensões.

E não se diga, em contrário, que a responsabilidade do Fundo de Acidentes de Trabalho somente é definida após a prolação de decisão judicial que verifique os pressupostos da respectiva existência.

Na verdade, aquela responsabilidade estava já legalmente «desenhada» em função da ocorrência de determinadas condições que a lei previa, sendo que, tratando-se de uma responsabilidade garantística ou subsidiária das obrigações decorrentes de um acidente de trabalho que eclodiu no domínio de uma dada legislação e que impendiam, em primeira via, sobre a entidade primitivamente responsável, será essa legislação a regente do caso (cfr., neste sentido, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 15 de Novembro de 2006, proferido na Revista nº 3408/2006 e disponível em www.dgsi.pt sob o nº de documento SJ200611150034084).

A decisão judicial – a havê-la (pois que, em abstracto, nada impede que o Fundo de Acidentes de Trabalho, a solicitação de quem se mostrar interessado, possa, desde logo e sem necessidade de proferimento de decisão judicial, assumir a responsabilidade pelo pagamento das pensões, se entender que, no caso, estão reunidos os requisitos para tanto) –, de certo jeito, assume o cariz de uma decisão assertiva da reunião dos pressupostos legais conducentes à responsabilização daquele Fundo ou, mais propriamente, ao tempo do acidente, do Fundo de Garantia e Actualização de Pensões, a que o Fundo de Acidentes de Trabalho «sucedeu».

III


Em face do que se deixa dito, na procedência da revista, revoga-se o acórdão impugnado por sorte, a subsistir a decisão tomada na 1ª instância.

Sem custas, por não serem elas devidas


Lisboa, 10 de Dezembro de 2008

Bravo Serra (Relator)
Mário Pereira
Sousa Peixoto