Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2745/09.0TDLSB-L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: RAUL BORGES
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ACORDÃO DA RELAÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONCURSO DE INFRACÇÕES
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CRIME CONTINUADO
CRIME ÚNICO
CÚMULO JURÍDICO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
REFORMATIO IN PEJUS
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
CULPA
ILICITUDE
DOLO DIRECTO
PLURIOCASIONALIDADE
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
DUPLA CONFORME
LACUNA
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 09/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário : I  -   O recorrente foi condenado, em 1.ª instância, pela prática de 1 crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1, do CP, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período e com regime de prova. Na sequência dos recursos dos assistentes e do MP, a Relação veio a condená-lo como autor da prática de 13 crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1, do CP, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, para cada um dos crimes, e na pena unitária de 6 anos de prisão.

II -  A decisão recorrida não se configura como um acórdão final condenatório, proferido por um tribunal colectivo ou de júri, a aplicar pena de prisão superior a 5 anos (art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP). Contudo, tratando-se de um acórdão final, de uma condenação proferida (se bem que com tais contornos em 1.ª via) pelo Tribunal da Relação, em recurso, aplicando pela primeira vez, pena privativa de liberdade (em resultado do agravamento do juízo substitutivo de unidade criminosa pela visão atomística fundada em pluralidade de resoluções criminosas), é o mesmo recorrível, cumprindo o patamar do limite mínimo da pena aplicada, nos termos conjugados do disposto no art. 432.º, n.º 1, als. b) e c), e no art. 400.º, n.º 1, al. e), a contrario, do CPP.

III - A regra é a de que, sendo vários os preceitos violados, ou sendo o mesmo preceito objecto de plúrimas violações, como é o caso presente, haja uma pluralidade de crimes; esta pluralidade só fica afastada no caso de concurso aparente, ou nas formas de unificação de condutas, seja como crime continuado, ou ainda fora dos quadros do art. 30.º do CP, como único crime, ou como crime de trato sucessivo.

IV - No caso, as condutas praticadas pelo arguido decorreram no período compreendido entre 28-08-2007 e 29-11-2008, tendo os contactos sexuais tido lugar na localidade de L, em casa do arguido, na casa da menor, no cinema, no local de trabalho do arguido e ainda na casa deste situada em M.

V - Nos casos de reiteração criminosa há que distinguir entre a que resulta de uma situação externa que subsiste ou se repete sem que o agente para tal contribua e aquela que resulta de uma situação procurada, provocada ou organizada pelo próprio agente. Neste segundo caso, são razões endógenas relacionadas com a personalidade do agente, que levam à reiteração criminosa, não se reconduzindo no caso a um único desígnio, pois o arguido tomou a iniciativa de assegurar a presença da menor em várias situações.

VI - De facto, na casa situada em M, quando o filho chorava, o arguido podia muito bem ter ido confortar e fazer adormecer o bebé sozinho, mas em vez disso solicitou a companhia da menor B. Na festa do aniversário do seu filho D, quando B se dirigiu para o escritório para utilizar o computador, o arguido segui-a, procurando novo contacto. E nas demais situações o arguido sempre buscou o contacto, a proximidade com a menor, tomando a iniciativa, convidando-a a ir ao cinema, insistindo para que se deslocasse na sua companhia, não podendo tais insistências ser vistas como expressão de resolução unitária.

VII - Em cada actuação o arguido renovou o processo de motivação, o propósito criminoso, estando-se perante resoluções distintas, reformuladas de forma autónoma em relação às anteriores. Essa repetição teve a ver com circunstâncias próprias da personalidade do arguido, não se inibindo de praticar os factos com uma menor com problemas, filha de pessoas amigas do casal, que se visitavam e conviviam, sendo pai adoptivo de 3 crianças. Concluindo, estamos perante um concurso real de crimes de abuso sexual de criança.

VIII - Analisada a matéria de facto dada por provada na 1.ª instância e confirmada pelo acórdão recorrido é, pois, de concluir pela verificação de 12 crimes de abuso sexual de criança.

IX - Ao crime de abuso sexual, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1, do CP, corresponde uma pena de prisão de 1 a 8 anos. Por outro lado, o STJ está vinculado pelo princípio da proibição da reformatio in pejus (art. 409.º do CPP).

X -  No caso há que atender ao elevado grau de ilicitude e também ao intenso dolo, na modalidade de dolo directo. As razões de prevenção geral positiva ou de integração são prementes e muito elevadas, fazendo especialmente sentir neste tipo de infracção, tendo em conta o bem jurídico violado no crime em questão – a autodeterminação sexual de crianças – e impostas pela frequência de condutas deste tipo e do conhecido alarme social e insegurança que estes crimes em geral causam na comunidade, maxime, nos últimos anos, em que estas questões passaram a assumir muito maior visibilidade, justificando resposta punitiva firme, sendo de ter em conta os prejuízos que são susceptíveis de acarretar na formação da personalidade e desenvolvimento afectivo e emocional das vítimas. No que toca à prevenção especial avulta a personalidade do arguido, na forma como actuou ao longo de 15 meses, com absoluta indiferença e insensibilidade pelo valor em causa, não se esgotando na mera prevenção da reincidência. Assim, as penas parcelares fixadas [1 ano e 6 meses de prisão, para cada um dos crimes cometidos] não ofendem as regras de experiência comum, antes são adequadas e proporcionais à defesa do ordenamento jurídico e não ultrapassam a medida da culpa do recorrente, sem prejuízo de se afirmar uma relativa benevolência de tratamento.

XI - Estabelece o art. 77.º, n.º 1, do CP, quanto às regras de punição do concurso de crimes, que «Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente». E nos termos do n.º 2, a moldura aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. No caso em apreço, a moldura da punição do concurso vai de 1 ano e 6 meses de prisão a 18 anos de prisão.

XII - A medida da pena unitária reveste uma especificidade própria: por um lado, está-se perante uma nova moldura penal, mais ampla, abrangente, com maior latitude da atribuída a cada um dos crimes; por outro, tem lugar, porque se trata de uma nova pena, uma pena final, de síntese, correspondente a um novo ilícito (agora global), e a de uma nova culpa (agora outra culpa, ponderada pelos factos conjuntos, em relação), com outra específica fundamentação, que acresce à decorrente do art. 71.º do CP.

XIII - Na consideração dos factos (do conjunto dos vários factos que integram os diversos crimes em efectivo concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto dos crimes em concurso ficcionasse como um todo único, total, globalizado, que deve ter em conta a existência, ou não, de ligações, conexões, ou pontos de contacto, entre as diversas actuações, e, na afirmativa, o tipo de ligação, conexão, ou contacto, que se verifique entre os factos em concurso.
XIV - Por sua vez, o conjunto de ilícitos traduz-se em condutas violadoras da liberdade de auto-determinação sexual, do direito da menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso. Esta ilicitude de grau elevado manifesta-se, também, no número, na natureza e gravidade dos crimes praticados, nos bens jurídicos violados na área dos direitos de personalidade da menor abusada.
XV - Há que ter em conta, também, o elevado alarme social que este tipo de actuações criminosas suscita na comunidade, com repercussões altamente negativas também em sede de prevenção especial.
XVI - A pena unitária tem de corresponder à valoração, no seu conjunto e interconexão, dos factos e personalidade do arguido, afigurando-se que no caso a pluralidade emerge de pluriocasionalidade. Neste contexto, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do arguido, tendo em conta a moldura do concurso vai de 1 ano e 6 meses de prisão a 18 anos de prisão, atendendo ao conjunto dos factos, a conexão entre eles, com similitude do modo de execução de conduta, período temporal da actuação, natureza dos bens e montantes dos valores apropriados, é de concluir por um elevado grau de demérito da conduta do recorrente, não obstante a redução de 1 dos crimes, não se mostra necessária a intervenção correctiva do STJ no sentido de fazer incidir um maior factor de compressão, mantendo-se a pena conjunta fixada de 6 anos de prisão.

XVII - Em matéria de pedido cível, o tribunal de 1.ª instância condenou o recorrente a pagar à demandante a quantia de € 25 000, acrescida de juros, à taxa legal, desde 25-05-2011 e até integral pagamento, decisão que foi integralmente confirmada, sem qualquer voto de vencido, pelo acórdão da Relação de 16-02-2012.

XVIII - A Lei 48/2007, de 29-08, introduziu o n.º 3 do art. 400.º do CPP, alterando o paradigma do sistema recursório, a nível da recorribilidade autónoma da decisão cível, a bem da igualdade de todos os recorrentes em matéria cível, dentro e fora do processo penal.

XIX - A chamada «dupla conforme» está prevista apenas no recurso da matéria criminal no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, nada se encontrando previsto para as situações de dupla conforme que se verifique na acção enxertada. A solução mais plausível passará pela aplicação subsidiária do limite da dupla conforme, sendo de considerar que a viabilidade de recurso de decisão do pedido cível enxertado para o STJ encontra-se ainda subordinada ao regime da lei processual civil, ou seja, à regra do n.º 3 do art. 721.º do CPC, aplicável por força do art. 4.º do CPP.

XX - Nestes termos, tendo o pedido de indemnização cível sido apresentado em 12-07-2010, verificando-se dupla conforme total, e porque não está em causa a aplicação do regime excepcional do art. 721.º-A do CPC, o recurso não é admissível, e por isso não deveria ter sido admitido em face do disposto no art. 414.º, n.º 2, CPP, sendo que a decisão que admite o recurso (ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida) não vincula o tribunal superior – cf. art. 414.º, n.º 3, do CPP.

XXI - O recurso nesta parte é, pois, de rejeitar, nos termos dos arts. 400.º, n.º 3, e 420.º, n.º 1, al. b), do CPP, e 721.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi do art. 4.º do CPP.

Decisão Texto Integral:     No âmbito do processo comum com intervenção de Tribunal Colectivo n.º 2745/09.0TDLSB, da 2.ª Vara Criminal de Lisboa, foi submetido a julgamento o arguido AA, natural da freguesia de Santo Contestável, concelho de Lisboa, nascido em 15 de Agosto de 1962, casado, empresário, residente na R… J… C…, n.º XXXX, XX.º A, Lisboa.
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     Foi-lhe imputada pelo Ministério Público a autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de treze crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1 e 30.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção anterior à Lei 59/2007, de 4 de Setembro e, actualmente, pelos artigos 171.º, n.º 1 e 30.º, n.º 1, doCódigo Penal, e um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 3, alínea b) e 30.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, e, actualmente, pelos artigos 171.º, n.º 3, alínea b) e 30.º, n.º 1, do Código Penal (qualificação jurídica alterada na audiência de julgamento para um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal).
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     Foi admitida a constituição como assistentes de BB e CC, na qualidade de legais representantes (pais) da menor DD.
    Os assistentes, em representação da citada sua filha menor, deduziram acusação contra o arguido, imputando-lhe a autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de doze crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1 e 30.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção anterior à Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro e, actualmente pelos artigos 171.º, n.º 1 e 30.º, n.º 1, do Código Penal, e de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 2 e 30.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, e, actualmente pelos artigos 171.º, n.º 2 e 30.º, n.º 1, do Código Penal e ainda de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 3, alínea b) e 30.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n. 59/2007 e, actualmente, pelos artigos 171.º, n.º 3, alínea b) e 30.º, n.º 1, do Código Penal.
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     DD, conforme petição de fls. 262 a 270, deduziu, representada por seus pais, pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia indemnizatória de € 40.000,00 pelos danos não patrimoniais pela mesma sofridos.
                                                                                       *******       
     Realizado o julgamento, de acordo com a acta de leitura de acórdão, de 25-05-2011, constante de fls. 645, foi proferido o seguinte despacho:
     “Produzida a prova e feita a subsunção jurídica dos factos entende o Tribunal Colectivo, diferentemente do que consta da acusação, que o arguido praticou um (1) crime de Abuso Sexual de Crianças, p. e p. pelo artº. 171.º, n.º 2 do C. Penal, o que se comunica nos termos e para os efeitos do disposto no artº. 358.º nº s 1 e 3 do C.P.P.”.
     Mais consta da dita acta de leitura que “Em seguida, dada a palavra, sucessivamente ao Digno Procurador da República, e aos Distintos Advogados presentes, pelos mesmos foi dito, nada terem a opor nem a requerer”, tendo em seguida sido lido o acórdão que antecede tal acta.
                                                           *******     
     Por acórdão do Colectivo da 2.ª Vara Criminal de Lisboa, datado de 25 de Maio de 2011, constante de fls. 591 a 644, do 3.º volume, com declaração de depósito a condizer com a data marcada - fls. 647 - foi deliberado:
I - Condenar o arguido pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período e com regime de prova, impondo as seguintes condições:
- o acompanhamento médico e psicológico, designadamente na consulta de sexologia do departamento de psicoterapia comportamental do Hospital Júlio de Matos, como vem indicado no relatório social, reforçando assim o seu apoio psicológico mensal;
- proibir o contacto por qualquer forma, por si ou por interposta pessoa com a ofendida DD;
- entregar no prazo de três meses, após o trânsito em julgado, a quantia de € 1.000,00 à Sociedade Portuguesa para o Estudo de Crianças Abusadas e Negligenciadas (SPECAN) e da quantia igualmente de € 1.000,00 para a Associação Portuguesa de Síndrome de Asperger (APSA).
II - Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil e, consequentemente, condenar o demandado/arguido a pagar à demandante DD, a quantia de € 25.000,00, acrescida de juros, à taxa legal, desde a presente data até integral pagamento.
                                                                                    *******
        Inconformados com o assim deliberado, numa tripla manifestação de divergência com a decisão, recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, o arguido (conforme fls. 652 a 669), o Ministério Público (de fls. 670 a 715) e os assistentes (a fls. 721 a 755, e em original, de fls. 760 a 794).
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    Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 9.ª Secção, de 16 de Fevereiro de 2012, constante de fls. 882 a 939, foi deliberado o seguinte:

«Negar provimento ao recurso do arguido;

Dar provimento parcial ao recurso do M.º P.º;

Dar provimento parcial ao recurso dos assistentes;

Condenar o arguido como autor da prática de 13 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p., pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão, por cada um dos crimes e, na pena unitária de seis anos de prisão;

Revogar parcialmente a decisão da 1.ª instância, no que se refere à condenação do arguido - à qualificação jurídica dos factos;

Manter a decisão quanto à parte da sentença cível, confirmando-se o ali decidido».
                                        
                                                          *******

      Face à deliberação do Tribunal da Relação de Lisboa, o arguido veio, a fls. 945, interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, com a motivação constante de fls. 946 a 958, e rematando com as seguintes conclusões (em transcrição integral):

1º) O douto Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão sob recurso, alterou a qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido/recorrente para treze crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art° 171°, n° 1 do Código Penal e, pela prática dos mesmos, condenou-o na pena única de seis anos de prisão;

2º) O recorrente havia sido condenado em 1.ª Instância pela prática um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art° 171°, n° 2, do Código Penal, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período com regime de prova, com as condições de acompanhamento médico e psicológico, nomeadamente na consulta de sexologia do departamento de psicoterapia comportamental do Hospital Júlio de Matos, de proibição de contacto por qualquer forma, por si ou por interposta pessoa com a ofendida, de entrega da quantia de € 1.000,00 à SPECAN e de igual quantia à APSA;

3º) O presente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça è admissível face à mencionada alteração da qualificação jurídica operada no Acórdão do douto Tribunal da Relação, a qual constitui uma decisão nova, alicerçada em qualificação jurídica diferente daquela que a 1.ª Instância entendeu como relevante para a decisão que havia tomado;

4º) Como tal, até por imperativos de natureza constitucional - art° 32° da Constituição da República Portuguesa - ao arguido não lhe pode ser negada a possibilidade de recorrer, sendo-lhe também possível fazê-lo, atendendo ao montante do pedido formulado, relativamente à parte cível da condenação;

5º) Os Venerandos Desembargadores do Tribunal “a quo” entenderam que, no caso, existiriam várias resoluções criminosas que se traduziram no facto de o arguido em dias, horas e locais diferentes ter accionado e renovado a sua vontade para praticar o crime sexual e repeti-lo;

6º) Foi afastada a possibilidade de se tratar de um crime continuado, uma vez que se entendeu que não existe uma diminuição da culpa no caso do abuso sexual de criança por actos que se sucedem no tempo, bem como, pelo facto do sucesso da primeira actuação e das seguintes não poder integrar a diminuição da culpa, agindo o agente determinado pela vontade de satisfazer os seus instintos libidinosos, para o que se aproveitou das situações mais favoráveis para esse efeito;

7º) Na decisão sob recurso, relativamente à questão do crime continuado, também se afasta tal tese, com base no disposto na Lei n° 40/2010, de 3 de Setembro, de que resultou o fim da figura do crime continuado que atinja bens essencialmente pessoais, mesmo quando a vítima dos diversos actos seja a mesma pessoa;

8º) Tal alteração legislativa é posterior às datas da prática dos factos pelo arguido, pelo que, não pode ser atendida para fundamentar a existência de concurso efectivo de crimes;

9º) A factualidade assente não se subsume no concurso de crimes, pois que, os comportamentos do recorrente verificaram-se, sem excepções, em ocasiões festivas ou de convívio, tendo este sido movido por uma só intenção, repetindo as práticas sempre que surgiam oportunidades para tal;

10°) A determinação do número de intenções criminosas é questão do foro subjectivo, que se traduz em averiguar, à luz do critério legal e por via da análise dos factos provados passíveis de juízos de censura, se estes podem e devem ser considerados como fruto de uma só intenção estruturada ou se, pelo contrário, traduzem uma renovação da intenção e vontade de agir;

11°) No caso, a unidade de resolução criminosa é compatível com a pluralidade de sentidos autónomos de ilícito dentro do comportamento global, havendo continuidade temporal entre os actos praticados;

12°) Além da demais prova que impõe tal entendimento, das declarações da própria ofendida pode retirar-se a existência de apenas uma resolução criminosa, designadamente quando esta refere que o recorrente “fazia isto todas as vezes que eu ia lá a casa dele e que ele também lá ia à minha “;

13°) Outras declarações da ofendida que, também, fundamentam a existência de apenas uma resolução criminosa, são aquelas em que se diz: “não sei quantas vezes, perdi a conta, sempre que estávamos juntos ele fazia isto”;

14°) Da matéria de facto provada, designadamente, a constante dos pontos 16, 20, 22, 23, 26, 38, 39, 41, 43 e 46 do Acórdão sob recurso e, das declarações da ofendida, verifica-se existir uma homogeneidade na forma de execução da actividade criminosa, o que também é demonstrativo da existência de uma única intenção criminosa;

15°) Não existe dispersão espacial significativa, tendo as condutas ocorrido na casa da ofendida, na casa do recorrente e na casa que este possuía na B..., ou seja, em locais habitualmente frequentados pelo arguido, respectiva família e pela ofendida e sua família;

16°) A dispersão temporal das condutas não justifica, só por si, o afastamento da unicidade da resolução criminosa, uma vez que, como decorre da matéria provada, designadamente, a constante dos pontos 6, 11, 13, 19, 21, 24, 27, 28, 30, 32 e 33 do Acórdão sob recurso, os períodos das práticas coincidem com momentos de férias escolares ou de convívios, essencialmente, de fim de semana, entre as famílias do recorrente e da ofendida;

17°) As condutas homogéneas do recorrente concentraram-se no tempo, nos momentos em que o arguido conseguia estar junto da ofendida e no espaço, pelo que, não traduziram qualquer renovação da intenção criminosa, mas sim, a manutenção de uma mesma resolução inicial;

18°) A existência da resolução unitária também se depreende dos factos respeitantes às insistências do recorrente para que fosse acompanhado pela DD nas deslocações à B...;

19°) A matéria provada demonstra a existência de uma só actuação determinada por um único desígnio criminoso, destinado a atingir um mesmo objectivo, pois que, sempre que o arguido tinha a possibilidade de encontrar a ofendida, durante o período temporal em causa nos autos e nos locais aí referidos, tinha como objectivo conseguir o desiderato que procurava;

20°) Não ocorreu renovação da resolução criminosa, antes se verificando uma única resolução, traduzida em práticas semelhantes e balizadas no tempo e no espaço;

21º) No Acórdão sob recurso, a determinação do número de infracções apoia-se nos pontos 16, 20, 22, 23, 25, 26, 36, 38, 39, 41, 43, 46, 52 a 56 da matéria de facto, concluindo-se pela prática de 13 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. no n° 1 do art° 171° do Código Penal;

22°) Tal matéria de facto não permite concluir pela prática do indicado número de infracções, daí decorrendo uma menor quantidade de crimes;

23°) Consequentemente, nunca poderia o recorrente, mesmo admitindo, o que não se faz, a qualificação jurídica constante no Acórdão sob recurso, ser condenado pela prática dos referidos 13 crimes;

24°) A determinação do número de crimes nos termos e fundamentos em que foi efectuada pelo douto Tribunal da Relação, implica insuficiência na matéria de facto para suportar o enquadramento jurídico-penal realizado, situação essa enquadrável no disposto no art° 410°, n° 2 al. a) do Código de Processo Penal;

25°) Assim, na eventualidade de prevalecer a qualificação jurídica operada na decisão sob recurso, terão os autos de ser reenviados para novo julgamento;

26°) A conduta do recorrente enquadra a prática de um único crime, o previsto no art° 171° n° 1 do Código Penal, sendo manifestamente exagerada a pena de seis anos de prisão que lhe foi aplicada;

27°) Tal pena, sobrevaloriza as exigências de prevenção geral, face às exigências de prevenção especial, uma vez que, o facto do arguido ter confessado parcialmente os factos, de não ter antecedentes criminais, se encontrar de alguma forma repeso, estar pessoal, familiar (casado e com três filhos), profissional e socialmente enquadrado, tendo apoio psicológico, actualmente, com a periodicidade mensal, são aspectos factuais provados que foram desconsiderados face às exigências de prevenção geral;

28°) Face aos condicionalismos pessoais, sociais, profissionais e familiares do arguido, sem desconsiderar a gravidade dos factos por este praticados, verifica-se que o receio da aplicação de uma pena efectiva de prisão é uma injunção suficientemente forte para garantir que os comportamentos em causa não serão repetidos, pelo que, serão satisfeitas as necessidades de punição com a aplicação de uma pena única de prisão inferior a 5 anos, suspensa na sua aplicação com sujeição a regime de prova, nos termos que vierem a ser entendidos por convenientes;

29°) O recorrente sabe que tem de indemnizar os danos não patrimoniais decorrentes da sua conduta;

30°) A determinação do valor desses danos fundamentou-se, também, na situação económica do recorrente, encontrando-se provado que este tem proventos irregulares auferindo o salário mínimo nacional, fazendo face às despesas, também, com o produto da venda da sua participação na J…;

31°) Face aos fundamentos da condenação cível na parte em que tomam em consideração a situação económica do arguido, o montante indemnizatório fixado afigura-se como desproporcionado, devendo ser reduzido;

32°) Decidindo, como decidiu, o Tribunal “a quo”, no Acórdão sob recurso violou, entre outras, a norma constante do art°. 30° n° 1 do Código Penal na redacção aplicável aos factos.

       No provimento do recurso, pede a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra, que o condene pela prática de um crime, p. e p. pelo actual artigo 171°, n.º 1, do Código Penal, numa “pena única” (sic) de prisão inferior a 5 anos, suspensa na sua aplicação, com sujeição a regime de prova, nos termos que vierem a ser entendidos por convenientes, devendo, ainda, ser reduzida a quantia indemnizatória arbitrada à demandante;

      Caso se decida pela manutenção da qualificação jurídica constante do acórdão sob recurso, deverão os autos ser reenviados para novo julgamento destinado a apurar o número de crimes praticado.

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      O Exmo. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Lisboa respondeu ao recurso, a fls. 963/4, pronunciando-se pela improcedência do mesmo e pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.

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     Os assistentes (e Pais, representantes da demandante civil ofendida), responderam ao recurso, conforme fls. 965 a 1001, repetido de fls. 1004 a 1042, e finalmente, em original, de fls. 1043 a 1081, apresentando as seguintes conclusões (igualmente em transcrição integral):

1. Inconformado com o douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos do qual se revogou parcialmente o douto Acórdão proferido pelo Tribunal de 1.ª instância no que respeita à matéria penal e se confirmou a decisão na parte respeitante à matéria civil, vem interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, sustentando a sua admissibilidade na alteração da qualificação jurídica que, no seu entender, deu origem a uma decisão nova e que até por imperativos de natureza constitucional - art.° 32.° da CRP - não lhe podia ser negada a possibilidade de recorre.

2. Nos presentes autos foi deduzida Acusação pelo Ministério Público nos termos da qual se requereu o seu julgamento pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de 13 (treze) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1 e 30.º, n.º 1 do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 04.09 e actualmente p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 30.º, n.º 1 do Código Penal e de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 2, al. b) e 30.º, n.º 1 do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 04.09 e, actualmente, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 3, al. b) e 30.º, n.º 1 do Código Penal.

3. O Tribunal de 1.ª Instância procedeu à alteração da qualificação jurídica dos factos praticados pelo arguido, considerando que os mesmos integravam um crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art.º 171.º, n.º 2 do Código Penal, por considerar que se verificava uma única resolução criminosa e, em conformidade, condenou-o na pena de 4 anos e 6 meses, suspensa na sua execução e sujeita a regime de prova e injunções ali determinadas, bem como no pagamento à menor de uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, no montante de € 25.000,00, acrescidos dos respectivos juros contados desde a data da decisão condenatória e até integral pagamento.

4. Por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.02.2012, em provimento parcial dos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelos Assistentes, decidiu-se que dos factos provados decorre a existência de um concurso efectivo de crimes, nesse sentido revogando parcialmente a decisão da l.ª instância e, em conformidade, decidiu condenar o arguido pela prática de 13 crimes de abuso sexual de crianças, p.p. pelo artigo 171.°, n.° 1 do C.P., na pena de um ano e seis meses de prisão por cada um dos crimes e na pena unitária de seis anos de prisão, mantendo integralmente a decisão na parte relativa à condenação na matéria cível.

5. O artigo 399.° do CPP, consagra o princípio geral da recorribilidade dos acórdãos, sentenças e despachos, cujas excepções estão perfeitamente delimitadas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 400.° do mesmo diploma legal.

6. No caso concreto a aferição da admissibilidade do recurso na vertente da matéria penal há-de efectuar-se pela análise conjugada do disposto na al. f), do n.° 1 do art.° 400.°, - termos da qual não é admissível recurso “f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos” - e da al. b) do n.° 1, do art.° 432.°, n.° 1, al. b), do CPP, na qual se estipula que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça “b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.

7. Das disposições legais acima referidas, decorre que os critérios de admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça: a inexistência de dupla conforme e a aplicação de uma pena de prisão superior a 8 anos.

8. Nenhum dos critérios está preenchido no caso dos presentes autos.

9. No que concerne à conformidade das decisões proferidas pelo tribunal recorrido e pelo tribunal de recurso, o sentido da exigência contida na primeira parte da al. f), do n.° 1, do artigo 400.º do CPP, é o da identidade das decisões proferidas, traduzida na convergência das decisões ao ponto de se poder afirmar que a “decisão de recurso confirma a consistência que assiste à decisão recorrida”.

10. A confirmação da decisão para os efeitos do disposto naquela alínea, afere-se, pois, pelo sentido das decisões proferidas, sendo que a divergência quanto ao quantum punitivo não afasta a exigência de conformidade das decisões proferidas, não implicando, pois, a imposição da mesma pena,

11. Ora, a decisão proferida em 1.ª instância foi uma decisão condenatória do arguido, o mesmo se verificando no que respeita à decisão proferida pelo Tribunal da Relação, pelo que pode afirmar-se a existência de uma convergência do sentido de ambas as decisões e, em consequência, que se verifica uma confirmação pelo Tribunal da Relação da decisão proferida pela 1.ª instância.

12. Por outro lado, de acordo com o critério da pena aplicada, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça é admissível, nos termos dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, apenas quando a pena ou a pena única fixada na sequência do cúmulo jurídico efectuado, seja superior a 8 anos de prisão.

13. No caso dos autos, a decisão do Tribunal da Relação aplicou ao arguido uma pena de prisão de 6 anos, ou seja, aquém do limite admitido para a sua sindicância pelo Supremo Tribunal de Justiça.

14. Da conjugação do disposto no art.º 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), ambos do CPP, decorre a inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação nos presentes autos porquanto, para além da confirmação da decisão de primeira instância, tal decisão condenatória aplicou ao arguido uma pena de prisão de 6 anos, ou seja, não superior a 8 anos.

15. A diferente qualificação jurídica efectuada pelo Tribunal da Relação não se traduz numa nova decisão.

16. A decisão de alterar a qualificação jurídico-penal e determinar a aplicação de uma pena única e efectiva de prisão foi proferida em sede de recurso, no âmbito do conhecimento dos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelos assistentes, ambos propugnando pela alteração da qualificação jurídica dos factos dados como provados e pela aplicação de uma pena efectiva de prisão.

17. O recorrente não foi, pois, “surpreendido” pela decisão proferida pelo Tribunal da Relação que, em provimento parcial dos recursos do MP e dos Assistentes, considerou existir um concurso efectivo de infracções e condenou o arguido na pena única de 6 (seis) anos de prisão, 1.ª instância, sabendo que essa era uma das possíveis decisões a proferir pelo Tribunal “ad quem” e tendo tido oportunidade de apresentar a sua defesa sobre tais questões nas respostas às motivações apresentadas pelo Ministério Público e pelos Assistentes, como efectivamente apresentou.

18. Mais, a qualificação jurídica efectuada pelo Tribunal da Relação na decisão que proferiu, é a que já constava da Acusação deduzida pelo Ministério Público.

19. O arguido teve, pois, oportunidade de apresentar a sua defesa em relação aos factos e enquadramento jurídico-penal constantes da Acusação, quer em sede de 1.ª instância, quer em sede de resposta às motivações de recurso apresentadas pelo Ministério Público e pelos Assistentes, o que efectivamente fez.

20. Foi plenamente garantido ao arguido o duplo grau de jurisdição tal como consagrado no n.° 1 do art.° 32.° da CRP e foi precisamente pela efectivação desse duplo grau de jurisdição que foi proferida a decisão que pretende ver reapreciada por este Supremo Tribunal, mas o direito ao recurso não garante um triplo grau de jurisdição.

21. É pois inadmissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão condenatório proferido no que respeita à matéria penal, pelo que não deve ser admitido.

22. O arguido e demandado civil, em procedimento parcial do pedido de indemnização civil contra ele formulado, foi condenado pelo Tribunal de 1.ª instância no pagamento à Assistente/Demandante, de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), acrescida de juros contabilizados a partir da data da prolação do Acórdão condenatório, a titulo de indemnização por danos não patrimoniais.

23. O Tribunal da Relação manteve a decisão proferida quanto à matéria cível, confirmando-a integralmente e sem qualquer voto de vencido.

24. Verifica-se pois a existência de dupla conforme quanto à decisão proferida no âmbito da matéria cível o que, por aplicação do disposto no n.º 3 do art.º 721.º do CPC, determina a irrecorribilidade da decisão proferida nesta parte, em razão do que o recurso não deve ser admitido também nesta parte.

25. Nos termos do Acórdão recorrido decidiu-se revogar parcialmente a decisão proferida em primeira instância relativamente à qualificação dos factos provados, por se ter considerado que as condutas do arguido integram um concurso efectivo de crimes, condenando-se o arguido em conformidade.

26. O arguido discorda da qualificação jurídica operada na decisão proferida, considerando que a factualidade assente não se subsume ao concurso de crimes, porquanto não se verificou uma renovação da resolução criminosa, antes se verificando uma única resolução traduzida em práticas semelhantes e balizada no tempo e no espaço;

27. Nos termos do disposto no art.º 30.º, n.º 1 do Código Penal verifica-se a existência de um concurso de crimes quando, ainda que esteja em causa o mesmo tipo de ilícito e se trate da mesma vítima, decorra da existência de momentos temporais distintos em que foram praticadas as condutas que o arguido reformulou o seu desígnio criminoso, surgindo cada um desses desígnios de forma autónoma em relação a cada um dos restantes propósitos criminosos.

28. Sempre que a repetição da conduta criminosa seja devida, a quaisquer razões de natureza exógena, que ocorram independentemente de qualquer solicitação externa ou que decorra de oportunidade provocada ou procurada pelo próprio agente, haverá pluralidade de crimes.

29. Decorrendo do circunstancialismo dado como provado que os factos ocorreram em locais e momentos temporais distintos, em decorrência de oportunidades procuradas ou provocadas pelo arguido, verifica-se existirem tantas resoluções criminosas quantas as condutas que o arguido praticou sobre a menor nos vários locais identificados e no período compreendido entre 28.08.2007 e 29.11.2008, consequentemente, uma pluralidade de crimes e não um único processo deliberativo, uma única resolução criminosa.

30. A actuação do arguido foi sempre determinada para a realização de um mesmo objectivo: a satisfação dos seus impulsos sexuais e instintos libidinosos. Mas trata-se aqui da motivação do arguido - prática de actos sexuais sobre a menor para satisfação dos seus impulsos sexuais e instintos libidinosos -, realidade que não se confunde com a resolução criminosa.

31. Demonstrando as reiterações das condutas do arguido firmeza e persistência no propósito criminoso e uma gravidade maior da sua culpa, as mesmas não se compaginam, pois, com a pretendida existência de uma única intenção, um único propósito, uma única resolução criminosa caracterizada pela execução prolongada no tempo.

32. Sempre que se comprove a existência de reiteração, a defesa da tese de uma única resolução criminosa e de consequente punição do arguido por um só crime - pelo crime de maior gravidade, nos termos do art. 79.°, n.° 1 do CP - como foi defendido na decisão de 1.ª instância e agora de novo na motivação do arguido, choca profundamente o sentimento jurídico, e carece de qualquer apoio legal e jurisprudencial, sendo pura e simplesmente de rejeitar.

33. Tais resoluções criminosas também não são reconduzíveis à figura do crime continuado por não verificação dos seus pressupostos, inexistindo o condicionalismo ou situação exterior que facilite ao agente a prática dos actos descritos nos factos provados de forma a contribuir para uma diminuição considerável da sua culpa,

34. O arguido praticou pois, na forma consumada e em concurso efectivo, cada um dos crimes dos 13 (treze) crimes de abuso sexual de crianças por que foi condenado.

35. Subsidiariamente, vem o arguido afirmar que a matéria de facto provada não permite concluir pela prática de treze crimes, concluindo pela insuficiência da matéria de facto para suportar o enquadramento jurídico-penal efectuado, o que faz nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 410.º, n.º 2, al. a) do C.P.P., pugnando pelo reenvio dos autos para novo julgamento;

36. É manifesta a insuficiência e falta de fundamentação do alegado pelo recorrente nesta parte, não lhe assistindo qualquer razão, porquanto a factualidade provada comporta a decisão proferida quanto ao número de crimes praticados pelo arguido, não se verificando qualquer insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, não padecendo a decisão proferida do vício da al. a) do n.° 2 do artigo 410.° do CPP, pelo que deve improceder o recurso também nesta parte.

37. O recorrente discorda ainda da pena que lhe foi aplicada, pugnando por pena de prisão inferior a 5 (cinco) anos, qualquer que seja a qualificação jurídica que venha a ser efectuada, em qualquer dos casos devendo ser suspensa na sua execução, com sujeição a regime de prova nos termos que vierem a ser entendidos por suficientes, considerando que tal se afigura suficiente para assegurar a punição dos comportamentos e garantir que estes não se voltem a repetir.

38. Decorre da decisão sob recurso que o arguido praticou 13 (treze) crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelos arts. 172.°, n.° 1 e 30.°, n.° 1 do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.° 59/2007, de 04.09 e, actualmente pelos artigos 171.°, n.° 1 e 30.°, n.° 1 do Código Penal, com uma moldura penal abstracta de 1 a 8 anos de prisão.

39. Atendendo às molduras penais que são abstractamente aplicáveis a tais ilícitos penais, ao estipulado nos art.ºos 40.º, n.°s 1 e 2 e 71.º, n.ºs 1 e 2 do CP., bem como ainda à elevada a ilicitude dos factos e culpa do agente, intensa, às consequências das condutas do arguido - revelando-se de grande gravidade para a vitima - a motivação do arguido - satisfação dos seus impulsos sexuais e instintos libinosos -, à indiferença perante os danos que causava à menor, à confissão mitigada, à ausência de um efectivo arrependimento e de uma atitude tendente à reparação das consequências dos seus actos, à pendência de processo crime, com condenação por crimes da mesma natureza, praticados em outras três menores no período compreendido entre 2004 e 2009, é inevitável concluir no sentido de que são elevadas as exigências de prevenção geral e de prevenção especial.

40. Face ao exposto, a pena concreta por cada um dos crimes cometidos, fixada em 1 ano e seis meses de prisão, ao situar-se “um pouco acima do limite mínimo da respectiva moldura abstracta” só pode ter-se como benévola.

41. Observando as regras de punição do concurso estabelecidas no art. 77°, n.º 1 e 2 do C.P., a pena aplicável situa-se entre o mínimo de 1 ano e 6 meses de prisão anos e o máximo de 19 e 6 meses anos de prisão, também a pena única de 6 anos de prisão aplicada ao arguido só peca por defeito, pelo que também nesta parte deve manter-se a decisão proferida.

42. Atenta a medida da pena única que se entende dever ser aplicada, não é de colocar a questão da suspensão da execução da pena, por falta de verificação do pressuposto formal consagrado no art.º 50.º n.º 1 do CP. do limite máximo até onde é possível suscitar-se a aplicação de tal pena de substituição.

43. Contudo, prevenindo a hipótese de eventual procedência do recurso (o que só por cautela de patrocínio se admite), pelo menos no que respeita à fixação de uma pena única inferior a 5 anos, importa afirmar que a simples censura do facto e a ameaça daquela pena não se afiguram como bastantes para afastar o arguido da criminalidade, satisfazendo simultaneamente as necessidades de reprovação e prevenção do crime, pelo que não deve ser suspensa na sua execução.

44. A decisão recorrida manteve a decisão de condenação do arguido/demandado na indemnização dos danos não patrimoniais sofridos pela menor, considerando adequado o valor de 25.000,00 €, perante os critérios e fundamentos constantes da decisão proferida em 1.ª instância, que valorou e apreciou criteriosa e ponderadamente, em conformidade com os factos carreados para os autos, os danos causados à vítima das condutas ilícitas praticadas pelo arguido.

45. Conforme se consignou na decisão recorrida, o arguido não apresentou argumentação válida para a conclusão da desproporcionalidade alegada.

46. Face ao exposto deve manter-se a decisão proferida também nesta parte.

      A final, defendem dever o recurso interposto pelo arguido ser rejeitado por irrecorribilidade da decisão proferida, ou, caso assim se não entenda, deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.

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      Foi proferido despacho pelo Exmo. Desembargador relator, a fls. 1082, dizendo afigurar-se-lhe a admissibilidade dos recursos, “nos termos do disposto no artigo 432 -1 b) do CPP”, e determinando a remessa dos autos ao STJ.

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      A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal emitiu então parecer, a fls. 1091 a 1093, dizendo concordar com os fundamentos do acórdão recorrido, não só quando afasta a existência de uma única resolução criminosa, como quando nega estar-se perante uma continuação criminosa, e relativamente à medida da pena única, afirma não ser merecedora de qualquer censura.  

                                                            *******

     Foi então ordenado o cumprimento do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, e cumprido, atestado o silêncio do recorrente, apenas os assistentes vieram, a fls. 1097, sem prejuízo da questão prévia da inadmissibilidade do recurso por si defendida, subscrever os fundamentos e conclusões de tal parecer, conformes à posição assumida na resposta à motivação de recurso.

                                                            *******

        Não tendo sido requerida audiência de julgamento, o processo prosseguiu com julgamento em conferência, nos termos dos artigos 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal.

                                                            *******

      Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

                                                *******

      Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal - acórdão do Plenário da Secção Criminal, de 19-10-1995, no processo n.º 46580, Acórdão n.º 7/95, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28-12-1995 (e BMJ n.º 450, pág. 72), que fixou jurisprudência, então obrigatória, no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito” e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.

                                                           

                                                            *******

                                                                

      Questões a decidir.

      Em primeiro lugar, há que ter presente que com este recurso o arguido/demandado impugna o acórdão recorrido na sua totalidade, abrangendo, quer a parte criminal, quer a parte civil. 

      Atento o teor das conclusões apresentadas pelo recorrente, que traduzem, de uma forma condensada, as razões da sua divergência com a decisão impugnada, as questões suscitadas pelo impugnante, propostas a debate e reapreciação no presente recurso, reportam-se aos seguintes aspectos (aqui se incluindo a questão prévia da recorribilidade, por ter tido o recorrente, como decorre das conclusões 3.ª e 4.ª, o cuidado de salvaguardar a hipótese de defesa do seu ponto de vista, de modo que, sendo prévia, é uma questão levantada, diríamos, cautelarmente, e acrescentaríamos, bem, pelo próprio recorrente, a qual suscitou, por seu turno, reacção adversa por parte dos assistentes, como se viu nas conclusões apresentadas):

I Questão (Questão Prévia) – Admissibilidade do presente recurso nas duas vertentes – criminal e cível – Conclusões 3.ª e 4.ª;

II Questão – Enquadramento jurídico-criminal: Alteração da qualificação jurídica – Única resolução? Crime único? Concurso efectivo de crimes? – Conclusões 5.ª a 20.ª, 26.ª, 1.ª parte e 32.ª;

III Questão – Quantificação dos crimes cometidos – Impugnação do número de crimes atestado no acórdão recorrido – Invocação do vício decisório previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP, e eventual reenvio para novo julgamento – Conclusões 21.ª a 25.ª (e parte final do pedido);

IV Questão – Medida das penas parcelares e única – Redução? – Pena suspensa? – Conclusões 26.ª, 2.ª parte, 27.ª e 28.ª;

V Questão – Indemnização cível – Admissibilidade do recurso – Redução do montante indemnizatório – Conclusões 4.ª, 29.ª, 30.ª e 31.ª.

                                                    *****************

      

      Apreciando - Fundamentação de facto.

      FACTOS PROVADOS

      Foi dada como provada a seguinte matéria de facto, que é de ter-se por imodificável e definitivamente assente, já que da leitura do texto da decisão, por si só considerado, ou em conjugação com as regras de experiência comum, não emerge a ocorrência de qualquer vício decisório ou nulidade de conhecimento oficioso, mostrando-se a peça de consignação/narrativa da facticidade tida por assente, expurgada de quaisquer insuficiências, erros de apreciação ou contradições, que se revelem ostensivos, sendo o acervo fáctico adquirido em julgamento e no caso confirmado pela Relação, suficiente para a decisão, coerente, sem contradição, harmonioso, e devidamente fundamentado.

    (Como veremos, não vinga a tese, adiantada pelo recorrente, da verificação do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP).
    
     Eis os factos definitivamente assentes, a ter em consideração na presente reapreciação:
 

1 – DD nasceu a 28 de Agosto de 1995, sendo filha de CC e de BB, divorciados, por mútuo consentimento, em 17.12.2008.

2 – A menor DD padece de Síndrome de Asperger, variante altamente funcional do autismo, que se caracteriza, em traços largos, por timidez e inibição social, com tendência para o isolamento, ingenuidade e imaturidade nas relações inter-pessoais, revelando grande fidelidade aos amigos e um défice de consciência moral a nível da avaliação moral de comportamentos desajustados das pessoas em quem confia, designadamente, familiares, amigos ou visitas da família.

3 – A menor e os seus irmãos – EE, FF e GG – mantinham uma relação de grande proximidade e de convívio com o arguido e com a família deste, uma vez que este era amigo dos pais da menor desde 1994 e tem três filhos de idades aproximadas às deles (o …, a A… R… e o D…, respectivamente com 10, 7 e 3 anos).

4 – A menor ofendida, os seus irmãos e os seus pais eram visitas das casas do arguido quer a de Lisboa, sita na R… J… C…, nº XXX, XXº A, quer a segunda casa de que é proprietário, (à data), sita na localidade da B..., em Mafra.

5 – O arguido, a sua mulher e os filhos eram visita assídua da residência da mãe da menor DD, sita na P… J… do R…, nº X, Xº Dtº, em Lisboa.

6 – Ambas as famílias organizavam programas de lazer e convívio em conjunto e conviviam aos fins-de-semana e celebravam ocasiões festivas, como o aniversário das crianças.

7 – No início de Janeiro de 2006 os ora assistentes (BB e CC) separaram-se de facto, continuando a segunda assistente (mãe de DD) a habitar com os filhos na casa de morada de família, sita na P… J… do R…, nº X, Xº Dtº, em Lisboa.

8 – Em consequência desta separação, o assistente passou a conviver com menor regularidade com o arguido e sua família.

9 – A segunda assistente e os seus filhos continuaram a manter a convivência estreita e regular que até à data haviam desenvolvido.

10 – A separação de facto dos assistentes veio a propiciar uma maior aproximação do arguido e da sua família à segunda assistente e seus filhos, que passaram, com mais frequência, a organizar programas de fim de semana.

11 – O arguido convidava, frequentemente, a menor e as suas irmãs para se deslocarem com ele à sua residência sita na B..., fazendo-o com insistência no que se tratava da menor DD.

12 – Em datas não concretamente apuradas, mas dentro do período temporal compreendido entre 28.08.2007 e 29.11.2008, em todas as ocasiões em que o arguido tinha a oportunidade de estar a sós com a menor, este agarrava-a por trás, acariciava-lhe os seios, quer por cima da roupa, quer por baixo do soutien, beijava-a nessa zona, desabotoava-lhe as calças ou levantava-lhe a saia (consoante o que ela tivesse vestido) e introduzia a mão no interior das cuecas da menor, com os dedos, acariciava-lhe a zona púbica e, depois fazia movimentos ascendentes e descendentes na vagina, onde introduzia os dedos, sendo que por vezes, também lhe acariciava as nádegas, encostava o seu corpo ao dela, dando-lhe de seguida a mão a cheirar e/ou cheirando-a ele próprio, apenas cessando os seus actos quando se apercebia da aproximação de alguém e retomando os mesmos quando voltavam a estar sós.

13 – Em data não concretamente apurada, mas certamente posterior a 28.08.2007, algum tempo após a menor ter feito doze anos, a DD esteve na casa de morada do arguido, sita na R… J… C…, XXXX, XXº A, em Lisboa, para aí passar algum tempo na companhia dos filhos deste.

14 – Encontrando-se ali a DD, pediu ao arguido que, a partir da Internet, lhe carregasse algumas músicas no seu aparelho MP4, ao que este acedeu.

15 – O arguido levou-a então ao escritório que tem em sua casa para proceder ao download das músicas e sentou-se ao computador, estando a menor DD, de pé, frente ao mesmo.

16 – A dada altura aproveitando a circunstância de estarem sozinhos no escritório, o arguido começou por acariciar a menor na zona da anca e do rabo e enfiou-lhe a mão no interior das cuecas, alcançou e friccionou-lhe a vagina e, de seguida, retirou a mão e cheirou-a.

17 – Enquanto ia procedendo ao download das músicas, o arguido foi continuando a praticar os actos acima referidos, tendo depois dito à DD para não contar nada a ninguém, porque o que lhe fizera eram só “umas brincadeiras entre os dois” e que ficaria chateado se contasse a alguém.

18 – Efectivamente, a DD não contou a ninguém o sucedido.

19 – Sendo que a partir da primeira vez, os actos do arguido sobre a menor, começaram a ser repetidos, ocorrendo sempre que a DD estava com o mesmo.

20 - Pelo menos por duas vezes, em datas não concretamente apuradas, mas situadas entre 28.08.2007 e 29.11.2008, quando a menor se encontrava na residência do arguido em Lisboa, mais concretamente no escritório dele e quando estava no computador – a navegar na internet ou a descarregar musicas para o seu MP4 – o arguido pôs-se atrás de si, encostou o seu corpo ao dela, apalpou-lhe e beijou-lhe os seios e, após lhe desabotoar as calças (ou levantar-lhe a saia), introduziu a mão no interior das cuecas daquela e, fazendo movimentos ascendentes e descendentes com os dedos na zona genital, dando-lhe, no final, a mão a cheirar.

21 – Em datas não apuradas, mas situadas no período compreendido entre 28.08.2007 e 29.11.2008, e pelo menos por duas vezes, o arguido deslocou-se à residência da menor, sita em Lisboa, para prestar auxílio em questões informáticas à mãe daquela.

22 – Numa dessas ocasiões, o arguido dirigiu-se para o escritório, acompanhado pela menor e aproveitando a circunstância de estar ali a sós com ela e com a porta fechada, colocou-se atrás dela, que se encontrava sentada em frente ao computador, agarrou-a, apalpou-lhe os seios e depois introduziu uma das mãos nas cuecas e com os dedos procedeu a movimentos ascendentes e descendentes na vagina dela.

23 – Na outra altura em que o arguido se deslocou à residência da menor, no período compreendido entre 28.08.2007 e 29.11.2008, pediu-lhe que esta o acompanhasse à cozinha e, também aí, aproveitando o facto de estarem a sós, acariciou-lhe os seios, beijou-a nessa zona, introduziu a mão no interior das cuecas da menor e, com os dedos, fez movimentos ascendentes e descendentes na vagina.

24 – Num dos fins-de-semana que se sucederam no período compreendido entre 28.08.2007 e 29.11.2008, em hora não determinada, o arguido convidou a menor DD a ir ao cinema com ele e com o seu filho mais velho, J… M….

25 – Ali chegados, o arguido sentou-se no meio dos dois menores e, durante a projecção do filme e sem que o seu filho se apercebesse de nada, colocou a mexer na DD, na região genital, por cima da roupa.

26 – Nesse mesmo dia, depois da ida ao cinema, o arguido e os dois menores dirigiram-se até ao seu local de trabalho (instalações da “J…” em Lisboa) e, no momento em que o filho estava no computador, o arguido chamou a menor ofendida à cozinha para o ajudar a fazer café e, estando ali apenas os dois e quase às escuras, apalpou-lhe os seios, desapertou-lhe o cinto das calças e introduziu a mão no interior das cuecas da menor e, com os dedos, fez movimentos ascendentes e descendentes na vagina e perguntou-lhe se ela à noite mexia na zona genital e nos seios.

27 – No período compreendido entre 28.08.2007 e 29.11.2008, o arguido convidava a DD (e também, algumas vezes, as suas irmãs mais novas) a acompanhá-lo, juntamente com alguns dos seus filhos adoptivos, àquela casa, indo a DD, por vezes com uma ou ambas as irmãs, e, outras vezes apenas na companhia do arguido e de um ou dois dos seus filhos adoptivos, não sendo acompanhado por sua mulher ou por outros adultos.

28 – Tais deslocações sucediam aos fins-de-semana ou em períodos de férias escolares, nunca incluíram pernoitas e ocorriam depois do almoço e até ao fim da tarde, altura em que o arguido a/as deixava em casa da assistente.

29 – Para combinar tais deslocações o arguido contactava telefonicamente a assistente, na véspera ou no próprio dia.

30 – Em todas as vezes que tais deslocações ocorreram o arguido insistia sempre para que a DD fosse.

31 – A menor não gostava dos actos que o arguido praticava, que a magoavam, pelo que passou a demonstrar relutância em acompanhar o arguido nas deslocações à casa da B..., ou a qualquer outro local.

32 – Não obstante o arguido insistia com a mesma para que o acompanhasse até à sua casa na B... ou a outros locais, muitas vezes a pretexto de ensinar alguma coisa no computador, ao que aquela acabava por ceder.

33 – Numa das últimas vezes em que tais deslocações ocorreram, o arguido foi a casa da assistente e, como a DD lhe dissesse mais de uma vez que não queria ir com eles à casa da B..., o arguido procurou insistentemente convencê-la a acompanhá-los.

34 – Ante a insistência veemente do arguido a assistente viu-se forçada a intervir, dizendo àquele que a DD não iria dessa vez com eles, acabando nesse dia, por só irem as suas irmãs EE e FF.

35 – Nessa casa da B..., no mesmo período temporal, o arguido, pelo menos por cinco vezes, introduziu a mão no interior das cuecas da menor e, com os dedos, fez movimentos ascendentes e descendentes na vagina, tendo por algumas vezes acariciado os seios de DD e beijado nessa zona.

36 – Tais condutas tiveram lugar, nomeadamente, na sala, no quarto do filho mais novo (D…), na garagem, na piscina e no espaço exterior da casa (numa cama de baloiço ali existente).

37 – Assim, em data não concretamente apurada mas na janela temporal já mencionada (entre 28.08.2007 e 29.11.2008) o arguido pediu à menor DD que o acompanhasse até à garagem.

38 – No interior da garagem, o arguido levantou a camisola e o soutien da menor DD para cima descobrindo-lhe os seios, apalpou-os e beijou-os, tendo, depois, introduzido a mão nas cuecas e acariciado a vagina, friccionando-a e passando-lhe, no fim, a mão pelo nariz para ela a cheirar.

39 – Noutra ocasião, em data também não apurada mas no período temporal compreendido entre 28.08.2007 e 29.11.2008, estando o arguido deitado na cama de baloiço, existente no exterior da residência, disse à menor DD que se deitasse sobre ele e, quando esta o fez, introduziu-lhe os dedos nas cuecas e apalpou a friccionou a zona genital.

40 – A dada altura o arguido sentiu alguém a aproximar-se e retirou de repente a mão dentro das cuecas da menor, chegando mesmo na magoá-la.

41 – De outra vez, também na residência da B... dentro do período temporal compreendido entre 28.08.2007 e 29.11.2008, em data que não se conseguiu concretizar, estando a menor e o arguido dentro da piscina, este, debaixo de água, com os dedos apalpou e friccionou a vagina da menor DD.

42 – Ainda na residência de Mafra, o arguido em dia e hora não apurados mas no período compreendido entre 28.08.2007 e 29.11.2008, numa ocasião em que o filho ainda bebé daquele, D…, estava a chorar, deslocou-se ao quarto dele, solicitando a companhia da menor DD.

43 – Quando ali chegaram ficaram os dois de joelhos junto ao berço e, enquanto o arguido adormecia aquele filho, apalpou-a na vagina e com os dedos friccionou-a com movimentos ascendentes e descendentes.

44 – No dia 29 de Novembro de 2008, em hora não apurada, a menor DD, os seus irmãos e a mãe deslocaram-se à residência do arguido, em Lisboa, para celebrarem o aniversário do filho mais novo do arguido, o D….

45 – Durante a festa, a menor dirigiu-se ao escritório da residência para utilizar o computador, tendo sido seguida pelo arguido.

46 – A menor DD sentou-se à secretária e, enquanto estava ao computador, o arguido colocou-se atrás dela, apalpou-lhe os seios e introduziu a mão nas cuecas da menor, acariciando-lhe a vagina, fazendo movimentos ascendentes e descendentes com os dedos.

47 – Enquanto tais actos decorriam a mãe da menor, CC, entrou no escritório e surpreendeu o arguido muito próximo da filha a retirar, de forma repentina, a mão junto ao corpo desta.

48 – A observação deste facto por parte da assistente fê-la ter a percepção de algo de estranho e preocupante se estaria a passar.

49 – No decurso de tais actos a menor DD pedia ao arguido para parar, ao que este respondia que não havia problema, que era apenas uma brincadeira entre eles, dizendo-lhe para não os revelar a ninguém, o que a menor fez, não divulgando os factos ocorridos até ao dia em que conversou com a sua mãe, depois do dia 29.11.2008.

50 – Ao descrever à mãe e, algum tempo depois, ao pai, as práticas a que o arguido a submetia, a DD estava em pânico com a possibilidade de o arguido vir a saber do relato desses factos à assistente referindo que “isto não é para se saber” e “ele vai ficar zangado e muito chateado se souber que eu te contei”.

51 – Este relato, feito a ambos os progenitores não foi contínuo, tendo-se prolongado por diversos dias, ao longo das semanas seguintes, revelando a DD, aos poucos, vários pormenores que inicialmente não contara à assistente, sempre de forma penosa, com enorme ansiedade e angústia e reiterando sempre que não dissessem nada ao arguido.

52 – O arguido conhecia muito bem a menor, desde o seu nascimento, bem sabendo, assim, da idade que esta tinha aquando da prática dos factos e sabia também das características próprias da sindroma de que padece, tanto mais que a sua mulher é pediatra e tal era assunto de conversa entre os progenitores daquelas famílias.

53 – Sabia o arguido que as suas condutas estavam a prejudicar gravemente a liberdade e a autodeterminação sexual da menor, que sabia não ter a capacidade e o discernimento para as compreender, dada a sua idade e a sua condição psiquiátrica, estando ciente de que estava a prejudicar o desenvolvimento da sua personalidade.

54 – O arguido aproveitou-se quer da relação de confiança que a sua posição de amigo íntimo da família lhe proporcionava junto da menor e da proximidade do convívio estabelecido entre as famílias, quer das inibições e dificuldades nas relações sociais que a menor tem em virtude da síndrome autista já referida.

55 – O arguido, ao praticar todos os factos acima descritos, agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção de satisfazer os seus impulsos sexuais e instintos libidinosos.

56 – Bem sabia que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.

57 – Consta do Relatório Pedopsiquiátrico de DD, elaborado pela sua médica pedopsiquiátrica, Srª Drª Ana Vasconcelos, a 13 de Agosto de 2009 e confirmado pela mesma em sede de audiência de julgamento, que:

“A DD apresenta um funcionamento psicológico que se insere nos quadros clínicos da Síndroma de Asperger, que pertence ao grupo das Perturbações do Espectro Autista (Esquizofrenia Infantil), e que é devido a uma disfuncionalidade no modo como o cérebro processa a informação.

Esta disfuncionalidade, em termos gerais e dado o objectivo deste relatório, origina que as pessoas com este sindroma apresentem as seguintes perturbações no tratamento da informação que lhes chega ao cérebro por via das percepções:

- défice na leitura compreensiva das expressões faciais, podendo não intuir, pela face do seu interlocutor, como ele se está a sentir, o que ele está a pensar, de como vai agir nos momentos a seguir;

- défice na compreensão da linguagem corporal do seu interlocutor, não compreendendo os seus gestos, as suas expressões corporais ou os movimentos do corpo, sinais que, geralmente, fornecem às pessoas informação sobre o modo como o seu interlocutor se está a sentir, de como tenciona agir e porquê;

- défice na compreensão dos sentidos sociais, com dificuldade em intuir, no ou nos seus interlocutores, as intenções que determinaram o modo como eles vão agir;

- défice em sintonizar-se na intercomunicação com o seu interlocutor (sintonização comunicacional) pois, como não compreendem os sinais transmitidos pelo outro, é-lhes difícil, ou, mesmo impossível, interpretar esses indicadores com a intencionalidade adequada de forma a poderem dar uma resposta ou encontrar uma solução adequadas e que são esperadas pelo seu interlocutor;

- défice na consciência moral a nível da avaliação moral de comportamentos desajustados das pessoas em quem confiam (familiares, amigos ou visitas da família, professores);

- défice na detecção de pistas sociais o que origina, por exemplo, uma dificuldade em distinguir, nas interrelações com os outros, brincadeiras amigáveis das agressivas ou atitudes ajustadas das desajustadas.

     Estes défices são devidos às pessoas com esta sindroma terem uma perturbação no que se designa por “teoria da mente” que é um atributo da mente humana que dá à pessoa a capacidade para atribuir estados mentais a si e aos outros, permitindo que a pessoa possa intuir o que o seu interlocutor está a pensar mas sabendo que ele tem um pensamento próprio, com a sua própria organização mental, o que determina que tenha os seus próprios pensamentos associativos, que faça os seus juízos e as suas próprias avaliações das situações que motivam as suas intenções e as suas acções, obviamente, no respeito de uma intersubjectividade respeitadora da subjectividade do seu interlocutor.

     A DD, como é característico das pessoas com o funcionamento mental característico da Sindroma de Asperger, tem uma perturbação nesta capacidade da “teoria da mente”, o que explica a sua dificuldade em processar as informações vindas das outras pessoas e, portanto, a ter dificuldade em compreender o que elas estão a pensar, o que estão a sentir, o que querem comunicar ou como pretendem agir. Esta sua dificuldade, tanto se passa com pessoas estranhas, de quem não conhece o modo como se comportam ou como reagem habitualmente nas relações sociais, como com as pessoas que conhece, familiares, colegas da escola, professores, amigos da família, mas que estão a agir de forma inabitual com ela. Pode, assim, não intuir más intenções em pessoas que considera suas amigas, o que lhe dá uma compreensão das relações entre as pessoas e do mundo relacional, muito ingénua.

       Esta particularidade da DD está ligada a uma outra característica do funcionamento mental das pessoas com este quadro clínico do espectro autista que origina que apresentem um pensamento muito ligado ao concreto e aos factos que aconteceram na realidade, utilizando um pensamento literal, cingido ao concreto e ao modo como os factos se desenrolaram na realidade; impedindo, tanto o acesso a uma actividade de fantasia ou de imaginação alicerçada num real plausível, como a capacidade para aceder ao pensamento simbólico conceptual ou ao raciocínio abstracto. Assim, a DD tem muita dificuldade em utilizar a imaginação ou o pensamento metafórico (o pensamento de “faz de conta”), por exemplo, em imaginar, a partir da realidade dos factos, uma situação diferente, o que a impede de compreender segundos sentidos ou intuir, no seu interlocutor, segundas intenções, o que a torna muito crédula e passiva, achando normal situações que merecem, habitualmente das pessoas, protestos ou queixas.

     Emocionalmente, como é habitual nas pessoas do sexo feminino com esta síndrome, é muito sensível mas com uma sensibilidade que se alicerça em modos de leitura da realidade afectiva muito própria, com grande vulnerabilidade emocional, preocupada com o bem-estar das pessoas que lhe são, afectivamente, importantes, mas de um modo onde domina, como já foi referido, a ingenuidade e uma credibilidade, cingida ao que vê ou ao que lhe dizem, sofrendo, muitas vezes, em silêncio por défice na comunicação verbal e por ter uma grande passividade e introversão.

     Estas características, das raparigas com este tipo de funcionamento mental, torna-as vítimas fáceis de predadores sexuais dado a ingenuidade e a infantilidade que mostram ter no seu pensamento sobre sexualidade e sobre os sinais que devem alertar para comportamentos suspeitos, interpretando-os erradamente sem o julgamento adequado para a sua idade. Estas características são, muitas vezes, sobrevalorizadas pelos predadores sexuais, o que os leva a escolherem-nas como vítimas. Contudo, estas jovens, quando conseguem falar sobre situações que as podem ter perturbado emocionalmente e devido ao seu tipo de funcionamento cognitivo, dão testemunhos extremamente fidedignos à verdade dos factos e com mais riqueza em detalhes do que o de outras pessoas com acesso a uma melhor intuição para compreenderem as intenções dos outros mas que podem ser vítimas de memórias falsas inconscientes.

     Este tipo de funcionamento cognitivo, característico destes quadros clínicos do espectro autista que a DD apresenta, é devido ao cérebro ter excelentes capacidades para processar e registar, na memória episódica, todo o tipo de informação de factos e de situações, dado utilizar um pensamento com um padrão cognitivo de tipo visual (brain movie), ou seja, um pensamento alicerçado nas imagens do que aconteceu quando esses factos e essas situações tiveram lugar. Assim, a DD, quando reevoca memórias episódicas, fá-lo com uma muito boa capacidade para relatar, de forma fidedigna, o que realmente aconteceu. Esta característica de ter memórias episódicas muito fidedignas, sem sofrerem distorção quando são reevocadas, deve-se, igualmente e como já foi referido, à DD não ter uma capacidade de imaginação que origine alterações, mesmo inconscientes, quando faz a reevocação de memórias de situações do passado. Deste modo, um cérebro com o da DD tem uma grande capacidade para gravar, com grande exactidão, as memórias dos acontecimentos porque não há contaminação pelo pensamento confabulatório oriundo da actividade da imaginação, pelo que os seus testemunhos são, assim, muito fidedignos, pois estão protegidos de falsas memórias. Contudo e de forma aparentemente paradoxal com esta exactidão das memórias, os seus relatos de evocação de situações passadas podem parecer ter um conteúdo um pouco estranho, saindo do senso comum, o que pode ser confundido com actividade imaginativa apesar disto ser devido ao modo como memoriza as situações, nomeadamente, ao modo como o seu cérebro apreende as memórias a partir da realidade, as armazena e, principalmente, como organiza o pensamento na altura em que essas memórias são relatadas, o que dá um modo peculiar à comunicação verbal que é característico das pessoas com esta síndrome quando fazem narrativas a partir do que se está a processar no seu pensamento.

      As características mais relevantes da comunicação verbal da DD quando faz narrativas sobre situações e acontecimentos passados, são as seguintes:

      - a narrativa é feita a partir de uma compreensão que utiliza um pensamento literal que se organiza a partir da construção mental visual decalcada da situação tal qual ela se desenrolou no tempo e no espaço; este tipo de pensamento predominantemente visual dá muita certeza de fidelidade às memórias quando são reevocadas, em relação aos factos e às situações que lhes deram origem, pois é como se a pessoa se transportasse, de novo, para a situação passada, relatando-a como se estivesse a fazê-lo a partir de um filme que está a ver mas com um ecrã interior que é a sua mente;

    - é uma narrativa muito rica em detalhes concretos o que origina que possa dar, quando está a relembrar as situações passadas, muito destaque a certos pormenores que podem ser insignificantes para o senso comum ou que podem parecer a despropósito, mas que são coerentes com o tipo de compreensão alicerçada em imagens que a DD utiliza;

     - como a DD memoriza o modo como as situações ou os factos se desenrolaram no tempo e no espaço com grande exactidão, tem a necessidade, quando faz o relato dessas memórias, de seguir, com a mesma exactidão, a sucessão temporal dos acontecimentos, narrando-as do princípio ao fim, sem saltos temporais, o que pode originar que relate situações que não são importantes ou são acessórias para o objectivo a que se destina o relato da reevocação das memórias; isto é devido ao que já foi mencionado neste relatório, do pensamento da DD poder sair do senso comum quando analisa as situações passadas;

     - no mesmo sentido, o seu modo de processar, de armazenar e de reevocar as memórias episódicas, inseridas neste pensamento com um padrão cognitivo de tipo visual, origina que, quando a DD organiza a comunicação verbal com o interlocutor, possa ter um relato verbal que parece desorganizado, sem coerência em relação ao objectivo para que se destina o relato, com uma linguagem descritiva e com muito pouco conteúdo simbólico conceptual; contudo, se se tiver em atenção o seu modo de funcionamento mental, que este relatório tentou descrever, a sua narrativa tem lógica e coerência com a realidade dos factos”.

58 – Constam da perícia de natureza sexual realizada pelos peritos médicos do INML (Drº Frederico Pedrosa e Drª Dobrila Nicolie) à menor, as seguintes conclusões:

“1ª – DD, do sexo feminino, é prépúbere e apresenta um desenvolvimento físico e sexual compatível com a idade real (14 anos).

2ª – À data do presente, a examinada é portadora de um hímen que pelas suas características (integridade anatómica) e da sua abertura podia ser médico-legalmente classificado como anatomicamente virgem.

3ª – Não se identificaram vestígios de lesões traumáticas ou infecciosas a nível anal, genital ou peri-genital, que pudessem ser sugestivos de qualquer tipo de contacto sexual.

4ª – Contudo, não se pode excluir que tenha sido submetida a algum contacto de cariz sexual – nomeadamente, como os referidos na informação – que, pelas suas características, não deixam necessariamente vestígios.”

“A informação sobre o evento foi prestada pela examinada (a menor DD) e acompanhante, sua mãe.

Informa ter 13 anos de idade e ser estudante do 8º ano.

Refere que desde há cerca de “ano e meio” tem vindo a ser sexualmente abusada por um amigo da família (AA, de 45 anos), o qual por múltiplas ocasiões – sempre que se encontrava sozinho com ela – lhe acariciava a região genital, umas vezes por cima da roupa, outras introduzindo a sua mão e manipulando-lhe directamente os genitais externos com os dedos.

O primeiro episódio que recorda terá ocorrido numa ocasião em que se encontravam ao computador, tendo-lhe ele puxado as calças para baixo e “apalpado o rabo”; de uma outra vez levou-a ao cinema, com o seu filho mais velho, e começou a mexer-lhe na região genital por cima da roupa; depois foram, a sua casa e puxou-lhe as calças para baixo e manipulou-lhe os genitais com a mão.

Dizia à examinada que “era uma brincadeira”, e nunca terá tentado outro tipo de contactos, nomeadamente o coito.

Em Novembro transacto (2008), a mãe tê-la-á surpreendido em sua casa, junto à examinada, tendo um comportamento que se lhe afigurou como suspeito, retirando precipitadamente a mão do corpo da sua filha; inquirindo-a nessa sequência sobre tal, esta terá então admitido a existência daqueles abusos. Nega desde então qualquer contacto com o AA.”

59 – As características de DD, atento a sindroma de Asperger de que padece (e que estão explanadas no relatório elaborado pela Drª Ana Vasconcelos, ponto 57), torna-a particularmente vulnerável a abusos de toda a ordem, desde o chamado “bullying” (normalmente praticado por colegas da escola), até ao abuso sexual, dos quais não sabe manifestamente defender-se, por défice de capacidade de auto-protecção e preservação.

60 - O demandado conhecia perfeitamente a idade da menor e a patologia e as características comportamentais da mesma, não só pelo convívio próximo com a demandante, cujas características são claramente perceptíveis por quem com ela prive, como pelo facto de a sua mulher ser médica pediatra e frequentes vezes os assistentes conversarem com ambos sobre este assunto.

61 – Em datas dentro do período temporal compreendido entre 28.08.2007 e 29.11.2008, em todas as ocasiões em que teve oportunidade de estar a sós com a demandante, o demandado praticou os actos e as frases de natureza sexual acima descritas.

62 – O demandado disse ainda repetidamente à demandante para não contar nada a ninguém, porque o que lhe fizera eram só “umas brincadeiras entre os dois” e que ia “ficar chateado” se ela contasse.

63 – O conhecimento das características da demandante levou o demandado a confiar que o seu comportamento não viria a ser descoberto, por acreditar que a demandante nunca o viesse a relatar a ninguém.

64 – A demandante confiava no demandado, por ser amigo próximo da família, a quem conhecia desde o nascimento.

65 – Mostrou-lhe o seu desagrado pelos comportamentos de natureza sexual para consigo, tendo-lhe pedido, em diversas ocasiões, que parasse com tais comportamentos, o que nunca demoveu o demandado.

66 – A demandante chegou a queixar-se de sentir dores e pediu ao demandado que não a magoasse, o que também não o dissuadiu.

67 – A demandante chegou a manifestar relutância em acompanhar o demandado em passeios, sem no entanto o explicar a ninguém, nomeadamente à sua mãe, a verdadeira razão para isso.

68 – O demandado insistia sempre muito para que a demandante viesse aos convívios que organizava, quer nas suas casas quer noutros locais, em que se fazia acompanhar de todos ou alguns dos seus filhos adoptivos e/ou das irmãs da demandante, tudo fazendo para estar muitas vezes com a demandante em situações em que facilmente podia isolar-se com ela e perpetrar os actos em questão.

69 – Os assistentes nunca desconfiaram do demandado, até ao dia 29 de Novembro de 2008, em que a assistente CC surpreendeu aquele no escritório de casa dele a afastar-se subitamente da demandante, no decurso de uma festa de aniversário.

70 - A demandante não contara a ninguém o sucedido, até a sua mãe, nessa sequência, insistir muito com ela para que falasse, ao que a demandante, de forma penosa e a muito custo, acedeu, relatando os factos e acabando por chorar convulsivamente.

71 – A demandante estava em pânico com a possibilidade de o demandado vir a saber do relato destes factos, referindo insistentemente à sua mãe – “isto não era para se saber” e “ele vai ficar zangado e muito chateado se souber que eu te contei”.

72 – Este relato não foi contínuo, tendo-se prolongado por diversos dias, ao longo das semanas seguintes, revelando a demandante, aos poucos, vários pormenores que inicialmente não contara à mãe, pedindo-lhe sempre que não dissesse nada ao demandado.

73 – À data dos factos a demandante tinha entre os 12 e os 13 anos e 3 meses de idade.

74 – Apresentava, de facto, menos idade, dado o seu desenvolvimento tardio que à data se demonstrava pelo aspecto infantil, pela quase ausência de desenvolvimento dos seios e pela ausência da menarca, assim como pela absoluta falta de interesse que revelava para com “namoricos” e colegas da escola, entre outros comportamentos infantis para a sua idade.

75 – A demandante, desde muito pequena, expressa-se de modo muito formal para a sua idade, não recorrendo nunca a palavrões e a impropérios de linguagem próprios dos jovens.

76 – A demandante ficou muito impressionada e psicologicamente abalada pelos factos de que foi vítima, manifestando sentimentos de repúdio e de vergonha.

77 – Falando amiúde nos mesmos com várias pessoas da família e demonstrando o repúdio que sente pelo demandado pelo seu comportamento.

78 – É actualmente uma adolescente insegura, tímida, com propensão depressiva e baixa auto-estima.

79 – O que configurando uma situação já de si previsível em resultado da síndroma de que padece, foi agravado pela actuação do demandado, tendo-lhe causado danos que decorrem do sofrimento sentido durante a sujeição aos actos libidinosos do demandado, pelas dores físicas e sensação de impotência, de violação do seu pudor e da sua intimidade numa altura da vida em que a demandante não tinha jamais mantido qualquer prática de natureza sexual com qualquer outra pessoa.

80 – Em que sentiu que não podia escapar à actuação do demandado, por ser levada ao seu encontro em diversas situações sem poder e pelo receio que sentia, revelar porque é que não queria estar com ele.

81 – E em que se sentiu desprotegida, sozinha e envergonhada, sem meios para actuar contra os abusos a que era sujeita e com um medo muito grande de que o demandado viesse a saber que ela tinha contado o que “não era para contar”, razão pela qual nunca o fez por sua iniciativa.

82 – Tendo sido especialmente penoso para a demandante não demonstrar os seus sentimentos e a razão pela qual não queria estar com o demandado, uma vez que a demandante, devido à síndroma de que padece, não costuma mentir nem tem capacidade para elaborar e manter uma qualquer mentira ao longo do tempo.

83 – A natural ingenuidade e imaturidade sexuais da demandante foram abruptamente atingidas pelos comportamentos do demandado.

84 – Com a pressão a que estava sujeita, inchou-se-lhe o ventre, evidenciando um aumento significativo de aerofagia e gases intestinais, sinal de que algo bastante ansiogénico se passava na sua vida.

85 – Em consequência da aerofagia e gases abundantes, a demandante foi humilhada pelos seus pares na escola, o que muito a perturbou e contribuiu para um maior isolamento e sofrimento, causando-lhe danos psicológicos acrescidos.

86 – O comportamento do demandado foi desleal, insidioso e desprezível, revelando uma absoluta indiferença pela imaturidade e pela situação patológica da demandante.

87 – Tendo-se prevalecido da especial vulnerabilidade da demandante e do ascendente que sobre ela detinha, bem assim como da circunstância de, nalguns casos, ter a menor ao seu cuidado e ser o único adulto presente.

88 – O arguido não tem antecedentes criminais.

89 – O arguido tem um processo pendente (nº 214/09.8JAPTM), com julgamento marcado para inícios de Setembro, no Tribunal de Loulé, estando nesse processo acusado de 34 crimes de abuso sexual de crianças, de 7 crimes de abuso sexual de menor dependente, de 8 crimes de actos sexuais com adolescentes e de 1 crime de coacção sexual.

90 - Do seu relatório social consta:

“O desenvolvimento de AA decorreu inserido no agregado familiar constituído pelos pais e pelos irmãos, cerca de 6 e 7 anos mais novos, assim como, pela avó materna. A família de origem era detentora de uma situação económica estável que avaliou como média, sendo o pai delegado de informação médica e a mãe administrativa nos Correios de Portugal (CTT).

Na família de origem a progenitora e a avó materna assumiam um papel educativo mais presente, quer ao nível da transmissão de regras e regulação do comportamento, quer ao nível da supervisão, enquanto o pais assumia um papel mais distante, embora atento ao processo educativo dos filhos.

O seu processo de socialização decorreu inserido num bairro típico lisboeta, na zona de Campo de Ourique onde a população surge como heterogénea, de diversos estratos sociais e onde subsistem relações de vizinhança que funcionam como fonte de suporte e de controlo social.

O seu percurso escolar foi regular até ao antigo 7º ano (actualmente corresponderia ao 11º ano), onde reprovou pela primeira vez, que concluiu com 18 anos. Ainda frequentou o curso de Engenharia Electrotécnica durante dois anos, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e posteriormente veio a ingressar no Curso de Engenharia Electrónica no Instituto Superior Técnico, no entanto, não concluiu a formação universitária, situação que atribuiu a ter iniciado a actividade laboral.

Aos 19/20 anos começou a desempenhar funções na área da programação informática e com 25 anos candidatou-se a director do departamento de informática da empresa I…, onde permaneceu cerca de 2 anos, altura que constituiu a empresa J…, em sociedade com um colega. Nesta empresa manteve-se cerca de 5 anos como programador de informática e cerca de 15 anos como administrador da empresa, até 2009, altura em que vendeu a sua participação na empresa.

Começou a namorar com a actual esposa com 17 anos e após um namoro de cerca de 8 anos, casou com 25 anos. Há cerca de 11 anos, devido a infertilidade, o casal adoptou o primeiro de 3 filhos com idades compreendidas entre os 5 e os 12 anos de idade.

Actualmente integra o agregado familiar constituído pela esposa e pelos filhos, mostrando-se envolvido no processo educativo destes, indo levá-los à escola, apoiando o mais velho nas actividades escolares, etc.

Saliente-se que a esposa manifestou insegurança quanto à manutenção da sua relação conjugal, afirmando que o seu principal interesse é defender o bem estar dos filhos, dependendo a manutenção da sua relação da convicção com que ficar aquando do julgamento do arguido.

Desde que vendeu a sua parte na empresa J…, AA criou uma outra empresa, M… T…, U…, que presta assessoria a outras empresas na área de informática. No entanto referiu que se verificou um decréscimo nos rendimentos da família mantendo-se o salário regular da esposa que desempenha funções como médica pediatra e os proventos irregulares do marido auferindo o salário mínimo nacional. Refere que se encontram a fazer face às despesas com o montante referente à venda da sua participação na anterior empresa. Apesar disso, o agregado revela uma situação económica ligeiramente superior à média.

Esta família reside na zona do Areeiro caracterizada por uma população heterogénea, de diversas origens e estratos sociais.

Nos tempos livres pratica natação e ginásio e gosta de ler.

Mesmo antes da instauração do presente processo verifica-se isolamento social, interagindo com alguns casais amigos, que após a instauração do presente processo se afastaram, o que acentuou o isolamento social.

AA referiu que à data dos factos pesava cerca de 110 Kg., assumindo que a sua condição física além de ter influência ao nível das suas capacidades físicas tinha igualmente influência ao nível da sua auto-estima.

Depois dos 15 anos de idade e antes de namorar com a actual esposo manteve 2/3 namoros, de curta duração e que avaliou com fraca expressão da sexualidade, descrevendo que se limitaram a “beijos, abraços e alguns apalpões” (sic). Iniciou a sua vida sexual aos 17/18 anos, com a sua actual esposa, que descreveu como a sua única parceira sexual.

De um modo geral, descreveu a actividade sexual ao longo do seu namoro e casamento como pouco intensa, embora quando ocorria era sentida por ambos como gratificante.

Nos últimos anos, em momento que não soube precisar, foi sentindo disfunção sexual, situação que atribuiu ao aumento da dosagem da medicação que toma diariamente para a hipertensão.

Recorreu a psicoterapia de apoio, em consultório privado, em Setembro de 2009, após a instauração do presente processo, semanalmente até Julho de 2010, altura em que passou a realizar-se semanalmente.

Segundo a psicóloga mantém uma boa adesão psicoterapêutica e segundo o próprio este acompanhamento permitiu-lhe melhorar ao nível físico e da sua auto-estima, ao iniciar uma dieta, apresentando no presente um peso adequado à altura.

O presente processo parece ter tido impacto na vida quotidiana de AA que se afastou da empresa que detinha, J…, devido a receio de alguma exposição que este processo pudesse implicar, assim como, segundo refere, por não pretender a expansão da empresa para Angola.

Saliente-se que houve conhecimento por parte de outros elementos da empresa da existência do presente processo.

AA não se revê na totalidade dos factos de que se encontra acusado, tendo em contexto de entrevista manifestado ambivalência, oscilando entre momentos em que assumia a responsabilidade das suas atitudes, enquanto noutros momentos revelava tendência para atribuir essa responsabilidade a terceiros.

Acresce que se verificam algumas distorções cognitivas atribuindo à ofendida atitudes de cariz sexual, referindo que ela o procurava e que lhe dizia “és tão querido” e lhe fazia festas na cabeça”.                                  

 

                                                  ******************

      Apreciando – Fundamentação de direito.

      Questão I (Questão Prévia) – Admissibilidade do recurso (penal)

      Na apresentação das conclusões o recorrente tratou de, liminarmente, acautelar a invocação e sustentação da tese da recorribilidade do acórdão recorrido nas duas componentes – parte criminal e cível.

      Antes do mais, haverá, pois, que abordar a questão da admissibilidade do presente recurso, tendo-se em consideração o exposto pelo recorrente nas conclusões 3.ª e 4.ª (as duas primeiras conclusões são apenas introdutórias do tema a debate), a que reagiram os assistentes, de forma codiciosa, em parte substancial das conclusões da resposta por si apresentada à motivação do recorrente, mais concretamente, ao longo das conclusões 1.ª a 21.ª (!).

      Relembrando o que, em síntese, com interesse para o ponto, invocou o recorrente:     

3º) O presente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça è admissível face à mencionada alteração da qualificação jurídica operada no Acórdão do douto Tribunal da Relação, a qual constitui uma decisão nova, alicerçada em qualificação jurídica diferente daquela que a 1.ª Instância entendeu como relevante para a decisão que havia tomado;

4º) Como tal, até por imperativos de natureza constitucional - art° 32° da Constituição da República Portuguesa - ao arguido não lhe pode ser negada a possibilidade de recorrer, sendo-lhe também possível fazê-lo, atendendo ao montante do pedido formulado, relativamente à parte cível da condenação;

      Por seu turno, defendem os assistentes a irrecorribilidade do acórdão da Relação, proclamando que se está perante uma confirmação da condenação do recorrente.

      O que, à partida, não deixa de ser uma afirmação correcta. Mas, apenas se encarado o problema numa determinada perspectiva de análise.

      Vistas as deliberações da primeira instância e do Tribunal da Relação, dúvidas não há na afirmação de um denominador comum em uma e outra.

       Efectivamente, em um (apreciação primeira) e outro caso (reapreciação do julgado), o recorrente foi condenado pela prática do mesmo tipo de crime. Sendo que, na segunda deliberação, foi confirmada a condenação, embora com base em diversa qualificação, e em termos muito mais gravosos, quer a nível de (re)qualificação, quer da sequencial penalização.

     Ambas as deliberações são, pois, condenatórias, e no restrito ponto da dicotomia condenação/absolvição, o Tribunal da Relação, obviamente, confirmou a deliberação condenatória da primeira instância.

     Mais. Em ambas as deliberações, o arguido foi condenado pela prática de condutas que - em registo de crime único ou de pluralidade de infracções - relevam de sua integração no domínio dos crimes de abuso sexual contra crianças.

     O tribunal de recurso não procedeu, como já se referiu, a qualquer alteração a nível do acervo fáctico adquirido, deixando intocada a matéria de facto fixada pelo Colectivo da 2.ª Vara Criminal de Lisboa.

     Mas, esta identidade – incontornável, neste plano meramente factual, até porque definitivamente assente – a nível jurídico, é já perspectivada de forma diferente, et pour cause, por aqui se queda a afirmação de identidade entre uma e outra decisão.

     A afirmada e definitiva identidade factual (factor definitivo, fixo, incontornável) não tem correspondência simétrica na afirmação de identidade/sobreposição de entendimento a nível de tratamento subsuntivo (ora factor variável, sujeito a interpretação subjectiva, a diverso enquadramento jurídico-criminal).

     Efectivamente, no mais, a deliberação da primeira instância e a adoptada pelo tribunal de recurso, divergem.

     E não pouco.

     Em termos substanciais, mesmo, se situa a fasquia da distinção, poderá dizer-se.

     A começar pela avaliação, a nível de subsunção, da qualificação jurídico-criminal, certo que mantido o mesmo painel fáctico, objecto desse tipo de avaliação.

     Vejamos.

     O arguido vem de uma condenação na primeira instância por um crime único de abuso sexual de criança, que por força dos recursos do M.º P.º e dos assistentes, se “converteu” em uma condenação por uma pluralidade de crimes (qualificação com que o arguido se vira confrontado, desde a definição do objecto do processo, com as acusações do M.º P.º e dos assistentes e que debatida foi em julgamento, de tal forma, que conduziu à aplicação do mecanismo do artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, como consta da acta de leitura); vem da imposição de uma pena de substituição (pena de prisão suspensa na execução), para alteração, substanciada na aplicação de uma pena de prisão efectiva; ali, a fixação de uma única pena, correspondente a um, assim considerado único acto/crime; aqui, a cominação de várias penas parcelares, tantas quantos os vários crimes, então ponderados, e a final, a fixação de uma pena única, obviamente mais elevada, mas antes disso, de espécie diferente, tendo a Relação procedido a esta alteração, requalificação jurídica, e subsequente fixação de uma outra ordem de penas em primeira via, sem ter ordenado o reenvio à primeira instância para aplicação das (novas) penas parcelares (de prisão) aos vários crimes e fixação da pena conjunta, tendo optado, a nosso ver, bem - porque disponíveis os elementos indispensáveis para o efeito -, por aplicar imediata e directamente as penas resultantes do novo figurino incriminatório, pelo que sempre se estaria perante uma condenação com esta configuração, obviamente mais gravosa, não só na espécie, como na medida, no alcance e nos efeitos, fixada pela Relação em primeira mão, sem possibilidade de sindicância do condenado, sem que o recorrente pudesse reagir contra a recente/novíssima solução penalizadora.

       

     No caso presente, pese embora a alteração significativa na qualificação jurídica feita pela Relação, em comparação com o registo protagonizado pelo acórdão de primeira instância, não há, visto o projecto de definição possível a montante,  uma composição do objecto do processo completamente nova; a vinculação temática originária tinha contornos absolutamente compatíveis com a solução encontrada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, sendo inclusive defendida nos recursos do M.º P.º e dos assistentes, não se tratando, pois, de uma decisão surpresa, a exigir comunicação de alteração (súbita, inovadora, arrebatadoramente inesperada) e demandar a aplicação do mecanismo do artigo 424.º, n.º 3, do CPP, como de resto, não deixou de anotar o acórdão recorrido, a págs. 932 e verso e 933.

     No caso concreto, a aferição da admissibilidade do recurso na vertente da matéria penal, ora em causa, há-de efectuar-se pela análise conjugada do disposto no artigo 432.º, n.º 1, alíneas b) e c), e nas alíneas e) e f), do n.º 1 do artigo 400.º, como aquele do CPP.

    Estabelece o artigo 432.º do Código de Processo Penal:

    1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

    b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.

    c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito.

    Estando ora em causa uma decisão proferida, em recurso, pela Relação, vejamos da recorribilidade desse tipo de decisão.

    Definindo as decisões que não admitem recurso, estabelece o artigo 400.º do Código de Processo Penal:

    1 - Não é admissível recurso:

    c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objecto do processo; (redacção da Lei n.º 48/2007)

    d) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância; 

    e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade; (redacção da Lei n.º 48/2007)

    f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos. (redacção da Lei n.º 48/2007).

    O caso presente não cabe em nenhuma destas alíneas, pois a decisão da Relação conheceu, a final, do objecto do processo; o acórdão da Relação não é absolutório, nem o era o acórdão do colectivo; o acórdão da Relação não aplicou qualquer pena não privativa da liberdade, e sendo confirmatório, quanto à condenação, alterou o enquadramento jurídico-criminal, substituiu a espécie de pena e a respectiva medida, o que faz toda a diferença.

    Finalmente, não se está perante situação de dupla conforme e a pena aplicada é inferior a oito anos de prisão.

      No caso presente não há entre as duas decisões uma identidade total, integral, pois pese embora a imodificabilidade da matéria de facto e o sentido de condenação, a confirmação foi apenas parcial, pois houve uma outra diversa qualificação jurídica, justificativa de intervenção deste Supremo Tribunal, pois conduz a um outro arco penal, mais gravoso.

    Segundo o acórdão deste Supremo Tribunal de 23-04-2009, proferido no processo n.º 10/08.0GALSB.S1 - 5.ª, não há dupla conforme, sendo recorrível a decisão da Relação, quando qualifique a conduta de forma diferente, com unificação de vários actos até então considerados crimes autónomos, num só crime. No mesmo sentido, do mesmo relator, se pronunciou o acórdão de 11-02-2010, no processo n.º 516/08.0PCAMD.L1.S1. – Cfr. ainda o acórdão de 27-01-2010, proferido no processo n.º  401/07.3JELSB.L1.S1-5.ª, que reconhece que não existe confirmação se, embora confirmada a condenação, ocorre uma substancial alteração da qualificação jurídica dos factos, no mesmo sentido se pronunciando o acórdão de 13-07-2011, por nós relatado no processo n.º 451/05.4JABRG.G1.S1.

 

    Sendo indiscutível que é irrecorrível o acórdão da Relação proferido em recurso que aplique pena não privativa de liberdade, poderá colocar-se a questão de saber se, face à lacuna da lei, poderá afirmar-se a recorribilidade da decisão ora em causa, por argumento a contrario, à luz da alínea e), visto tratar-se de decisão que, proferida em recurso pela Relação, no fundo, não confirma totalmente a de 1.ª instância, alterando-a de modo significativo e aplicando antes uma pena privativa de liberdade.

    Na análise a efectuar há que não esquecer o dado incontornável de estar em causa uma decisão que incidiu sobre uma outra proferida por um tribunal colectivo e de estarmos perante a subsistência ou não de uma condenação em pena de prisão em medida superior a 5 anos – concretamente, pena única de seis anos de prisão.

    Efectivamente, elemento de relevo a ponderar na apreciação da presente questão é a pena aplicada no que respeita ao tempo de prisão. A medida da pena aplicada é o critério a tomar em conta.

    Decisão recorrida é o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que em recurso aplicou pena de 6 anos de prisão efectiva.

    A recorribilidade para o STJ de decisões penais está prevista no artigo 432.º do Código de Processo Penal, preceito que define directamente as condições de admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo decisão recorrida, objecto de recurso, acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo (atendendo à natureza e categoria do tribunal a quo) e (atendendo agora à gravidade da pena efectivamente imposta) que apliquem pena de prisão em medida superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito.

     O critério da gravidade da pena aplicada é determinante na conformação da competência do Supremo Tribunal de Justiça, o qual intervirá apenas se e quando tiver sido aplicada pena superior àquele limite de cinco anos.

     A decisão recorrida no caso presente não se configura como um acórdão final condenatório, proferido por um tribunal colectivo ou do júri, a aplicar pena de prisão superior a cinco anos (artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP).

     Mas, tratando-se de um acórdão final, de uma condenação proferida (se bem que com tais contornos em primeira via) pelo Tribunal da Relação, em recurso, aplicando pela primeira vez, pena privativa de liberdade, é o mesmo recorrível, cumprido o patamar do limite mínimo da pena aplicada, nos termos conjugados do disposto no artigo 432.º, n.º 1, alínea b) e no artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, este “a contrario”.

A irrecorribilidade, nos termos desta alínea, só funcionará quando a Relação, em recurso, aplique pena não privativa de liberdade. Donde, tendo em recurso aplicado pena privativa de liberdade, cumprido o requisito da duração da pena de prisão, a decisão é recorrível.

No caso, o ora recorrente fora condenado por condutas plúrimas que na primeira instância foram objecto de redução à unidade; com o recurso, o Tribunal da Relação entendeu formular juízo substitutivo que conduziu a agravamento, adoptando uma visão atomística fundada na pluralidade de resoluções criminosas, sendo o arguido condenado pela primeira vez com pena de prisão efectiva, que atendendo à concreta medida imposta, cumpre o pressuposto da gravidade da pena efectivamente aplicada, inscrevendo-se no catálogo da alínea c) do artigo 432.º do CPP.

Sendo assim, tem-se por adquirido que o processo comportará um duplo grau de recurso, a garantir a possibilidade de reapreciação, certo que a solução do acórdão recorrido foi protagonizada em função dos recursos do Ministério Público e dos assistentes, que não constituindo surpresa - atento o objecto do processo delineado nas acusações - foi objectivamente nova, alicerçada numa diferente qualificação jurídica, como refere o recorrente na conclusão 3.ª.   

Assim temos que, em função da concreta pena de prisão aplicada, em medida superior a cinco anos, é admissível recurso do acórdão recorrido para este Supremo Tribunal.

     Concluindo: o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, ora recorrido, no que respeita à vertente criminal, por ter procedido a requalificação jurídica e face à pena aplicada, é recorrível. 

       II Questão – Enquadramento jurídico-criminal: Alteração da qualificação jurídica – Única resolução? Crime único? Concurso efectivo de crimes?     

      A questão é colocada pelo recorrente nas conclusões 5.ª a 20.ª, 26.ª, 1.ª parte, e 32.ª.

      Como vimos, era imputada ao arguido a prática de uma pluralidade de crimes de abuso sexual de criança, quer na acusação pública, quer na formulada pelos assistentes, com a diferença de, para além de outros, ali serem imputados, na base, 13 crimes de abuso sexual de criança, p. p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, e aqui, de 12 daqueles crimes.

      O Colectivo da 2.ª Vara Criminal de Lisboa integrou os factos dados por provados na figura de um único crime, por entender estar-se perante uma única resolução criminosa, tendo o acórdão da Relação de Lisboa, na procedência dos recursos do Ministério Público e dos assistentes, considerado estar-se perante um concurso real de treze crimes, afastando, como de resto, o fizera aquele Colectivo, a qualificação da conduta provada como crime continuado, por que pugnara o arguido no recurso.

     Na verdade, o arguido, tendo sido condenado por um crime único, no recurso para o Tribunal da Relação, defendeu a integração da pluralidade de condutas na figura do crime continuado, como ressalta das conclusões 20.ª a 30.ª, então apresentadas, e no presente recurso, tendo sido condenado na Relação por 13 crimes, em concurso real, defende agora, diversamente, a integração na figura do crime único, isto é, pugnando pela reposição do enquadramento operado na primeira instância. 

        O recorrente defende a tese da verificação de uma unidade da resolução criminosa, um único desígnio criminoso, ao longo das conclusões 11.ª, 12.ª, 13.ª, 14.ª, 16.ª (unicidade da resolução criminosa), 17.ª, 18.ª (resolução unitária), 19.ª, 20.ª, para concluir na conclusão 26.ª, primeira parte, pela prática de um único crime.  

        Compreende-se a defesa, uma vez que o arco penal atendível se comprime em termos substanciais, passando, segundo a tese do acórdão recorrido, de uma moldura penal abstracta correspondente a um concurso efectivo de treze crimes, de acordo com o acórdão recorrido (1 ano e 6 meses a 19 anos e 6 meses) para a penalidade correspondente a um único crime (1 a 8 anos de prisão). 

         Ao fazê-lo o recorrente afasta, assim, a anterior tese defendida no recurso para a Relação de integração da sua reconhecida plúrima conduta na figura do crime continuado, uma vez que este pressupõe uma pluralidade de resoluções.

       Objecto de análise será a questão de saber se a matéria de facto provada comporta a integração na figura do crime único, ou antes na pluralidade de crimes, em concurso real.

       Liminarmente, dir-se-á ser de manter o afastamento do enquadramento dos factos dados por provados na figura do crime continuado.

       Nas conclusões 6.ª e 7.ª o recorrente refere-se a crime continuado, afirmando na conclusão 8.ª que não é aplicável o artigo 30.º na redacção da Lei n.º 40/2010, de 3-09, e que tal alteração legislativa não pode ser atendida para fundamentar a existência de um concurso de crimes.

      Por outro lado, é de afastar igualmente a integração da conduta num único crime de trato sucessivo (note-se que a primeira instância adoptou a tese do crime único, mas nunca referindo o aditamento de “trato sucessivo”, sendo assim apelidado pela Relação a págs. 932 e 934).

                                                  ******

       A distinção entre unidade e pluralidade de crimes é decisiva na determinação das consequências jurídicas do facto, para efeito de punição do agente, sabido que no caso de concurso de crimes cabe a aplicação do critério especial de determinação da pena constante do artigo 77.º, extensível, nos termos do artigo 78.º, ao caso de superveniência de conhecimento da existência de relação concursal, cabendo ainda em caso de unificação do concurso, como crime continuado, tratado como uma situação ou caso de unidade de infracção, ou seja, como um só crime, um outro critério especial, este de privilegiamento punitivo, do artigo 79.º, sendo o crime punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação, podendo em certos casos, considerar-se ainda, num diverso plano, a existência de um único crime, a punir nos termos do critério geral do artigo 71.º, como os demais do Código Penal.

    Como se extrai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25-06-1986, proferido no processo n.º 38292, publicado no BMJ n.º 358, pág. 267, a realização plúrima do mesmo tipo legal pode constituir:

a) Um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial;

b) Um só crime, na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para reiteração das condutas;

c) Um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores.

     A regra é a de que, sendo vários os preceitos violados, ou sendo o mesmo preceito objecto de plúrimas violações, como é o presente caso, haja uma pluralidade de crimes; esta pluralidade só fica afastada no caso de concurso aparente, ou nas formas de unificação de condutas, seja como crime continuado, ou ainda fora dos quadros do artigo 30.º, como único crime (acórdão de 02-04-2008, processo n.º 4197/07-3.ª), ou como crime de trato sucessivo, como é ponderado a nível de situações de tráfico de estupefacientes (v. g., acórdão de 17-12-2009, processo n.º 11/02.1PECTB-5.ª), ou de infracções fiscais ou contra a segurança social, que se protraem por períodos mais ou menos longos (neste tipo foi já considerada a figura denominada de “infracções contínuas sucessivas” no acórdão de 18-12-2008, processo n.º 20/07-5.ª), ou mesmo em caso de burla qualificada e falsificação de documento (acórdão de 21-02-2008, processo n.º 2035/07-5.ª), tendo sido assim qualificados alguns casos de abusos sexuais de crianças, solução que, segundo Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código Penal, UCE, 2.ª edição, 2010, pág. 162, será de afastar, a partir da Lei n.º 40/2010, de 03-09, por estarem em causa bens eminentemente pessoais, afirmando que no caso da sucessão de vários crimes contra bens eminentemente pessoais, deve punir-se as condutas do agente em concurso efectivo.

    A matéria de concurso de crimes não é tratada no artigo 30.º do Código Penal, de forma abrangente e esgotante, na medida em que as soluções indicadas no preceito se limitam a estabelecer um critério mínimo de distinção entre unidade e pluralidade de crimes, tratando-se de um ponto de partida estabelecido pelo legislador, a partir do qual à doutrina e à jurisprudência caberá em última análise, encontrar soluções adequadas, tendo em vista a multiplicidade de casos e situações que se prefiguram e que ocorrem na vida real (assim acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-01-2006, processo n.º 3671/03-3.ª, in CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 159, que aborda a temática da distinção entre crime continuado e crime único, num caso de falsificação de três cheques para aquisição de determinado produto).

     Aliás, note-se que de acordo com a epígrafe do artigo 30.º, inserto no capítulo relativo a “Formas do crime” – cfr. Capítulo II do Título II – na perspectiva de unidade/pluralidade de infracções, só haveria lugar ao concurso de crimes e ao crime continuado, não albergando o preceito, por exemplo, as hipóteses de crime único que o Código Penal de 1886 previa no § único do artigo 421.º para o crime de furto.

     Há outras figuras de lesividade múltipla ou repetida de bens jurídicos com tutela jurídico-criminal, que se não contêm na dicotomia prevista no artigo 30.º - “Concurso de crimes e crime continuado”.

     Isto é, para além do concurso de crimes, a punir nos termos dos artigos 77.º e 78.º, e do crime continuado, a punir de acordo com o artigo 79.º do Código Penal, há toda uma gama de situações da vida real a demandar uma específica regulamentação.

     Estabelecendo um critério, assumidamente distintivo, o artigo 30.º contém a indicação de um princípio geral de solução da problemática do concurso de crimes, sendo também uma base de trabalho, a partir da qual há que olhar outras dimensões de violações de bens jurídicos, que ficam de fora, não estando abrangidos outros casos e situações que ocorrem no dia a dia, apresentando dificuldades de integração por exemplo as hipóteses de crimes culposos emergentes de acidentes de viação, sabido que o critério vale fundamentalmente para os crimes dolosos e mesmo nestes o critério não esgota todas as formas, todos os modos de execução do tipo legal.

    

    Volvendo ao caso concreto.

     Vejamos a evolução das três soluções propostas pelos sujeitos processuais e assumidas pelas decisões de primeira instância e Relação – crime continuado, crime único, concurso real de infracções.

    A solução da configuração dos factos provados como pluralidade de crimes constante das acusações do Ministério Público e dos assistentes, bem como a da subsunção na figura do crime continuado, foi afastada na deliberação da primeira instância, onde se pode ler que “Da análise dos factos provados passíveis de juízos de censura, entende-se deverem os mesmos ser considerados como fruto de uma só intenção estruturada, não traduzindo uma renovação da intenção e vontade de agir.

     No caso vertente, os factos apontam indiscutivelmente para a unidade de resolução criminosa”.

     Defendeu ainda o acórdão da 2.ª Vara Criminal de Lisboa em causa estar só um crime decorrente de uma só intenção criminosa, um crime de execução continuada.

     Invocou em favor da tese da verificação de um único crime o acórdão do STJ de 5-05-1993, publicado na CJSTJ 1993, tomo 2, pág. 220, o qual, proferido no recurso n.º 42290, versou sobre caso de crime de falsificação e contrafacção de moeda, e onde se pode ler que “no domínio da matéria das resoluções criminosas, há que distinguir entre o propósito de cometer um acto criminoso concreto e o de cometer um determinado tipo de crime, que se possa consubstanciar em múltiplos actos de execução, relativamente aos quais possa existir a formulação de propósitos parcelares de conduta regidos por considerações especiais de oportunidade, ou de necessidade, ou conveniência (…) condutas desse tipo, que correspondem psicologicamente ao desenvolvimento de diferentes intenções, são consideradas como manifestações prolongadas no tempo de um dado e único processo volitivo dinâmico, formado pelo somatório das diferentes resoluções parcelares”.

      E conclui que “nesta medida, as actuações dos arguidos, respeitantes à contrafacção das notas de 5000 pesetas, têm de ser consideradas como correspondentes à prática de actos de execução do mesmo e único crime, o qual terá, assim, uma natureza próxima da do crime de execução permanente”.         

      Sobre a pretensão do arguido de integração das condutas dadas por provadas na figura do crime continuado, conforme conclusões 20.ª a 30.ª do anterior recurso, pronunciou-se o acórdão ora recorrido, de fls. 929 a 930 verso, nestes termos:

      « (…) Ora, da análise do quadro factual descrito nada consta que mostre a ocorrência de um circunstancialismo, exterior ao arguido, exógeno, portanto, capaz de facilitar ou propiciar a repetição dos comportamentos delituosos, tornando cada vez menos exigível a opção por conduta diversa, e que de alguma maneira diminua consideravelmente a culpa daquele.

     É que, no caso em apreço, a repetição criminosa ficou a dever-se, não a uma efectiva diminuição da culpa do agente – que não existiu – mas sim à sua persistente vontade em satisfazer os seus desejos, que superou até a natural inibição inerente à relação de amizade que o liga à ofendida e ao conhecimento do seu “especial” funcionamento psicológico, e num total aproveitamento da relação de confiança entre as respectivas famílias.

    Não tem pois razão o arguido, sendo de considerar que o alegado circunstancialismo, nomeadamente o facto de a menor não ter revelado o que se passava, não pode ser considerada como diminuidora da culpa do arguido, por ser exogena, antes se deve considerar que foi circunstância calculada e manipulada pelo arguido. Por isso, não há qualquer diminuição da culpa, bem pelo contrário.

     Donde se conclui pela não verificação dos requisitos legais do crime na forma continuada».   

     De seguida, analisando o recurso do Ministério Público, o acórdão recorrido afasta a solução de integração das condutas provadas na figura de crime único assumida no acórdão da 2.ª Vara Criminal de Lisboa, que apelida de crime único de trato sucessivo e, operando uma alteração à qualificação jurídica, procede à integração das condutas provadas na figura do concurso efectivo de crimes, o que faz de fls. 932 a 935, nestes termos:

     « (…) Entendemos que, no caso em análise não se pode considerar que os comportamentos do arguido integraram apenas uma resolução criminosa, mas antes existindo várias resoluções criminosas, que se traduzem no facto de o arguido em dias, horas e locais diferentes ter accionado e renovado a sua vontade para praticar o crime sexual e repeti-lo.

     Sendo certo que no crime continuado há uma diminuição de culpa à medida que se reitera a conduta, tal diminuição não existe no caso do abuso sexual de criança por actos que se sucedem no tempo, bem pelo contrário, a gravidade da culpa parece aumentar à medida que os actos se repetem; o sucesso da primeira actuação e das seguintes não pode integrar a diminuição da culpa do arguido, agindo este determinado pela vontade de satisfazer os seus instintos libidinosos, para o que se aproveitou das situações mais favoráveis para esse efeito, nomeadamente da confiança da própria vítima, que com a repetição daqueles actos vai sendo toda a vez, “atacada”, psicológicamente, com as repercussões que a ciência médica e a vida nos mostram.

     No entendimento da doutrina - Eduardo Correia e também de Jeschek- o fulcro da distinção só pode ser o sentido dos tipos legais violados em cada caso, com apelo a critérios como o da unidade natural de acção, como seja por exemplo a realização repetida do mesmo tipo legal de crime num curto espaço de tempo. O requisito para apreciar a unidade de acção nestes casos é a circunstância de que, com a repetição plural do tipo, a lesão do bem jurídico só experimenta uma progressão quantitativa e que o facto responda, além do mais, a uma situação motivacional unitária. Assim o entendeu a decisão sob recurso, da qual se discorda pelas razões já apontadas».

  De seguida, subscrevendo o que foi escrito no acórdão deste Supremo Tribunal de 13 de Julho de 2011, por nós relatado, no processo n.º 451/05.4JABRG.G1.S1, e citando alguns passos (incluído aquele que determinou a observação do recorrente nas conclusões 7.ª e 8.ª), afirma:

    «No caso, afastado o crime continuado e o de trato sucessivo, pelos fundamentos expostos, entendemos estar perante concurso efectivo de crimes».

   E após referir os acórdãos do STJ mencionados naquele acórdão que optaram pela subsunção na figura do concurso efectivo de crimes, remata:

   «Daqui extraimos que, maioritáriamente, a jurisprudência aponta para a pluralidade de crimes, nas situações que, similarmente com a que nos ocupa, esteja em causa o mesmo ilícito e a mesma vítima sexualmente abusada, quando haja a reformulação do desígnio criminoso, surgindo este de modo autónomo em relação ao propósito criminoso anterior. Concluímos de tudo o que ficou exposto, que a conduta descrita nos autos, praticada pelo arguido sobre a menor, integra a qualificação jurídica da pluralidade de infracções, verificando-se o concurso real dos crimes, que preenchem a tipologia do nº. 1 do artigo 171 do C.Penal.

   Assim, as situações descritas nos pontos 16, 20, 22, 23, 25, 26, 36, 38, 39, 41, 43, 46 da matéria de facto e ainda nos pontos 52 a 56, integram a prática pelo arguido de 13 crimes de abuso sexual de crianças, previsto e punido no nº. 1 do artigo 171 do C. Penal, com uma pena de prisão de um a oito anos».

     Em primeiro lugar, há que afirmar ser de manter o afastamento da tese do crime continuado, sendo de sufragar a posição do acórdão recorrido.

  Como se referiu supra, nas conclusões 6.ª e 7.ª, o recorrente refere-se a crime continuado, afirmando na conclusão 8.ª que não é aplicável o artigo 30.º na redacção da Lei n.º 40/2010, de 3-09, e que tal alteração legislativa não pode ser atendida para fundamentar a existência de um concurso de crimes.

      Ora, desde logo há que reter que o recorrente no presente recurso, diversamente do que fez no primeiro, não pugna pela integração das condutas provadas na figura do crime continuado.

       A referência ao artigo 30.º do Código Penal contém-se no seguinte passo do acórdão recorrido, constando a fls. 934 que «A Lei n.º 40/2010, de 03-09, que operou a alteração ao Código Penal, entrada em vigor em 3 de Outubro de 2010, suprimiu do nº. 3 do artigo 30 a expressão “salvo tratando-se da mesma vítima”, do que resultou o fim da figura do crime continuado que atinja bens essencialmente pessoais, mesmo quando a vítima dos diversos actos seja a mesma pessoa. O crime continuado fica assim restringido à violação plúrima de bens não eminentemente pessoais, independentemente de haver uma ou mais vítimas».

      Este parágrafo reproduz, quase na íntegra, com adequada citação de fonte, o que se escreveu no acórdão de 13-07-2011, em que estavam em causa factos ocorridos entre 1996 e 1999, não sendo aplicável obviamente a alteração legislativa de 2010, e onde se pode ler:

   «Atente-se que a Lei n.º 40/2010, de 03-09, que operou a 26.ª alteração ao Código Penal, entrada em vigor em 3 de Outubro de 2010, suprimiu a expressão “salvo tratando-se da mesma vítima”, do que resultou o fim da figura do crime continuado que atinja bens essencialmente pessoais, mesmo quando a vítima dos diversos actos seja a mesma pessoa. O crime continuado fica assim restringido à violação plúrima de bens não eminentemente pessoais, independentemente de haver uma ou mais vítimas».

    Tal trecho tem de ser entendido no respectivo contexto, situando-se na sequência da narrativa de afastamento da figura de continuação criminosa e versando o artigo 30.º do Código Penal, de tal modo que houve a necessidade no acórdão ora recorrido de especificar a referência à norma do artigo 30.º do Código Penal, que no contexto, se não justificava na versão do acórdão de 13-07-2011…

      O recorrente alude à referida passagem do acórdão recorrido nas conclusões 7.ª e 8.ª, mas mais do que um argumento decisivo, deverá ser entendido como um desabafo, no sentido em que parece pretender que o afastamento da tese do crime continuado e a solução de concurso efectivo de crimes passaria inevitavelmente por tal argumento, mas a verdade é que assim não é.

      Como é evidente, a alteração legislativa de 2010 não poderia servir de fundamento argumentativo para situações anteriores, quer no presente caso, quer no caso do acórdão que relatámos, em que se deu conta da evolução do tratamento do crime continuado estando em causa bens eminentemente pessoais.

     A aludida passagem não serviu de base para afastar a tese da continuação criminosa, nem para fundamentar a integração no concurso efectivo de crimes.

     O acórdão recorrido já tinha fundamentado o afastamento do crime continuado, por não verificação dos respectivos requisitos legais, ao apreciar o recurso do arguido, a fls. 929 a 930 verso, e por outro lado, fundamentou, de forma autónoma, a integração das condutas provadas no concurso efectivo de crimes, o que fez de fls. 934 a 935. 

    Afastada a configuração como crime continuado, resta apreciar se as condutas provadas se devem inserir na figura do crime único, ou de concurso efectivo de crimes, sabido que a argumentação da inclusão na figura de concurso tem de passar pela afirmação de pluralidade de condutas, pela afirmação de pluralidade de resoluções, aqui se aproximando do crime continuado e afastando do crime único, mas afastando-se daquele por no caso não se figurar diminuição de culpa.  

      

    A tese do crime único.

    Em alguns casos, a situação de abuso sexual de criança tem sido enquadrada na figura do crime único, ou de crime único de trato sucessivo, entendendo-se haver lugar a uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma, uma só resolução criminosa, desde o início assumida pelo agente.

      É essa unidade de resolução, a par da homogeneidade de actuação, e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos vários actos sucessivos num só crime. O dolo do agente abarca ab initio uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispõe logo a praticar, para tanto preparando, se necessário, as condições de realização, estando-se no plano da unidade criminosa; a reiteração, revelando uma resolução determinada e persistente do agente, traduz uma culpa agravada.   

      Há um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal, configura o trato sucessivo.

      Assim foi entendido nos seguintes acórdãos: 

 de 02-10-2003, processo n.º 2606/03-5.ª, in CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 194 - Num quadro factual que, manifestamente, nada tem a ver com o presente, mas em que se entende haver uma conexão temporal unificadora, susceptível de integrar um único crime, se o arguido ganha a confiança dos pais de um menor de 9 anos de idade, carenciados economicamente, convence-os a deixarem o menor viver consigo e depois, ficando com o menor  em sua casa e à sua guarda, obriga-o a dormir na cama com ele, todas as noites e, depois, reiteradamente, força-o a manter relações sexuais durante cerca de um ano.

      Na primeira instância o arguido fora condenado pela prática de um crime continuado de coacção sexual agravado, em concurso real com um crime de violação agravado, e em cúmulo na pena única de 12 anos de prisão.

     No STJ entendeu-se que o arguido cometeu um único crime, de trato sucessivo, e não um crime continuado, de violação agravada, ou seja, um dos crimes por que estava condenado, e manteve a condenação na pena de 12 anos de prisão, dizendo o acórdão:

      “Não houve crime continuado, pois que, embora se tenha dado a realização plúrima de dois tipos de crime que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico, executados por forma essencialmente homogénea e no quadro da mesma solicitação, a solicitação não foi “exterior”, mas cuidadosamente “providenciada “ pelo arguido. Por isso, não há qualquer diminuição da culpa que está na base do crime continuado. Antes pelo contrário!”.

     No que respeita ao novo enquadramento, explicita o acórdão: “Não há nesta requalificação jurídica dos factos qualquer atentado aos direitos de defesa do arguido ou ao princípio da reformatio in pejus, pois o recorrente foi condenado por dois crimes continuados de coacção sexual agravada e de violação agravada e este Supremo Tribunal entende que há um único crime de violação agravada, ou seja, um desses crimes por que estava condenado, com a única diferença que este abarca toda a situação factual em causa”; 

de 14-06-2007, processo n.º 1580/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 220 - Comete um crime único, de trato sucessivo, aquele que, desde data não concretamente apurada, mas ao longo de três anos, decidiu manter e manteve com a menor, ao longo desse período, condutas de natureza sexual; 

      No acórdão de 21-10-2009, proferido no processo n.º 33/08.9TAMRA.E1.S1-3.ª, em caso de concurso real de três crimes do artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, em quadro factual em que três menores foram abusados por diversas vezes, foi considerada a verificação de um crime por cada um dos três menores abusados, com pena única reduzida para 6 anos de prisão;

      No acórdão de 07-01-2010, processo n.º 922/09.1GAABF-5.ª, CJSTJ 2010, tomo 1, pág. 176, na comarca o arguido fora condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, tentado e um outro na forma consumada, com penas de 2 e 6 anos, e em cúmulo, na pena única de 7 anos de prisão. O Tribunal da Relação de Évora considerou um único crime consumado e condenou em 6 anos e 6 meses de prisão. O STJ afasta a qualificação de crime continuado e pela prática de um só crime de abuso sexual de criança, fixa a pena em 6 anos de prisão.

      Afasta a continuação, citando o acórdão de 5-12-2007, processo n.º 3989/07-3.ª,  dizendo: Quando a repetição do mesmo crime e a utilização de procedimento idêntico num quadro temporal circunscrito resulta de uma predisposição do agente, de uma persistência de propósitos de modo a levar a conduta até ao fim, ou de oportunidades, condições para a prática de vários actos, que ele próprio cria, está afastada a possibilidade de subsumir os factos ao crime continuado, por que se trata de culpa agravada, não atenuada.

     No acórdão de 20-01-2010, processo n.º 19/04.2JALRA.C2.S1-3.ª, afirma-se que não é de excluir nos crimes sexuais a continuação criminosa, mas sempre que mais do que a um momento exterior ao agente, condicionante da prática do crime, se prove que a reiteração, menos que a tal disposição, fique a dever-se a uma certa tendência da personalidade do agente não poderá falar-se em atenuação da culpa e fica excluída a figura da continuação, sendo o crime único punido com 8 anos de prisão.

     Neste sentido, conferir voto de vencido no acórdão de 14-05-2009, processo n.º 36/07-5.ª, publicado na CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 221, supra referido, em que fez vencimento o enquadramento como crime continuado.

     No caso do acórdão de 23-01-2008, processo n.º 4830/07-3.ª, trata-se de um exemplo híbrido, de concurso real de dois crimes abrangendo várias condutas com a mesma menor, sendo um mais grave, autónomo, e depois, três condutas diferentes daquela são unificadas na figura de trato sucessivo.

    Referindo que o aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia, exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado, afasta esta qualificação e considera a verificação de dois crimes de abuso sexual de criança (filha) agravados, em concurso real, sendo o primeiro constituído por uma conduta isolada e o segundo consistente nas diversas três acções sucessivamente praticadas pelo arguido em dias diferentes, mas não podendo estas três condutas ser unificadas em termos de continuação criminosa, podem sê-lo como crime de trato sucessivo, que se caracteriza pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime. Contrariamente ao que acontece no crime continuado, não há aqui qualquer diminuição de culpa, antes a reiteração criminosa, revelando uma persistência da resolução criminosa, encerra uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respectiva ilicitude.

      Concurso efectivo de crimes

    

      Este Supremo Tribunal tem optado pela subsunção da pluralidade de condutas, neste plano do abuso sexual de crianças, na figura do concurso efectivo de crimes, em vários acórdãos, afastando a configuração de tais situações nos restantes quadros reguladores possíveis, como no crime continuado, como ocorre na maioria da vezes, no crime único, ou ainda no crime de trato sucessivo, de que se apontam como exemplos os seguintes:

de 12-01-1994, processo n.º 45725, in CJSTJ 1994, tomo 1, págs. 190/2 -  Em caso de violação, por parte de um homem casado, com cinco filhos a seu cargo, que se aproveita da inocência de uma criança de 7 anos incompletos, que estava confiada aos seus cuidados, considera-se que “se a conduta do agente nos revela que em cada actuação houve um renovar da sua resolução criminosa, estamos perante a prática de vários crimes, excepto se esse renovar do propósito criminoso for devido a uma situação exterior ao agente que facilite a renovação da resolução dentro de uma certa conexão temporal, tudo a revelar diminuição da culpa, caso em que se perfila a figura do crime continuado.

     Tendo sido provado que após ter esfregado o seu pénis erecto na vagina da ofendida até ejacular, o arguido voltou, nas mesmas circunstâncias, a esfregar o pénis na vulva da menor, até mais uma vez, ejacular, fica assente uma pluralidade de resoluções criminosas, tendo sido condenado por dois crimes de violação, com 3 anos de prisão por cada um deles, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 anos de prisão, sendo então, afastada, ope legis, a possibilidade de suspensão da execução da pena;

de 17-10-1996, processo n.º 568/96, CJSTJ 1996, tomo 3, pág. 170 - Afasta a figura do crime continuado em caso de dois episódios de atentado ao pudor à mesma menor, concluindo: “ (…) dos factos provados não resulta que a reiteração criminosa tenha sido fruto mais de uma facilitada situação exterior (circunstâncias exógenas) do que de motivos endógenos, relativos à personalidade do arguido. (Cita o acórdão de 12-01-1994 supra referido, o de 9-11-1994, proferido no processo n.º 47275, CJSTJ 1994, tomo 3, pág. 248, no qual se pode ler: “Sendo a matéria de facto omissa de qualquer circunstancialismo externo que se possa considerar como redutor de culpa, haveria tantos crimes de atentado ao pudor quantos os actos de impudícia por ele praticados sobre as duas crianças” e de 09-05-1996, proferido no recurso n.º 40/96).

Aí se pode ler que a continuação criminosa só poderá existir desde que ocorra uma pluralidade de resoluções levadas a cabo por forma essencialmente homogénea, em condições que diminuam consideravelmente a culpa, decorrente de uma situação exterior que facilitou a reiteração.

de 10-12-1997, processo n.º 1192/97 -3.ª, SASTJ n.ºs 15 e 16, volume II, pág. 204 - Em caso de crime de homossexualidade com menores, pronunciava-se no sentido de ser de concluir pela existência de concurso real de crimes quando as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem e arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa, mas, pelo contrário, são conscientemente procuradas e criadas pelo agente para concretizar a sua intenção criminosa.      

de 19-05-2005, processo n.º 890/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 202 - Afasta a continuação criminosa em caso de crime de coacção sexual agravado, por se verificar, efectivamente, uma pluralidade de crimes, pois o agente teve que renovar de cada uma das vezes o processo de motivação e, em consequência teve que tomar resoluções distintas, presididas por intenções diferenciadas quanto à decisão de, através da violência forçar o menor a ter de suportar os actos de carácter sexual descritos na matéria de facto,  justificando: “No caso, a repetição das condutas proibidas pelo recorrente teve a ver apenas com circunstâncias próprias da sua personalidade e, por conseguinte, dignas de maior censura”;

de 15-06-2005, processo n.º 1558/05-3.ª, CJSTJ 2005, tomo 2, pág.  216 - Considera que tendo o arguido praticado actos de natureza sexual com a menor sua filha, por três vezes, sempre num quadro que não favorece qualquer ideia de diminuição acentuada da culpa, antes renovando a intenção criminosa, não se verifica qualquer situação de crime continuado, mas sim a prática de tantos crimes quantas as vezes que reiterou na violação do tipo legal de ilícito – três crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. p. pelos artigos 172.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal;

de 17-11-2005, processo n.º 2760/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 217 – Em causa dois crimes de abuso sexual em que o abusador é pai da ofendida, vítima por duas vezes de abusos sexuais – duas penas de 3 anos de prisão cada, sendo em cúmulo jurídico fixada a pena conjunta de 4 anos de prisão; 

de 05-07-2007, processo n.º 1766/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 242 - Em caso de crime de abuso sexual de crianças considera-se não merecer censura o afastamento da figura de crime continuado, corrigindo apenas o número de crimes cometidos, que é reduzido de 11 para 7 crimes (um deles agravado); só há crime continuado quando se verifica uma diminuição considerável da culpa do agente, que deriva de um condicionalismo exterior e como tal não produzido pelo agente, que propicia a repetição das várias acções criminosas, mediante um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade. 

de 05-09-2007, processo n.º 2273/07-3.ª, CJSTJ 2007, tomo 3, pág. 189 - Afasta a continuação criminosa e opta pela punição pelo cometimento de 3 crimes de violação agravada, ponderando que a presença constante da menor no âmbito familiar do arguido não constitui qualquer lastro de afirmação de uma menor inibição de comportamentos delituosos com reflexos a nível da culpa e, por isso, é de afastar a continuação criminosa e de optar pela sua punição pelo cometimento de três crimes de violação (em hipótese de consunção com abuso sexual de criança) agravados;

de 16-01-2008, processo n.º 4735/07-3.ª, com o relator do anterior - Afasta a continuação, decidindo por concurso de dois crimes de violação – ponderando-se que não pode considerar-se que o facto de o arguido entrar com frequência na casa da ofendida ou de esta se encontrar isolada consubstancia o lastro de justificação de uma menor inibição de comportamentos com reflexo a nível de culpa. (No caso, com contornos especiais, com um voto de vencido, foi suspensa a execução da pena de 4 anos condicionada a pagamento de montante em que foi condenado por danos não patrimoniais);

de 01-10-2008, processo n.º 2872/08-3.ª - Em caso de abuso de filhos pelo pai, afirma-se: sempre que se comprove que a reiteração, menos que a disposição das coisas, fique a dever-se a uma certa tendência da personalidade do criminoso, não poderá falar-se numa atenuação da culpa e fica, portanto, excluída a possibilidade de existir um crime continuado. (Acórdão seguido no acórdão de 19-03-2009, processo n.º 483/09-3.ª e no de 25-03-2009, proferido pelo mesmo relator do primeiro, no processo n.º 490/09-3.ª);

de 05-11-2008, processo n.º 2812/08-3.ª, do mesmo relator do anterior, no mesmo sentido e afastando o n.º 3 do artigo 30.º do Código Penal, dizendo que o preceito não possui um alcance inovador, que conduziria a um chocante e absurdo resultado de ter de ver-se o agente do crime, sobretudo no caso de as vítimas serem crianças ou mentalmente incapazes, justamente os mais indefesos da sociedade, punido, apenas, por um único crime quando sobre a vítima praticou vários, ofendendo o sentimento jurídico reinante no seio da comunidade, efeito ainda mais visível no caso de crianças vivendo sob o mesmo tecto do abusador, em que, em lugar de manter contenção e respeito sobre o seu  instinto sexual, aquele exerce acção infrene e, assim, mais censurável. A ser outra a interpretação, conducente a um efeito perverso, ter-se-ia que, em nome da justiça, da lógica e do mais elementar bom senso, atalhar o alcance de quem fez a lei, lançando-se mão de uma imperiosa interpretação restritiva;

de 19-03-2009, processo n.º 483/09-3ª; versando abuso sexual de crianças, afasta a figura do crime continuado, dizendo que o aditamento do n.º 3 ao artigo 30.º não permite uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real; só significa que este deve firmar-se se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito; ou seja, o aditamento não exclui, antes continua a pressupor, a verificação dos requisitos do crime continuado (segue de perto o acórdão de 1-10-2008).  

de 25-03-2009, processo n.º 490/09-3.ª, CJSTJ 2009, tomo 1, pág. 237, ainda do mesmo relator dos dois anteriores - Versando abuso sexual de menores, afirma que sempre que se comprove que a reiteração, menos que a disposição das coisas, fique a dever-se a uma certa tendência da personalidade do criminoso, não poderá falar-se numa atenuação da culpa e fica, portanto, excluída a possibilidade de existir um crime continuado. No caso, na primeira instância o arguido fora condenado por sete crimes de abuso sexual de criança na pena de 6 anos cada e em cúmulo em 12 anos; a Relação condenou pela prática de um crime continuado em 9 anos de prisão; o STJ não subscreve tal entendimento e alterando a qualificação, considera repercutirem os factos descritos a prática de sete crimes de abuso sexual de criança, e não um único crime, na forma continuada, com pena de 5 anos por cada e fixando a pena única de oito anos de prisão (segue de perto o acórdão de 1-10-2008 do mesmo relator).

Debita ainda no mesmo sentido do anterior sobre o alcance do n.º 3 do artigo 30.º do C. Penal, aditado pelo art. 1.º da Lei n.º 59/2007, dizendo que a alteração introduzida é pura tautologia, de alcance inovador limitado ou mesmo nulo, desnecessária, em nada prejudicando a jurisprudência sedimentada ao nível deste STJ; o aditamento não permite uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real; só significa que este deve firmar-se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos, enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar uma interpretação sistemática e global do preceito (cita o acórdão de 8.11.2007, processo n.º 3296/07-5.ª);

de 25-06-2009, processo n.º 274/07.6TAACB.C1.S1-3.ª, CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 247 - Afastando a qualificação de crime continuado, confirma a verificação de concurso real de três crimes de abuso sexual de criança, reduzindo a pena única de 8 anos e 6 meses de prisão para 8 anos de prisão.  

Pode ler-se no sumário: “haverá um único crime, sempre que exista uma única resolução criminosa que domine uma acção unitária, ainda que seja reconduzível numa pluralidade de factos externamente separáveis, desde que estes se apresentem intimamente ligados no tempo e no espaço e dominados por aquela única resolução volitiva, tal sucedendo quando os actos sexuais adicionados surgirem na sequência da mesma resolução criminosa.

Mas já haverá um concurso de crimes, ainda que esteja em causa o mesmo ilícito e a mesma vítima sexualmente abusada, quando haja a reformulação do desígnio criminoso, surgindo este de modo autónomo em relação ao propósito criminoso anterior”;

      No acórdão de 13-07-2011, processo n.º 451/05.4JABRG.G1.S1, por nós relatado, citado no acórdão recorrido, na primeira instância, o Colectivo de Braga entendeu estar perante um concurso real de crimes e assim o arguido fora condenado por sete crimes de abuso sexual de crianças, p. p. pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, na pena única de oito anos de prisão.

     O Tribunal da Relação de Guimarães considerou estar-se perante um único crime de trato sucessivo de abuso sexual de crianças, p. p. pelo mesmo preceito, mas mantendo a pena de oito anos de prisão; no STJ foi reposta a qualificação da primeira instância, afastando-se a configuração das condutas provadas, quer como crime de trato sucessivo, quer a qualificação como crime continuado, como o fizera a primeira instância e por que pugnara o arguido no recurso.

     Mais recentemente, no sentido da pluralidade de infracções, veja-se o acórdão de 12-07-2012, proferido no processo n.º 1718/02.9JDLSB.S1, desta Secção.

     Apreciando em concreto.

  

     Como decorre dos factos dados por provados nos n.ºs 12 a 47, as condutas praticadas pelo arguido decorreram no período compreendido entre 28 de Agosto de 2007 e 29 de Novembro de 2008, ou seja, durante cerca de quinze meses, tendo os contactos sexuais tido lugar em Lisboa, em casa do arguido, na casa da menor, no cinema, no local de trabalho do arguido e ainda na casa do arguido sita em B..., Mafra.

      Na obra Unidade e Pluralidade de Infracções, a págs. 125, disse Eduardo Correia dever “considerar-se existente uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique entre as actividades do agente uma conexão no tempo tal que, de harmonia com a experiência normal e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar, que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo da motivação”.

      Nos casos de reiteração criminosa há que distinguir entre a que resulta de uma situação externa que subsiste ou se repete sem que o agente para tal contribua e aquela que resulta de uma situação procurada, provocada ou organizada pelo próprio agente.

      Neste segundo caso, são obviamente razões endógenas relacionadas com a personalidade do agente, que levam à reiteração criminosa, não se reconduzindo no caso a um único desígnio, pois o arguido tomou a iniciativa de assegurar a presença da menor em várias situações.

     Assim, na casa da B..., quando o filho D… chorava, o arguido podia muito bem ter ido confortar e fazer adormecer o bebé sozinho, mas em vez disso solicitou a companhia da menor DD, como consta do facto provado n.º 42.

      Na festa de aniversário do D… - factos provados n.º s 44 a 46 - quando a DD se dirigiu para o escritório para utilizar o computador, o arguido seguiu-a, procurando novo contacto.

     E nas demais situações o arguido sempre buscou o contacto, a proximidade com a menor, tomando a iniciativa, convidando a menor a ir ao cinema - facto provado 24 -, insistindo para que a DD se deslocasse na sua companhia, como resulta do provado nos pontos de facto n.ºs 11, 30, 32, 33 e 34, não podendo tais insistências ser vistas como expressão de resolução unitária, como pretende o recorrente na conclusão 18.ª.

     O arguido criava as condições, procurava e fomentava as oportunidades de contacto, renovando o desígnio criminoso. As condições não surgiam por acaso, sendo antes conscientemente procuradas e criadas pelo arguido para concretizar a sua intenção criminosa. De cada uma daquelas vezes, em cada actuação, o arguido renovou o processo de motivação, o propósito criminoso, estando-se perante resoluções distintas, reformuladas de forma autónoma em relação às anteriores. No caso em apreciação, a repetição teve a ver com circunstâncias próprias da personalidade do arguido, como flagrantemente demonstra o episódio descrito nos ponto de factos provados n.º 42 e 43, não se inibindo o arguido de praticar os factos com uma menor com problemas, filha de pessoas amigas do casal, que se visitavam e conviviam, sendo pai adoptivo de três crianças.          

     Concluindo: entende-se estarmos perante um concurso real de crimes de abuso sexual de criança, improcedendo o recurso nesta parte.

     Caberá determinar o número exacto de crimes cometidos pelo recorrente, o que no recurso foi posto em questão de forma autónoma, como veremos de seguida.  

      III Questão – Quantificação dos crimes cometidos – Impugnação do número de crimes atestado no acórdão recorrido - Invocação do vício decisório previsto no  artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP e eventual reenvio para novo julgamento

 

     Nas conclusões 21.ª a 25.ª (e parte final do pedido), o recorrente insurge-se contra o número de crimes quantificados pelo acórdão recorrido, apontando para uma menor quantidade, sem contudo a concretizar, defendendo que a determinação do número de crimes implica insuficiência na matéria de facto para suportar o enquadramento realizado e que na eventualidade de prevalecer a qualificação operada na decisão em recurso, teriam os autos de ser reenviados para novo julgamento.

      O acórdão recorrido, a fls. 934 verso e 935, considerou a existência de treze crimes integrados pelas situações descritas nos pontos 16, 20, 22, 23, 25, 26, 36, 38, 39, 41, 43 e 46 e nos pontos 52 a 56, sendo estes apenas referentes à conformação do dolo.  

     Defende o recorrente a ausência de matéria de facto para caracterizar os treze crimes por que foi condenado, situação que entende enquadrável no disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP.

     Sendo certo estar vedada a arguição de vícios decisórios em recurso, directo ou não,  para este Supremo Tribunal, a verdade é que não se verifica tal vício.

     Constitui jurisprudência pacífica do STJ a orientação segundo a qual está vedada a arguição dos vícios da sentença no recurso para o STJ das decisões finais do tribunal colectivo já apreciadas pelo Tribunal da Relação, posto que se trata de questão de facto.

     A matéria de facto só é insuficiente para a decisão proferida quando se verifique uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito. Tal vício só pode ter-se como evidente quando a factualidade provada não chega para justificar a decisão de direito, ou seja, para a subsunção na norma incriminadora, considerando todos os seus elementos típicos – acórdão do STJ de 13-01-1998, processo n.º 877/97, BMJ n.º 473, pág. 307.

      Esta questão não se confunde com a qualificação jurídica das condutas do recorrente, que é o que realmente está em jogo.

      Analisada a matéria de facto dada por provada na primeira instância e confirmada pelo acórdão recorrido, há que concluir pela verificação de doze crimes apenas, e não de treze, por o acórdão recorrido ter referido por duas vezes o mesmo facto.

      Os factos praticados pelo recorrente tiveram lugar:

Na casa do arguido em Lisboa - factos provados n.º 16 (mais concretamente, factos descritos nos n.º s 13 a 17, referentes  a factos praticados  no escritório) e n.º 20 (neste caso por duas vezes) – fazendo três crimes;

Na casa da menor em Lisboa – factos provados n.º s 22 e 23 (com reporte ao n.º 21) – dois crimes;

No cinema – factos provados n.º s 24 e 25 – um crime;

No local de trabalho do arguido - facto provado n.º 26 – um crime.

   

    Vejamos o que se passou na casa do arguido, na B..., em Mafra.

   

    No ponto de facto provado n.º 35 referem-se condutas praticadas por cinco vezes.

    No ponto de facto provado n.º 36, referem-se os locais em que tiveram lugar, mencionando-se, em consonância, cinco locais diferentes – sala, quarto do filho D…, garagem, piscina e cama de baloiço no espaço exterior da casa – sendo as condutas explanadas nos pontos subsequentes, mas com excepção do que se refere à sala.

    E assim, concretizam-se as condutas que tiveram lugar, por quatro vezes: 

    - Na garagem – pontos de factos provados n.º s 37 e 38;

    - Na cama de baloiço existente no exterior da residência – pontos de factos provados n.ºs 39 e 40;

    - Na piscina – ponto de facto provado n.º 41;

    - No quarto do filho bebé – pontos de factos provados n.ºs 42 e 43.

    

    Daqui resulta a presença de apenas quatro descrições de condutas e não cinco.

    Aliás, como assinalou o acórdão recorrido, a fls. 927, in fine, aquele ponto 35 – a exemplo do que acontece com os pontos 12, 21 e 27 –, em vez de narrar um facto, comportar uma descrição factual, concretizada espacio-temporalmente, contém uma súmula explicativa e conclusiva dos factos que a seguir são descritos, não descrevendo o que de concreto se teria passado na sala, quedando-se a alusão a este compartimento da casa como uma referência completamente anódina.

      Ou seja, em Mafra, foram cometidos apenas quatro e não cinco crimes.   

     

      E ainda na casa de Lisboa do arguido, no dia de festa de aniversário do filho mais novo, o D…, em 29-11-2008, conforme descrito nos pontos de factos provados n.ºs 44 a 47 – um crime.

   

    O acórdão recorrido incorreu em lapso, enunciando o mesmo facto por duas vezes, havendo duplicação, ao reportar os n.º s 36 e 38, como correspondendo a crimes diversos e autónomos, sendo que o descrito no n.º 38 é apenas a concretização de um dos locais focados naquele n.º 36, pois, concretamente, relata o que se passou na garagem, na sequência da introdução feita no facto provado n.º 37.   

    Conclui-se, assim, estarmos perante doze crimes, aliás, como os assistentes entenderam ao deduzir a acusação (ressalvados os demais constantes das duas acusações), não se verificando o vício de insuficiência da matéria de facto, vício decisório previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP.

      Os factos narrados são os necessários e suficientes para ancorar a conclusão de preenchimento, não de treze, mas de doze crimes de abuso sexual de criança, não havendo motivo para determinar o reenvio do processo.

   

     IV Questão – Medida das penas parcelares e única – Redução? – Pena suspensa? 

  

     Confirmada a solução de concurso efectivo de crimes, com a restrição enunciada, há que averiguar da justeza das penas aplicadas.

     Como vimos, a Relação considerou a existência de treze crimes de abuso sexual de criança, entendendo que, contendo o processo os necessários elementos de facto, podia desde logo aplicar a pena respectiva, sem necessidade de reenviar o processo à primeira instância, por entender que o princípio do duplo grau de jurisdição não impõe sempre a possibilidade de recurso da primeira decisão condenatória, invocando em favor de tal posição, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 49/03, de 29-01-2003 e o artigo 2.º, n.º 1, do Protocolo n.º 7, adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que admite a possibilidade de condenação no seguimento de recurso contra decisão absolutória.

     Anota-se que o recorrente não suscitou qualquer reparo a tal solução, que parece correcta, por estar assegurado o direito a um grau de recurso, como se referiu no acórdão de 09-11-2011, por nós relatado, no processo n.º 43/09.9PAAMD.L1.S1.  

     O recorrente refere-se à medida da pena, nas conclusões 26.ª, 2.ª parte, 27.ª e 28.ª, deduzindo no pedido final, a pretensão de aplicação de pena inferior a 5 anos de prisão, suspensa na execução com sujeição a regime de prova.

     Começa o recorrente por considerar manifestamente exagerada a pena aplicada, referindo pena única, mas reportando a pena a aplicar por crime único, única qualificação que tem em vista quando refere pena única. Na verdade, o recorrente não impugna, especificamente, as penas parcelares, nem a pena única, o que se deverá à radical tomada de posição sobre a pretendida prevalência, e manutenção, da qualificação da decisão recorrida, como crime único, defendendo, sem mais, para a hipótese de concurso, o reenvio para novo julgamento para determinação do número dos crimes cometidos, sem nada alvitrar quanto ao quantum das penas parcelares.

     Não obstante, por a determinação da medida concreta das penas integrar matéria de direito, abordar-se-á a mesma.  

     Sobre a determinação da medida concreta das penas parcelares, após referir a penalidade aplicável - pena de prisão de 1 a 8 anos - e o disposto no artigo 71.º do Código Penal, disse o acórdão recorrido, de fls. 935 verso a 936 verso:

    «Considerando as exigências de prevenção de futuros crimes, que relativamente aos dos autos merecem relevo, pela frequência com que ocorrem, há a ponderar essencialmente:

- A favor do agente - a ausência de antecedentes criminais.

- Em desfavor do agente – a prática dos factos com dolo directo, de considerar intenso, a multiplicidade de condutas e a idade da vítima, que à data dos factos tinha apenas 12 anos de idade.

Sendo que a prática de factos deste tipo com menores de 14 anos tem normalmente subjacente a lascívia sexual, sendo elevada a perigosidade do agente voltar a delinquir, é também de se considerar elevada a ilicitude da conduta, além de ser muito elevada a censura social que os factos merecem, sem prejuízo de se terem actualmente por indeterminadas as sequelas que a conduta do Arguido determinará no desenvolvimento futuro da criança.

Posto que tenha confessado, fê-lo de forma parcial e o alegado arrependimento feito já em declaração na audiência, com um pedido de desculpas, mas desacompanhado de outros actos demonstrativos desse arrependimento (como sejam alguma forma de reparação das condutas praticadas) pode ser apenas determinada pelas circunstâncias da aproximação de uma pena de prisão, sem correspondência com uma interiorização do mal da conduta.

São também de ponderar as elevadas razões de prevenção geral, pois que o crime de abuso sexual de crianças é dos crimes que causam mais alarme social, com repulsa e indignação na comunidade.

Também, de ponderar são as razões de prevenção especial, de modo a prevenir a reincidência, o que no caso não será de menosprezar atendendo à postura do arguido na entrevista do relatório social, não sendo de considerar muito relevante a confissão parcial e o alegado arrependimento. E, posto que se não possa considerar de relevar o facto de o arguido ter pendente um outro processo por factos idênticos, em fase de julgamento, não se pode descurar tal indício como um sinal de alguma perturbação da personalidade.

Ponderando assim, à luz dos critérios expostos, o circunstancialismo supra-descrito para aferição da medida da pena, tem-se por adequado fixar esta um pouco acima do limite mínimo da respectiva moldura abstracta. Ou seja, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão para cada um dos 13 crimes praticados pelo arguido.».

      Ao crime de abuso sexual de menor, p. p. pelo artigo 171º, n.º 1, do Código Penal, corresponde uma pena de prisão de um a oito anos.
      O essencial do tema foi tratado de forma correcta na decisão recorrida, sendo avaliadas as condutas do recorrente em função dos parâmetros legais, que foram respeitados, pouco mais havendo a adiantar, já que não se perspectiva qualquer necessidade de alteração, muito embora não se deixe de assinalar a presença de alguma benevolência.
     Como é jurisprudência assente, observados os critérios legais de dosimetria concreta da pena, nomeadamente os do artigo 71.º do Código Penal, há uma margem de actuação do juiz dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar, só sendo admissível correcção perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada – cfr. acórdão deste STJ de  04-03-2004, CJSTJ 2004, tomo 1, 220.
   Como é sabido, o STJ está vinculado pelo princípio da proibição da reformatio in pejus –  artigo 409.º do CPP – mas não se deixa de salientar a benevolência  de tratamento em termos  da medida das penas parcelares, ligeiramente acima do mínimo,  que permanecem intocáveis. 

                                                          *******

   Sendo uma das finalidades das penas, segundo o artigo 40.º do Código Penal, na versão da terceira alteração, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, a tutela dos bens jurídicos, definindo a necessidade desta protecção os limites daquelas, há que, necessariamente, ter em atenção o bem jurídico tutelado no tipo legal em causa.

      Antes do mais, cumpre assinalar que o acórdão recorrido, de fls. 927 a 928 verso, dando razão ao recorrente, operou uma rectificação na qualificação, integrando as condutas provadas no n.º 1 e não no n.º 2 do artigo 171.º do Código Penal, como constava do acórdão da 2.ª Vara Criminal de Lisboa, passando-se de uma moldura de pena de prisão de 3 a 10 anos, para a de 1 a 8 anos. Tal tomada de posição é reafirmada a fls. 933 (§ 3.º) e 935 (ao alto).

     Estabelece a norma:

     “Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos”.

     Na actual sistematização do Código Penal, o crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, ora na redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 04-09, entrada em vigor em 15-09-2007 (artigo 13.º), enquadra-se na categoria “Dos crimes contra as pessoas” - Título I, do Livro II – (Parte especial), e mais especificamente, no Capítulo V, “Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual” – artigos  163.º a 179.º – mais concretamente ainda na Secção II (Crimes contra a autodeterminação sexual) – artigos 171.º a 176.º – e com a agravação constante da disposição comum do artigo  177.º, para além das igualmente comuns normas dos artigos 178.º (queixa)  e 179.º (inibição do poder paternal e proibição do exercício de funções).

     Os referidos artigos 163.º a 179.º, introduzidos na reforma de 1995, “substituiram” os artigos 201.º a 218.º da versão originária do Código Penal de 1982, que tratavam  “Dos crimes sexuais” - Secção II -, então inserta no Capítulo I, com a epígrafe “Dos crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida social”, por novos artigos, que passaram a integrar o capítulo V, «Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual» com os n.ºs  163.º a 179.º, repartidos por três secções, respectivamente, dos crimes contra a liberdade sexual (artigos 163.º a 171.º), dos crimes contra a autodeterminação sexual (artigos 172.º a 176.º) e das disposições comuns (artigos 177.º a 179.º), conferindo-lhes nova redacção (cfr. solução n.º 115, constante do artigo 3.º- A - Relativamente à parte geral - da Lei de autorização legislativa n.º 35/94, de 15-09, rectificada no Diário da República, I Série-A, de 13-12-1994, donde emergiu o Decreto-Lei n.º 48/95, de 15-03, que procedeu à terceira alteração do Código Penal, entrado em vigor em 1-10-1995).

      O crime de abuso sexual de crianças não era dantes previsto como crime autónomo, no Código Penal de 1886 e na versão originária do Código de 1982, embora muitas das condutas abrangidas pela previsão do novo artigo caíssem, na vigência desses diplomas na previsão dos crimes de violação, atentado ao pudor ou de ultraje público ao pudor.

    Maia Gonçalves, in Código Penal Português, anotado e comentado, na 8.ª edição, 1995, pág. 643, em comentário exponenciado na 17.ª edição, de 2005, pág. 603, nota 2, afirma:

     “Neste artigo protegem-se pessoas que presumivelmente ainda não tem o discernimento necessário para, no que concerne ao sexo, se exprimirem com liberdade e autenticidade, defendendo-se tais pessoas contra a prática da cópula, coito anal, coito oral ou de outros actos sexuais de relevo, de actos de carácter exibicionista e de condutas censuráveis obscenas ou pornográficas.

    Como observou o Prof. Figueiredo Dias na discussão dos crimes desta subsecção no seio da CRCP, a especificidade destes crimes reside como que numa obrigação de castidade e virgindade, por estarem em causa menores, seja de que sexo forem. Estes menores até à idade dos 14 anos, segundo o pensamento legislativo, podem ser prejudicados no seu saudável desenvolvimento fisiológico ou psíquico com a prática dos referidos actos e não têm ainda a capacidade e o discernimento necessários para uma livre e esclarecida decisão no que concerne ao relacionamento sexual.

    Trata-se de um crime de perigo abstracto, pelo que pode verificar-se mesmo que não haja lugar a perigo concreto para o correcto desenvolvimento fisiológico ou psíquico do menor”.

    O bem jurídico protegido é a liberdade e autodeterminação sexual, ligado a outro bem jurídico, a saber, o do livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, devendo considerar-se a Secção II como um capítulo importante da função de protecção penal das crianças e dos jovens até certos limites de idade – assim, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 442. Mais à frente, pág. 541, especifica que trata-se ainda “de proteger a autodeterminação sexual, mas sob uma forma muito particular: não face a condutas que representem a extorsão de contactos sexuais por forma coactiva ou análoga, mas face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade de vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade”.

      Segundo Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 473 (e na 2.ª edição actualizada de 2010, a pág. 536), versando os quatro crimes distintos previstos no artigo 171.º, afirma: “O bem jurídico protegido pelas incriminações é a liberdade de autodeterminação sexual da criança, isto é, do menor de 14 anos de idade. Em qualquer dos casos trata-se de um crime de perigo abstracto (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de mera actividade (quanto à forma de consumação do objecto da acção).

      A reforma de 1995 teve em vista uma perspectiva de reforço da tutela dos bens jurídicos pessoais e de uma lógica de maior protecção ao menor, atenta a sua especial vulnerabilidade.

      Assim, de acordo com o n.º 8 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 48/95:

      “Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual foram objecto de particular atenção, especialmente quando praticados contra menor.

Nessa conformidade, o crime sexual praticado contra menor é objecto de uma dupla agravação. Por um lado a que resulta de elevação geral das molduras penais dos crimes de violação e coacção sexual, quer no limite mínimo, quer no máximo; e por outro, a agravação estabelecida para os casos em que tais crimes sejam praticados contra menor de 14 anos. Donde resulta que o crime praticado contra menor de 14 anos é sempre punido mais severamente que o crime praticado contra um adulto, atenta a especial vulnerabilidade da vítima”.

    

      O bem jurídico protegido pela incriminação do crime de abuso sexual de crianças, p. p. artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, é o da liberdade da pessoa menor de 14 anos, que se presume legalmente incapaz de avaliar o sentido e alcance de acto sexual de relevo praticado nela, mesmo que nele consinta. 

     E sendo a liberdade sexual uma das valiosas manifestações da liberdade individual, na sua dimensão multifacetada, a conduta integrante de acto sexual de relevo contra criança naquela faixa etária, atentatório como é da sua liberdade individual, enquadra-se no conceito de criminalidade violenta previsto no artigo 1.º, alínea j), do CPP, que na redacção originária considerava criminalidade violenta “as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos”, anotando-se que com a redacção dada pelo artigo 1.º da Lei n.º 26/2010, de 30-08, a par da já contemplada liberdade pessoal, foi aditada a referência a “liberdade e autodeterminação sexual” (para além de englobar referência a autoridade pública).

   [Far-se-á aqui um parêntesis, para significar que, tal como se referiu a propósito da redacção do artigo 30.º do Código Penal dada pela Lei n.º 40/2010, esta referência a uma outra Lei de 2010, como de resto, acontece com a seguinte alusão à nova Lei de política criminal de 2009, tem apenas em vista fornecer uma imagem global e sequencial do tratamento das questões em análise, surgidas já após a comissão dos crimes em apreciação e sem se pretender retirar qualquer argumento de relevo para a solução encontrada nos vários segmentos, para o que de resto, nos dois últimos casos, sempre seriam imprestáveis, atendendo a que as mudanças foram de ligeira forma e não de substância].       

     As crianças, a par dos idosos, dos deficientes ou grávidas, em virtude do especial desamparo e da vulnerabilidade em que pela sua própria natureza se encontram, quer pela sua idade, quer pela sua constituição, quer pelo seu estado, são ou estão por natureza ingénuas, no sentido de desprevenidas: umas porque o são de forma inerente (as crianças e os deficientes mentais), (…) - neste sentido, Teresa Serra, em Homicídios em Série (Jornadas de Direito Criminal, 1995/6, editado em 1998, II Volume), a fls. 154/5.

     Nesta perspectiva, pode ver-se o enquadramento que é dado a estas matérias pela Lei de política criminal.

     A Lei n.º 38/2009, de 20 de Julho (publicada no DR, 1.ª Série, n.º 138, entrada em vigor em 1 de Setembro de 2009), define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2009-2011 (abarcando o período temporal compreendido entre 1 de Setembro de 2009 e 31 de Agosto de 2011), em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio (Diário da República, I Série, n.º 99), que aprovou a Lei Quadro da Política Criminal, “sucedendo” ao registo similar da antecedente Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto (entrada em vigor em 15 de Setembro de 2007, valendo para o biénio de 2007-2009).

     Estabelece o artigo 1.º: «São objectivos gerais da política criminal prevenir, reprimir e reduzir a criminalidade, promovendo a defesa de bens jurídicos, a protecção das vítimas e a reintegração dos agentes do crime na sociedade».

     No artigo 2.º afirma-se constituírem objectivos específicos da política criminal, para além do mais:

a) Prevenir, reprimir e reduzir a criminalidade violenta, grave ou organizada, incluindo (…) os crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual (…)

b) Promover a protecção de vítimas especialmente vulneráveis, incluindo crianças e adolescentes, mulheres grávidas e pessoas idosas, doentes, deficientes e imigrantes (sublinhámos).    

     Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores integram o lote dos crimes que tendo em conta a dignidade dos bens jurídicos tutelados e a necessidade de proteger as potenciais vítimas são considerados crime de prevenção prioritária - artigo 3.º, n.º 1, alínea a).

     E tendo em conta a sua gravidade e a necessidade de evitar a sua prática futura são considerados crimes de investigação prioritária - artigo 4.º, n.º 1, alínea a).

     No artigo 5.º, na prevenção e investigação dos crimes lesivos da componente pessoal, promove-se, em particular, a protecção de vítimas especialmente vulneráveis, incluindo crianças, mulheres grávidas, pessoas idosas, doentes ou portadoras de deficiência e imigrantes (voltámos a sublinhar).

     Em relação à versão anterior o adjectivo “vulneráveis” substituiu “indefesas” e foi aditado “imigrantes” na alínea b) do artigo 2.º

     No Anexo, onde se enuncia a fundamentação das prioridades e orientações da política criminal, pode ler-se o seguinte: “Os crimes violentos contra as pessoas e contra o património merecem tratamento prioritário. As pessoas especialmente vulneráveis - crianças, mulheres grávidas, pessoas idosas, doentes, deficientes e imigrantes - são os alvos mais fáceis desta criminalidade e justificam o desenvolvimento de programas de prevenção específicos (tornámos a sublinhar).

    

    Como se extrai do acórdão do STJ de 01-04-1998, proferido no recurso n.º 1436/97, in CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 175, o bem jurídico protegido é a criança como criança, parafraseando Figueiredo Dias, em Actas da Comissão de Revisão do Código Penal, pág. 247.  

     A criança não é só destinatário mas também sujeito de direitos, e direitos próprios.

     A CRP estabelece no artigo 69.º n.º 1, que “as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral”.

    Por Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12-09, foi aprovada para ratificação, depois de aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 8 de Junho, a Convenção sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque a 26-01-1990, a qual, nos termos do artigo 8.º da CRP faz parte da nossa ordem jurídica.

     Segundo a Convenção, os direitos da criança abrangem todos os domínios, visando o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade.

     O artigo 19.º expressamente se refere à protecção da criança contra todas as formas de violência sexual.     

     No nosso direito interno, o desenvolvimento da criança sob o aspecto sexual é protegido no art. 172.º CP.

     Importa que a criança continue criança durante toda a sua infância. Toda a criança tem direito de ser criança, como se exprime Marta Pais (Documentação e Direito Comparado, n.º 55/56, 1993, pág. 212). 

     Como se pode ler no acórdão de 19-10-2000, processo n.º 2546/00-5.ª, SASTJ, n.º 44, pág. 87 “Aos 14 anos, a lei fornece uma protecção absoluta aos menores no que concerne ao seu desenvolvimento e crescimento sexuais. A lei protege-os, inclusivamente deles próprios, considerando irrelevante consentimento que prestem para a prática de actos sexuais. 

       No caso presente há que atender ao elevado grau de ilicitude e também ao intenso dolo, na modalidade de directo.

       As razões e necessidades de prevenção geral positiva ou de integração -  que satisfaz a necessidade comunitária de afirmação ou mesmo reforço da norma jurídica violada, dando corpo à vertente da protecção de bens jurídicos, finalidade primeira da punição - são prementes e muito elevadas, fazendo-se especialmente sentir neste tipo de infracção, tendo em conta o bem jurídico violado no crime em questão – a autodeterminação sexual de crianças - e impostas pela frequência de condutas deste tipo e do conhecido alarme social e insegurança que estes crimes em geral causam na comunidade, maxime, nos últimos anos, em que estas questões passaram a assumir muito maior visibilidade, justificando resposta punitiva firme, o que de resto foi bem assinalado na decisão recorrida, sendo de ter em conta os prejuízos que são susceptíveis de acarretar na formação da personalidade e desenvolvimento afectivo e emocional das vítimas.

       A função de prevenção geral que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial tem de ser eminentemente assegurada, sobrelevando, decisivamente, as restantes finalidades da punição.

       Como expende Figueiredo Dias, em O sistema sancionatório do Direito Penal Português, inserto em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, pág. 815, “A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; numa palavra, como estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida”.

       Como se expressou o acórdão do STJ de 04-07-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 225, com o recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos. 

       Trata-se de crime gerador de grande alarme social e repúdio das pessoas em geral, face à enorme intranquilidade que gera no tecido social, que vem assumindo uma prática frequente, sendo elevadas as exigências de reafirmação da norma violada.

   Segundo o já aludido acórdão de 01-04-1998, recurso n.º 1436/97, in CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 175, versando então caso de concurso real de crimes de atentado ao pudor e abuso sexual de crianças, um e outro unificados em continuação criminosa, pronunciou-se nestes termos: “as expectativas da comunidade ficam goradas, a confiança na validade das normas jurídicas esvai-se, o elemento dissuasor não passa de uma miragem, quando a medida concreta da pena não possui o vigor adequado à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, respeitando o limite da culpa. Se uma pena de medida superior á culpa é injusta, uma pena insuficiente para satisfazer os fins da prevenção constitui um desperdício”. 

      Há mais de 20 anos, no acórdão de 16-05-1991, processo n.º 41004, in AJ, 19, dizia-se: neste campo da criminalidade, qualquer apelo a permissivas decisões só poderia conduzir a resultados indesejáveis, se não mesmo perversos.

      No que toca a prevenção especial avulta a personalidade do arguido na forma como actuou ao longo de quinze meses, com absoluta indiferença e insensibilidade pelo valor em causa, não se esgotando na mera prevenção da reincidência.

       Como refere Américo Taipa de Carvalho, a propósito de prevenção da reincidência, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 325, trata-se de dissuasão necessária para reforçar no delinquente o sentimento da necessidade de se auto-ressocializar, ou seja, de não reincidir.

       E no caso de infractores ocasionais, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora o único sentido da prevenção especial.

       As penas fixadas não ofendem as regras da experiência comum, antes são adequadas e proporcionais à defesa do ordenamento jurídico e não ultrapassam a medida da culpa do recorrente, sem prejuízo de se reafirmar uma relativa benevolência de tratamento.

      Pelo exposto, manter-se-ão as penas parcelares aplicadas.

 

        Medida da pena única

       O recorrente na conclusão 28.ª, e na formulação do pedido alude a pena única, mas reporta-se a única pena, pois defende a verificação de apenas um único crime, não se referindo às penas parcelares nem pena conjunta, prescindindo de tomar posição sobre a questão, como acima se referiu.

                                          **************

        Estabelece, quanto a regras de punição do concurso de crimes, o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, em vigor desde 01-10-1995 (e inalterado pelas subsequentes modificações legislativas, operadas pelas Leis n.º 59/2007, de 4 de Setembro, n.º 61/2008, de 31 de Outubro, n.º 32/2010, de 02 de Setembro, n.º 40/2010, de 03 de Setembro, e n.º 4/2011, de 16 de Fevereiro), que “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

      E nos termos do n.º 2, a penalidade, a moldura do concurso, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
       O que significa que no caso presente, atenta a diminuição do número de crimes em concurso, a moldura de punição é agora de 1 ano e 6 meses a 18 anos de prisão.

         A medida da pena unitária a atribuir em sede de cúmulo jurídico reveste-se de uma especificidade própria.

         Por um lado, está-se perante uma nova moldura penal, mais ampla, abrangente, com maior latitude da atribuída a cada um dos crimes.

         Por outro, tem lugar, porque se trata de uma nova pena, final, de síntese, correspondente a um novo ilícito e a uma nova culpa (agora culpa pelos factos em relação), uma específica fundamentação, que acresce à decorrente do artigo 71.º do Código Penal.

 Constitui posição sedimentada e segura neste Supremo Tribunal de Justiça a de nestes casos estarmos perante uma especial necessidade de fundamentação, na decorrência do que dispõem o artigo 71.º, n.º 3, do Código Penal, e os artigos 97.º, n.º 5 e 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em aplicação do comando constitucional ínsito no artigo 205.º, n.º 1, da CRP, onde se proclama que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
       Como estabelece o artigo 71.º, n.º 3, do Código Penal, “Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”, decorrendo, por seu turno, do artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão, e do disposto no artigo 375.º, n.º 1, do mesmo Código, que a sentença condenatória deve especificar os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
        Maia Gonçalves, in Código Penal Anotado e Comentado, 15.ª edição, pág. 277, salientava que “na fixação da pena correspondente ao concurso entra como factor a personalidade do agente, a qual deve ser objecto de especial fundamentação na sentença. Ela é mesmo o aglutinador da pena aplicável aos vários crimes e tem, por força das coisas, carácter unitário”.
       A punição do concurso efectivo de crimes funda as suas raízes na concepção da culpa como pressuposto da punição – não como reflexo do livre arbítrio ou decisão consciente da vontade pelo ilícito. Mas antes como censura ao agente pela não adequação da sua personalidade ao dever - ser jurídico penal.
       Como acentua Figueiredo Dias, em Liberdade, Culpa e Direito Penal, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1983, págs. 183 a 185, “(…) o substracto da culpa (…) não reside apenas nas qualidades do carácter do agente, ético-juridicamente relevantes, que se exprimem no facto, na sua totalidade todavia cindível (…). Reside sim na totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto, e portanto também na liberdade pessoal e no uso que dela se fez, exteriorizadas naquilo a que chamamos a “atitude” da pessoa perante as exigências do dever ser. Daí que o juiz, ao emitir o juízo de culpa ou ao medir a pena, não possa furtar-se a uma compreensão da personalidade do delinquente, a fim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a sua desconformação em face da personalidade suposta pela ordem jurídico-penal. A medida desta desconformação constituirá a medida da censura pessoal que ao delinquente deve ser feita, e, assim, o critério essencial da medida da pena».
       Como referimos, i. a., nos acórdãos de 20-01-2010, processo n.º 392/02.7PFLRS.L1.S1, in CJSTJ 2010, tomo 1, pág. 191, de 09-06-2010, processo n.º 493/07.5PRLSB-3.ª, de 10-11-2010, processo n.º 23/08.1GAPTM.S1 e de 02-02-2011, processo n.º 994/10.8TBLGS.S1-3.ª, “Perante concurso de crimes e de penas, há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido, de modo a surpreenderem-se, ou não, conexões entre os diversos comportamentos ajuizados, através duma visão ou imagem global do facto, encarado na sua dimensão e expressão global, tendo em conta o que ressalta do contexto factual narrado e atender ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, tendo-se em conta a caracterização desta, com sua projecção nos crimes praticados; enfim, há que proceder a uma ponderação da personalidade do agente e correlação desta com os concretos factos ajuizados, a uma análise da função e da interdependência entre os dois elementos do binómio, não sendo despicienda a consideração da natureza dos crimes em causa, da verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, até porque o modelo acolhido é o de prevenção, de protecção de bens jurídicos.
       Todo este trabalho de análise global se justifica tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados pelo(a) condenado(a) é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor ou inclinação para uma “carreira”, ou se, diversamente, a feridente repetição comportamental dos valores estabelecidos emergirá antes e apenas de factores meramente ocasionais”.

 No que concerne à determinação da pena única, deve ter-se em consideração a existência de um critério especial na determinação concreta da pena do concurso, segundo o qual serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação da medida da pena do concurso.
    Como se lê em Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 420, págs. 290/1, a pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 72.º-1 (actual 71.º-1), um critério especial: o do artigo 77.º, n.º 1, 2.ª parte, segundo o qual serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação da medida da pena do concurso.

  E no § 421, págs. 291/2, acentua o mesmo Autor que na busca da pena do concurso, “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”. Acrescenta ainda: “ De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.
   Como se extrai do acórdão deste Supremo Tribunal de 6 de Maio de 2004, in CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 191, a propósito dos critérios a atender na fundamentação da pena única, nesta operação o que releva e interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz uma personalidade propensa ao crime, a dar indícios de projecto de uma carreira, ou é antes, a expressão de uma pluriocasionalidade que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido, mas antes numa conjunção de factores ocasionais, sem repercussão no futuro – cfr. na esteira da posição de Figueiredo Dias, os acórdãos do Supremo Tribunal de 08-07-1998, CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 246; de 24-02-1999, processo n.º 23/99-3.ª; de 12-05-1999, processo n.º 406/99-3.ª; de 27-10-2004, processo n.º 1409/04-3.ª; de 20-01-2005, processo n.º 4322/04-5.ª, in CJSTJ 2005, tomo I, pág. 178; de 17-03-2005, no processo n.º 754/05-5.ª; de 16-11-2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 210; de 12-01-2006, no processo n.º 3202/05-5.ª; de 08-02-2006, no processo n.º 3794/05-3.ª; de 15-02-2006, no processo n.º 116/06-3.ª; de 22-02-2006, no processo n.º 112/06-3.ª; de 22-03-2006, no processo n.º 364/06-3.ª; de 04-10-2006, no processo n.º 2157/06-3.ª; de 21-11-2006, in CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 228; de 24-01-2007, no processo n.º 3508/06-3.ª; de 25-01-2007, nos processos n.ºs 4338/06-5.ª e 4807/06-5.ª; de 28-02-2007, no processo n.º 3382/06-3.ª; de 01-03-2007, no processo n.º 11/07-5.ª; de 07-03-2007, no processo n.º 1928/07-3.ª; de 14-03-2007, no processo n.º 343/07-3.ª; de 28-03-2007, no processo n.º 333/07-3.ª; de 09-05-2007, nos processos n.ºs 1121/07-3.ª e 899/07-3.ª; de 24-05-2007, no processo n.º 1897/07-5.ª; de 29-05-2007, no processo n.º 1582/07-3.ª; de 12-09-2007, no processo n.º 2583/07-3.ª; de 03-10-2007, no processo nº 2576/07-3.ª; de 24-10-2007, no processo nº 3238/07-3.ª; de 31-10-2007, no processo n.º 3280/07-3.ª; de 09-04-2008, no processo n.º 686/08-3.ª (o acórdão ao efectuar o cúmulo jurídico das penas parcelares não elucida, porque não descreve, o raciocínio dos julgadores que orientou e decidiu a determinação da medida da pena do cúmulo); de 25-06-2008, no processo n.º 1774/08-3.ª; de 02-04-2009, processo n.º 581/09-3.ª, por nós relatado, in CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 187; de 21-05-2009, processo n.º 2218/05.0GBABF.S1-3.ª; de 29-10-2009, no processo n.º 18/06.0PELRA.C1.S1-5.ª, in CJSTJ 2009, tomo 3, pág. 224 (227); de 04-03-2010, no processo n.º 1757/08.6JDLSB.S1-5.ª; e de 10-11-2010, no processo n.º 23/08.1GAPTM-3.ª.
     Na expressão dos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, de 20-02-2008, proferido no processo n.º 4733/07 e de 8-10-2008, no processo n.º 2858/08, desta 3.ª Secção, na formulação do cúmulo jurídico, o conjunto dos factos fornece a imagem global do facto, o grau de contrariedade à lei, a grandeza da sua ilicitude; já a personalidade revela-nos se o facto global exprime uma tendência, ou mesmo uma “carreira”, criminosa ou uma simples pluriocasionalidade.

     Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso – cfr., i. a., acórdãos de 17-03-2004,  03P4431; de 08-06-2006, processo n.º 1613/06 – 5.ª; de 07-12-2006, processo n.º 3191/06 – 5.ª; de 20-12-2006, processo n.º 3379/06-3.ª; de 18-04-2007, processo n.º 1032/07 – 3.ª; de 03-10-2007, processo n.º 2576/07-3.ª, in CJSTJ 2007, tomo 3, pág. 198; de 09-01-2008, in CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 181; de 06-02-2008, processos n.º s 129/08-3.ª e 3991/07-3.ª, in CJSTJ 2008, tomo I, pág. 221; de 06-03-2008, processo n.º 2428/07 – 5.ª; de 13-03-2008, processo n.º 1016/07 – 5.ª; de 02-04-2008, processos n.º s 302/08-3.ª e 427/08-3.ª; de 09-04-2008, processo n.º 1011/08 – 5.ª; de 07-05-2008, processo n.º 294/08 – 3.ª; de 21-05-2008, processo n.º 414/08 – 5.ª; de 04-06-2008, processo n.º 1305/08 – 3.ª; de 25-09-2008, processo n.º 2891/08-3.ª; de 29-10-2008, processo n.º 1309/07-3.ª; de 27-01-2009, processo n.º 4032/08-3.ª; de 29-04-2009, processo n.º 391/09 - 3.ª; de 14-05-2009, processo n.º 170/04.9PBVCT.S1-3.ª; de 27-05-2009, processo n.º 50/06.3GAVFR.C1.S1-3.ª; de 18-06-2009, processo n.º 577/06.7PCMTS.S1-3.ª; de 18-06-2009, processo n.º 8523/06.1TDLSB-3.ª; de 25-06-2009, processo n.º 274/07-3.ª, CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 251 (a decisão que efectiva o cúmulo jurídico das penas parcelares necessariamente que terá de demonstrar fundamentando que foram avaliados o conjunto dos factos e a interacção destes com a personalidade); de 21-10-2009, processo n.º 360/08.5GEPTM.S1-3.ª; de 04-11-2009, processo n.º 296/08.0SYLSB.S1-3.ª; de 18-11-2009, processo n.º 702/08.3GDGDM.P1.S1-3.ª; de 25-11-2009, processo n.º 490/07.0TAVVD-3.ª; de 10-12-2009, processo n.º 496/08.2GTABF.E1.S1-3.ª (citado no acórdão de 23-06-2010, processo n.º 862/04.2PBMAI.S1-5.ª), ali se referindo: “Na determinação da pena única do concurso, o conjunto dos factos indica a gravidade do ilícito global, sendo decisiva a avaliação e conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos concorrentes. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente importa, sobretudo, verificar se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira» criminosa), ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”; de 04-03-2010, no processo n.º 1757/08.6JDLSB.L1.S1-5.ª; de 10-03-2010, processo n.º 492/07.7PBBJA.E1.S1-3.ª; de 18-03-2010, no processo n.º 160/06. 7GBBCL.G2.S1-5.ª; de 15-04-2010, no processo n.º 134/05.5PBVLG.S1-3.ª; de 28-04-2010, no processo n.º 260/07.6GEGMR.S1-3.ª; de 05-05-2010, no processo n.º 386/06.3SLSB.S1-3.ª; de 12-05-2010, no processo n.º 4/05.7TDACDV.S1-5.ª; de 27-05-2010, no processo n.º 708/05.4PCOER.L1.S1-5.ª; de 09-06-2010, processo n.º 493/07.5PRLSB-3.ª; de 23-06-2010, no processo n.º 666/06.8TABGC-K.S1-3.ª; de 20-10-2010, processo n.º 400/08.8SZLB.L1-3.ª; de 03-11-2010, no processo n.º 60/09.9JAAVR.C1.S1-3.ª; de 16-12-2010, processo n.º 893/05.5GASXL.L1.S1-3.ª; de 19-01-2011, processo n.º 6034/08.0TDPRT.P1.S1-3.ª; de 02-02-2011, processo n.º 217/08.0JELSB.S1-3.ª; de 31-01-2012, processo n.º 2381/07.6PAPTM.E1.S1-3.ª.

        Como refere Cristina Líbano Monteiro, A Pena «Unitária» do Concurso de Crimes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, págs. 151 a 166, o Código rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente.

      A pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção - dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes.
          
      Por outro lado, na confecção da pena conjunta, há que ter presentes os princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso.               

      Cremos que nesta abordagem, há que ter em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no artigo 71.º do Código Penal – exigências gerais de culpa e prevenção – em conjugação, a partir de 1-10-1995, com a proclamação de princípios ínsita no artigo 40.º, atenta a necessidade de tutela dos bens jurídicos ofendidos e das finalidades das penas, incluída a conjunta, aqui acrescendo o critério especial fornecido pelo artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal - o que significa que o específico dever de fundamentação de aplicação de uma pena conjunta, não pode estar dissociado da questão da adequação da pena à culpa concreta global, tendo em consideração por outra via, pontos de vista preventivos, passando pelo efectivo respeito pelo princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, tornando-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta.
      Neste sentido, podem ver-se aplicações concretas nos acórdãos de 21-11-2006, processo n.º 3126/06-3.ª, CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 228 (a decisão que efectue o cúmulo jurídico tem de demonstrar a relação de proporcionalidade entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação dos factos e a personalidade do arguido); de 14-05-2009, no processo n.º 170/04.9PBVCT.S1-3.ª; de 10-09-2009, no processo n.º 26/05. 8SOLSB-A.S1-5.ª, seguido de perto pelo acórdão de 09-06-2010, no processo n.º 493/07.5PRLSB.S1-3.ª, ali se referindo que “Importa também referir que a preocupação de proporcionalidade a que importa atender, resulta ainda do limite intransponível absoluto, dos 25 anos de prisão, estabelecido no n.º 2 do art. 77.º do CP. É aqui que deve continuar a aflorar uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menor das outras”; de 18-03-2010, no processo n.º 160/06. 7GBBCL.G2.S1- 5.ª, onde se afirma, para além da necessidade de uma especial fundamentação, que “no sistema de pena conjunta, a fundamentação deve passar pela avaliação da conexão e do tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifica e pela avaliação da personalidade unitária do agente. Particularizando este segundo juízo - e apara além dos aspectos habitualmente sublinhados, como a detecção de uma eventual tendência criminosa do agente ou de uma mera pluriocasionalidade que não radica  em qualidades desvaliosas da personalidade - o tribunal deve atender a considerações de exigibilidade  relativa e à análise da concreta necessidade de pena resultante da inter-relação dos vários ilícitos típicos”; de 15-04-2010, no processo n.º 134/05.5PBVLG.S1-3.ª; de 21-04-2010, no processo n.º 223/09.7TCLSB.L1.S1-3.ª; e do mesmo relator, de 28-04-2010, no processo n.º 4/06.0GACCH.E1.S1-3.ª.
      Com interesse, veja-se o acórdão de 28-04-2010, proferido no processo n.º 260/07.6GEGMR.S1-3.ª, relativamente a onze crimes de roubo simples a agências bancárias.

      Como referimos nos acórdãos de 23-11-2010, processo n.º 93/10.2TCPRT.S1 e de 24-03-2011, processo n.º 322/08.2TARGR.L1.S1 “A determinação da pena do concurso exige um exame crítico de ponderação conjunta sobre a conexão e interligação entre todos os factos praticados e a personalidade do seu autor, de forma a alcançar-se a valoração do ilícito global e entender-se a personalidade neles manifestada, de modo a concluir-se pela motivação que lhe subjaz, se emergente de uma tendência para delinquir, ou se se trata de pluriocasionalidade não fundamentada na personalidade, tudo em ordem a demonstrar a adequação, justeza, e sobretudo, a proporcionalidade, entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação conjunta daqueles dois factores.   
       Importará indagar se a repetição operou num quadro de execução homogéneo ou diferenciado, quais os modos de actuação, de modo a concluir se estamos face a indícios desvaliosos de tendência criminosa, ou se estamos no domínio de uma mera ocasionalidade ou pluriocasionalidade, tendo em vista configurar uma pena que seja proporcional à dimensão do crime global, pois ao novo ilícito global, a que corresponde uma nova culpa, caberá uma nova, outra, pena.  

       Com a fixação da pena conjunta não se visa re-sancionar o agente pelos factos de per si considerados, isoladamente, mas antes procurar uma “sanção de síntese”, na perspectiva da avaliação da conduta total, na sua dimensão, gravidade e sentido global, da sua inserção no pleno da conformação das circunstâncias reais, concretas, vivenciadas e específicas de determinado ciclo de vida do(a) arguido(a) em que foram cometidos vários crimes, em espaço temporal curto”.
      Como se refere no acórdão de 10-09-2009, processo n.º 26/05.8.SOLSB-A.S1, 5.ª Secção, “a pena conjunta situar-se-á até onde a empurrar o efeito “expansivo” sobre a parcelar mais grave, das outras penas, e um efeito “repulsivo” que se faz sentir a partir do limite da soma aritmética de todas as penas. Ora, esse efeito “repulsivo” prende-se necessariamente com uma preocupação de proporcionalidade, que surge como variante com alguma autonomia, em relação aos critérios da “imagem global do ilícito” e da personalidade do arguido. Proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar, em relação ao conjunto de todas elas.  
       Se a pena parcelar é uma entre muitas outras semelhantes, o peso relativo do crime que traduz é diminuto em relação ao ilícito global, e portanto, só uma fracção menor dessa pena parcelar deverá contar para a pena conjunta. (Asserção repetida no acórdão do mesmo relator, de 23-09-09, no processo n.º 210/05.4GEPNF.S2 -5.ª).          
      A preocupação de proporcionalidade a que importa atender resulta do limite intransponível absoluto dos 25 anos de prisão estabelecido no n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal. É aqui que deve continuar a aflorar uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, face à grande criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menor das outras.
      Como se extrai dos acórdãos de 12-05-2010, processo n.º 4/05.7TACDV.S1-5.ª e de 16-12-2010, no processo n.º 893/05.5GASXL.L1.S1-3.ª, a pena única deve reflectir a razão de proporcionalidade entre as penas parcelares e a dimensão global do ilícito, na ponderação e valoração comparativas com outras situações objecto de apreciação, em que a dimensão global do ilícito se apresenta mais intensa.

      Referem ainda a ideia de proporcionalidade os acórdãos de 11-01-2012, processo n.º 131/09.1JBLSB.L1.-A.S1-3.ª, de 31-01-2012, processo n.º 2381/07.6PAPTM.E1.S1-3.ª e de 05-07-2012, processo n.º 246/11.6SAGRD.S1-3.ª.

          

       Retomando o caso concreto.

           

       O Tribunal da Relação fixou a pena conjunta a partir de uma moldura penal abstracta de 1 ano e 6 meses a 19 anos e 6 meses de prisão, face aos treze crimes que considerou verificados.

       Atenta a operada exclusão de um dos crimes, a moldura de concurso passa a ser de 1 ano e 6 meses a 18 anos de prisão.

      Ao fixar a pena conjunta, o acórdão recorrido apoiou-se no acórdão de 11-12-2008, proferido no processo n.º 08P3632, da 5.ª Secção, nos termos de fls. 936 verso a 937 verso, e após a citação do último trecho daquele, onde se afirma “ser de “agravar” a pena parcelar mais grave numa proporção, adequada ao caso, do remanescente das restantes penas que oscile, em princípio, entre 1/3 e 1/5.” diz:

   “Só em casos excepcionais, em que os factos e a personalidade do agente obriguem à ultrapassagem desses limites, eles devem ser ultrapassados.

No entendimento citado, tendo em conta a factualidade em causa, a personalidade do arguido vertida nos factos e, por outro lado, a rejeição que a comunidade tem perante a prática de tais actos, exige que o arguido seja punido com uma pena que o faça sentir a enorme dimensão da censura social por tais condutas e que ao mesmo tempo se mostre suficientemente intimidante para futuros comportamentos idênticos.

    Tudo ponderado, na moldura penal balizada entre o limite mínimo de 1 ano e 6 meses e o máximo de 19 anos e 6 meses, entende-se por adequada a pena unitária de 6 anos de prisão.

    Atenta a medida da pena única aplicada, não é de colocar a questão da suspensão da execução da pena, por cair o pressuposto formal do limite máximo até onde é possível suscitar-se a aplicação de tal pena de substituição -artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal”.

     


     No presente caso é evidente a conexão e estreita ligação entre os doze crimes cometidos pelo recorrente, revelando a assunção de condutas homótropas, com afinidades e pontos de contacto nas situações analisadas, tudo se concretizando num período temporal de quinze meses, mais concretamente, de 28-08-2007 a 29-11-2008.
    O conjunto de ilícitos traduz-se em condutas violadoras da liberdade de autodeterminação sexual, do direito da menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso.

    As circunstâncias do caso em apreciação apresentam um acentuado grau de ilicitude global, manifestado no número, na natureza e gravidade dos crimes praticados, nos bens jurídicos violados na área dos direitos de personalidade da menor abusada.

     Há que ter em conta o elevado alarme social que este tipo de actuações criminosas suscita na comunidade, com repercussões altamente negativas também em sede de prevenção geral.

     A pena unitária tem de responder à valoração, no seu conjunto e interconexão, dos factos e personalidade do arguido, afigurando-se-nos que no caso a pluralidade emerge de pluriocasionalidade.
     Neste contexto, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do arguido, tendo em conta a moldura do concurso que vai de um ano e seis meses a dezoito anos de prisão, atendendo ao conjunto dos factos, a conexão entre eles, com similitude do modo de execução de conduta, período temporal da actuação, é de concluir por um elevado grau de demérito da conduta do recorrente, sendo a pena aplicada, por proporcional em relação ao ilícito global, de manter, não obstante a redução de um dos crimes, não se mostrando, pois, necessária intervenção correctiva deste Supremo Tribunal de Justiça no sentido de fazer incidir um maior factor de compressão, mantendo-se a pena conjunta fixada em seis anos de prisão.

       Da suspensão da execução da pena

      O recorrente na conclusão 28.ª expressou a pretensão de aplicação de pena única que possibilitasse a aplicação desta pena de substituição – concretamente, pena inferior a cinco anos de prisão, sendo sujeita a regime de prova.

     Atenta a medida da pena única aplicada e ora confirmada, não é de colocar a questão da suspensão da execução da pena, por falecer o pressuposto formal do limite máximo até onde é possível suscitar-se a aplicação de tal pena de substituição, pois que como decorre do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, em vigor desde 15-09-2007 e aqui aplicável por força do que dispõem os artigos 29.º, n.º 4, da CRP e 2.º, n.º 4, do Código Penal “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos …”, ficando assim prejudicada a pretensão de suspensão da execução da pena.

        V Questão – Indemnização cível - Admissibilidade do recurso - Redução do montante indemnizatório

      A questão é abordada pelo recorrente nas conclusões 4.ª, 29.ª, 30.ª e 31.ª.

    O recorrente começa por defender a admissibilidade do recurso e, não colocando em causa a existência do dano, impugna apenas o quantitativo fixado, pretendendo a sua redução.

    

     Começando pela admissibilidade do recurso.

     Diz o arguido na conclusão 4.ª:

 4º) Como tal, até por imperativos de natureza constitucional - art° 32° da Constituição da República Portuguesa - ao arguido não lhe pode ser negada a possibilidade de recorrer, sendo-lhe também possível fazê-lo, atendendo ao montante do pedido formulado, relativamente à parte cível da condenação;

    

     Da verificação da dupla conforme       

      A demandante em 12 de Julho de 2010, de fls. 262 a 270 do 2.º volume, pediu a condenação do arguido no pagamento da quantia de € 40.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

      A deliberação de primeira instância, de 25 de Maio de 2011, fixou a indemnização em € 25.000,00, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde tal data até integral pagamento, o que foi confirmado pelo acórdão da Relação de 16 de Fevereiro de 2012.

 

Questão Prévia – (In) admissibilidade do recurso

     Atendendo a que os factos foram cometidos entre 28 de Agosto de 2007 e 29 de Novembro de 2008, tendo o presente processo tido início em 19 de Maio de 2009, considerando a data da dedução do pedido de indemnização civil, que teve lugar em 12 de Julho de 2010, atendendo à alteração legislativa decorrente da introdução do n.º 3 do artigo 400.º do Código de Processo Penal pela Lei n.º 48/2007, de 24 de Agosto, bem como a alteração legislativa decorrente da introdução no processo civil do princípio da dupla conforme (nova redacção em 2007 do artigo 721.º do CPC), há que colocar esta questão prévia, indagando se o acórdão ora em crise é recorrível.

       No domínio do Código Civil de 1867 e do Código de Processo Penal de 1929, quer um, quer outro dos diplomas continham um capítulo próprio, a regular de forma autónoma a responsabilidade por perdas e danos.

       Ali um capítulo com a epígrafe «Da responsabilidade civil conexa com a responsabilidade criminal», dispondo no artigo 2373.º que a indemnização civil conexa com a responsabilidade criminal, nos termos dos artigos 2382.º a 2392.º (que dispunham sobre a graduação da responsabilidade proveniente dos factos criminosos), será exigida no competente processo criminal. 

       No Código de Processo Penal de1929, com o Capítulo II do Título I, do Livro I, com a epígrafe “Da acção civil”, abrangendo os artigos 29.º a 34.º.

       Enquanto o Código Civil de 1867 e o Código de Processo Penal de 1929 regulavam autonomamente a responsabilidade por perdas e danos emergentes do crime, nos seus pressupostos e quantitativamente, o Código Penal de 1982 – artigo 128.º – remeteu a disciplina da responsabilidade por perdas e danos para a lei civil, afastando o entendimento de que essa responsabilidade tinha natureza diversa da meramente civil, solução que foi mantida na revisão de 1995, apenas se alterando o número do preceito que passou para o artigo 129.º. 

       De acordo com o artigo 129.º do Código Penal, sob a epígrafe “Responsabilidade civil emergente de crime”, na versão da terceira alteração do Código Penal, operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1 de Outubro seguinte, “sucedendo” ao artigo 128.º do Código Penal de 1982, “A indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil”.

       Desde cedo a jurisprudência entendeu que tal norma só determina que a indemnização seja regulada “quantitativamente e nos seus pressupostos” pela lei civil, remetendo para os critérios da lei civil relativos à determinação concreta da indemnização, não tratando de questões processuais, que são reguladas pela lei adjectiva penal, nomeadamente nos seus artigos 71.º a 84.º – neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-12-1984, BMJ n.º 342, pág. 227; de 06-03-1985, BMJ n.º 345, pág. 213; de 13-02-1986, processo n.º 38028; de 06-01-1988, BMJ n.º 373, pág. 264; fundamentação do Assento de 27-01-1993, BMJ n.º 423, pág. 57; de 12-01-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 181; de 09-06-1996, processo nº 6/95; de 10-12-1996, CJSTJ 1996, tomo 3, pág. 202 e BMJ, n.º 462, pág. 294; de 09-07-1997, CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 260; de 14-11-2002, processo n.º 3316/02-5.ª; de 24-11-2005, processo n.º 2831/05-5.ª; de 07-03-2007, processo n.º 4596/06-3.ª; de 25-06-2008, processo n.º 449/08-3.ª; de 03-09-2008, processo n.º 3982/07-3.ª; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08-3.ª; de 29-10-2008, processo n.º 3373/08-3.ª; de 05-11-2008, processo n.º 3266/08-3.ª; de 10-12-2008, processo n.º 3638/08-3.ª [a interdependência das acções significa independência substantiva e dependência (a «adesão») processual da acção cível relativamente ao processo penal]; de 18-02-2009, processo n.º 2505/08-3.ª; de 25-02-2009, processo n.º 3459/08-3.ª; de 15-04-2009, processo n.º 3704/08-3.ª; de 18-06-2009, processo n.º 81/04.8PBBGC.S1-3.ª; de 04-02-2010, processo n.º 106/01.9IDPRT.S1-3.ª; de 24-02-2010, processo n.º 151/99.2PBCLD.L1.S1-3.ª; de 15-09-2010, processo n.º 322/05.4TAEVR.E1.S1-3.ª.

       

Conhecidos os pressupostos relativos ao valor global da indemnização arbitrada e da sucumbência do ora recorrente, bem como as datas da decisão de primeira instância e do acórdão ora recorrido, totalmente confirmativo daquele neste segmento cível, vejamos o que releva para a questão que ora se coloca.

  Em Setembro de 2007, ocorreu alteração legislativa no que respeita à admissibilidade do recurso da parte cível da sentença penal, conferindo a lei nova um alargamento das hipóteses de recurso na acção civil conexa com a criminal, mesmo na irrecorribilidade da parte criminal, mas sendo de colocar a questão de saber se tal abertura terá de ser confrontada com a regra da dupla conforme vigente desde 1 de Janeiro de 2008 no processo civil. 

         

Vejamos a evolução legislativa concernente à própria recorribilidade neste segmento específico do pedido de indemnização deduzido no processo criminal.

Dantes, a respeito da admissibilidade do recurso restrito a matéria cível, estabelecia o artigo 400.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, então na redacção da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto:

«Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa a indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada».

O acórdão uniformizador de jurisprudência (AUJ), cognominado na Imprensa Nacional/Casa da Moeda de «Assento» n.º 1/2002, de 14 de Março de 2002, proferido no processo n.º 255-A/98, da 5.ª Secção, publicado in Diário da República, I Série - A, n.º 117, de 21-05-2002,  fixou jurisprudência no sentido de que:

«No regime do Código de Processo Penal vigente - n.º 2 do artigo 400.º, na versão da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto - não cabe recurso ordinário da decisão final do tribunal da Relação, relativa à indemnização civil, se for irrecorrível a correspondente decisão penal».

No sentido de que a norma do n.º 2 do artigo 400.º do Código de Processo Penal não se apresentava desprovida de razoabilidade e justificação e não se mostrava ofensiva do princípio da igualdade, não sendo de julgar inconstitucional, pronunciaram-se os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 320/2001, de 04-07-2001, processo n.º 641/00, in DR - II Série, n.º 258; de 07-11-2001, n.º 94/2001; de 13-03-2001, processo n.º 589/00-3.ª, in DR - II Série, n.º 96; de 24-04-2001, n.º 100/2002; de 27-02-2002, processo n.º 557/2001-1.ª, in DR - II Série, n.º 79, de 04-04-2002, e referenciando o citado AUJ n.º 1/2002, o acórdão n.º 338/2005, de 22-06-2005, proferido no processo n.º 596/2002-2.ª, in DR - II Série, n.º 145, de 29-07-2005, que decidiu: «Não julgar inconstitucional o artigo 432º, alínea b), conjugado com o artigo 400º, n.º s 1, alínea e) e 2, do CPP, interpretado no sentido de que não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisão do Tribunal da Relação relativa à indemnização civil, proferida em 2ª instância, se for irrecorrível a correspondente decisão penal».

       Em 24 e 29 de Agosto de 2007, foram publicados dois diplomas que vieram alterar o panorama dos recursos, sendo no que respeita aos recursos cíveis naquele caso, e dos recursos em acções cíveis enxertadas em processo penal, no segundo, sendo patente que o legislador terá querido aproximar os respectivos regimes recursórios.    

    

       A 15.ª alteração do Código de Processo Penal, operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto (Diário da República, I Série, n.º 166, de 29-08, rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 100-A/2007, DR, Suplemento n.º 207, de 26 de Outubro, por seu turno, rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 105/2007, DR n.º 216, de 09 de Novembro), entrada em vigor no imediato dia 15 de Setembro seguinte (artigo 7.º), procedeu, no que ora interessa, à alteração do artigo 400.º do CPP.

A Lei n.º 48/2007 manteve a redacção do n.º 2 do artigo 400.º e introduziu o n.º 3, que estabelece:

«Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil».

A partir daqui, alterou-se o paradigma do sistema recursório, a nível da recorribilidade autónoma da decisão cível, independentemente da sorte da decisão no segmento penal, o que deixava antever óbvias dificuldades de concatenação entre o caso julgado criminal, porque já não admissível o recurso neste vector (como diz o preceito legal “mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal”), mas apenas da matéria cível, e a decisão nesta sede.

O citado n.º 3 do artigo 400.º, do Código de Processo Penal constitui inovação, que veio contrariar a jurisprudência fixada pelo “Assento” n.º 1/2002.

Face ao regime anterior, havia lugar a apenas um grau de recurso, dizendo o Tribunal da Relação a solução final, divergindo assim os graus de recurso, consoante houvesse ou não adesão ao processo penal.

Ora, foi justamente a equiparação de tratamento nas duas formas de adjectivação do pedido de indemnização, que esteve na base da inovação introduzida em 2007.

Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 2007, págs. 1007/8 «A bem da “igualdade” entre todos os recorrentes em matéria civil, dentro e fora do processo penal, como se afirma na motivação da proposta de lei n.º 109/X, o legislador introduz uma quebra ao princípio da adesão».

Na 4.ª edição actualizada, de Abril de 2011, é repetida esta consideração, sendo aditado o seguinte: “(concorda, SSantos, 2008, b:363)”.

       A preocupação com o princípio da igualdade já vinha da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X que explicitou: “Para restringir o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal, substitui-se, no artigo 400.º, a previsão de limites máximos superiores a 5 e 8 anos de prisão por uma referência a penas concretas com essas medidas. Prescreve-se ainda que quando a Relação, em recurso, não conhecer a final do objecto do processo, não cabe recurso para o Supremo. Para garantir o respeito pela igualdade, admite-se a interposição de recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil mesmo nas situações em que não caiba recurso da matéria penal.”

       Maia Gonçalves em anotação ao artigo 400.º, no Código de Processo Penal Anotado – Legislação Complementar, Almedina, 16.ª edição, 2007, dizia, a págs. 841:

       “3. A norma do n.º 2 foi decalcada em disposição semelhante prevista para ser introduzida no CPC pela Comissão que, aquando do funcionamento da CRCPP, estava a preparar a revisão daquele diploma. A disposição representa limitação do direito de recorrer relativamente ao regime do art. 626.º, n.º 6, do CPP de 1929, na redacção introduzida pelo Dec.-Lei n.º 402/82, de 23 de Setembro; perante esse regime podia haver lugar a recurso sempre que o montante do pedido excedesse a alçada do tribunal recorrido.”.

       “4. O n.º 3, introduzido pela Lei n.º 48/2007, veio contrariar a jurisprudência fixada pelo STJ. Haja ou não lugar a recurso da matéria penal, pode haver lugar a recurso da parte relativa à indemnização civil, se o puder haver perante a lei civil, e conforme se estabelece no n.º 2. (realce nosso).

       Entretanto, no plano do processo civil.

      

       A Lei n.º 6/2007, de 2 de Fevereiro (Diário da República, I Série, n.º 24, de 02-02-2007), autorizara o Governo a alterar o regime dos recursos em processo civil e o regime dos conflitos de competência, e definindo o sentido e extensão da autorização, para além do aumento das alçadas, consignado na alínea c), preconizava na alínea g) a “Consagração da inadmissibilidade do recurso de revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.

       Na sequência de tal Lei surgiu o Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto (publicado no Diário da República - I.ª Série, n.º 163, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 99/2007, in Diário da República - I Série, n.º 204, de 23-10) em vigor - artigo 12.º, n.º 1 - a partir de 1 de Janeiro de 2008, o qual procedeu, para além do mais, à revisão da arquitectura do sistema  de recursos no processo civil.

       A reforma, como dava conta o preâmbulo, foi norteada por três objectivos fundamentais: simplificação, celeridade processual e racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, acentuando-se as suas funções de orientação e uniformização da jurisprudência.

       Subsumiam-se dentro desse desígnio de racionalização do acesso ao STJ, para além da revisão do valor da alçada da Relação para € 30.000,00, a introdução da regra da «dupla conforme», pela qual se consagra a inadmissibilidade de recurso do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1.ª instância.

      O diploma alterou vários preceitos, revogou alguns e aditou outros, procedendo, a final, à republicação do capítulo VI do subtítulo I do título II do livro III do Código de Processo Civil, ou seja, todo o capítulo dos recursos.

      Estabelece o artigo 678.º do CPC:

1 - O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.

     

      E o artigo 721.º:

3 - Não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.

     O artigo seguinte é o aditado Artigo 721.º-A que permite a revista excepcional, dispondo:

1 - Excepcionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:

a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b) Estejam em causa interesses de particular relevância social;

c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

2 - O requerente deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição:

a) As razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b) As razões pelas quais os interesses são de particular relevância social;

c) Os aspectos de identidade que determinam a contradição alegada, juntando cópia do acórdão-fundamento com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição.

3 – A decisão quanto à verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 compete ao Supremo Tribunal de Justiça, devendo ser objecto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes escolhidos anualmente pelo presidente de entre os mais antigos das secções cíveis.

4 – A decisão referida no número anterior é definitiva.

     No que toca a alçadas antes da revisão de 2007.

     De harmonia com o disposto no artigo 24.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (aprovou a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais):

1 - Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de 3.000.000$ [€14.963,94] e a dos tribunais de 1.ª instância é de 750.000 [3.740,98].

            2 - Em matéria criminal, não há alçada, sem prejuízo das disposições processuais relativas à admissibilidade de recurso.

            3 - A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção.

     [A correspondência para euros foi feita pelo Decreto-Lei n.º 323/01, de 14-12 (artigo 3.º)].

     O artigo 5.º do referido Decreto-Lei n.º 303/2007 alterou a redacção do artigo 24.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (LOFTJ), que passou a dispor:

     1 - Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de € 30.000 e a dos tribunais de 1.ª instância é de € 5.000.

     O diploma em causa deixou intocados os n.ºs 2 e 3 daquele artigo 24.º.

     Ainda de harmonia com o artigo 31.º da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto (aprovou a nova Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais):

1 - Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de € 30 000 e a dos tribunais de 1.ª instância é de € 5000.

            2 - Em matéria criminal, não há alçada, sem prejuízo das disposições processuais relativas à admissibilidade de recurso.

            3 - A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção.

  

                                                      ******

  

No caso presente verifica-se que o acórdão recorrido, ao apreciar o pedido de indemnização civil deduzido, confirmou a decisão sobre ele proferida em 1.ª instância, sem voto de vencido.

       No domínio do anterior regime havia uma diversidade de tratamento conforme a pretensão ressarcitória fosse deduzida no âmbito de acção cível de indemnização por danos emergentes de acidente de viação ou em processo criminal.

       Ali, desde que respeitados os parâmetros referentes a valor do pedido e da sucumbência, poderia o inconformado recorrer até ao Supremo Tribunal de Justiça.

       Na segunda hipótese, verificada a adesão ao processo criminal, desde que não se pudesse recorrer da parte criminal, estava vedado o recurso para o Supremo.

Ou seja: no primeiro caso, verificados os necessários pressupostos, o recurso poderia ir até ao Supremo; no segundo caso, preenchidos igualmente os requisitos de recorribilidade, a reapreciação quedava-se pela Relação, que assim dizia a última palavra na composição de interesses. 

Foi para acabar com este desigual tratamento, que foi introduzido o n.º 3 do artigo 400.º do CPP.

Ora se assim é, mal se compreenderia que o sistema ao resolver um problema, abrisse uma outra diversa fonte de desigualdade, agora precisamente de sinal contrário, cabendo o favorecimento ao pleiteante de enxerto, que mesmo em caso de irrecorribilidade da parte criminal, poderia levar a reapreciação da acção cível enxertada até ao STJ, mesmo que a Relação tivesse confirmado in totum a decisão de primeira instância, ao passo que o recorrente na acção em processo civil, verificada a dupla conforme, veria vedado o acesso ao Supremo. 

       Por outras palavras, agora gerar-se-ia uma desigualdade que seria de sinal contrário, pois verificando-se dupla conforme, haveria apenas um grau de recurso na acção cível e dois graus no enxerto cível, que ficaria com mais um grau de recurso não permitido na acção cível.

        A chamada “dupla conforme” está prevista apenas no recurso da matéria criminal no artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP, nada se encontrando previsto para as situações de dupla conforme que se verifiquem na acção enxertada.

Pelas razões assinaladas, a solução mais plausível passará pela aplicação subsidiária do limite da dupla conforme, sendo de considerar que a viabilidade de recurso de decisão de pedido cível enxertado para o Supremo Tribunal de Justiça encontra-se ainda subordinada ao regime da lei processual civil, ou seja, à regra do n.º 3 do artigo 721.º do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 4.º do CPP.

       Como foi referido no acórdão de 9-05-2012, processo n.º 199/09.0PAVNF.P1.S1 desta Secção “O legislador ao aditar a norma do nº 3 ao artº 400º do CPP, no sentido de que “Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil” não excluiu os pressupostos processuais de admissibilidade do recurso relativa à indemnização civil, que vêm condicionados por regras processuais de natureza cível, como é o caso do disposto no nº 2 do artº 400º do CPP, - v. identicamente citado artº 678º nº 1 do CPC - que faz depender essa admissibilidade de recurso, da interligação entre o valor da alçada, ali definida e o valor da sucumbência”.

        Este Supremo Tribunal tem vindo a entender, de modo largamente maioritário, no sentido da aplicação subsidiária da citada norma do processo civil nos casos de enxerto cível, solução a que aderimos pelas razões expostas e até em face de três participações como adjunto, e adoptada no acórdão de 27-06-2012, que relatámos no processo n.º 1466/07.3TABRG.G1.S1, apenas se assinalando que nos casos dos acórdãos por nós proferidos em 18-02-2009 e 24-02-2010, nos processos n.ºs 2839/08 e 151/99.2PBCLD.L1.S1, colocando-se questão de direito intertemporal, a acção cível tinha sido interposta em data anterior a 1-01-2008, tendo-se considerado cognoscível o recurso em função do regime anterior, entendido nos casos concretos como mais benéfico para os recorrentes.

        Segue-se a indicação dos acórdãos em que foi considerada a inadmissibilidade de recurso em caso de dupla conforme:

29-09-2010, processo n.º 343/05.7TAVFN.P1.S1 – 3.ª Secção

10-11-2010, processo n.º 3891/03.0TDPRT.S1 – 3.ª Secção

24-03-2011, processo n.º 2436/06.4TAVNG.P1.S1 – 3.ª Secção

07-04-2011, processo n.º 4068/07.0TDPRT.G1.S1 – 5.ª Secção (com um voto de vencido)

22-06-2011, processo n.º 444/06.4TASEI.C1.S1 – 5.ª Secção (com um voto de vencido), in CJSTJ 2011, tomo 2, pág. 193

30-11-2011, processo n.º 401/06.0GTSTR.E1.S1 – 3.ª Secção (citando os acórdãos de 29-09-2010 e de 22-06-2011)

15-12-2011, processo n.º 53/04.2IDAVR.P1.S1 – 5.ª Secção
25-01-2012, processo n.º 360/06.0PTSTB.S1 – 3.ª Secção
29-02-2012, processo n.º 220/07.7GAVNF.P1.S1 – 5.ª Secção
21-03-2012, processo n.º 390/04.6TASTS.P2.S1 – 3.ª Secção
11-04-2012, processo n.º 3081/06.0TAOER.L1.S1 – 3.ª Secção
11-04-2012, processo n.º 3969/07.5TDLSB.L1.S1 – 3.ª Secção, com o mesmo relator do anterior

09-05-2012, processo n.º 199/09.0PAVNF.P1.S1 – 3.ª Secção

6-05-2012, processo n.º 3/09.0IDFAR.E1.S1 – 3.ª Secção

20-06-2012, processo n.º 889/08.5GFSTB.E1.S1 – 3.ª Secção (interviemos como adjunto nos três últimos).                              

         Vejamos o que argumentado foi em alguns desses arestos.

       Como se extrai do acórdão de 29-09-2010, processo n.º 343/05.7TAVFN.P1.S1 – 3.ª Secção:

“Com a introdução do n.º 3 daquele preceito o legislador subtraiu ao regime de recursos da lei adjectiva penal as decisões relativas à indemnização civil, submetendo-as integralmente ao regime da lei adjectiva civil, o que fez conforme afirmação consignada na motivação da Proposta de Lei 109/X, a bem da “igualdade” entre todos os recorrentes em matéria civil, dentro e fora do processo penal.

Daqui resulta, necessariamente, que o n.º 3 do art. 400.º veio submeter a impugnação de todas as decisões civis proferidas em processo penal ao regime previsto na lei adjectiva civil, no sentido de que às decisões (finais) relativas à indemnização civil proferidas em processo penal é integralmente aplicável o regime dos recursos estabelecido no CPC.

De acordo com o n.º 3 do art. 721.º do CPC, não é admitida a revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida em 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte. No caso vertente, verificamos que o acórdão recorrido, no segmento que apreciou o pedido de indemnização civil deduzido, confirmou a decisão sobre ele proferida em 1.ª instância, sem voto de vencido. Por outro lado, não se verifica qualquer das situações de excepção previstas no art. 721.º-A do CPC. Assim sendo, não é admissível o recurso interposto pelos demandados.

Acórdão de 24-03-2011, Processo n.º 2436/06.4TAVNG.P1.S1-3.ª Secção

“O legislador penal de 2007 entendeu alterar o regime recursório em matéria de decisões proferidas sobre o pedido de indemnização civil, pondo em causa o princípio da adesão consagrado no art. 71.° do CPP, e estabelecendo posição contrária à assumida pelo STJ no Ac. 1/02, publicado no DR I-A, de 21-05-2002.

(…) Com tal alteração o legislador subtraiu ao regime de recursos da lei adjectiva penal as decisões relativas à indemnização civil, submetendo-as integralmente ao regime da lei adjectiva civil, o que fez, conforme afirmação consignada na motivação da proposta de Lei 109/X, a bem da “igualdade” entre todos os recorrentes em matéria civil, dentro e fora do processo penal.

À alteração introduzida subjaz, pois, o propósito de colocar em pé de igualdade todos aqueles que pretendam impugnar decisão civil proferida, dentro ou fora do processo penal, ou seja, quer a respectiva causa ou pleito se desenvolva em processo penal ou em processo civil.

Daqui resulta, necessariamente, que o n.° 3 do art. 400.° veio submeter a impugnação de todas as decisões civis proferidas em processo penal ao regime previsto na lei adjectiva civil, no sentido de que às decisões (finais) relativas à indemnização civil proferidas em processo penal é integralmente aplicável o regime dos recursos estabelecido no CPC. É este o único entendimento possível face à ratio do preceito em causa”.

Acórdão de 07-04-2011, Processo n.º 4068/07.0TDPRT.G1.S1 - 5.ª Secção

“Nos termos do art. 721.º, n.º 1, referido ao art. 691.º, n.º 1, do CPC (versão do DL 303/2007, de 24-08), cabe recurso de revista para o STJ do acórdão da Relação que tenha incidido sobre uma decisão de 1.ª instância que tenha posto termo ao processo. Mas, de acordo com o n.º 3 do primeiro destes preceitos, «não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte»: é o chamado sistema da “dupla conforme”.

Esta norma é subsidiariamente aplicável aos pedidos de indemnização civil julgados no processo penal, por força do disposto no art. 4.º do CPP.

Se o legislador do CPP quis consagrar a solução de serem as mesmas as possibilidades de recurso, quanto à indemnização civil, no processo penal e em processo civil, há que daí tirar as devidas consequências, concluindo-se que uma norma processual civil, como a do n.º 3 do art. 721.º, que condiciona, nesta matéria, o recurso dos acórdãos da Relação, nada se dizendo sobre o assunto no CPP, é aplicável ao processo penal, havendo neste, em relação a ela, caso omisso.

Até porque o legislador do CPP, na versão da Lei 48/2007, afirmou a igualdade de oportunidades de recurso em processo civil e em processo penal, no que se refere ao pedido de indemnização, numa altura em que já conhecia a norma do n.º 3 do art. 721.º do CPC (a publicação do DL 303/2007 é anterior à da Lei 48/2007).

Por outro lado, a aplicação do n.º 3 deste art. 721.º ao pedido de indemnização civil deduzido no processo penal não cria qualquer desarmonia; não existe, efectivamente, qualquer razão para que em relação a duas acções civis idênticas haja diferentes graus de recurso apenas em função da natureza civil ou penal do processo usado, quando é certo que neste último caso a acção civil conserva a sua autonomia.

Pode mesmo dizer-se que outro entendimento que não o aqui defendido conduziria ao inquinamento da decisão a tomar pelo lesado nos casos em que a lei lhe permite deduzir em separado, perante os tribunais civis, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime.

Este sistema da “dupla conforme” entrou em vigor em 01-01-2008, aplicando-se apenas aos processos iniciados após essa data, como se prevê nos arts. 11.º, n.º 1, e 12.º, n.º 1, do referido DL 303/2007”.

Acórdão de 22-06-2011, Processo n.º 444/06.4TASEI C1.S1 - 5.ª Secção, CJSTJ 2011, tomo 2, pág. 193  

“O tribunal de 1.ª instância condenou a seguradora, a pagar ao demandante certas indemnizações a título de danos não patrimoniais e de danos patrimoniais e, em recurso, o Tribunal da Relação, sem qualquer voto de vencido, confirmou aquela decisão.

Nos termos do art. 721.º, n.º 1, referido ao art. 691.º, n.º 1, do CPC (versão do DL 303/2007, de 24-08), cabe recurso de revista para o STJ do acórdão da Relação que tenha incidido sobre uma decisão de 1.ª instância que tenha posto termo ao processo. Mas, de acordo com o n.º 3 do primeiro destes preceitos, «não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte»: é o chamado sistema da “dupla conforme”.

Esta norma é subsidiariamente aplicável aos pedidos de indemnização civil julgados no processo penal, por força do disposto no art. 4.º do CPP.

Com a norma do art. 400.º, n.º 3, do CPP, quis-se claramente afirmar solução oposta àquela a que chegou o Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2002, estabelecendo-se sem margem para dúvidas, ao que se julga, que as possibilidades de recurso relativamente ao pedido de indemnização são as mesmas, seja o pedido deduzido no processo penal ou em processo civil – cf. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X.

Se o legislador do CPP quis consagrar a solução de serem as mesmas as possibilidades de recurso, quanto à indemnização civil, no processo penal e em processo civil, há que daí tirar as devidas consequências, concluindo-se que uma norma processual civil, como a do n.º 3 do art. 721.º, que condiciona, nesta matéria, o recurso dos acórdãos da Relação, nada se dizendo sobre o assunto no CPP, é aplicável ao processo penal, havendo neste, em relação a ela, caso omisso.

Até porque o legislador do CPP, na versão da Lei 48/2007, afirmou a igualdade de oportunidades de recurso em processo civil e em processo penal, no que se refere ao pedido de indemnização, numa altura em que já conhecia a norma do n.º 3 do art. 721.º do CPC (a publicação do DL 303/2007 é anterior à da Lei 48/2007).

Por outro lado, a aplicação do n.º 3 deste art. 721.º ao pedido de indemnização civil deduzido no processo penal não cria qualquer desarmonia; não existe, efectivamente, qualquer razão para que em relação a duas acções civis idênticas haja diferentes graus de recurso apenas em função da natureza civil ou penal do processo usado, quando é certo que neste último caso a acção civil conserva a sua autonomia.

Pode mesmo dizer-se que outro entendimento que não o aqui defendido conduziria ao inquinamento da decisão a tomar pelo lesado nos casos em que a lei lhe permite deduzir em separado, perante os tribunais civis, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime”.

Acórdão de 30.11.2011, Processo n.º 401/06.0GTSTR.E1.S1- 3.ª Secção:

“A norma do art. 400.º, n.º 3, do CPP, deixa em aberto, por carência enunciativa de conteúdo, a admissibilidade do recurso relativamente à indemnização cível fixada em processo penal pela via do enxerto cível sempre que, a tal respeito, se registe a confirmação em recurso, da decisão de 1.ª instância, à semelhança do que sucede, em certas condições, quanto à medida da pena, em se realizando a chamada dupla conforme.

Estamos em presença de uma lacuna de regulamentação sustentada e sugerida, desde logo, porque não se vê qualquer razão para os intervenientes processuais penais pleiteando no enxerto cível usufruam de uma perspectiva de favor.

Com a alteração ao CPP através do DL 48/2007, de 29-08, teve-se o propósito de estabelecer a igualdade entre quem pretenda impugnar decisão cível proferida em processo penal ou cível no que respeita a matérias de indemnização.

Essa equiparação de procedimento na acção cível e penal introduz desejável parificação de procedimentos e, consequentemente, é a mais justa, tanto mais que, no caso vertente, estando já em vigor o DL 48/2007, de 29-08 – o pedido cível foi interposto em 29-04-2008 – a ser instaurada a acção cível autonomamente, a inequívoca redacção actualizada do art. 721.º, n.º 3, do CPC, ser-lhe-ia aplicável.

Se em matéria penal, onde se colocam questões de onde pode derivar a privação de liberdade individual, por estar em causa a ofensa a valores fundamentais de subsistência comunitária, reclamando intervenção vigorosa do direito penal, impera a regra da dupla conforme, por maioria de razão, estando em causa a ressarcibilidade do prejuízo, mediante a atribuição de uma soma reparadora em dinheiro, a solução não deve ser divergente.

Por isso, o STJ, nos seus Acs. de 29-09-2010, in Proc. n.º 343/05.7TAVFN.P1.S1, e de 22-06-2011, in Proc. n.º 444/06.4TASEI, das 3.ª e 5.ª Secções, respectivamente, adoptou a solução da inadmissibilidade legal do recurso, sempre que, sem voto de vencido, ou seja, com confirmação do julgado de 1.ª instância, a questão cível seja decidida em recurso, como in casu, solução que aqui se subscreve. ”.

Acórdão de 15-12-2011, Processo n.º 53/04.2IDAVR.P1.S1 - 5.ª Secção

“A norma do n.º 3 do art. 721.º do CPC é subsidiariamente aplicável aos pedidos de indemnização civil julgados em processo penal, por força do disposto no art. 4.º do CPP. No mesmo sentido decidiu o STJ nos Acs. de 22-06-2011, Proc. n.º 444/06.4TASEI, e de 29-09-2010, Proc. n.º 343/05.7TAVFN.

A consideração da data da apresentação do pedido de indemnização civil enxertado no processo penal como o início do processo em matéria cível, em si, não coloca qualquer questão de desigualdade. Está no mesmo plano que a consideração da petição inicial como o início do comum processo civil.

Acresce que a limitação das possibilidades de recurso em matéria civil, obedecendo a um critério racional e objectivo, não tem sido considerada pelo TC violadora do princípio da igualdade, como no caso de alteração do valor das alçadas (cf. v.g. Ac. n.º 239/97)”.

Acórdão de 25-01-2012, Processo n.º 360/06.0PTSTB.E1.S1 - 3.ª Secção

“As normas do processo penal relativas ao regime dos recursos quanto à questão cível deduzida no processo penal constam, com relativa autonomia do recurso da questão penal, nos n.ºs 2 e 3 do art. 400.° do CPP: o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil «só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada», e «mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil».

O regime do recurso quanto à questão cível deduzida no processo penal resultante desta dupla proposição visou, directamente, criar novas soluções, fazendo caducar a interpretação constante do AUJ 1/2002, que determinava o alinhamento e a consequente irrecorribilidade da questão cível se fosse irrecorrível a correspondente acção penal.

A separação dos regimes de recurso, tornando autónomo o recurso da questão cível, e chamando os pressupostos – valor; alçada; sucumbência – do processo civil, revela que o legislador quis claramente alinhar o regime de recurso da questão cível com o regime do processo civil, estabelecendo que as possibilidades de recurso do pedido de indemnização civil são as mesmas, independentemente da acção civil aderir ao processo penal ou de ser proposta e seguir autonomamente como processo civil.

A intervenção dos pressupostos dos recursos em processo civil transporta o regime para área diferente dos pressupostos e do regime dos recursos em processo penal: a alçada, o valor e a sucumbência são noções estranhas ao processo penal e aos pressupostos do respectivo regime de recursos. A referência a tais elementos que conformam verdadeiramente o regime do recurso relativo à questão civil, que não têm qualquer correspondência no processo penal, determina que o recurso sobre a questão civil em processo penal, tendo autonomia, não tenha, em medida relevante, regulação no processo penal, ficando incompleto; a completude tem de ser encontrada, como determina o art. 4.° do CPP, no regime dos recursos em processo civil.

A nova solução de 2007 revela que o legislador quis claramente alinhar o regime de recursos da questão cível com o regime do processo civil, estabelecendo que as possibilidades de recurso do pedido de indemnização civil são as mesmas, independentemente da acção civil aderir ao processo penal ou de ser proposta e seguir autonomamente como processo civil; a intenção consta, aliás, dos trabalhos preparatórios da Lei n.º 48/2007 /Proposta de lei n.º 109/X), que justifica a solução «para garantir o respeito pela igualdade».

Citando o acórdão de 22-06-2011 termina, dizendo que “Em processo civil, o recurso só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal – art. 678.°, n.° 1, do CPC. Mas, segundo determina o art. 721.º, n.º 3, do CPC, não é admitido recurso do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1.ª instância. Por esse motivo não é admissível o recurso da demandada cível”.

Acórdão de 09-05-2012 processo n.º 199/09.0PAVNF.P1.S1-3.ª Secção

“A dupla conforme prevista no regime processual civil surge como complemento do nº 2 do artº 400º do CPP., e como que o reverso em termos cíveis da alínea f) do mesmo artigo em termos penais.

Está-se perante um lacuna em processo penal que, por aplicação do disposto no citado artº 4º, importa suprir, e que a harmonia do sistema jurídico e o aludido princípio da igualdade reclamam.

A autonomia do recurso em processo penal, face aos recursos em processo civil, apenas significa que a sua tramitação unitária obedece imediatamente às disposições processuais penais, mas não exclui, por força do artº 4º do CPP, em casos omissos, a aplicação subsidiária das regras do processo civil que se harmonizem com o processo penal, nomeadamente quando em processo penal o objecto do recurso é de natureza cível.”

                                                                   *****

Concluindo.

Tendo o presente pedido de indemnização civil sido apresentado em 12 de Julho de 2010, verificando-se dupla conforme total, e porque não está em causa a aplicação do regime excepcional do artigo 721.º-A do CPC, o recurso não é admissível, e por isso não deveria ter sido admitido ( como vimos, admitido os recursso com mera invocação do artigo 432 1 b) do CPP) em face do disposto no art. 414.º, n.º 2, do CPP.

A decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior - artigo 414.º, n.º 3, do CPP.

            O recurso nesta parte é, pois, de rejeitar, nos termos dos artigos 400.º, n.º 3 e 420.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, e 721.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.º do CPP.

      Decisão

         

       Pelo exposto, acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em julgar o recurso interposto pelo arguido AA:

       I – Na parte criminal:

- improcedente, no que respeita à questão da requalificação jurídica dos factos, mantendo-se a qualificação jurídica do acórdão recorrido;

- parcialmente procedente, no que toca ao número de crimes praticados com redução de um dos crimes, reduzindo-se a condenação a doze crimes, e

- improcedente, no que concerne à medida das penas aplicadas no acórdão recorrido, mantendo-se as penas parcelares e a pena conjunta.

       II – Na parte cível – rejeitar o recurso por inadmissibilidade.

       Não há lugar a taxa de justiça criminal, atendendo a que a sucumbência na parte criminal não foi total, face à redução do número de crimes, nos termos dos artigos 374.º, n.º 4 e 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redacção que lhes foi dada pelo Decreto - Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro (rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24 de Abril, e com as alterações introduzidas pela Lei n.º 43/2008, de 27 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28 de Agosto, pelo artigo 156.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Suplemento n.º 252), pelo artigo 163.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril e pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro), o qual aprovou – artigo 18.º – o Regulamento das Custas Processuais, publicado no anexo III do mesmo diploma legal, uma vez que de acordo com os artigos 26.º e 27.º daquele  diploma, o novo regime de custas processuais é de aplicar aos processos iniciados a partir de 20 de Abril de 2009 e o presente processo teve início em 19 de Maio de 2009.

       Custas cíveis pelo demandado/recorrente, atenta a total sucumbência, nos termos do artigo 446.º do CPC, aplicável ex vi do disposto no artigo 523.º do CPP.

      Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Lisboa, 12 de Setembro de 2012

Raul Borges (relator)
Henriques Gaspar