Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
143/10.2YRCBR.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: RAUL BORGES
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
MATÉRIA DE FACTO
RECUSA FACULTATIVA DE EXECUÇÃO
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO ESPAÇO
PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE
CRIME FISCAL
CRIME OMISSIVO
CONSUMAÇÃO
GARANTIA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 09/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática: DIREITO PENAL
DIREITO PROCESSUAL PENAL
Doutrina: - Anabela Miranda Rodrigues, "O Mandado de Detenção Europeu - na via da construção de um sistema penal europeu: um passo ou um salto?", na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 13, n.º 1, págs. 23 e ss..
- Cavaleiro Ferreira, Apontamentos das Lições de Direito Penal proferidas ao 5.º ano jurídico, edição da FDL, ano de 1972-1973, Fasc. 15 e 16, págs. 180/2.
- Eduardo Correia, Direito Criminal, 1, pág. 179.
- Euclides Dâmaso Simões, “A importância da cooperação judiciária internacional no combate ao branqueamento de capitais”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 3, págs. 423 a 473.
- Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, I, tradução espanhola, edições Bosch, 1981, de Santiago Mir Puig e Francisco Muñoz Conde, no capítulo IV da 1.ª Parte, fls. 239 a 241.
- Figueiredo Dias, anotação ao acórdão do STJ de 21-12-1983, in BMJ n.º 332, pág. 341, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118.º, pág. 17; estudo "La compétence des jurisdictions pénales portugaises pour les infractions commises à l´ étranger", separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1966, págs. 10 e segs.; Lições de Direito Penal, Editorial Verbo, 1987, I, págs. 26 a 31.
- Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 12.ª edição, em anotação aos artigos 4.º e 5.º; Código Penal.
- Mário Elias Soltoski Júnior, “O controlo da dupla incriminação e o mandado de detenção europeu”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 3, págs. 475 a 494.
- Ricardo Jorge Bragança de Matos, “O princípio do reconhecimento mútuo e o mandado de detenção europeu”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 14, n. º 3, págs. 325 a 367.
- Victor Sá Pereira, 1988, Livros Horizonte, e Manuel António Lopes Rocha, "A Aplicação da Lei Criminal no Tempo e no Espaço", in Jornadas de Direito Criminal, edição do CEJ, 1983, págs. 118 e ss..
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPC): - ARTIGOS 379.º, N.º 1, AL. C), 467.º
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 4.º, 5.º, 6.º.
CÓDIGO CIVIL - ARTIGOS 369.º, 370.º, 371.º E 372.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 5.º, 6.º, 33.º.
LEI N.º 65/2003, DE 23-8: - ARTIGOS 3.º, 12.º, NºS.1 ALS. E), H) E I), E N.º 2, 13.º, AL.C).
LGT (LEI GERAL TRIBUTÁRIA): - ARTIGO 13.º.
RJIFNA (REGIME JURÍDICO DAS INFRACÇÕES FISCAIS NÃO ADUANEIRAS): - ARTIGOS 4.º, 5.º.
Legislação Comunitária: DECISÃO QUADRO DO CONSELHO N.º 2002/584/JAI, DE 13 DE JUNHO DE 2002.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 21-12-1983, IN BMJ N.º 332, PÁG. 341;
-DE 07-09-1995, PROCESSO N.º 48601, IN BMJ N.º 449, PÁG. 229.
Sumário :

I - Como é sabido, com o advento do MDE, criado pela Decisão-Quadro do Conselho n.º 2002/584/JAI, de 13-06-2002, introduzido no direito interno pela Lei 65/2003, de 23-08, alterou-se por completo o panorama da extradição, em vigor no País, desde 1975, enquanto instrumento de cooperação entre os Estados Membros da União.
II - O MDE corresponde a uma forma de entrega de cidadãos sujeitos a procedimento criminal, ou condenados, mais eficaz, mais rápida e flexível, com um processo simplificado, na tentativa, por um lado, de responder à nova realidade criminológica, internacionalizada e globalizada, e por outro, como projecção no plano da cooperação judiciária dos avanços no processo de integração europeia, procurando implementar-se um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, com o reconhecimento de que uma decisão tomada por uma autoridade judiciária competente de um Estado Membro deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União.
III - Esta nova forma de cooperação internacional e de entrega entre Estados da Comunidade entronca na Convenção Europeia de Extradição, feita em Paris, em 13-12-57, a que se seguiu o Primeiro Protocolo Adicional, feito em Estrasburgo em 15-10-75, e o Segundo Protocolo Adicional, feito em Estrasburgo em 17-03-78, os quais vieram a ser aprovados, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 23/89, sendo a Convenção assinada em 27-04-77 e os dois Protocolos assinados, igualmente em Estrasburgo, em 27-04-77 e em 27-04-78, tendo sido ratificada a Convenção pelo Decreto do Presidente da República n.º 57/89, ambos publicados no DR-I Série, de 21-08-89.
IV - Os acontecimentos verificados nos Estados Unidos da América, em 11-11-2001, precipitaram a evolução que se vinha verificando, sendo o impulso dado no Conselho Europeu extraordinário, que se realizou dez dias depois, assinalando-se o acordo obtido quanto à introdução do MDE, que permite a entrega de pessoas procuradas directamente entre autoridades judiciárias, conferindo-se carácter prioritário à sua implementação.
V - O Conselho da União Europeia adoptou a Decisão Quadro 2002/584/JAI, de 13-06-2002, relativa ao MDE e aos processos de entrega entre Estados-Membros.
VI - Este regime inovador substituiu as Convenções até então vigentes sobre extradição nas relações entre os Estados Membros da União.
VII - Portugal adaptou o seu direito interno à Decisão Quadro através da publicação da Lei 65/2003, de 23-08 (diploma interno de transposição).
VIII - Previamente, através de revisão constitucional – a 5.ª – que aditou o n.º 5 ao art. 33.º da CRP (O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação das normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia) e alterou o n.º 6 do mesmo preceito (que passou a dispor: Não é admitida a extradição, nem a entrega a qualquer título, por motivos políticos ou por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física), viabilizou a extradição ou a entrega de cidadãos nacionais em consequência dos compromissos assumidos no domínio da cooperação judiciária penal no âmbito da União Europeia – Lei Constitucional 1/2001, de 12-12.
IX - O MDE constitui a primeira concretização do princípio do reconhecimento mútuo e por força da sua aplicação, a Decisão Quadro – considerando 11 – acaba com o processo de extradição entre os Estados Membros da União.
X - O cumprimento do disposto no art. 3.º, ditando o conteúdo do mandado, nada tem a ver com fixação de matéria de facto, que o STJ não pode sindicar, atenta a sua função de tribunal de revista, antes visando fornecer os elementos essenciais à boa execução do mandado.
XI - O MDE não pode transformar-se num processo de investigação de factos e de produção de provas, que, para além do mais, apenas retardaria a entrega solicitada, num processo simplificado e urgente, sendo que tal tipo de defesa não configura fundamento de oposição ao mandado.
XII - O recorrente não pode opor-se ao mandado procurando demonstrar que não praticou os factos imputados.
XIII - Nesta primeira fase do processo de decisão sobre a execução do mandado europeu está em causa apenas a apreciação da suficiência das informações e da regularidade do mandado, no que respeita ao respectivo conteúdo (enunciação dos factos, descrição da natureza e qualificação jurídica da infracção, as circunstâncias em que foi cometida, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação nela assumido pela pessoa procurada, o que assume especial relevância no sentido de proporcionar ao visado a pronúncia sobre a faculdade de renunciar ao benefício/princípio da regra da especialidade, sobre a sua posição de exprimir vontade no sentido de desejar ou consentir que seja executado o mandado, ou ao invés, opor-se à sua execução, exercendo o direito de recusa, seja ela obrigatória ou facultativa, verificação de amnistia, invocação do princípio ne bis in idem, do decurso dos prazos de prescrição, do princípio da territorialidade, ou exprimir declaração relativa à prestação de garantia pelo Estado de emissão, nos termos do art. 13.º, da Lei 65/2003) e à forma do mesmo.
XIV - Nesta apreciação apenas há que conhecer da conformidade legal do próprio mandado, no sentido de o poder executar, sendo inoperante/irrelevante uma defesa em que se vise discutir se o procurado cometeu ou não os crimes imputados, a qual só será exercitável no Tribunal do Estado que emitiu o mandado, único a quem compete a decisão judiciária e perante o qual o procurado terá de exercer, com pleno contraditório, os direitos de defesa relativos ao procedimento criminal em curso.
XV - A execução de um MDE não se confunde com o julgamento do mérito da questão substantiva de facto, que lhe subjaz, a ter lugar perante a jurisdição do Estado emissor.
XVI - A excepção de prescrição de procedimento criminal poderá ser conhecida pelos tribunais portugueses, no pressuposto de que estes sejam competentes para apreciar os factos imputados, o que envolve a necessidade de concluir pela competência dos tribunais portugueses, como questão prévia.
XVII - A necessidade de abordagem da questão da competência dos tribunais portugueses para conhecer os factos subjacentes à emissão do mandado, determinada pela invocação da prescrição do procedimento criminal, implica, como questão prévia, a discussão da aplicabilidade da lei penal portuguesa a tais factos, o que nos remete para a questão da aplicação da lei penal/fiscal/tributária no espaço.
XVIII - Em matéria de contribuições e impostos, de alfândegas e de câmbios, a execução do MDE não pode ser recusada pelo facto de a legislação do Estado-Membro de execução não impor o mesmo tipo de contribuições e impostos ou não prever o mesmo tipo de regulamentação em matéria de contribuições e impostos, de alfândegas e de câmbios que a legislação do Estado-Membro de emissão – art. 4.º, n.º 1, da Decisão-Quadro do Conselho (2002/584/JAI) de 13-07-2002, norma transcrita na Lei 65/2003. no art. 12.º, n.º 2.
XIX - Sobre aplicação da lei tributária no espaço rege o art. 13.º da LGT, na versão originária (e inalterada) e art. 4.º do RGIT, em tudo semelhante ao art. 4.º do CP, consagrando o princípio da territorialidade na aplicação da lei penal no espaço, o qual já encontrava consagração no art. 53.º, n.º 1 (com a excepção do § 1.º) e n.º 2, do CP 86.
XX - Segundo este princípio-regra basilar, que continua a dominar a aplicação da lei penal no espaço, a legislação penal do Estado pune todas as infracções cometidas no seu território (definido no art. 5.º da CRP), cometidas por qualquer cidadão, entendendo-se território nacional com a extensão conferida pelo princípio corolário daquele, o chamado princípio da bandeira ou do pavilhão, podendo ver-se o caso de alargamento da aplicação no espaço das leis penal e contra-ordenacional portuguesas, a casos de ilícitos cometidos a bordo de aeronaves civis em voos comerciais, constante do DL 254/2003, de 18-10.
XXI - O princípio- regra da territorialidade, por não assegurar, só por si, eficaz protecção visada pelo ordenamento penal, é complementado por outros princípios que funcionam subsidiariamente, concretamente, pelos princípios da protecção dos interesses nacionais, da nacionalidade – da personalidade activa e da personalidade passiva – e da plurilateralidade da prática do crime, também designado de princípio da competência ou da aplicação universal da lei penal ou princípio do direito mundial (segundo este último princípio, o Estado pune todos os crimes cometidos segundo o seu próprio direito, independentemente do lugar onde tenham sido praticados, de quem os cometeu, ou de quem é o ofendido).
XXII - Estes princípios mostram-se consagrados no art. 5.º do CP, prevendo-se os casos em que ainda é aplicável a lei penal portuguesa a factos cometidos fora do território nacional, com as restrições previstas no art. 6.º (segundo o n.º 1, a aplicação da lei portuguesa a factos praticados fora do território nacional só tem lugar quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação).
XXIII - A aplicação do princípio da territorialidade da lei penal pressupõe resolvida a questão da sede do crime.
XXIV - A propósito da determinação do lugar da prática da infracção debatem-se as doutrinas da actividade ou execução e do evento.
XXV - A aceitação cumulativa das duas doutrinas, resultante de premências da vida moderna e da facilidade e frequência de prática de crimes à distância, deu origem à chamada solução plurilateral, já defendida anteriormente pela doutrina, como Eduardo Correia, Direito Criminal, 1, pág. 179 (defendendo ser a solução exigida pelo interesse de que, em virtude de diferentes critérios usados pelas leis de diferentes países, os criminosos não fiquem impunes) e a que Hans-Heinrich Jescheck chama teoria da ubiquidade.
XXVI - No Ac. do STJ, de 21-12-83, in BMJ n.º 332, pág. 341, dizia-se: «O actual Código Penal no seu artigo 7º consagra a teoria da ubiquidade quanto ao lugar do delito, em clara consonância com a ideia da plenitude da soberania portuguesa sobre o território nacional, anotando-se aí que a teoria da ubiquidade é a mais ampla concepção da sede do delito já que tem em conta o lugar, o processo de execução, o resultado e o efeito intermédio».
XXVII - As infracções tributárias consideram-se praticadas no momento e no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, ou naqueles em que o resultado típico se tiver produzido, sem prejuízo do disposto no n.º 3 (art. 5.º RGIT).
XXVIII - São imputados ao procurado cidadão nacional os crimes de sonegação do imposto sobre o volume de vendas, sonegação do imposto salarial, sonegação do imposto sobre a renda da pessoa moral e sonegação do imposto industrial.
XXIX - Trata-se de crimes omissivos, crimes de mera inactividade, em que a omissão integradora do ilícito consiste na violação da obrigação de declaração de facto tributável e entrega do imposto, consubstanciando-se a final na não entrega, total ou parcial, do que estava obrigado a entregar à administração tributária, ou, no caso do imposto salarial, às instituições de segurança social.
XXX - A acção esperada por parte do requerido, de sinal contrário à omissão verificada, ou seja, o cumprimento das obrigações fiscais, devia ter lugar na Alemanha.
XXXI - O lugar em que a omissão teve lugar, lesando os interesses da Fazenda alemã, o património do Estado alemão, ocorreu na Alemanha e não em Portugal; a tributação reporta-se a actividade industrial desenvolvida em território alemão, a produção de riqueza naquele País, a salários pagos por trabalho produzido na cidade de Augsburg, aí correndo o processo crime respectivo, não havendo aqui e agora que tecer considerações sobre eventual dupla tributação, devendo essa questão ser suscitada no local próprio, no tribunal alemão, onde terá cabimento apresentar os documentos juntos.
XXXII - A aplicação extraterritorial da lei penal justifica-se quando estão em causa bens ou interesses que não admitem a impunidade da respectiva ofensa, entrando-se no campo do princípio da universalidade ou da aplicação universal, que tem na cooperação internacional a sua mais lídima expressão, e daí a ressalva dos tratados e convenções, procurando-se com a mesma garantir a tutela de interesses ou bens que importam a toda a Humanidade e partilhando outros interesses com alguns ou todos os demais Estados, em termos de se justificar, a propósito, a punição dos crimes correlativos, sejam quais forem os seus agentes.
XXXIII - No nosso caso não há que convocar o princípio da competência ou da aplicação universal, pois não estão em causa situações de cooperação internacional enquadráveis no DL 144/99 e Lei 52/2003, para as quais faz sentido a aplicação dos princípios aludidos.
XXXIV - No âmbito dos crimes tributários os tribunais portugueses só têm competência, salvo tratado ou convenção internacional em contrário, para os factos praticados em território português ou a bordo de navios ou aeronaves portuguesas, o que aqui não se verifica.
XXXV - O instituto de entrega, como o de extradição, tem como finalidade o permitir a realização de um julgamento criminal pelo Estado territorialmente competente para o fazer, e como se sabe a nossa lei – art. 4.º do CP – consagra como primordial o mencionado princípio da territorialidade, princípio determinativo da competência para o julgamento dos factos ilícitos, o qual só é derrogado em casos excepcionais, que na situação presente não se justificam.
XXXVI - O cumprimento de MDE por parte dos vários Estados membros da comunidade, quer para efeitos de procedimento criminal quer para cumprimento de penas já impostas, assenta no princípio do reconhecimento e no respeito mútuo e da confiança entre todos os Estados, não existindo, por isso, fundamento legal para a recusa do seu cumprimento.
XXXVII - Quando a pessoa sobre a qual recai um MDE para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente do Estado-Membro de execução, a entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado-Membro de execução para nele cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade proferida contra ela no Estado-Membro de emissão.
XXXVIII - A consignação desta possibilidade não implica a formulação de um juízo, sendo apenas decorrência da lei (que suscitará algumas dificuldades, uma vez que a natureza urgente deste procedimento não é compatível com a efectivação da prestação de garantias), mas de colocar em termos efectivos apenas no caso de eventual condenação, o que será pouco compaginável com o princípio da presunção da inocência; a condição só faz sentido para o facto futuro e incerto (incertus an, incertus quando) de cumprimento de uma pena privativa da liberdade, que só terá lugar se e quando o cidadão for condenado em pena de tal natureza.
XXXIX - O cumprimento da pena em Estado diverso do da condenação é uma situação que se situa já no âmbito da execução de uma decisão condenatória de natureza penal já transitada em julgado, pois só com o trânsito a sentença condenatória ganha força executiva, como decorre do art. 467.º do CPP.


Decisão Texto Integral:



Através de difusão no âmbito do Sistema de Informação Schengen, o Gabinete Nacional Sirene comunicou ao Grupo Operativo da Polícia Judiciária a inserção pelas Autoridades Alemãs naquele SIS, com o registo Schengen sob a referência ..., do pedido internacional para detenção e entrega contra o cidadão nacional AA, nascido em 3 de Fevereiro de 1941, em ..., Portugal, portador do Bilhete de Identidade com o n.º ..., emitido em 19 de Abril de 2007, pelo Arquivo de Identificação de Lisboa, e actualmente residente na ....
Pela Autoridade Judiciária Alemã competente - Staatsanwaltschaft Augsburg (Procuradora do Tribunal Regional de Augsburg) - mostra-se emitido com data de 1 de Junho de 2010, um Mandado de Detenção Europeu, inserido no Sistema de Informação Schengen com a indicação, nos termos do disposto no artigo 95.° da Convenção de Aplicação dos Acordos de Schengen (CAAS), de 14 de Junho de 1985, da necessidade de detenção do referido cidadão Português.
O Exmo. Procurador-Geral Distrital no Tribunal da Relação de Coimbra, ao abrigo do disposto do artigo 16.º, n.º 1, da Lei n.º 65/03, de 23 de Agosto, requereu a execução do “Mandado”, tendo em vista a submissão do procurado a procedimento criminal na República da Alemanha, por alegado cometimento do ilícito de “evasão fiscal”.
Alegou ainda no ponto 5.º, que residindo o arguido em Portugal e sendo nacional deste País, pode a decisão de entrega às autoridades alemãs ficar sujeita à condição de o requerido ser devolvido a Portugal para cumprimento da pena, nos termos do artigo 13.º, alínea c), da Lei n.º 65/2003, de 23/08.
O mandado foi emitido pela circunstância de o requerido em causa, enquanto gerente de empresas de construção na Alemanha, não haver cumprido com as obrigações fiscais que sobre si incumbiam na cidade de Augsburg, Baviera, no período compreendido entre 1994 e 1996, tornando-se, por isso, devedor de impostos no montante de € 1.434. 515,00.

Do Mandado de Detenção Europeu ora em causa constam como sendo imputados ao procurado (no formulário recebido constava apenas a indicação de crime de evasão fiscal “Steuerhinterziehung”), conforme documento de fls. 37 a 43 e fls. 76 a 82 (original) e em versão traduzida, respectivamente, a fls. 27 a 34 e 83 a 90 (original), os crimes de sonegação do imposto sobre o volume de vendas, sonegação do imposto salarial, sonegação do imposto sobre a renda da pessoa moral e sonegação do imposto industrial, p. p. pelos §§ 369.º, alínea 1, número 1, 370.º, alínea 1, número 2, do Código Tributário/Fiscal e § 53.º do Código Penal Alemão, por factos cometidos entre 1994 e 1996, na cidade de Augsburg.
Consta a referência à duração máxima da pena privativa de liberdade aplicável às infracções - 5 anos de prisão para cada infracção individual; no máximo, 15 anos de prisão.
Corre termos na Alemanha, pelos crimes referidos, processo criminal com a referência 9 KLs 518 Js 105960/96.
Consta ainda do Mandado no campo II - f) “Outras circunstâncias pertinentes para o processo”, como a interrupção de prazos, que “A prescrição foi interrompida devido à expedição do mandado de detenção de 01-06-2010”.

***

Já no âmbito do presente Mandado o requerido, após a sua detenção em 6 de Julho de 2010, foi ouvido no mesmo dia, no Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos do artigo 18.º, n.º 3, da Lei n.º 65/2003, de 24 de Agosto - fls. 17 a 20 - tendo então declarado não renunciar ao princípio da especialidade e dissentir da sua entrega às autoridades alemãs, assim se opondo à execução do presente MDE, alegando, para além do mais, que as dívidas fiscais reclamadas podem configurar uma situação de “bi-tributação”, como entendido foi pelo Tribunal Federal da Fazenda em processo de 1982, o que a acontecer, relegaria para um campo secundário o montante da dívida mencionado no MDE.
Finda a audição do procurado, foram-lhe impostas, como medidas coactivas, as de prestação imediata de TIR; a de apresentação semanal junto do posto policial da área da sua residência, todos os sábados ou domingos, além da prestação de caução carcerária, arbitrada no montante de € 5.000,00, sendo ordenada a restituição à liberdade após prestação do TIR, o que teve lugar no mesmo dia 6 de Julho.
Posteriormente, por despacho de 21-07-2010, a fls. 91, a pedido do requerido, foi o montante da caução reduzido para € 3.000,00, a qual foi prestada.

O requerido apresentou a oposição de fls. 102 a 111, juntando de fls. 112 a 137, sete documentos.
Invocou então duas causas de recusa facultativa previstas no artigo 12.º, n.º 1, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, a saber: a da alínea e) – prescrição do procedimento criminal e competência dos tribunais portugueses para apreciação dos factos, com invocação do disposto no artigo 5.º, n.º 1, alínea g) e artigo 6.º, do Código Penal - e a causa de recusa prevista na alínea h), ponto i) - cometimento da infracção, no todo ou em parte, em território nacional.
Prevenindo a possibilidade de se ter por improcedente a oposição, requereu que a sua entrega ao Estado emissor fique subordinada à condição de ser devolvido ao Estado de execução para efeitos de aqui cumprir a pena a que eventualmente venha a ser condenado.

O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra respondeu à oposição, conforme fls. 142 a 144, concluindo no sentido de que deve ser deferido o cumprimento do presente MDE, por não existir fundamento legal para a sua recusa.

Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11 de Agosto de 2010, constante de fls. 150 a 152 - ora decisão recorrida - foi deliberado, na improcedência dos fundamentos da oposição deduzida pelo requerido, deferir ao requerido, determinando-se a execução definitiva do presente MDE, emitido contra o cidadão nacional AA, ordenando-se a entrega do requerido às autoridades alemãs para os efeitos nele previstos.
Mais determinou, após o trânsito, se procedesse à entrega combinada, no prazo de 10 dias, comunicando-se ainda que o requerido não renunciou à regra da especialidade.

Não se conformando com o decidido, o requerido interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, apresentando a motivação de fls. 162 a 175, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição):
1. O presente recurso tem por objecto a matéria de facto dado por assente e toda a matéria de direito do acórdão proferido. Da decisão em recurso resultou como provado, com relevância para a decisão da causa, entre outros, no ponto 2.1 da douta fundamentação, o seguinte facto:
2. O “mandado foi emitido pela circunstância de o requerido em causa enquanto gerente de empresas de construção na Alemanha, não haver cumprido com as obrigações fiscais que sobre si incumbiam na cidade de Augsburg, no período compreendido entre 1994 e 1996, tomando-se por isso devedor de impostos no montante de€ 1.435,515,00". (Negrito nosso).
3. Alicerçando-se, para dar tal facto como assente, nos documentos com que o processo de mostra instruído. Acontece que, o processo não se encontra instruído com quaisquer documentos, com excepção dos que foram carreados pelo recorrente, que não seja o MDE e a sua tradução em língua oficial portuguesa, e que, não se encontram instruídos com qualquer documentação.
4. O recorrente na sua oposição juntou documentos bastantes para prova de as únicas firmas, com reporte nos autos e a que o MDE se refere, "Construções ..., Lda e ... Construção Civil, Lda", nunca tiveram a sua sede no Estado de emissão do MDE, antes pelo contrário, tais sociedades sempre tiveram a sua sede em Território Nacional, em Vila Nova de Pussos, Pussos, Concelho de Alvaiázere, como aliás, melhor se infere dos documentos n.°s 1, 2, 3, 4 e 5 juntos com a oposição deduzida e para onde remetemos, para além de ser reconhecido pelo próprio Estado emissor do MDE, nas suas comunicações com o Estado Português que identifica aquelas sociedades, no âmbito da assistência mútua, nos termos do Decreto-Lei n.° 296/2003, de 21 de Novembro, para recuperação de dívidas fiscais, que aquelas firmas tem a sua sede em "Vila Nova de Pussos" e "Vila Nova" ambas em Alvaiázere, como melhor se infere daqueles documentos.
5. Não podia o tribunal recorrido, atenta a exígua informação fornecida pelo Estado emissor do MDE, dar por assente que as firmas das quais o recorrente fora gerente estavam ou estiveram alguma vez sediadas naquele estado emissor.
6. Ao decidir nos termos em que o fez o tribunal recorrido não fez uma correcta a apreciação da suficiência das informações e da regularidade do mandado, que no entender do recorrente se revelam insuficientes e exigiriam, nos termos do n.° 3 do art.° 16° e n.° 2 do art.° 22 da Lei a que nos vimos referindo, um pedido de informações complementares, violando este dispositivo legal com aquela decisão.
7. Pior, ao dar aquele facto como assente, unicamente com base na exígua informação constante do MDE, à mingua de outra e dos documentos juntos pelo recorrente, o tribunal recorrido escusou-se de apreciar a aplicabilidade da lei nacional e a competência dos tribunais nacionais portugueses.
8. O douto acórdão incorre ainda em erro de aplicação e (ou) de interpretação do direito.
9. Sendo causa de recusa facultativa de execução do mandado de detenção europeu nos termos da e) do n.° 1 do art.° 12° da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, o decurso dos "prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu".
10. Pelo que se impunha, como questão prévia, apurar da aplicabilidade da lei nacional e a competência, ou a falta dela, dos tribunais portugueses para conhecer dos factos subjacentes à emissão do MDE.
11. Assentando a responsabilidade penal que o Estado emissor visa sacar ao recorrente na sua qualidade de gerente das firmas Construções ..., Lda e ... Construção Civil, Lda nos anos de 1994 a 1996, para efeitos de aplicação da lei penal portuguesa a factos praticados fora do território português, a alínea g) do n.° 1 do art.° 5º do Código Penal Português prescreve que: "salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional, por pessoa colectiva ou contra pessoa colectiva que tenha sede em território português"
12. E o número 1 e 2 do art.° 6º daquele código que: "a aplicação da lei portuguesa a factos praticados fora do território nacional só tem lugar quando o agente não tiver sido Julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação", considerando-se como lugar da prática do facto: o" lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou".
13. O recorrente na sua oposição juntou documentos bastantes para prova de que tais firmas nunca tiveram sede no Estado de emissão do MDE, mas sim em território nacional, como, aliás, melhor se infere dos documentos n.°s 1, 2, 3, 4 e 5 juntos com a oposição deduzida, o que é, por outro lado, reconhecido pelo próprio Estado emissor do MDE, nas suas comunicações com o Estado Português no âmbito da assistência mútua para recuperação de dívidas fiscais. Assim se infere daqueles documentos.
14. Ao não considerar os tribunais portugueses como os competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão o MDE, o tribunal recorrido afastou-se de conhecer o prazo de prescrição do procedimento criminal como causa de recusa à execução do MDE, incorrendo assim a em erro na aplicação do direito, dado o art. 5° do CP. viabilizar a aplicação da lei penal portuguesa a uma pluralidade de situações com reporte a factos praticados fora do território nacional, isto é, para além do limite do espaço geográfico português...
15. Ao que acresce que a execução do MDE, nos termos do número i) da alínea h) do n.° 1 do art.º 12° da Lei n.° 65/2003, deve ser recusado quando, "segundo a lei portuguesa a infracção tenha sido cometida, em todo ou em parte, em território nacional".
16. Nestes termos, alterando-se a matéria dada como assente no sentido que as firmas, a que o MDE se reporta, e das quais o recorrente fora gerente tinham a sua sede em território nacional, as acções e omissões, passíveis de enquadrar um eventual ilícito partiam, ou eram omitidas, a partir desta sede em território nacional sendo de aplicar a lei portuguesa e competente os tribunais portugueses.
17. E no que concerne à prescrição, pela informação tida nos autos, o processo ao abrigo do qual o presente MDE foi emitido, 9Kls 518Js 105960/96, remota a 1996 e no campo f) do MDE, quanto a "outras circunstâncias pertinentes para o processo" refere-se que "a prescrição foi interrompida devido à expedição do mandado de detenção de 01/06/20W, o certo é que, embora sendo desconhecidas quaisquer causas de suspensão e outras causas interruptivas dos crimes indiciados no MDE e do respectivo procedimento criminal, a prescrição deste já terá ocorrido aquando é emitido o respectivo MDE.
18. Atento desde logo a baixa moldura penal dos crimes em causa, tal como refere o MDE o art.º 370 do Código Tributário Alemão, tais crimes são punidos com pena de prisão até 5 anos. Embora se desconhecendo, em termos de direito comparado, se a lei penal alemã prevê regime idêntico ou semelhante ao previsto nos artigos 118° e seguintes do Código Penal Português, nomeadamente o preceituado no n.° 5 do art.° 121° deste código, somos a acreditar que, atendendo a que os factos se reportam ao período compreendido entre 1994 e 1996, tal procedimento penal se encontra prescrito passado mais de 14 anos sobre a data a que os factos se reportam.
19. Sendo da competência dos tribunais nacionais apreciar aquela factualidade, tal como pugnamos, os crimes em questão podem integrar um crime de natureza fiscal que, no momento das infracções estava previsto no art.° 23° do RJIFNA era sancionado com pena de prisão até três anos ou com pena de multa, crime hoje p. e p. nos termos do art.°103°doRGIT.
20. Face ao exposto o prazo prescricional do procedimento criminal de 5 anos, nos termos da alínea c) do n.° 1 do art.° 118° do CP, há muito que ocorrera, dado o MDE referir apenas e só como causa interruptiva a emissão do MDE em 01/06/2010.
21. Era, nestes termos, imprescindível à boa execução do MDE ou à sua recusa de entrega do arguido às autoridades judiciais alemãs, aferir se a lei nacional e os Tribunais portugueses são, ou não, competentes para julgar os factos ao abrigo do qual o mesmo foi emitido.
22. As informações fornecidas pelo estado requerente do MDE não são suficientes e foram pelo recorrente contraditadas pelos documentos que forneceu em sede de oposição à sua execução, nos termos do n.° 2 do art.° 22° da lei que rege a execução do MDE, antes do tribunal se decidir sobre a sua execução ou recusa, pode solicitar as informações necessárias para se decidir da entrega.
23. O recorrente no petitório da sua oposição requereu a notificação do estado emissor para fornecer toda a informação indispensável em que se baseia para localizar a sede das firmas geridas pelo arguido em Augsburg, para que, o tribunal recorrido, pudesse decidir-se da entrega, da competência e da prescrição invocada.
24. Ao invés tendo o tribunal recorrido evitado usar deste poder/dever, seria mister considerar que o processo e a informação fornecida pelo estado emissor do MDE fossem suficientes para a decisão de entrega, o que, como supra se referiu, não o é, aliás consta nos autos prova inequívoca que a sede daquelas firmas era em território nacional e não alemão.
25. Nem na fundamentação do douto acórdão é possível aferir porque ficou afastada a aplicação da lei portuguesa e a competência dos tribunais nacionais, pois não basta dar o agente e os factos como verificados na Alemanha, impondo-se ao invés, se assim o entendeu o tribunal recorrido, fundamentar em que documentos se baseia tal chegar a tal conclusão. Ao não fundamentar como se lhe impunha incorreu o Tribunal recorrido o n.° 1 do art.° 22° da Lei 65/2003.
26. Por outro lado, o recorrente peticionou em caso de improcedência da sua oposição que que a entrega ao Estado emissor ficasse à condição ser devolvido ao Estado de execução para efeitos de nele cumprir a pena a que eventualmente venha a ser condenado nos termos da alínea c) do art.° 13°, da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, não se tendo a Veneranda Relação pronunciado sobre a pretensão do arguido e sobre as garantias a fornecer pelo estado de emissão. Ao omitir decisão sobre este concreto ponto é a decisão nula nos termos da alínea c) do n.° 1 do art.° 379° do CPP.
27. Por conseguinte ao ter decidido de forma diferente, dando por excluída a aplicabilidade da lei penal portuguesa aos factos e, concomitantemente, a competência dos Tribunal portugueses para deles conhecer, incorreu o Tribunal recorrido em erro de direito na aplicação e interpretação do n.° 1 e 2 do art.° 22°; alínea e) do n.° 1 do art.° 12° e número i) da alínea h), alínea c) do art.° 13°, todos da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, alínea g) do n.° 1 do art.° 5º e art.° 7 do Código Penal, e ainda a alínea c) do n.° 1 do art.° 379° do Código de Processo Penal, sendo consequentemente, por força da violação deste último preceito legal, a douta decisão nula.
No provimento do recurso pede a revogação do acórdão recorrido e sua substituição por outro que, em conformidade com as conclusões declare aplicável ao caso subjudice a lei portuguesa e reconhecendo a competência dos tribunais portugueses para conhecer dos factos subjacentes à emissão do Mandado de Detenção Europeu, apreciando-se, deste modo, as causas de recusa facultativas à execução apresentadas pelo recorrente, como seja a prescrição do procedimento criminal, bem como, deverá a entrega ao Estado emissor ficar à condição de o recorrente ser devolvido ao Estado de execução para efeitos de nele cumprir a pena a que eventualmente venha a ser condenado.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação de Coimbra respondeu, conforme fls. 173 a 177, defendendo a manutenção da decisão recorrida, e concluindo:
1º - O MDE emitido satisfaz plenamente as exigências constantes do art° 3º da Lei n° 65/03 pois que nele se identifica a pessoa procurada, a entidade emitente, a existência de um mandado de detenção sobre essa pessoa judicialmente emitido e a natureza e qualificação da infracção, desde que esta seja uma das que são elencadas no n° 2 do art° 2º dessa Lei.
2º - O MDE emitido pela Alemanha, contendo os elementos acabados de referir, e não havendo dúvidas quanto á identidade da pessoa reclamada, não pode deixar de ser cumprido.
3º - Tal como um mandado de detenção emitido por uma autoridade judicial portuguesa tem força executiva própria (art° 257° e seguintes do CPP), também, no caso presente, é de atribuir igual força ao mandado de detenção que as autoridades alemãs emitiram no processo do qual partiu o presente MDE.
4°. Verificados os pressupostos legais deste Mandado de Detenção Europeu, teria de se determinar a entrega deste cidadão às autoridades judiciárias alemãs, tal como se decidiu.

***

Questões a decidir

Como se retira das conclusões apresentadas pelo recorrente no final da motivação apresentada, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

I - Impugnação da matéria de facto - conclusões 1.ª a 7.ª;
II – Verificação da causa de recusa facultativa prevista na alínea e) do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003 - conclusões 8.ª a 14.ª e conclusões 17.ª a 25.ª, no que respeita especificamente a prescrição;
III – Verificação da causa de recusa facultativa da alínea h), ponto i), do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003 – conclusões 15.ª e 16.ª; IV - Omissão de pronúncia – conclusão 26.ª.

Apreciando.

Antes de avançarmos, dar-se-á ligeira nota da evolução do MDE, que servirá para ancorar algumas das considerações feitas infra.


Do Mandado de Detenção Europeu

Vejamos a génese e evolução deste novo meio de cooperação internacional em matéria penal, que, contornando os obstáculos do tradicional processo de extradição, veio possibilitar a entrega de cidadãos, incluindo nacionais do Estado de execução, a autoridades judiciárias de Estados Membros da União, traduzindo-se num instrumento simplificado de entrega de pessoas, com o objectivo de combater, de forma célere e eficaz, a criminalidade internacional.

Como é sabido, com o advento do Mandado de Detenção Europeu, criado pela Decisão-Quadro do Conselho n.º 2002/584/JAI, de 13 de Junho de 2002, introduzido no direito interno pela Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, alterou-se por completo o panorama da extradição, em vigor no País, desde 1975, enquanto instrumento de cooperação entre os Estados Membros da União.
O mandado de detenção europeu corresponde a uma forma de entrega de cidadãos sujeitos a procedimento criminal, ou condenados, mais eficaz, mais rápida e flexível, com um processo simplificado, na tentativa, por um lado, de responder à nova realidade criminológica, internacionalizada e globalizada, e por outro, como projecção no plano da cooperação judiciária dos avanços no processo de integração europeia, procurando implementar-se um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, com o reconhecimento de que uma decisão tomada por uma autoridade judiciária competente de um Estado Membro deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União.
Esta nova forma de cooperação internacional e de entrega entre Estados da Comunidade entronca na Convenção Europeia de Extradição, feita em Paris, em 13 de Dezembro de 1957, a que se seguiu o Primeiro Protocolo Adicional, feito em Estrasburgo em 15 de Outubro de 1975 e o Segundo Protocolo Adicional, feito em Estrasburgo em 17 de Março de 1978, os quais vieram a ser aprovados, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 23/89, sendo a Convenção assinada em 27-04-1977 e os dois Protocolos assinados, igualmente em Estrasburgo, em 27-04-1977 e em 27-04-1978, tendo sido ratificada a Convenção pelo Decreto do Presidente da República n.º 57/89, ambos publicados no DR-I Série, de 21-08-1989.
O procedimento extradicional veio a ter outros desenvolvimentos ao nível do direito convencional comunitário.
Assim acontece, desde logo, com um instrumento relevante para este novo processo - cfr. artigo 4.º da Lei n.º 65/2003 - o Acordo Relativo à Supressão Gradual dos Controlos nas Fronteiras Comuns, assinado em Schengen, a 14 de Junho de 1985 e a Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de Junho de 1985, assinada em Schengen, em 19 de Junho de 1990, cujos Protocolo e Acordo de Adesão foram aprovados em 2 de Abril de 2002 pela Resolução da Assembleia da República, publicada sob o n.º 53/93, no DR, n.º 276, Série I-A, de 25-11-1993 e ratificados pelo Decreto do Presidente da República n.º 55/93, publicado no mesmo Diário da República - cfr. Capítulo IV - artigos 55.º a 66.º.
Os Estados-Membros da Comunidade com o Tratado da União Europeia (TUE), assinado em 07-02-1992 e entrado em vigor em 01-11-1993 (Tratado de Maastricht), afirmaram a existência de um domínio de cooperação comum relacionados com a justiça e assuntos internos, impulsionando a cooperação judicial em matéria penal, como expressamente foi inscrito no Título VI - “Disposições relativas à cooperação policial e judiciária em matéria penal”, criando-se então o terceiro pilar da União Europeia.
Na sequência são firmadas e estabelecidas, com base no então artigo K.3 do referido TUE, a Convenção relativa ao Processo Simplificado de Extradição entre os Estados Membros da União Europeia, assinada em Bruxelas em 10-03-1995, aprovada em 27-02-1997 para ratificação por Resolução da Assembleia da República e ratificada por Decreto do Presidente da República, de 22-05-1997, ambos publicados sob o n.º 41/97, in DR, I Série - A, n.º 138, de 18-06-1997 e a Convenção relativa à Extradição entre os Estados –Membros da União Europeia, assinada em Dublin, em 27-09-1996, aprovada em 28-05 -1998, para ratificação por Resolução da Assembleia da República e ratificada em 18-08-1998 por Decreto do Presidente da República, ambos publicados sob o n.º 40/98, in DR, I Série - A, n.º 205, de 05-09-1998, modificando esta Convenção o regime da Convenção de 1957, sendo que tais convenções não chegaram a entrar em vigor na totalidade dos Estados-Membros, uma vez que não foram ratificadas por todos eles.
A construção de um espaço judiciário comum e a cooperação judiciária em matéria penal ganha nova dimensão a partir do Tratado de Amesterdão, assinado em 02-10-1997, que entrou em vigor em 01-05-1999, ratificado por Decreto do Presidente da República n.º 65/99, in DR, I Série – A, de 19-02-1999, que teve por ambição suprimir os entraves jurídicos à circulação das decisões judiciais, com a introdução de novos instrumentos normativos, passando os Estados Membros a dispor em matéria penal de “decisões” e “decisões-quadro”, com natureza vinculativa para os Estados Membros, quanto aos fins a alcançar.
Com o Plano de Acção de Viena, aprovado em 03-12-1998, estabeleceu-se a adopção de medidas tendentes a facilitar os procedimentos de extradição entre os Estados-Membros, assegurando que as duas convenções de extradição existentes adoptadas ao abrigo do TUE fossem efectivamente implementadas na prática.
Com o Conselho Europeu de Tampere, realizado em 15 e 16 de Outubro de 1999, operou-se avanço significativo.
Concluiu-se então que o procedimento formal de extradição deveria ser abolido entre os Estados-Membros no que dizia respeito às pessoas julgadas à revelia cuja sentença já tivesse transitado em julgado e substituído por uma simples transferência de pessoas.
No sentido da construção do tal espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça propugnado em Amesterdão, concluiu-se deverem as sentenças e decisões serem respeitadas e aplicadas em toda a União, para o que se mostrava necessário alcançar um mais elevado grau de compatibilidade e de convergência entre os diferentes sistemas jurídicos.
Lançam-se as bases do princípio da confiança mútua, com a verificação de que os Estados-Membros “atingiram um tal grau de integração económica e de solidariedade política que não é insensato partir do postulado de que devem confiar uns nos outros no domínio judiciário”, devendo os Estados prescindir de uma parcela da sua soberania penal para reconhecer, também, as pretensões punitivas estrangeiras, abrindo as fronteiras nacionais às decisões judiciais estrangeiras, consagrando-se, como pedra angular da cooperação judiciária, o princípio do reconhecimento mútuo.
O objectivo geral deste princípio é conferir à decisão judicial eficácia total e directa, em todo o território da União Europeia, criando operacionalidade ao exercício das acções por parte de cada um dos seus Estados Membros.
O Conselho, em Novembro de 2000, adoptou um programa de medidas destinado a dar execução ao princípio, afirmando-se que “o reconhecimento mútuo assume (…) formas diversas, devendo ser procurado em todas as fases do processo penal, antes e depois da sentença”.
Entretanto, outro sinal é ainda avançado a partir do Tratado de Nice, que altera o Tratado da União Europeia, os Tratados que Instituem as Comunidades Europeias e Alguns Actos Relativos a Esses Tratados, assinado em Nice, em 26 de Fevereiro de 2001, ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 61/2001, e aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 79/2001, como o antecedente publicado no DR, I-A Série, n.º 291, de 18 de Dezembro de 2001.
No artigo 1.º altera, i. a., o artigo 31.º do Tratado da União Europeia, colocando – n.º 1, alínea b) - como um dos objectivos da acção em comum no domínio da cooperação judiciária em matéria penal, facilitar a extradição entre os Estados membros.
Os acontecimentos verificados nos Estados Unidos da América, em 11 de Setembro de 2001, precipitaram esta evolução, sendo o impulso dado no Conselho Europeu extraordinário, que se realizou dez dias depois, assinalando-se o acordo obtido quanto à introdução do mandado de detenção europeu, que permite a entrega de pessoas procuradas directamente entre autoridades judiciárias, conferindo-se carácter prioritário à sua implementação
O Conselho da União Europeia adoptou a Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre Estados-Membros.
Este regime inovador substituiu as Convenções até então vigentes sobre extradição nas relações entre os Estados Membros da União.
Portugal adaptou o seu direito interno à Decisão Quadro através da publicação da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto (diploma interno de transposição).
Previamente, através de revisão constitucional - a 5.ª - que aditou o n.º 5 ao artigo 33.º da Constituição da República Portuguesa (O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação das normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia) e alterou o n.º 6 do mesmo preceito, que passou a dispor: (Não é admitida a extradição, nem a entrega a qualquer título, por motivos políticos ou por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física), viabilizou a extradição ou a entrega de cidadãos nacionais em consequência dos compromissos assumidos no domínio da cooperação judiciária penal no âmbito da União Europeia - Lei Constitucional n.º 1/2001, de 12 de Dezembro.
O MDE constitui a primeira concretização do princípio do reconhecimento mútuo e por força da sua aplicação, a Decisão Quadro – considerando 11 – acaba com o processo de extradição entre os Estados Membros da União.
Como refere Anabela Miranda Rodrigues, O Mandado de Detenção Europeu - na via da construção de um sistema penal europeu: um passo ou um salto? na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 13, n.º 1, págs. 23 e ss., a decisão quadro “substitui as convenções aplicáveis em matéria de extradição nas relações entre os Estados-Membros, sem prejuízo da sua aplicação nas relações entre Estados–Membros e Estados terceiros (art. 31.º, n.º 1) …”.
Nas relações entre os Estados da Comunidade, por força do MDE, o elemento chave do processo de “entrega” passou a ser o próprio “mandado” de detenção emitido pela autoridade judiciária competente, diversamente do que ocorre nas relações com o exterior do «território único», em que o elemento chave continua a ser o ”pedido”, o que se justificará por nesses casos não se estar perante os pressupostos (confiança recíproca entre os Estados Membros, o reconhecimento mútuo e o postulado do respeito efectivo pelos direitos fundamentais em toda a União Europeia) que justificam a judiciarização do processo de detenção e de entrega.
A propósito desta evolução vejam-se, para além do trabalho referido, “O princípio do reconhecimento mútuo e o mandado de detenção europeu”, por Ricardo Jorge Bragança de Matos, na mesma Revista, ano 14, n. º 3, págs. 325 a 367, “A importância da cooperação judiciária internacional no combate ao branqueamento de capitais”, por Euclides Dâmaso Simões, na Revista citada, ano 16, n.º 3, págs. 423 a 473, e “O controlo da dupla incriminação e o mandado de detenção europeu”, por Mário Elias Soltoski Júnior, no mesmo número da citada Revista, págs. 475 a 494.

***

Matéria de facto assente

A matéria de facto relevante para apreciação das questões colocadas é a seguinte, constante do acórdão recorrido.
«Tal mandado foi emitido pela circunstância de o requerido em causa enquanto gerente de empresas de construção na Alemanha, não haver cumprido com as obrigações fiscais que sobre si incumbiam na cidade de Augsburg, no período compreendido entre 1994 e 1996, tornando-se por isso devedor de impostos no montante de € 1435,515,00».

(Detecta-se nesta referência final a existência de manifesto lapso de escrita, pois conforme o “Mandado”, que consubstancia documento autêntico, com força probatória plena – artigos 369.º, 370.º, 371.º e 372.º, do Código Civil - o montante em dívida é de € 1434,515,00, procedendo-se, assim, à correcção da quantia em dívida, nos termos do artigo 380.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código de Processo Penal.
E assim, onde consta “€ 1435,515,00”, deve passar a ler-se “€ 1434,515,00”).


I Questão – Impugnação da matéria de facto

Sob a designação – imprópria – de impugnação da matéria de facto, dizendo ter o recurso por objecto a matéria de facto dada por assente e transcrita supra, o que no fundo alega o requerido é a falta de cumprimento do artigo 3.º da Lei n.º 65/2003, como expressamente refere quando afirma que “o tribunal recorrido não fez uma correcta apreciação da suficiência das informações e da regularidade do mandado”, que em seu entender “se revelam insuficientes e exigiriam, nos termos do n.º 3 do art.º 16.º e n.º 2 do art.º 22 da Lei a que nos vimos referindo, um pedido de informações complementares” - fls. 3 e 4 da motivação e conclusões 1.ª a 7.ª (O recorrente retoma o tema da insuficiência das informações fornecidas pelo mandado na conclusão 22.ª).
O cumprimento do disposto no artigo 3.º, ditando o conteúdo do mandado, nada tem a ver com fixação de matéria de facto, que este Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar, atenta a sua função de tribunal de revista, antes visando fornecer os elementos essenciais à boa execução do mandado.
O MDE não pode transformar-se num processo de investigação de factos e de produção de provas, que, para além do mais, apenas retardaria a entrega solicitada, num processo simplificado e urgente, sendo que tal tipo de defesa não configura fundamento de oposição ao mandado.
O recorrente não pode opor-se ao mandado procurando demonstrar que não praticou os factos imputados.
Nesta primeira fase do processo de decisão sobre a execução do mandado europeu está em causa apenas a apreciação da suficiência das informações e da regularidade do mandado, no que respeita ao respectivo conteúdo (enunciação dos factos, descrição da natureza e qualificação jurídica da infracção, as circunstâncias em que foi cometida, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação nela assumido pela pessoa procurada, o que assume especial relevância no sentido de proporcionar ao visado a pronúncia sobre a faculdade de renunciar ao benefício/princípio da regra da especialidade, sobre a sua posição de exprimir vontade no sentido de desejar ou consentir que seja executado o mandado, ou ao invés, opor-se à sua execução, exercendo o direito de recusa, seja ela obrigatória ou facultativa, verificação de amnistia, invocação do princípio ne bis in idem, do decurso dos prazos de prescrição, do princípio da territorialidade, ou exprimir declaração relativa à prestação de garantia pelo Estado de emissão, nos termos do artigo 13.º, da Lei n.º 65/2003) e à forma do mesmo.
Nesta apreciação apenas há que conhecer da conformidade legal do próprio mandado, no sentido de o poder executar, sendo inoperante/irrelevante uma defesa em que se vise discutir se o procurado cometeu ou não os crimes imputados, a qual só será exercitável no Tribunal do Estado que emitiu o mandado, único a quem compete a decisão judiciária e perante o qual o procurado terá de exercer, com pleno contraditório, os direitos de defesa relativos ao procedimento criminal em curso.
Na verdade, a execução de um MDE não se confunde com o julgamento do mérito da questão substantiva de facto, que lhe subjaz, a ter lugar perante a jurisdição do Estado emissor.
O mandado enviado contém as informações necessárias e suficientes para a execução, previstas no n.º 1 do preceito, maxime, a indicação da natureza e qualificação jurídica das infracções imputadas ao procurado, as circunstâncias em que foram cometidas, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação da pessoa procurada e medida da pena aplicável prevista na lei alemã, nos termos que foram concretizados supra.
Não cabe nesta sede proceder a investigação dos factos, maxime, indagar da localização da sede das sociedades de que o procurado é gerente, ou se, eventualmente, se estará perante caso de dupla tributação, por se tratar de questões que ultrapassam o âmbito deste processo simplificado de entrega.
Adiante-se que no ponto de facto dado por provado e que o recorrente questiona nem se refere a sediação das empresas, como indevidamente se refere na conclusão 5.ª, antes tão só aí se referindo o procurado como “gerente de empresas de construção na Alemanha”, o que é muito diferente, sendo, aliás, de realçar que, de resto, não deixou o próprio recorrente de destacar a expressão na conclusão 2.ª, colocando - a em negrito!
Em suma: não há insuficiência de matéria de facto, e nem tão pouco, se verifica ausência ou insuficiência dos requisitos de conteúdo e de forma do MDE.
Improcede, pois, totalmente, esta arguição constante das conclusões 1.ª a 7.ª.


Questão II – Verificação da causa de recusa facultativa prevista na alínea e) do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003 - conclusões 8.ª a 14.ª e 17.ª a 25.ª.


Como se referiu, o recorrente invoca duas causas de recusa facultativa, estando em causa nesta primeira a invocação de prescrição de procedimento criminal, excepção que poderá ser conhecida pelos tribunais portugueses, no pressuposto de que estes sejam competentes para apreciar os factos imputados, o que envolve a necessidade de concluir pela competência dos tribunais portugueses, como questão prévia.

Comecemos por ver o direito aplicável.

As causas de recusa facultativa de execução do mandado de detenção europeu estão previstas no artigo 12.º, o qual estabelece:
1 - A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:
a) O facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu não constituir infracção punível de acordo com a lei portuguesa, desde que se trate de infracção não incluída no n.º 2 do artigo 2.º;
b) Estiver pendente em Portugal procedimento penal contra a pessoa procurada pelo facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu;
c) Sendo os factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu do conhecimento do Ministério Público, não tiver sido instaurado ou tiver sido arquivado o respectivo processo;
d) A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado membro em condições que obstem ao ulterior exercício da acção penal, fora dos casos previstos na alínea b) do artigo 11.º;
e) Tiverem decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu;
f) A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um país terceiro desde que, em caso de condenação, a pena tenha sido integralmente cumprida, esteja a ser executada ou já não possa ser cumprida segundo a lei portuguesa;
g) A pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa;
h) O mandado de detenção europeu tiver por objecto infracção que:
i) Segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, em todo ou em parte, em território nacional ou a bordo de navios ou aeronaves portugueses; ou
ii) Tenha sido praticada fora do território do Estado membro de emissão desde que a lei penal portuguesa não seja aplicável aos mesmos factos quando praticados fora do território nacional.

Vejamos então se tem aplicação a causa de recusa prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003.

A alínea e) do n.º 1 do artigo 12.º corresponde à transcrição do artigo 4.º, n.º 4, da Decisão-Quadro do Conselho (2002/584/JAI), de 13 de Junho de 2002, que estabelece como um dos motivos de não execução facultativa do mandado de detenção europeu:
«Quando houver prescrição da acção penal ou da pena nos termos da legislação do Estado-Membro de execução e os factos forem da competência desse Estado-Membro nos termos da sua legislação penal».

A necessidade de abordagem da questão da competência dos tribunais portugueses para conhecer os factos subjacentes à emissão do mandado, determinada pela invocação da prescrição do procedimento criminal, implica, como questão prévia, a discussão da aplicabilidade da lei penal portuguesa a tais factos, o que nos remete para a questão da aplicação da lei penal/fiscal/tributária no espaço.
Haverá que ter em consideração a natureza das infracções imputadas ao requerido, e ter em conta que os factos imputados ao procurado, à face da lei portuguesa e à data em que foram cometidos, constituiriam crime de fraude fiscal, previsto e punido no artigo 23.º «Fraude fiscal», do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15-01-1990, que aprovou o RJIFNA (Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras) e previsto e punido actualmente nos artigos 103.º e 104.º, do RGIT, passando a ser bipartida a sua previsão, sob as designações de «Fraude» e «Fraude qualificada» e ainda o crime de «Abuso de confiança fiscal», p. p. pelo artigo 24.º do RJIFNA, e previsto na fase actual como crime de «Abuso de confiança», p. p. pelo artigo 105.º do RGIT; a alusão genérica a “evasão fiscal”, tratando-se de conceito compreensivo, abrangerá certamente estas realidades.
Todavia, a circunstância de eventualmente as imputadas infracções extravasarem o âmbito dos tipos legais previstos nas leis nacionais, por estarem em causa outros impostos ou contribuições, em nada impediria a execução do mandado.
Na verdade, como se estabelece no artigo 4.º, n.º 1, da Decisão-Quadro do Conselho (2002/584/JAI), de 13 de Junho de 2002, que prevê os Motivos de não execução facultativa do mandado de detenção europeu:
«A autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu:
1 - Se, num dos casos referidos no n.º 4 do artigo 2.º, o facto que determina o mandado de detenção europeu não constituir uma infracção nos termos do direito do Estado - Membro de execução; todavia, em matéria de contribuições e impostos, de alfândegas e de câmbios, a execução do mandado de detenção europeu não pode ser recusada pelo facto de a legislação do Estado-Membro de execução não impor o mesmo tipo de contribuições e impostos ou não prever o mesmo tipo de regulamentação em matéria de contribuições e impostos, de alfândegas e de câmbios que a legislação do Estado-Membro de emissão».
Esta norma foi transcrita para a Lei n.º 65/2003 no artigo 12.º, n.º 2, que estabelece:
«A execução do mandado de detenção europeu não pode ser recusada, em matéria de contribuições e impostos, de alfândegas e de câmbios, com o fundamento previsto no n.º 1, pela circunstância de a legislação portuguesa não impor o mesmo tipo de regulamentação em matéria de contribuições e impostos, de alfândegas e de câmbios que a legislação do Estado membro de emissão».

Sobre aplicação da lei penal no espaço dispõe o artigo 4.º do Código Penal, com a epígrafe “Aplicação no espaço: princípio geral”:
«Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados:
a) Em território português, seja qual for a nacionalidade do agente; ou
b) A bordo de navios ou aeronaves portugueses».

Em função da especificidade das infracções imputadas ao procurado, há que convocar a Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17-12, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 7-B/99, in DR, Série I-A, 2.º Suplemento, de 27-02-1999, e que foi sucessivamente alterado pela Lei n.º 30-G/2000, in DR, Série I-A, 3.º Suplemento, de 29-12 (com alteração dos artigos 24.º, 38.º, 63.º, 75.º, 77.º, 87.º, 88.º, 90.º e 91.º, e aditando os artigos 63.º-A, 63.º-B, 64.º-A e 89.º-A), e posteriormente alterado e republicado pela Lei n.º 15/2001, de 15 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias - RGIT), e novamente alterado pela Lei n.º 32-B/2002, de 30-12 (no que tange aos artigos 45.º, 46.º, 53.º e 91.º), pelo Decreto-Lei n.º 160/2003, de 19-07 (apenas quanto ao artigo 46.º, n.º 3), pela Lei n.º 50/2005, de 30-08 (no que respeita ao artigo 74.º, n.º 1, dispondo sobre o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes), pela Lei n.º 60-A/2005 Orçamento do Estado para 2006, in DR I-A, n.º 250, Suplemento, de 30-12-2005 (alteração dos artigos 24.º, 45.º, 64.º e 78.º), pela Lei n.º 53-A/2006, de 29-12, Orçamento do Estado para 2007 (alterando os artigos 14.º, 45.º, 49.º, 60.º e 89.º-A e revogando o n.º 2 do artigo 49.º), pela Lei n.º 67-A/2007, Orçamento do Estado para 2008, in DR I Série, n.º 251, Suplemento, de 31-12-2007 (alterando os artigos 44.º, 52.º e 102.º), pela Lei n.º 64-A/2008, de 31-12, Orçamento do Estado para 2009 (alterando os artigos 59.º, 63.º-A, 63.º-B, 68.º, 87.º e 89.º-A, aditando o artigo 68.º-A e revogando a línea b) do n.º 3 do artigo 63.º-B).

Inserto no Capítulo II “Normas tributárias”, do Título I “Da ordem tributária”, e sob a epígrafe “Aplicação da lei tributária no espaço”, diz o artigo 13.º da LGT, na versão originária (e inalterada):
1 – Sem prejuízo de convenções internacionais de que Portugal seja parte e salvo disposição legal em sentido contrário, as normas tributárias aplicam-se aos factos que ocorram no território nacional.
2 – A tributação pessoal abrange ainda os rendimentos obtidos pelo sujeito passivo com domicílio, sede ou direcção efectiva em território português, independentemente do local onde sejam obtidos.

Sobre aplicação da lei fiscal no espaço o Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15-01-1990, que aprovou o RJIFNA (Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras) não tinha norma própria, aplicando-se supletivamente o Código Penal, por força do seu artigo 4.º, n.º 1, que rezava: «Aos crimes fiscais são aplicáveis, subsidiariamente, o Código Penal e legislação complementar».
Já o RGIT no artigo 4.º versa a «Aplicação no espaço», estabelecendo, em termos paralelos ao citado artigo 4.º do Código Penal:
«Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, o presente Regime Geral é aplicável, seja qual for a nacionalidade do agente, a factos praticados:
a) Em território português;
b) A bordo de navios ou aeronaves portugueses.

Estas disposições consagram o princípio da territorialidade na aplicação da lei penal no espaço, o qual já encontrava consagração no artigo 53.º, n.º 1 (com a excepção do § 1.º) e n.º 2, do Código Penal de 1886.
Segundo este princípio-regra basilar, que continua a dominar a aplicação da lei penal no espaço, a legislação penal do Estado pune todas as infracções cometidas no seu território (definido no artigo 5.º da CRP), cometidas por qualquer cidadão, entendendo-se território nacional com a extensão conferida pelo princípio corolário daquele, o chamado princípio da bandeira ou do pavilhão, podendo ver-se o caso de alargamento da aplicação no espaço das leis penal e contra-ordenacional portuguesas, a casos de ilícitos cometidos a bordo de aeronaves civis em voos comerciais, constante do Decreto-Lei nº 254/2003, de 18-10.
O princípio - regra da territorialidade, por não assegurar, só por si, eficaz protecção visada pelo ordenamento penal, é complementado por outros princípios que funcionam subsidiariamente, concretamente, pelos princípios da protecção dos interesses nacionais, da nacionalidade - da personalidade activa e da personalidade passiva - e da plurilateralidade da prática do crime, também designado de princípio da competência ou da aplicação universal da lei penal ou princípio do direito mundial (segundo este último princípio, o Estado pune todos os crimes cometidos segundo o seu próprio direito, independentemente do lugar onde tenham sido praticados, de quem os cometeu, ou de quem é o ofendido) - sobre estas distinções, cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 12.ª edição, em anotação aos artigos 4.º e 5.º; Código Penal, de Victor Sá Pereira, 1988, Livros Horizonte, e Manuel António Lopes Rocha, A Aplicação da Lei Criminal no Tempo e no Espaço, in Jornadas de Direito Criminal, edição do CEJ, 1983, págs. 118 e ss. (Cfr. sobre a matéria, com interesse, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-09-1995, processo n.º 48601, in BMJ n.º 449, pág. 229).
Estes princípios mostram-se consagrados no artigo 5.º do Código Penal, prevendo-se os casos em que ainda é aplicável a lei penal portuguesa a factos cometidos fora do território nacional, com as restrições previstas no artigo 6.º (Segundo o n.º 1, a aplicação da lei portuguesa a factos praticados fora do território nacional só tem lugar quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação).

Estabelece o artigo 5.º do Código Penal, com a epígrafe “Factos praticados fora do território português”:
1. Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional:
a) Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 221.º, 262.º a 271.º, 308.º a 321.º e 325.º a 345.º;
b) Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 159.º, 160.º, 169.º, 172.º, 173.º, 176.º, 236.º a 238.º, no n.º 1 do artigo 239.º e no artigo 242.º, desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado;
c) Por portugueses, ou por estrangeiros contra portugueses, sempre que:
I – Os agentes forem encontrados em Portugal;
II – Forem também puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido praticados, salvo quando nesse lugar não se exercer poder punitivo; e,
III – Constituírem crime que admita extradição e esta não possa ser concedida; ou
d) Contra portugueses, por portugueses que viverem habitualmente em Portugal ao tempo da sua prática e aqui forem encontrados;
e) Por estrangeiros que forem encontrados em Portugal e cuja extradição haja sido requerida, quando constituírem crimes que admitam a extradição e esta não posa ser concedida.
2. A lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional que o Estado Português se tenha obrigado a julgar por tratado ou convenção internacional.

A redacção vigente da norma acabada de citar foi introduzida pelo artigo 10.º da Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto (Lei de combate ao terrorismo), rectificada pela Declaração de rectificação n.º 16/2003, in DR – I Série-A, n.º 251, de 29 de Outubro, a qual operou a 14.ª alteração do Código Penal, e alterou a redacção da alínea a) do n.º 1, suprimindo a referência aos artigos 300.º e 301.º (revogados pelo artigo 11.º da mesma Lei) e intercalando na parte final entre “321.º, 325.º”, a copulativa e.

A aplicação do princípio da territorialidade da lei penal pressupõe resolvida a questão da sede do crime.
A propósito da determinação do lugar da prática da infracção debatem-se as doutrinas da actividade ou execução e do evento.
A aceitação cumulativa das duas doutrinas, resultante de premências da vida moderna e da facilidade e frequência de prática de crimes à distância, deu origem à chamada solução plurilateral, já defendida anteriormente pela doutrina, como Eduardo Correia, Direito Criminal, 1, pág. 179 (defendendo ser a solução exigida pelo interesse de que, em virtude de diferentes critérios usados pelas leis de diferentes países, os criminosos não fiquem impunes) e a que Hans-Heinrich Jescheck chama teoria da ubiquidade.
No Tratado de Derecho Penal, Parte General, I, tradução espanhola, edições Bosch, 1981, de Santiago Mir Puig e Francisco Muñoz Conde, no capítulo IV da 1.ª Parte, fls. 239 a 241, a propósito do lugar de comissão, expende este Autor, a propósito do artigo 9.º do Código Penal da então República Federal da Alemanha:
“O lugar de comissão de um facto é decisivo para a questão de saber se o poder punitivo de determinado Estado se deve basear no princípio da territorialidade ou deve buscar-se outro ponto de conexão.
A questão de saber quais são os elementos que servem para determinar o lugar de comissão foi durante muito tempo objecto de discussão técnica. A teoria da actividade atende ao lugar em que o autor actuou, ou em caso de omissão, devia ter actuado. A teoria do resultado atende, pelo contrário, ao lugar onde se produziu o resultado típico. Actualmente é dominante a teoria da ubiquidade. Esta teoria considera como lugar de comissão tanto o lugar da acção como o do resultado típico. Invoca-se para tanto a equivalência da acção e resultado para o conteúdo criminal do facto e a necessidade de colmatar as lacunas que surgem com a aplicação do princípio da territorialidade.
No que se refere à acção como ponto de conexão, o lugar da comissão nos crimes de simples actividade determina-se unicamente pela acção típica, da qual é necessário que se cometa só uma parte em território nacional e, nos crimes de resultado, pela acção e pelo resultado.
Os actos preparatórios podem servir de base ao lugar da comissão do facto quando se apresentam como contributo ao facto de um co-autor”.
A teoria da ubiquidade foi defendida entre nós pelo Professor Figueiredo Dias no estudo La compétence des jurisdictions pénales portugaises pour les infractions commises à l´ étranger, separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1966, págs. 10 e segs.
Cavaleiro Ferreira, segundo Apontamentos das Lições de Direito Penal proferidas ao 5.º ano jurídico, edição da FDL, ano de 1972-1973, Fasc. 15 e 16, págs. 180/2, expendia:
“As posições que têm sido sustentadas acerca da determinação do lugar do delito são as mesmas que foram apresentadas quanto ao tempo do delito.
Segundo a doutrina da actividade, todo o delito é cometido no lugar em que se exerce a acção criminosa do delinquente.
Segundo a teoria do evento, o delito deve considerar-se cometido no lugar onde se verificou o resultado danoso.
Finalmente, a doutrina da ubiquidade afirma que o delito se poderá considerar cometido tanto num como no outro lugar”.
Adiantava que, no que respeitava à competência internacional da lei portuguesa, havia sido seguida a doutrina da ubiquidade no artigo 46.º e §§ do Código de Processo Penal. Desde que qualquer elemento do crime fosse praticado em Portugal, toda a infracção se devia considerar cometida em território português.
E finalizava: “Com a adopção da doutrina da ubiquidade, o direito penal português é aplicável aos factos que se realizem só parcialmente em território nacional. Ainda que só a actividade, ou só o evento, ou só uma parte do evento, se tenha realizado em território nacional, a lei penal será sempre aplicável porque todo o crime se considera cometido em território nacional”.
O mesmo Professor retoma o tema nas Lições de Direito Penal, Editorial Verbo, 1987, I, págs. 26 a 31, dizendo: «O C. Penal de 1886 era omisso sobre a determinação do lugar do delito; a doutrina portuguesa então ponderou largamente a questão; intervieram no seu estudo e discussão com especial relevo os professores Henriques da Silva, Pedro Martins e Caeiro da Mata.
A questão foi resolvida pelo Cód. de Proc. Penal com base na opinião dominante e que foi a dos dois últimos autores citados, ou seja a chamada doutrina da “ubiquidade”».
E adiantava que “a solução legislativa do art. 46º do CPP (de 1929) está fundamentalmente recolhida pelo art. 7º do (então) novo Cód. Penal”.
Na jurisprudência, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-12-1983, in BMJ n.º 332, pág. 341, dizia-se: «O actual Código Penal no seu artigo 7º consagra a teoria da ubiquidade quanto ao lugar do delito, em clara consonância com a ideia da plenitude da soberania portuguesa sobre o território nacional, anotando-se aí que a teoria da ubiquidade é a mais ampla concepção da sede do delito já que tem em conta o lugar, o processo de execução, o resultado e o efeito intermédio».
Em anotação a este acórdão do STJ, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118.º, pág. 17, escrevia o Professor Figueiredo Dias: «O art. 7.º do CP consagra a chamada solução plurilateral ou da ubiquidade, em termos particularmente amplos e consonantes com a ideia da plenitude da soberania portuguesa sobre o território nacional. Basta, por isso, que a infracção tenha com o território português qualquer dos elementos de conexão mencionados com aquele preceito - acção, nos crimes respectivos; a acção esperada nos casos de omissão; ou o resultado típico - para que deva concluir-se ter sido o crime praticado em Portugal…».

O Código Penal de 1982, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23-09, procurou resolver a questão no artigo 7.º, cujo texto inicial era sob a epígrafe “Lugar da prática do facto” o seguinte: «O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico se tenha produzido».
Redacção praticamente simétrica encontra-se na definição do lugar da prática do facto no artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10, que aprovou o Regime Geral das Contra-ordenações.
O texto teve uma alteração (ligeira) em 1995 (3.ª alteração do Código Penal operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1 de Outubro seguinte), substituindo-se apenas na parte final o tempo verbal “se tenha produzido” por “se tiver produzido”, sendo a seguinte a redacção actual, introduzida pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro – 4.ª alteração do Código Penal - entrada em vigor em 07-09-1998 e intocada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro:
1 – O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiverem produzido.
2 – No caso de tentativa, o facto considera-se igualmente praticado no lugar em que, de acordo com a representação do agente, o resultado se deveria ter produzido.
O n.º 1 foi modificado, alterando-se a redacção e acrescentando-se na parte final, em vez de “resultado típico se tiver produzido”, a expressão “resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiverem produzido”.
O n.º 2 corresponde a inovação introduzida pela citada reforma de 1998, não tendo correspondente, quer na versão original de 1982, quer na referida 3.ª alteração operada em 1995.

No que respeita ao locus comissi delicti, inserto no Capítulo II «Das disposições aplicáveis aos crimes fiscais» do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro de 1990, que aprovou o RJIFNA, estabelece o artigo 5.º, sob a epígrafe “Momento e lugar da prática da infracção fiscal”:
1 – As infracções fiscais consideram-se praticadas no momento e no lugar em que o agente actuar, de harmonia com os princípios constantes do Código Penal.
2 – Tratando-se de infracções fiscais omissivas, estas consideram-se praticadas na área do serviço fiscal em que deveria ser cumprido ou se deveria considerar cumprido o dever violado e na data em que termine o prazo para o respectivo cumprimento.

No que respeita ao «Lugar e momento da prática da infracção tributária», diz actualmente o artigo 5.º do RGIT:
1 – As infracções tributárias consideram-se praticadas no momento e no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, ou naqueles em que o resultado típico se tiver produzido, sem prejuízo do disposto no n.º 3.
2 - …………………………………………………………………………………………
3 - …………………………………………………………………………………………

Retomando o caso concreto.

Quanto a esta questão da sede do crime, dúvidas não haverá de que os crimes imputados ao requerido foram cometidos e consumados em território alemão, na cidade de Augsburg, onde o requerido deveria ter actuado, cumprindo as obrigações tributárias, que sobre si impendiam.
São imputados ao procurado cidadão nacional os crimes de sonegação do imposto sobre o volume de vendas, sonegação do imposto salarial, sonegação do imposto sobre a renda da pessoa moral e sonegação do imposto industrial.

Trata-se de crimes omissivos, crimes de mera inactividade, em que a omissão integradora do ilícito consiste na violação da obrigação de declaração de facto tributável e entrega do imposto, consubstanciando-se a final na não entrega, total ou parcial, do que estava obrigado a entregar à administração tributária, ou, no caso do imposto salarial, às instituições de segurança social.

A acção esperada por parte do requerido, de sinal contrário à omissão verificada, ou seja, o cumprimento das obrigações fiscais, devia ter lugar na Alemanha
Estão em causa, pois, infracções fiscais omissivas, que se consideram praticadas na área do serviço fiscal em que deveria ser cumprido o dever violado, no lugar onde o agente devia ter actuado, cumprido a obrigação tributária.
O lugar em que a omissão teve lugar, lesando os interesses da Fazenda alemã, o património do Estado alemão, ocorreu na Alemanha e não em Portugal; a tributação reporta-se a actividade industrial desenvolvida em território alemão, a produção de riqueza naquele País, a salários pagos por trabalho produzido na cidade de Augsburg, aí correndo o processo crime respectivo, não havendo aqui e agora que tecer considerações sobre eventual dupla tributação, devendo essa questão ser suscitada no local próprio, no tribunal alemão, onde terá cabimento apresentar, por exemplo, a certidão de fls. 135, ou os documentos de fls. 136 e 137.

A aplicação extraterritorial da lei penal justifica-se quando estão em causa bens ou interesses que não admitem a impunidade da respectiva ofensa, entrando-se no campo do princípio da universalidade ou da aplicação universal, que tem na cooperação internacional a sua mais lídima expressão, e daí a ressalva dos tratados e convenções, procurando-se com a mesma garantir a tutela de interesses ou bens que importam a toda a Humanidade e partilhando outros interesses com alguns ou todos os demais Estados, em termos de se justificar, a propósito, a punição dos crimes correlativos, sejam quais forem os seus agentes.

No nosso caso não há que convocar o princípio da competência ou da aplicação universal, pois não estão em causa situações de cooperação internacional enquadráveis no Decreto-Lei n.º 144/99 e Lei n.º 52/2003, para as quais faz sentido a aplicação dos princípios aludidos.

Como vimos, está excluída a competência dos tribunais portugueses para julgar os ilícitos imputados ao procurado, atento o disposto no artigo 4.º do Código Penal, aplicável no domínio do então RJIFNA, ex vi do seu artigo 4.°, e que consagra o princípio regra da territorialidade, tendo passado o RGIT em 2001 a incluir norma própria e expressa no mesmo sentido, não se verificando qualquer das excepções do artigo 5.º do Código Penal.
No âmbito dos crimes tributários os tribunais portugueses só têm competência, salvo tratado ou convenção internacional em contrário, para os factos praticados em território português ou a bordo de navios ou aeronaves portuguesas, o que aqui não se verifica.

O instituto de entrega, como o de extradição, tem como finalidade o permitir a realização de um julgamento criminal pelo Estado territorialmente competente para o fazer e como se sabe a nossa lei – artigo 4.º do Código Penal - consagra como primordial o mencionado princípio da territorialidade, princípio determinativo da competência para o julgamento dos factos ilícitos, o qual só é derrogado em casos excepcionais, que na situação presente não se justificam.

O cumprimento de mandados de detenção europeus por parte dos vários Estados membros da comunidade, quer para efeitos de procedimento criminal quer para cumprimento de penas já impostas, assenta no princípio do reconhecimento e no respeito mútuo e da confiança entre todos os Estados, não existindo, por isso, fundamento legal para a recusa do seu cumprimento.

Por todo o exposto, não se tem por verificada a causa de recusa do artigo 12.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º 65/2003.

Questão IV - Causa de recusa facultativa da alínea h), ponto i), do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003

Nas conclusões 15.ª e 16.ª o recorrente invoca esta causa de não execução - Cometimento da infracção, segundo a Lei Portuguesa, em todo ou em parte, em território nacional.
Relembrando, estabelece o artigo 12.º da Lei n.º 65/2003 na referida alínea:
«1 - A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:
(…)
h) O mandado de detenção europeu tiver por objecto infracção que:
i) Segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, em todo ou em parte, em território nacional ou a bordo de navios ou aeronaves portugueses; ou (…)».

Na defesa desta arguição retoma o recorrente a tese de que se deveria dar por assente que as firmas têm a sua sede em Portugal e que as acções ou omissões, passíveis de enquadrar um eventual ilícito partiam, ou eram omitidas, a partir da sede em território nacional, sendo de aplicar a lei portuguesa.
Ora, pelo que acima se disse, facilmente se conclui que a invocação não se justifica de todo, pois as infracções foram cometidas em território alemão.
Sem necessidade de outros considerandos, improcede a alegação.

IV Questão – Nulidade por omissão de pronúncia

O recorrente invoca esta nulidade na conclusão 26.ª, alegando ter peticionado na oposição que em caso de improcedência da mesma que a entrega ao Estado emissor ficasse à condição de ser devolvido ao Estado de execução para efeitos de cumprir a pena que eventualmente venha a ser condenado.
Estabelece o artigo 13.º da Lei n.º 65/2003, que a execução do mandado de detenção europeu só terá lugar se o Estado membro de emissão prestar uma das seguintes garantias:
a) ………………………………………………………………………………….
b) ………………………………………………………………………………….
c) Quando a pessoa procurada para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente no Estado membro de execução, a decisão de entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa procurada, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado membro de execução para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas de liberdade a que foi condenada no Estado membro de emissão.
Trata-se da transposição do n.º 3 do artigo 5.º da Decisão Quadro, onde se prevê que a execução do mandado de detenção europeu pela autoridade judiciária de execução pode estar sujeita pelo direito do Estado-Membro de execução a condições, como a do n.º 3, do seguinte teor:
Quando a pessoa sobre a qual recai um mandado de detenção europeu para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente do Estado-Membro de execução, a entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado-Membro de execução para nele cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade proferida contra ela no Estado-Membro de emissão.

Efectivamente no acórdão recorrido não se vislumbra qualquer referência à questão colocada.
Tal não significa, porém, que se esteja perante o vício de omissão de pronúncia gerador de nulidade da decisão, com os contornos da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal.
Como se referiu supra, no requerimento inicial – artigo 5.º – o Ministério Público aludiu a esta possibilidade.
A consignação desta possibilidade não implica a formulação de um juízo, sendo apenas decorrência da lei (que suscitará algumas dificuldades, uma vez que a natureza urgente deste procedimento não é compatível com a efectivação da prestação de garantias), mas de colocar em termos efectivos apenas no caso de eventual condenação, o que será pouco compaginável com o princípio da presunção da inocência; a condição só faz sentido para o facto futuro e incerto (incertus an, incertus quando) de cumprimento de uma pena privativa da liberdade, que só terá lugar se e quando o cidadão for condenado em pena de tal natureza.
O cumprimento da pena em Estado diverso do da condenação é uma situação que se situa já no âmbito da execução de uma decisão condenatória de natureza penal já transitada em julgado, pois só com o trânsito a sentença condenatória ganha força executiva, como decorre do artigo 467.º do Código de Processo Penal.
No fundo, a pretensão faz mais sentido numa fase posterior, se for caso disso.
De qualquer forma, prevenindo essa eventualidade, consignar-se-á que a entrega ficará sujeita a tal condição, o que retira fundamento à arguição de nulidade.
Concluindo: É de manter a decisão recorrida com a especificação de que deve dar-se execução ao Mandado, com a entrega do cidadão procurado, com a informação de que não renunciou ao princípio da especialidade, e com a condição de devolução do requerido para cumprimento de eventual pena a que venha a ser condenado e correspondendo a solicitação constante do ofício que acompanhou o mandado, a fls. 74 in fine (como previsto no n.º 2 do artigo 26.º da Decisão-Quadro), informar que o arguido foi detido no dia 6 de Julho de 2010, pelas 9 horas (fls. 3), tendo sido ouvido na tarde desse dia, sendo restituído à liberdade, prestado que foi o TIR, ou seja, após as 17,40 horas, do mesmo dia (fls. 20 – última parte do despacho - e fls. 21).

DECISÃO

Pelo exposto, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo requerido AA, mantendo-se a decisão recorrida, devendo proceder-se à entrega do mesmo cidadão, informando que o mesmo não renunciou ao princípio da especialidade, e que a entrega é concedida sob a condição nos termos do artigo 13.º, alínea c), da Lei n.º 65/2003, informando-se acerca da detenção nos termos supra referidos.
Custas pelo recorrente, nos termos dos artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1, do CPP, aplicáveis ex vi do artigo 34.º da Lei n.º 65/2003, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC - artigo 8.º, n.º 5, e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais.
Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Lisboa, 29 de Setembro de 2010
Raul Borges (relator) *
Fernando Fróis
Pereira Madeira