Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99S120
Nº Convencional: JSTJ00038855
Relator: MANUEL PEREIRA
Descritores: PROCESSO DISCIPLINAR
NULIDADE
CONTRATO DE TRABALHO
DESOBEDIÊNCIA
DESPEDIMENTO
JUSTA CAUSA
Nº do Documento: SJ199910200001204
Data do Acordão: 10/20/1999
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 2857/97
Data: 11/25/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Área Temática: DIR TRAB - CONTRAT INDIV TRAB.
Legislação Nacional: LCCT89 ARTIGO 9 N1 N2 AA ARTIGO 10 N2 ARTIGO 12 N1 C.
LCT69 ARTIGO 27.
DRGU 76/86 DE 1986/12/31 ARTIGO 17 C.
Sumário : É legítima a ordem dada a um trabalhador de uma sala de jogos, que se apresenta com a barba por fazer, para ir barbear-se em instalações da entidade patronal.
A recusa a tal ordem, desacompanhada de outros elementos, é de considerar ser passível de sanção, mas não de despedimento.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
A demandou no tribunal do Trabalho de Almada, em acção com processo ordinário, a B, pedindo que seja condenada a pagar-lhe a quantia de 2114018 escudos e retribuições mensais que se vencerem até à data da sentença, com juros de mora vencidos e vincendos, e a reintegrar o Autor na categoria e com a antiguidade que lhe competem.
Alegou, no essencial, que foi admitido ao serviço da Ré em 26 de Maio de 1987, por contrato de trabalho, tendo sido despedido com alegada justa causa em 9 de Novembro de 1994.
Para além de a nota de culpa ser ininteligível e de a decisão de despedimento não se mostrar fundamentada, a tornar nulo o processo disciplinar, o certo é que o comportamento do Autor jamais justificou o despedimento, que é ilícito por inexistência de justa causa, pelo que o Autor tem direito a ser reintegrado e a haver as retribuições que se vencerem até à data da sentença.
Ainda a Ré é devedora de diferenças salariais que perfazem 1072610 escudos, das férias e respectivo subsídio de 1994, no montante de 156000 escudos, de 338341 escudos de trabalho nocturno que prestou e não foi devidamente remunerado, para além da quantia de 469067 escudos referente a trabalho prestado em dia de descanso semanal.
Contestou a Ré defendendo a inteira regularidade do processo disciplinar que instaurou ao Autor e a existência, de justa causa para o despedimento com que o sancionou, face ao apurado comportamento, que descreve; nega ser devedora das reclamadas quantias, pelo que a acção deverá improceder totalmente.
Condensada, instruída e julgada a causa, proferiu-se sentença a absolver a Ré dos pedidos, improcedendo a acção totalmente - o Autor, em audiência de julgamento (acta de fls. 133), fez a declaração de optar pela indemnização de antiguidade no caso de a acção proceder.
Sob apelação do Autor, o tribunal da Relação de Lisboa, pelo acórdão de fls. 210-7, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
De novo inconformado, o Autor recorreu de revista, tendo assim concluído a sua alegação, no que de fundamental importa:
a) A acusação consubstanciada na nota de culpa não é minimamente inteligível, revestindo carácter confuso, vago e abstracto.
b) Apesar de ter arguido tais vícios da acusação, a Ré não os suprimiu, tornando impossível ao Autor o exercício do seu direito de defesa de modo adequado e suficiente.
c) Ao confirmar a sentença, o acórdão recorrido violou o disposto no n. 1 do artigo 10 do regime jurídico aprovado pelo DL 64-A/89, de 27 de Fevereiro.
d) A decisão não ponderou adequadamente as circunstâncias do caso, como era imposto pelo n. 9 do artigo 10 daquele diploma, pelo que é nulo o processo disciplinar e ilícito o despedimento (artigo 12 ns. 1 alínea a) e 3 alínea c) do referido regime Jurídico), tendo o acórdão violado os ns. 9 e 10 do citado artigo 10.
e) O não ter feito a barba não é sinónimo de má apresentação a que se refere o Dec. Regulamentar 76/89, de 31 de Dezembro, pelo que uma tal equiparação feita pelo acórdão recorrido é, para além de errada e ilegítima, inconstitucional por violação dos direito à integridade e identidade pessoal, do direito de personalidade e do direito à determinação por cada cidadão da sua aparência física.
f) Assim, na interpretação dada pelo acórdão em revista, é inconstitucional a alínea c) do artigo 17 do referido Dec. Regulamentar.
g) O recorrente não violou o dever de obediência por ser manifestamente ilegítima a ordem para que fizesse a barba ou, vista a questão de outro ângulo,a proibição de usar barba .
h) O acórdão recorrido incorreu na nulidade do artigo 668 n. 1 alínea c) do C.P.Civil por a decisão estar em manifesta contradição com os fundamentos, por nela constar sobre o modo como o Autor exercia as suas funções, impondo a lei que as exercesse com a maior disciplina, correxão e urbanidade.
i) A recorrida em situações globalmente similares, às que levou ao despedimento do recorrente, vinha agindo de modo bem diferente, pelo que é de todo injustificado que perante factos iguais tenha comportamentos opostos.
j) A haver ilícito disciplinar, o que não se concede, o despedimento foi sanção manifestamente desproporcionada à gravidade da conduta do Autor.
l) O determinante para que, por Portaria de Extensão, se aplique o CCT para a indústria hoteleira à relação de trabalho do Autor é que a entidade patronal exerça uma das actividades por ela regulada, e não que exerça actividade relacionada com a indústria hoteleira ou dessa natureza.
m) As Portarias de Extensão não se reportam a conceitos vagos, antes de modo inequívoco determinem a que actividades se aplica o IRCT, e no caso obviamente está englobada a actividade de Bingo.
n) Se, como se entende na decisão sob recurso, o IRCT apenas fosse aplicável às relações de trabalho dos salões de Bingo existentes em entidades de actividade hoteleira, estaria a consumar-se uma desigualdade de tratamento e a ofender-se a igualdade de concorrência.
o) O acórdão recorrido parece decidir contra o entendimento do recorrente por ele ser violador do artigo 29 do DL 519-C1/79, de 29 de Dezembro, por não se verificarem os requisitos de identidade do sector económico das entidades patronais e de identidade ou analogia de profissão dos trabalhadores, mas, quanto às entidades patronais, ambos desenvolvem a "actividade de bingo" (a PE refere-se às actividades económicas e não só a uma), e relativamente às categorias profissionais elas são as mesmas.
p) A tese do acórdão recorrido consubstancia violação do disposto nas portarias de extensão, maxime a publicada no BTE n. 38/92.
q) Sendo aplicável o CCT para a Indústria Hoteleira e Similares à relação de trabalho do Autor, tem este direito ao período referente a trabalho nocturno, sendo certo que fundamenta a sua pretensão na convenção colectiva de trabalho e não na lei geral.
r) O entendimento do acórdão recorrido traduz-se na violação do princípio da igualdade, pelo que nessa interpretação se verifica a respectiva inconstitucionalidade.
s) Provado que o Autor apenas gozava um dia de descanso semanal em duas semanas de cada mês, tem ele direito ao que pede por trabalho prestado em dias de descanso semanal.
t) Fixado esse regime pela recorrida como parte integrante do horário de trabalho, dúvidas não há de que a prestação de trabalho se deveu a ordem expressa daquela e por sua determinação exclusiva.
u) Ao decidir como fez, o acórdão violou as cláusulas 35ª e 50ª do CCT, o n. 4 do artigo 7 do DL 421/83 e o n. 1 do artigo 342 do C.Civil.
v) Assim, deve conceder-se provimento ao recurso, condenando-se a recorrida nos exactos termos do pedido.
Na contra-alegação, a recorrida pronuncia-se pela confirmação do julgado.
A Exma Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido de que a revista deve ser concedida no que toca ao despedimento, que é de julgar ilícito por inexistência de justa causa.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
O acórdão em revista deixou fixados os seguintes factos:
1) O Autor foi admitido ao serviço da Ré em 26 de Maio de 1987 e por conta e sob a direcção desta trabalhou até 9 de Novembro de 1994, data em que foi despedido na sequência de um processo disciplinar que a mesma lhe instaurou.
2) O Autor exercia para a Ré as funções de "caixa móvel".
3) As funções do Autor consistiam no atendimento directo dos clientes da sala de Binguduzu - seu local de trabalho - explorada pela Ré no Jardim Zoológico.
4) O Autor, enquanto esteve ao serviço da Ré, auferiu as seguintes remunerações:
- de 1 de Outubro de 1989 a 31 de Outubro de 1990, 41100 escudos;
- de 1 de Novembro de 1990 a 30 de Setembro de 1991, 46500 escudos;
- de 1 de Outubro de 1991 a 31 de Outubro de 1992, 51150 escudos;
- de 1 de Novembro de 1992 a 31 de Outubro de 1993, 54050 escudos;
- de 1 de Novembro de 1993 e até à data do despedimento, 56800 escudos.
5) No dia 1 de Outubro de 1994, o Autor apresentou-se no seu local de trabalho, para iniciar o serviço, com a barba por fazer.
6) Nessa altura, a Ré instou o Autor para que fizesse a barba nas próprias instalações existentes no local de trabalho.
7) O Autor, porém, recusou-se, tendo-se dirigido ao bar para tomar café.
8) Confrontado pela 2ª vez, pela chefia directa, para a necessidade de fazer a barba, o Autor afirmou que não a fazia.
9) Já noutras ocasiões, o Autor se tinha apresentado ao serviço com a barba por fazer, tendo a Ré, nessas ocasiões, advertido e instado o Autor para que fizesse a barba.
10) Na altura, outros trabalhadores da Ré se apresentavam ao serviço com a barba por fazer, mas assim que eram instados pela hierarquia, acabavam por fazê-la nas próprias instalações do Bingo, salvo se tivessem problemas de pele que justificassem tal atitude.
11) Em 17 de Outubro de 1994, a Ré remeteu ao Autor a nota de culpa junta a fls. 69, a que este respondeu nos termos do articulado de fls. 64 a 66 do autos.
12) O Autor apenas gozava um dia de descanso em duas semanas de cada mês.
13) O período de funcionamento da sala de Bingo da Ré era das 15 ás 3.00 horas, com dois turnos: um das 15 às 21 horas e outro das 21 às 3.00 horas.
14) O horário de trabalho do Autor era, com alternância quinzenal, entre as 15 e as 21 horas e entre as 21 e as 3.00 horas.
15) O Autor recebeu proporcionais de férias, subsídios de férias e de Natal do ano de 1994.
16) O Autor trabalhou no Bingo do Hotel Altis de 14 de Fevereiro de 1995 a 13 de Janeiro de 1996, auferindo mensalmente o vencimento ilíquido de 52500 escudos acrescido de 11250 escudos de subsídio de trabalho nocturno, 2080 escudos de abonos para falhas, de 20000 escudos de prémio de assiduidade e de 700 escudos de subsídio de refeição por cada dia de trabalho.
Insiste o recorrente nas questões que haviam constituído objecto da apelação, pugnando pela declaração da ilicitude do despedimento, já por nulidade do processo disciplinar, já por inexistência de causa justificativa da sanção, e pela condenação da Ré a pagar-lhe as retribuições devidas até à data da sentença e indemnização de antiguidade, pela qual optou, para além do pagamento do trabalho nocturno e suplementar prestado.
Como o STJ, enquanto tribunal de revista, apenas conhece da matéria de direito (artigo 85 n. 1 do C.P.Trabalho), há que conhecer das questões colocadas com base na factualidade que as instâncias fixaram, pois não se vislumbra razão para alterar a matéria de facto nos termos do n. 2 do artigo 722 do C.P.Civil, nem há justificação para ordenar a ampliação da base factual a coberto do que dispõe o n. 3 do artigo 729 deste Código.
Conhecendo das questões pela ordem por que foram colocadas na revista, vejamos se a nota de culpa se apresentou confusa, vaga e abstracta, como diz o recorrente, não contendo a descrição circunstanciada dos factos que lhe eram imputáveis, consoante determina o n. 1 do artigo 10 do Regime Jurídico aprovado pelo DL 64-A/89, de 27 de Fevereiro, que passaremos a designar por Lei dos Despedimentos.
Analisando a nota de culpa, que integra o documento junto a, fls. 69, ressalta dela, com clareza e nitidez bastantes, qual o comportamento do Autor alvo do procedimento disciplinar dirigido ao seu despedimento: refere-se nela que o Autor apresentou-se ao serviço com a barba por fazer, recusando fazê-la não obstante instado duas vezes para o efeito, a segunda pela chefia directa.
E para além de recusar barbear-se respondeu ainda que não tinha obrigação de informar a chefia sobre as razões por que se apresentava com a barba por fazer.
Este, no essencial, o conteúdo da nota de culpa, compreensível pelo cidadão normal, e que foi cabalmente compreendido pelo Autor como inequivocamente resulta da resposta que apresentou à nota de culpa, documento de fls. 64-66, em que rebateu a acusação.
Portanto, a nota de culpa mostra-se correctamente elaborada, não padecendo de irregularidades susceptíveis de comprometer a defesa do trabalhador, pelo que não se mostra violado o n. 1 do artigo 10 da L. Desp..
Quanto à decisão a despedir o Autor, ela remeteu para as conclusões e fundamentos exarados na nota de culpa ( ver documento de fls. 16).
Embora por remissão, a decisão mostra-se fundamentada em termos de refutar suficientes, reflectindo a ponderação das circunstâncias do caso e a gravidade da conduta do trabalhador, que a empregadora considerou merecedora da sanção que aplicou.
Foi nesses termos que a decisão foi comunicada, pelo que o Autor, ficou conhecedor dos factos justificativos do despedimento, em condições portanto, de o poder impugnar eficazmente.
Lembremos que, como ensina Pedro de Sousa Macedo, em "Poder Disciplinar Patronal", pág. 151, a fundamentação da decisão "pode fazer-se por remissão para a nota de culpa..."
Tanto basta para demonstrar que, no caso, foi observado o disposto nos ns. 9 e 10 do artigo 10 da L. Desp..
Aqui chegados, vejamos se o despedimento se apresenta como sanção ajustada ao apurado comportamento do trabalhador, considerado o que figurou na nota de culpa, pois que na apreciação da justa causa apenas é de atender aos factos daquela constantes (artigos 10, 9 e 12 n. 4 da L.Desp.).
Constitui justa causa de despedimento, no dizer do n. 1 do artigo 9 da L. Desp., o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
Enumera o n. 2 do preceito, exemplificativamente, comportamentos do trabalhador susceptíveis de constituir justa causa de despedimento, entre eles se contando a desobediência ilegítima às ordens dadas por responsáveis hierarquicamente superiores (alínea a)) e o desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, das obrigações inerentes ao exercício do cargo ou posto de trabalho que lhe esteja confiado (alínea d)).
Mas, como é bem de ver, tais comportamentos não conduzem de imediato ao despedimento; eles terão de revestir, em concreto, gravidade bastante para levar à extinção da relação de trabalho, o que impõe equilibrada ponderação dos interesses em conflito e ajustada avaliação do desvalor do comportamento do trabalhador e seu reflexo na manutenção do vínculo laboral - se é por inteiro desrazoável obrigar a entidade empregadora a manter ao seu serviço um trabalhador cujo comportamento, merecedor de forte reprovação, atingiu decisivamente a confiança que deve envolver uma relação tendencialmente duradoura como é a laboral, também não é aceitável que toda e qualquer infracção disciplinar conduza ao despedimento, com esquecimento de que a aplicação de sanção menos grave pode afirmar suficientemente a autoridade e poder disciplinar do empregador, sem risco de enfraquecimento daquela nem reflexos negativos na disciplina e produtividade da empresa.
Fazendo aplicação dos princípios enunciados, cabe ajuizar se a conduta do recorrente tornou prática e imediatamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
Respondemos que não, ainda que, como se nos afigura certo, o trabalhador merecesse punição, com aplicação de sanção bem menos grave que o despedimento (ver artigo 27 da LCT, DL 49408, de 24 de Novembro de 1969).
Consta da nota de culpa o que passamos a reproduzir:
"1) No passado dia 1 de Outubro de 1994, apresentou-se (o ora recorrente) para iniciar o serviço (segundo turno), em condições de higiene pessoal, barba por fazer, que a Chefia da sala entende não serem próprias para o bom funcionamento da sala;
2) Que instado a proceder a higiene facial, nas próprias instalações existentes no local de trabalho, recusou-se ao procedimento indicado, tendo-se dirigido ao bar para tomar café.
3) Que confrontado, pela 2ª vez, pela Chefia directa, com a necessidade de fazer a barba ou não poderia pegar ao serviço, afirmou que "não fazia a barba".
4) Que, tendo recebido instruções expressas, por duas vezes, para proceder a higiene pessoal, não só ignorou as instruções, como possuindo um papel do IPO com data de 29 de Setembro, entendeu, deliberadamente, que não se devia justificar.
5) Tendo reconhecido ainda que, dado o insólito da sua intenção, contactado o Agregado da sala, o facto de não fazer a barba, implicava a sua suspensão com procedimento disciplinar.
6) Inquirido sobre a sua obrigação de informar a Chefia do facto de não ter feito a barba, afirmou que "não tinha obrigação de informar a Chefia, " a Chefia é que lhe deveria ter perguntado."
7) Que reconheceu, já por várias vezes entrar ao serviço com a barba por fazer, dando a "explicação de que não teve tempo" mas, que poderia apresentar outras explicações, "uma vez que não tem que dar explicações".
8) Que declarou conhecer sumariamente, as obrigações de um funcionário da sala de Bingo, afirmando que uma dessas obrigações é a higiene pessoal".
Confrontando estes factos com os apurados em julgamento, ressalta que não pode jogar contra o Autor o consignado na parte final do n. 9, de que a Ré advertiu e instou o Autor para que fizesse a barba, nas outras vezes em que se apresentou com ela por fazer, e por isso não pode esse facto servir, ao contrário do que foi considerado no acórdão recorrido, para conferir maior, gravidade objectiva à conduta do Autor ou acentuar a culpa.
Ainda que se saiba que os empregados das salas de jogo do bingo são obrigados a "cuidar da sua boa apresentação pessoal e usar, quando em serviço, o trajo aprovado" (alínea c) do artigo 170 do Dec. Regulamentar n. 76/86, de 31 de Dezembro, o que é compatível com o uso de barba, mais ou menos comprida, desde que cuidada, a verdade é que não vislumbramos que o não fazer a barba em certo dia, sem que nada mais desmereça na apresentação do trabalhador, concretize falta de acentuada gravidade - há que atender aos tempos que atravessamos e à "liberdade" que é consentida em vários domínios, concretamente na apresentação das pessoas.
Aceita-se que a Ré, em consideração ao disposto no artigo 17 alínea c) do citado Dec. Regulamentar, não quisesse ao serviço trabalhador com a barba por fazer, na sala do bingo, pelo que consideramos legítima a ordem dada ao Autor para que se barbeasse nas instalações.
Recusando-se fazê-lo, pretextando razões que nada justificam, é óbvio, a nosso ver, que o Autor desobedeceu ilegitimamente às ordens que lhe foram dadas, pelos superiores hierárquicos.
Só que a desobediência não pode ser dissociada da ordem dada e da situação que determinou esta.
No caso, a ordem dirigiu-se ao suprimento de uma falta do Autor que até podia, com alguma tolerância, ter passado em claro, uma vez que a Ré, ao que resulta do que ficou apurado e consta do n. 10, dispensava os trabalhadores de fazer a barba se eles tivessem problemas de pele.
Tendo em atenção todo o exposto, o despedimento do Autor apresenta-se como sanção desproporcionada, por excessiva, à gravidade da falta cometida, não sendo de molde a deixar irremediavelmente comprometida a subsistência da relação laboral - sanção menos grave, nomeadamente a suspensão do exercício de funções, puniria com suficiência o Autor, sem reflexos negativos no regular funcionamento do bingo, pese embora os condicionalismos legais a que está sujeito, nem prejuízo para a autoridade da Ré e disciplina laboral.
Concluímos, assim, pela ilicitude do despedimento, por inexistência de justa causa - artigo 12 n. 1 alínea c) da L. Desp.
Consequentemente, tem o Autor direito a haver da Ré o valor das retribuições que deixou de auferir desde 30 dias antes da data da propositura da acção até à data da sentença - o despedimento foi comunicado ao Autor em Novembro de 1994 e a acção deu entrada em Juízo em 30 de Outubro de 1995 -, com deduções das importâncias, relativas aos rendimentos do trabalho que auferiu por actividades iniciadas posteriormente ao despedimento, e bem assim indemnização correspondente a um mês de remuneração de base por cada ano de antiguidade ou fracção, contando-se todo o tempo decorrido até à data da sentença (artigo 13 da L. Desp.) - apurar-se-á em execução de sentença o que se mostra devido ao Autor, vencendo juros as retribuições desde a data do vencimento respectivo e a indemnização de antiguidade a contar da sentença.
Conheçamos agora da aplicabilidade do IRCT para a Indústria Hoteleira e Similares e da retribuição por trabalho nocturno, que daquela depende.
Neste domínio, entendemos que a decisão das instâncias não merece reparo, remetendo-se para os fundamentos do acórdão recorrido.
Acrescentar-se-á, decisivamente, que analisando as sucessivas Portarias de extensão, se concluir que elas apenas quiseram abranger as empresas do sector de actividade regulado não filiados nas associações patronais outorgantes dos CCTs, e nesse sector não cabem as Misericórdias ainda que explorem o jogo do bingo.
Como escreve Motta Veiga, em "Lições do Direito do Trabalho", 6ª edição, pág 112, "São condições "sine qua non" da PE 1º que as empresas e os trabalhadores, aos quais se vai estender a convenção, pertençam ao mesmo sector económico e profissional, e - 2º que haja identidade ou semelhança de condições económicas e sociais relativamente ás empresas e trabalhadores abrangidos pela convenção em causa".
Não se mostra, assim, que o Autor tenha direito às retribuições, mensais indicadas no artigo 30 da petição inicial, nem, consequentemente - à remuneração do trabalho nocturno, reclamada na base de que era aplicável o IRCT.
De resto, aplicar-se o esquema remuneratório previsto no CCT para a Indústria Hoteleira para os trabalhadores das salas de bingo, não podia reconhecer-se ao Autor direito às retribuições apontadas no artigo 30 da petição inicial, cujo pagamento reclama, nos diferenciais, porquanto elas correspondem à remuneração do caixa volante ou caixa móvel que trabalha em sala de 200 a 500 lugares, e o Autor não trouxe ao processo a indicação de ser esse o número de lugares do Binguduzu, explorado pela Ré, pelo que sempre a retribuição devida será inferior, a correspondente a sala com menos de 200 lugares - ver n. 7 da cláusula 2ª do CCT no BTE, 1ª série, n. 5, de 8 de Fevereiro de 1990, e anexo I.
Vejamos, por último, se o Autor tem direito ao reclamado trabalho suplementar, que o acórdão recorrido negou porquanto, "trabalhando o Autor em regime de turnos, devia alegar e provar qual o seu período normal de trabalho semanal, como estavam organizados os turnos e quais os dias em que, por determinação prévia e expressa da Ré, trabalhou para além do seu período normal de trabalho semanal, sendo que o ónus da alegação e prova de tais factos cabia ao Autor, por se tratar de factos constitutivos do direito alegado (artigo 342 n. 1 do C.Civil)" - reproduzimos.
Como o Autor não alegou e provou tais factos, a improcedência de um tal pedido é óbvia.
Ainda que não se mostre abundante o alegado nesta parte, sempre se desenha como suficiente para fundamentar o direito do Autor.
Sabemos que o Autor trabalhava em regime de turnos e que reclama a retribuição correspondente a um dia de descanso por quinzena uma vez que, como alegou no artigo 38 da petição, "Ao Autor apenas era concedido, em duas semanas de cada mês, um dia de descanso semanal".
Respondeu-se "provado" ao quesito 12º, assim formulado:
"O Autor apenas gozava um dia de descanso semanal em duas semanas de cada mês?"
Julgamos que a resposta corresponde ao alegado, ainda que não inteiramente, e que não tem outro sentido que não seja o de que o Autor só gozava um dia de descanso em cada duas semanas, ou seja, tinha o dia de descanso semana sim semana não.
É certo que não se provou que o não gozo do descanso semanal ocorreu por determinação prévia e expressa da Ré/ ver artigo 7º n. 4 do DL 421/83, de 2 de Dezembro), só que também isso não foi quesitado, nos termos que o Autor alegou: disse ele que apenas lhe era concedido, a significar que esse era o número de dias de descanso consentido pelo horário de trabalho fixado pela Ré, um dia de descanso semanal, em duas semanas de cada mês.
Esta matéria não se mostra apurada, e é necessário fazê-lo em ordem a constituir base suficiente para o conhecimento do pedido de pagamento do trabalho suplementar.
Consequentemente, e nos termos do artigo 729 n. 3 do C.P.Civil, ordena-se a baixa do processo à Relação para aplicação da decisão de facto nos termos apontados, ficando por conhecer, obviamente, a questão que se prende com a remuneração do trabalho suplementar.
Termos em que se concede parcialmente a revista, julgando-se ilícito o despedimento do Autor e condenando-se a Ré a pagar-lhe as retribuições, indemnização e juros de mora consoante atrás se deixou indicado, se anula a decisão recorrida no que tocante ao pedido de pagamento do trabalho suplementar, baixando os autos à Relação por ampliação da decisão de facto e prolação da decisão de direito que couber, no mais se negando a revista.
Custas por recorrente e recorrida na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente.
Lisboa, 20 de Outubro de 1999.
Manuel Pereira,
José Mesquita,
Almeida Deveza.