Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7613/09.3TBCSC.L1.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO AO REPOUSO
PROTECÇÃO DA SAÚDE
PROTEÇÃO DA SAÚDE
COLISÃO DE DIREITOS
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 11/29/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS / DIREITOS E DEVERES ECONÓMICOS E SOCIAIS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS.
Doutrina:
- Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, 220 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 8.º, N.º 3, 335.º, 494.º, 496.º, N.º 4.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608.º, N.º 2, 615.º, N.º 1, AL. D), 635.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 1.º, 9.º, 25.º, 61.º, 62.º, 64.º E 66.º.
REGULAMENTO GERAL SOBRE O RUÍDO (APROVADO PELO D.L. N.º 9/2007, DE 17-01): - ARTIGO 13.º, N.ºS 2 E 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 17-10-2002, PROC. N.º 2255/02; DE 6-05-1998, PROC. N.º 338/98, DE 30-05-2013, PROC. N.º 2209/08.0TBTVD.L1.S1, ESTE EM WWW.DGSI.PT .
-DE 30-09-2010, PROC. N.º 1229/05.0TVLSB.L1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 21-01-2016, PROC. N.º 1021/11.3TBABT.E1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Os direitos ao repouso, ao sono e à tranquilidade são emanação dos direitos fundamentais de personalidade, à integridade moral e física, à protecção da saúde e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, corolários da dignidade humana. Por outro lado, são tarefas fundamentais do Estado a prossecução da higiene e salubridade públicas, o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a efectivação do direito ao ambiente, prevenindo e controlando a poluição e os seus efeitos e promovendo a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana.

II - Os direitos fundamentais, enquanto princípios que são, não se revestem de carácter absoluto, antes são limitados internamente, para assegurar os mesmos direitos a todas as outras pessoas, e também externamente, para assegurar outros direitos fundamentais ou interesses legalmente protegidos que com eles colidam, mediante a harmonização entre uns e outros, a qual sempre implicará o sacrifício, total ou parcial, de um ou mais valores.

III - Os conflitos entre o direito fundamental de um sujeito e o mesmo ou outro direito fundamental ou interesse legalmente protegido de outro sujeito hão de ser solucionados mediante a respetiva ponderação e harmonização, em concreto, à luz do princípio da proporcionalidade, evitando o sacrifício total de um em relação ao outro e realizando, se necessário, uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual.

IV - A essência e a finalidade deste princípio da proporcionalidade é a preservação, tanto quanto possível, dos diversos direitos fundamentais com amparo na Constituição e, em concreto, colidentes, através da sua harmonização e da otimização do meio escolhido com a observação das seguintes regras ou subprincípios: (i) a sua adequação ao fim em vista; (ii) a sua indispensabilidade em relação a esse fim (devendo ser, ainda, a que menos prejudica os cidadãos envolvidos ou a coletividade; (iii) a sua racionalidade, medida em função do balanço entre as respetivas vantagens e desvantagens.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

           

AA, BB e outros intentaram esta acção contra CC - SA, pedindo que esta fosse condenada: a encerrar imediatamente as suas instalações ou, em alternativa, a executar nelas obras de insonorização e proteção que eliminem total e efectivamente a produção de ruído na fração dos AA, e que ao máximo evitem a produção de cheiros, insetos e poluição de forma a não prejudicar os direitos ao repouso, sossego, saúde e à qualidade de vida dos mesmos e a fruição do seu direito de propriedade; e a pagar a cada um dos AA a quantia global de € 6.000, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros.

A R contestou, invocando que age no interesse público, que as suas instalações existem no local desde há mais de 20 anos antes das aquisições das frações pelos AA, que o respectivo perímetro está vedado com painéis para proteção do som, que não pode alterar o horário de laboração e que alterou os seus procedimentos para reduzir o som, tendo pedido a condenação dos AA como litigantes de má-fé, por terem distorcido conscienciosamente a verdade.

Foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente e condenando a R a encerrar imediatamente as suas instalações, entre as 20 horas e as 7 horas, e a pagar à A BB a quantia de € 2.500 e a cada um dos demais autores a quantia de € 1.000, bem como absolvendo a R do restante peticionado e os AA da condenação como litigantes de má fé, tendo sido fixadas as custas na proporção de metade para os AA e para a R.

A Relação de …, julgando a apelação improcedente, confirmou na íntegra a sentença.

A R interpôs recurso de revista excepcional desse acórdão, delimitando o seu objecto com conclusões que colocam as questões de saber se:

1. – O acórdão da Relação sofre de nulidade por omissão de pronúncia sobre as questões versadas nas conclusões R a X da apelação (artigo 13º nº 3 da LGR e abuso de direito).

2. – A R deve ser absolvida do pedido porquanto:

2.1. – É legítimo um pequeno sacrifício do direito pessoal dos AA (detentores de licença mais recente), só ocasionalmente violado, para que a R possa continuar a exercer diariamente, entre a 5h e as 7h, as suas actividades, porque estas têm em vista a prossecução do interesse público na defesa do ambiente e da qualidade de vida de todos os cidadãos.

2.2. – É abusivo o exercício do direito invocado pelos AA, perante a desproporção entre os seus interesses, só ocasionalmente violados, e os prosseguidos pela laboração da R no local, há muitos anos, à vista de todos, como era do conhecimento dos AA, antes de comprarem as fracções.

2.3. – Nos factos provados não se retiram danos susceptíveis de merecerem a indemnização fixada.

A Formação deste Supremo Tribunal prevista no nº 3 do artigo 672º do CPC admitiu o recurso de revista, nos termos do nº 2 b) do mesmo artigo, por considerar estar em causa a relevante ponderação sobre o conflito entre direitos de personalidade e o direito ao ambiente e à qualidade de vida, bem como sobre a necessidade de cedências de um em favor do outro ou da prevalência de um deles.

*

Importa apreciar as questões enunciadas e decidir, para o que releva a seguinte matéria de facto:

Dos factos assentes:

1) Por escrito notarial datado de 22 de Abril de 2008, a «DD, S.A.», AA e BB, celebraram um acordo que denominaram de "Compra e Venda", nos termos do qual aquela sociedade declarou vender a estes, a fração autónoma designada pelas letras "DB", correspondente ao quinto andar, lado direito do Bloco H – … – destinado a habitação, do prédio urbano denominado Parque …, sito em …, na Av. …/Rua … e Rua …, freguesia de …, concelho …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de …, sob o n° 0074, da referida freguesia, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo P00538.

2) Por escrito notarial datado de 24 de Abril de 2008, a «DD, S.A.», EE e FF, celebraram um acordo que denominaram de "Compra e Venda", nos termos do qual aquela sociedade declarou vender a estas, a fração autónoma designada pelas letras "CU", correspondente ao segundo andar, lado esquerdo do Bloco H – ... – destinado a habitação, do prédio urbano denominado Parque …, sito em …, na Av. …/Rua … e Rua …, freguesia e concelho …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n°0074, da referida freguesia, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo P00538.

3) Por escrito notarial datado de 22 de Abril de 2008, a «DD, S.A.», GG e HH, celebraram um acordo que deno­minaram de "Compra e Venda", nos termos do qual aquela sociedade declarou vender a estes, a fração autónoma designada pelas letras "CN", correspondente ao quinto andar, lado esquerdo do Bloco G – … – destinado a habitação, do prédio urbano denominado Parque …, sito em …, na Av. …/Rua … e Rua …, freguesia e concelho …, descrito na 1.a Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n° 0074, da referida freguesia, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo P00538.

4) O prédio urbano Parque … situa-se numa área residencial da cidade de …;

5) Na Rua …, existem umas instalações da ré que servem de ponto de apoio destinado à limpeza urbana e recolha de Resíduos da Baixa de ….

6) Entre o prédio e as instalações da ré, existe apenas uma rua de poucos metros que os separam.

7) A ré utiliza as suas instalações, quer durante o período diurno, quer durante o período noturno, de segunda-feira a domingo.

8) Os autores solicitaram à «II, Lda» um estudo de moni­torização de ruído ambiente na habitação do 5.° Direito do Condomínio do Parque …, sito no n° 043 da …, cujo relatório se encontra junto a fls. 84-93.

9) Os autores AA e BB habitam na fração referida em 1) desde o dia 25 de Abril de 2008.

10) As autoras EE e FF habitam na fração referida em 2) desde o dia 1 de Maio de 2008.

11) Os autores GG e HH habitam na fração referida em 3) desde 20 de Junho de 2008.

12) As instalações referidas em 5) não têm qualquer proteção ao nível da insonorização.

13) Quer durante o dia, quer durante a noite, movimentam-se dezenas de pessoas afetas à Ré, nas instalações referidas em 5).

14) Quer durante o dia, quer durante a noite camiões, carros, carrinhas e máquinas da ré deslo­cam-se no interior e exterior das instalações referidas em 5).

15) Quer durante o dia, quer durante a noite, ocasionalmente, o pessoal que trabalha para a ré movimenta-se de forma ruidosa.

16) Ocasionalmente, usando um tom de voz alto e por vezes gritando.

17) São depositados pela ré nas instalações referidas em 5), caixas e contentores com lixo, essencialmente papel e cartão.

18) Nas instalações referidas em 5), são efetuados procedimentos de lavagem de carros e con­tentores do lixo durante o dia.

19) O carregamento dos contentores e equipamentos nos camiões gera ruído audível nas frações dos Autores, mesmo que estejam de janelas fechadas.

20) Por vezes o barulho dos motores dos camiões, veículos e máquinas pertencentes à ré causa desconforto auditivo aos autores.

21) Atualmente, no período noturno, a fase de maior atividade no estaleiro ocorre entre cerca das 5h e as 7 horas.

22) Período esse que corresponde a tempo de descanso dos autores.

23) Por força das movimentações de viaturas e do pessoal da ré, nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, os autores e seus filhos acordam várias vezes a meio da noite.

24) Alguns dos Autores trabalham.

25) Os barulhos produzidos à noite nas instalações da Ré acordam os Autores e prejudicam o seu sono e adormecer, o que lhes causa irritabilidade e ansiedade, provocando à A BB profunda ansiedade e angústia.

26) A diferença entre o valor do indicador L (índice Aeq) do ruído ambiente, incluindo o causado pelas máquinas pertencentes à ré e pelos trabalhadores afetos à mesma, nas instalações referidas em 5), e o valor do indicador L (índice Aeq) do ruído residual, no período noturno, não ultrapassa o valor de 2 dB.

27) Os autores fizeram diligências junto da ré e da Câmara Municipal de …, com vista a solucionar a situação.

28) Não foi possível chegar a algum tipo de acordo sobre a forma de salvaguardar o interesse de ambas as partes.

29) As instalações referidas em 5) servem de apoio a cantoneiros de varredura manual que ali iniciam e terminam o seu serviço, a 3 varredoras, a 3 carrinhas de apoio ao transporte de funcionários, e duas esfregadoras lavadouras.

30) No local referido em 5) encontram-se cerca de uma ou duas dezenas de contentores de resíduos sólidos urbanos, iguais aos que se encontram na via pública, uma caixa compactadora para papel/cartão e um contentor trapezoidal.

31) O perímetro das instalações referidas em 5) encontra-se vedado com painéis.

32) O local referido em 5) serve de local de abastecimento de água aos autotanques e varredoras mecânicas, bem como de lavagem das mesmas.

33) As máquinas varredoras estão certificadas.

34) As máquinas varredoras são munidas de aspersores colocados diante das escovas e têm um sistema de aspiração que, no decorrer da limpeza na via pública lançam jatos de água que humedecem as poeiras, impedindo a sua passagem para o meio ambiente.

35) As poeiras aspiradas ficam alojadas em cuba própria.

36) E são pulverizadas, impedindo que se dispersem aquando da sua transferência para o con­tentor trapezoidal referido em 30), sendo aí de imediato lavadas.

37) O papel e cartão recolhidos são compactados durante o dia.

38) Os resíduos recolhidos nas praias chegam às instalações referidas em 5) ensacados em sacos de plástico.

39) Os contentores de resíduos sólidos urbanos, existentes em 5), têm todos tampa.

40) E contêm os resíduos provenientes da recolha de papeleiras e dos equipamentos de depo­sição existentes nas praias

41) Todos os resíduos são recolhidos diariamente do local referido em 5), transportados e acondicionados para a Central de ….

42) O que ocorre dentro do horário diurno.

43) Além das instalações referidas em 5), a ré tem Centros de Apoio na … e em ….

44) Estas unidades ou polos operacionais são fundamentais para o cabal exercício do serviço prestado aos munícipes.

45) As actividades levadas a cabo pela ré são-no por imperativos operacionais e tendo em vista o bem-estar público, a higiene e a salubridade pública.

46) As ações de lavagem de ruas, passeios, esplanadas, com agulhas de alta pressão e meios mecânicos, assim como limpeza de areais etc. causam muito maior perturbação aos munícipes se efe­tuadas durante o dia, face ao que ocorre se feitas em horários noturnos.

47) O local referido em 5) serve ainda de suporte aos colaboradores da ré, incluindo chefia básica, picagem de ponto, balneários e casas de banho.

48) Do referido local saem apenas os trabalhadores afetos à limpeza urbana da baixa de ….

49) O que fazem a pé das instalações para os vários destinos, transportando os carrinhos de varredura com rodas de borracha.

50) O que fazem uma vez por dia.

51) A saída dos cantoneiros para a varredura manual e mecânica processa-se em regra entre as 05h e as 5h30m e regressam no fim do turno pelas 12h.

52) As primeiras descargas do cartão e papel e das varredoras processam-se depois das 07h00m, assim como o abastecimento dos autotanques, os quais, quando iniciam o trabalho já vêm atestados da ….

53) As primeiras recolhas das caixas trapezoidais iniciam-se depois das 12h.

54) As varredoras deslocam-se ao local referido em 5), para transbordo, duas vezes por turno.

55) As caixas trapezoidais são recolhidas uma vez por dia.

56) As carrinhas ligeiras do papel e monos vão ao local duas vezes por dia.

57) E os autotanques abastecem duas vezes por dia.

58) A ré alertou os funcionários para conversarem o mínimo possível no início do turno.

59) As varredoras que habitualmente entravam dentro da secção para receberem o serviço pas­saram a ficar paradas e desligadas no exterior para evitar manobras.

60) A recolha de JJ tanto das ilhas ecológicas como dos contentores existentes na secção passaram a ser recolhidos a partir das 7h

61) O abastecimento de água nas máquinas passou a ser feito de véspera e o reabastecimento, bem como a descarga a meio do turno só é feita após as 7h.

62) A ré alertou os motoristas de viaturas que não podem ter o rádio ligado no início do turno.

63) A recolha das trapezoidais (produtos da varredura, caixas de terra, caixas de resíduos verdes e compactadora de papel cartão), passou a ser feita sempre após as 12h.

64) A limpeza da secção é executada diariamente antes da saída do turno da manhã, cerca das 11h30.

65) Todos os veículos ficam estacionados de forma a saírem para o circuito sem ter de executar qualquer tipo de manobra.

66) Nas datas referidas em 9) a 11), a Câmara Municipal de … já utilizava o local referido em 5) há mais de 20 anos e a ré, há mais de 5 anos.

67) Com a atividade da natureza similar à que hoje desenvolve, mas com menor intensidade.

68) À vista de toda a gente e com conhecimento de todos.

69) Nos últimos 10/11 anos, as instalações referidas em 5) têm servido exclusivamente o fim aí igualmente referido.

70) Os autores em sede de audiência final deram conhecimento ao tribunal que o referido em np-3 é falso.

Factos julgados não provados:

np-1) Os trabalhadores da R arrastam contentores pela estrada quando abandonam a área a pé.

np-2) As instalações da R estão rodeadas de moscas, varejeiras e outros insectos.

np-3) As instalações da R emanam mau cheiro.

np-4) Esse mau cheiro obriga a que as frações dos AA tenham de estar com as janelas fechadas.

np-5) O ruído causado pelas máquinas pertencentes à R e pelos trabalhadores afetos à mesma, nas instalações referidas em 5), no período diurno, é de cerca 14 dB (decibéis).

1. A nulidade.

O tema do vício que, nesta vertente, a recorrente assaca à decisão recorrida foi já debatido pelo próprio Tribunal da Relação em termos que merecem a nossa adesão. Ainda assim, aditaremos umas brevíssimas ponderações.

Embora a recorrente, ao delimitar o objecto do recurso, não cuide de referenciar o normativo a que parece querer aludir, é certo que, à luz do disposto no art. 615º, nº 1, d), do CPC, a decisão é nula quando «o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento» ([1]).

Porém, desde logo, contrariamente ao entendimento subjacente ao recurso, as causas de nulidade de sentença (ou de outra decisão), taxativamente enumeradas nesse artigo 615º, visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável ([2]).

Ora, contra o alegado no recurso, é completamente evidente que a imputação do vício consistente na omissão de pronúncia sobre as conclusões R) a X) das alegações da apelação é fruto de manifesto equívoco. Com efeito, a recorrente, embora afirme que a Relação não conheceu de questão de que deveria conhecer, não identifica qualquer questão putativamente obnubilada, a qual, realmente, não ocorreu: como já se esclareceu ([3]), a previsão da citada al. d) prende-se com o incumprimento do dever (prescrito no art. 608º, nº 2, do CPC) de resolver todas as «questões» submetidas à apreciação do tribunal, exceptuando aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras ([4]).

A Relação conheceu e decidiu a única questão que, nesse conspecto, deveria (e poderia) apreciar, a da adequação da decisão proferida pela 1ª instância aos factos provados, com a fundamentação, expressa ou implícita, que para tal reputou de apropriada. Ora, as circunstâncias de o Tribunal, nessa apreciação, não ter conferido relevância aos argumentos aduzidos pela então apelante nessas conclusões ou, mesmo, a de nem sequer lhes ter feito qualquer alusão nada têm a ver com o invocado vício, mesmo que se considere que teria sido aconselhável, dum ponto de vista da boa técnica jurídica, ter debatido tais argumentos.

 

Improcede, pois, a arguição de nulidade.

 

2.1. – O conflito entre direitos.

A dignidade humana, em que se baseia a República de Portugal, constitui uma irrecusável conquista civilizacional, que tem como corolários os direitos da pessoa à integridade moral e física, à protecção da saúde e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado (cf. arts. 1º, 25º, 64º e 66º da CRP).

Por outro lado, a todos é garantido o direito à iniciativa económica e à propriedade privada e é tarefa fundamental do Estado promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, incumbindo-lhe, para assegurar o direito ao ambiente, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos, além do mais, prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e promover, em colaboração com as autarquias locais, a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana (cf. (cf. arts. 9º, 61º, 62º e 66º da CRP).

Costuma falar-se de quatro gerações ou dimensões de direitos fundamentais, perante a significativa evolução que foram sofrendo, tanto no que se refere ao seu conteúdo, como às suas titularidade, eficácia e efetivação: 1ª) os que se se identificam com a liberdade; 2ª) os que privilegiam a vertente social, cultural e económica, correspondendo aos direitos da igualdade; 3ª) os ligados à solidariedade, relacionados com o desenvolvimento, o meio ambiente, a propriedade sobre o património comum; e 4ª) os direitos de cidadania (democracia, informação e pluralismo).

A dignidade da pessoa humana constitui, evidentemente, o valor constitucional supremo em torno do qual gravitam os demais direitos fundamentais porquanto se refere às exigências básicas, no sentido de que a todos os seres humanos sejam oferecidos os recursos, materiais ou espirituais, para uma existência digna, bem como sejam propiciadas as condições para o desenvolvimento das suas potencialidades.

Todavia, uma das principais características dos direitos fundamentais, enquanto princípios que são, é a sua relatividade, ou seja, não se revestem de caráter absoluto, antes são limitados internamente, para assegurar os mesmos direitos a todas as outras pessoas, e também externamente, para assegurar outros direitos fundamentais ou interesses legalmente protegidos que com eles colidam, mediante a harmonização entre uns e outros, a qual sempre implicará o sacrifício, total ou parcial, de um ou mais valores.

Realmente, são frequentes as colisões entre direitos fundamentais: os conflitos entre o direito fundamental de um sujeito e o mesmo ou outro direito fundamental ou interesse legalmente protegido de outro sujeito hão-de ser solucionados pelo poder judicial mediante a respectiva ponderação e harmonização, em concreto, à luz do princípio da proporcionalidade, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros e realizando, se necessário, uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual.

A essência e a finalidade deste princípio da proporcionalidade é a preservação, tanto quanto possível, dos diversos direitos fundamentais com amparo na Constituição e, em concreto, colidentes, através da sua harmonização e da otimização do meio escolhido com a observação das seguintes regras ou subprincípios: - i) a sua adequação ao fim em vista; - ii) a sua indispensabilidade em relação a esse fim (devendo ser, ainda, a que menos prejudica os cidadãos envolvidos ou a coletividade); - iii) a sua racionalidade, medida em função do balanço entre as respectivas vantagens e desvantagens.

Por fim, nessa ponderação, para além da máxima otimização e do menor sacrifício dos valores em confronto, também não pode olvidar-se que, em caso de colisão entre direitos fundamentais, a busca do instrumento que melhor promova o valor supremo da dignidade da pessoa humana não pode deixar de constituir, ainda, um instituto norteador da solução do caso concreto.

No caso em apreço, estão em confronto, por um lado, os direitos dos AA ao repouso, ao sono e à tranquilidade – que constituem, sem dúvida, emanação dos direitos fundamentais de personalidade, nomeadamente à integridade moral e física, à protecção da saúde e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado – e, por outro, a prossecução de uma tarefa fundamental do Estado, por intermédio da R, através das actividades que esta desenvolve, por imperativos operacionais e que têm em vista o bem-estar público, a higiene e a salubridade pública, em instalações que são fundamentais para o cabal exercício desse serviço prestado aos munícipes.

É certo que, como se provou (cf. pontos 5 a 7, 12 a 20, 29 a 32 e 52 a 57 dos factos), tais actividades da R, atendendo ao modo como vinham sendo realizadas, afectavam permanentemente os identificados direitos dos AA, embora com especial incidência no período nocturno (cf. pontos 21 a 26 dos factos).

E assim tem sido, mesmo considerando que tais actividades provocam um nível máximo de ruído inferior ao limite administrativamente fixado no Regulamento Geral sobre o Ruído (aprovado pelo DL 9/2007 de 17/1), que regulamenta a tarefa cometida ao Estado, nos termos da Constituição e da Lei de Bases do Ambiente ([5]), na salvaguarda da saúde humana e do bem-estar das populações, através da prevenção do ruído e no controlo da poluição sonora. Contudo, o RGR «apenas tem efeitos dentro da actividade administrativa e no seu âmbito, não podendo interferir com a salvaguarda dos direitos de personalidade das pessoas, cuja protecção se não esgota no limite do ruído estabelecido em tal diploma» ([6]).

Como se sabe, o âmbito do recurso, para além dos eventuais casos julgados formados nas instâncias, é confinado pelo objecto (pedido e causa de pedir) da acção, pela parte dispositiva da decisão impugnada desfavorável ao impugnante e pela restrição feita pelo próprio recorrente, quer no requerimento de interposição, quer nas conclusões da alegação (art. 635º do CPC).

Portanto, neste caso, é em face do objecto da acção, do conteúdo da decisão impugnada e das conclusões da alegação da recorrente que se determinam as questões concretas controversas que importa resolver.

Quanto ao primeiro desses factores delimitadores, convém relembrar que os AA haviam pedido a condenação da R, a título principal, a encerrar imediatamente as suas instalações e, em alternativa, a executar nelas obras de insonorização e proteção que eliminem total e efectivamente a produção de ruído na fração dos AA, e que ao máximo evitem a produção de cheiros, insetos e poluição de forma a não prejudicar os direitos ao repouso, sossego, saúde e à qualidade de vida dos mesmos e a fruição do seu direito de propriedade.

Na decisão recorrida, tal como na da 1ª instância, foram considerados relevantes para a condenação da R apenas os danos decorrentes do ruído causado pela actividade da R entre as 20 horas e as 7 horas e daí a sua condenação a encerrar as instalações dos autos durante tal período. Assim sendo, perante o exposto e o objecto deste recurso de revista, com a delimitação acima enunciada, está agora apenas em causa a manutenção da pretensão dos demandantes, acolhida na decisão recorrida, ao encerramento das instalações da R no período diário compreendido entre as 5 e as 7 horas, por causa do ruído e nada mais.

Sustenta a recorrente que, em prol da prossecução do interesse público na defesa do ambiente e da qualidade de vida de todos os cidadãos, a limpeza de … tem de ser feita naquele período, durante o qual não há trânsito de peões e veículos, pelo que tem imperiosa necessidade de iniciar a sua laboração em tais instalações às 5h. Acrescenta, em defesa dessa tese, que: por um lado, a limpeza de ruas, passeios e esplanadas com meios manuais e mecânicos e à mangueira, fora desse período, ou seja, com pessoas e veículos nos locais públicos, não só não é praticável como acarreta uma maior incomodidade para todos os cidadãos; por outro lado, atendendo a que a R não só foi além do legalmente determinado quanto à emissão de ruído, como alterou já os seus procedimentos para atenuar ainda mais essa emissão (cf. factualidade inserta nos pontos 58 a 65), é legítimo o (pequeno) sacrifício do direito pessoal dos AA, só ocasionalmente violado.

Da conjugação da matéria invocada pela recorrente (pontos 58 a 65) com a inserta nos itens 12 a 16, 21, 29, 31 e 44 a 51 constata-se que: a R mitigou, acentuadamente, as causas do ruído gerado pela sua actividade e, por isso, dos danos provocados aos AA; as instalações referidas servem de apoio a cantoneiros de varredura manual que ali iniciam e terminam o seu serviço, a 3 varredoras, a 3 carrinhas de apoio ao transporte de funcionários e duas esfregadoras lavadouras e são fundamentais para o cabal exercício da actividade prestada pela R aos munícipes, por imperativos operacionais e tendo em vista o bem-estar público, a higiene e a salubridade pública; o perímetro dessas instalações, embora vedado com painéis, não tem qualquer proteção ao nível da insonorização; actualmente, no período noturno, a fase de maior atividade no estaleiro ocorre entre as 5h e as 7 horas; desse local, entre as 5h e as 5h30m, saem para os vários destinos apenas os trabalhadores afetos à limpeza urbana da baixa de …, o que fazem uma vez por dia, a pé, transportando os carrinhos de varredura com rodas de borracha; ocasionalmente, o pessoal que trabalha para a R movimenta-se de forma ruidosa e usa um tom de voz alto, por vezes gritando.

Parece, pois, que pode afirmar-se a essencialidade de, a partir das faladas instalações, ser iniciada, a partir da 5H, a mencionada actividade de limpeza urbana, para ser cabalmente assegurado o bem-estar público, a higiene e a salubridade pública. Realmente, à luz do senso comum, a convivência comunitária em meio urbano torna imediatamente compreensíveis os argumentos avançados pela recorrente quanto à comodidade para a generalidade dos cidadãos e à praticabilidade (exclusiva) de tal actividade ser iniciada a partir dessa hora ([7]).

Ora, uma vez adquirida a factualidade assim sinopticamente apresentada, podemos concluir que, no período crítico em apreço neste recurso, que decorre entre as 5h e as 7 horas, continuam a conflituar dois direitos fundamentais, ambos radicados no valor dignidade da pessoa humana, ou seja, na exigência básica de que a todos os cidadãos sejam oferecidos os meios para uma existência digna.

Por conseguinte, nos termos já expendidos e nos do art. 335º do CC, essa colisão deverá ser encarada e solucionada mediante a ponderação e harmonização, em concreto, dos direitos em confronto, à luz do princípio da proporcionalidade, ou seja, pela escolha do meio adequado, indispensável e racional (em função do balanço entre as respectivas vantagens e desvantagens) para a preservação, tanto quanto possível, de ambos os direitos fundamentais.

Nesta ponderação, não pode olvidar-se o facto de as ora questionadas instalações serem usadas numa atividade de natureza similar à que hoje lá se desenvolve desde havia mais de 20 anos antes de todos os AA adquirirem as suas fracções e as passarem a habitar (Abril a Junho de 2008), à vista e com conhecimento de todos (cf. pontos 66 a 69) ([8]). O que não obsta a que, dada a fundamentalidade do direito dos AA, apesar da demonstrada indispensabilidade de a R desenvolver a sua prestação no período compreendido entre as 5 e as 7h, deva esta ser exercida com a adopção das medidas indispensáveis a alcançar o adequado equilíbrio entre os benefícios que a comunidade colhe dessa actividade e a maior mitigação possível do sacrifício suportado por aqueles em prol do bem-estar, da higiene e da salubridade públicas ([9]).

Embora relembrando que o citado RGR, quanto aos critérios e aos limites de ruído nele fixados, se destina a regular e tem efeitos apenas dentro da actividade administrativa, parece não ser despiciendo, para o que ora nos ocupa, sondar as orientações seguidas pelo legislador nessa matéria e com aquele objectivo. Como já se disse, a actividade da R não coloca em crise os valores limite de ruído e de incomodidade a que tal Regulamento sujeita a instalação e o exercício de actividades ruidosas permanentes, no entanto, para as situações em que tal excesso se verifique, o nº 2 do artigo 13º do mesmo determina a adopção das medidas tidas por necessárias ao cumprimento desses valores de acordo com a seguinte ordem decrescente:

«a) Medidas de redução na fonte de ruído;

b) Medidas de redução no meio de propagação de ruído;

c) Medidas de redução no receptor sensível.»

E, segundo o nº 3 desse artigo, «Compete à entidade responsável pela actividade ou ao receptor sensível, conforme quem seja titular da autorização ou licença mais recente, adoptar as medidas referidas na alínea c) do número anterior relativas ao reforço de isolamento sonoro».

Portanto, num plano administrativo, na hipótese (não verificada na situação dos autos) de os aludidos valores limite terem sido ultrapassados, nunca se colocaria a questão da responsabilidade da R pelas medidas de redução nas habitações dos AA (receptores), nos termos daquele nº 3, tendo em vista a ponderação já avocada a propósito da factualidade inserta nos pontos 66 a 69.

Tudo ponderado, mostra-se que a revista deve proceder na estrita medida que resulte da limitação advinda do acolhimento da pretensão alternativamente formulada pelos AA quanto à adopção pela R de medidas tendentes à redução do ruído na fonte (produção) e da sua propagação (insonorização). Para tanto, afigura-se-nos adequado, indispensável, racional e, por isso, exigível que a R:

1º) no período compreendido entre as 5 e as 7h, nas instalações em questão e suas imediações, limite o exercício das respectivas actividades, orientando-as e organizando-as de modo a que, sejam evitadas, dentro do possível, as fontes de ruído, como são as manobras e a utilização de meios mecânicos e o início da prestação dos cantoneiros e demais trabalhadores afectos à limpeza urbana, subordinados ao seu poder de direcção;

2º) dote com adequadas barreiras de proteção sonora a parte do perímetro das suas instalações orientado para as habitações dos AA.

2.2. – O abuso do exercício do direito invocado pelos AA.

Os argumentos alinhados pela recorrente neste conspecto foram já sopesados nos fundamentos anteriormente aduzidos para a solução oferecida para o apurado conflito de direitos, a qual assentou, essencialmente, no balanço de interesses conflituantes, à luz do princípio da proporcionalidade. Essa solução e respectivos fundamentos são, logicamente, incompatíveis com o proposto reconhecimento do exercício abusivo por banda dos AA, o que afasta ou prejudica quaisquer outras considerações sobre esta matéria.

2.3. – A indemnização dos danos.

O esforço que a recorrente, entretanto, já encetou para amenizar, e acentuadamente, as causas do ruído gerado pela sua actividade (pontos 58 a 65) não valida nem anula os prejuízos retratados nos itens 20 a 25 e daquela já advindos, os quais, tendo afectado de forma relevante o direito ao repouso e tranquilidade dos AA, não podem considerar-se como danos insusceptíveis de merecerem ser indemnizados.

E quanto ao montante da reparação, deveria este ser calculado equitativamente, tendo em conta as circunstâncias do arts. 494º do CC (art. 496º nº 4), tal como foi pelas instâncias. Ora, o assim decidido com a aplicação de juízos de equidade ou critérios não normativos, não traduzindo, em bom rigor, a resolução de uma questão de direito, «deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida – se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade» ([10]), devendo, para tanto, ter-se em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo (art. 8º nº 3 do CC).

Por conseguinte, só haveria fundamento bastante para censurar o juízo de equidade formulado e alterar o decidido se pudesse afirmar-se, tendo em conta os critérios que vêm sendo adoptados, generalizadamente, por este Tribunal, que os montantes que foram fixados são manifestamente desproporcionados à gravidade objectiva e subjectiva dos efeitos (de natureza não patrimonial) resultantes da lesão corporal sofrida pelos AA, o que não sucede.

Portanto, improcedem também as conclusões do recurso nesta parte.

*

Síntese conclusiva:

1. Os direitos ao repouso, ao sono e à tranquilidade são emanação dos direitos fundamentais de personalidade, à integridade moral e física, à protecção da saúde e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, corolários da dignidade humana. Por outro lado, são tarefas fundamentais do Estado a prossecução da higiene e salubridade públicas, o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a efectivação do direito ao ambiente, prevenindo e controlando a poluição e os seus efeitos e promovendo a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana.

2. Os direitos fundamentais, enquanto princípios que são, não se revestem de caráter absoluto, antes são limitados internamente, para assegurar os mesmos direitos a todas as outras pessoas, e também externamente, para assegurar outros direitos fundamentais ou interesses legalmente protegidos que com eles colidam, mediante a harmonização entre uns e outros, a qual sempre implicará o sacrifício, total ou parcial, de um ou mais valores.

3. Os conflitos entre o direito fundamental de um sujeito e o mesmo ou outro direito fundamental ou interesse legalmente protegido de outro sujeito hão-de ser solucionados mediante a respectiva ponderação e harmonização, em concreto, à luz do princípio da proporcionalidade, evitando o sacrifício total de um em relação ao outro e realizando, se necessário, uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual.

4. A essência e a finalidade deste princípio da proporcionalidade é a preservação, tanto quanto possível, dos diversos direitos fundamentais com amparo na Constituição e, em concreto, colidentes, através da sua harmonização e da optimização do meio escolhido com a observação das seguintes regras ou subprincípios: - i) a sua adequação ao fim em vista; - ii) a sua indispensabilidade em relação a esse fim (devendo ser, ainda, a que menos prejudica os cidadãos envolvidos ou a coletividade); - iii) a sua racionalidade, medida em função do balanço entre as respectivas vantagens e desvantagens.

*

Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em conceder parcialmente a revista e, por consequência, em:

a) revogar a decisão recorrida na parte respeitante à condenação da R a encerrar as suas instalações entre as 5 horas e as 7 horas;

b) condenar a R a: 1º) limitar o exercício das respectivas actividades, nas instalações em questão e respectivas imediações, no período compreendido entre as 5 horas e as 7 horas, orientando-as e organizando-as de modo a que, sejam evitadas, dentro do possível, as fontes de ruído, como são as manobras e a utilização de meios mecânicos e o início da prestação dos cantoneiros e demais trabalhadores afectos à limpeza urbana, subordinados ao seu poder de direcção; 2º) dotar com adequadas barreiras de proteção sonora a parte do perímetro das suas instalações orientado para as habitações dos AA;

c) confirmar, no demais, a decisão recorrida.

Custas pela recorrente e recorridos, em igual proporção.     

Lisboa, 29/11 /2016

Alexandre Reis - Relator

Lima Gonçalves

Paulo Sá

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[1] Ou seja, quando tenha incorrido em omissão ou excesso de pronúncia. Mas esta nulidade, em directa conexão com o comando ínsito no art. 608º, só se verifica quando o tribunal não se ocupa das questões suscitadas ou se ocupa de questões cuja apreciação não lhe foi colocada. A expressão «questões», que se prende, desde logo, com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir, de modo algum se pode confundir com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia.
[2] Nada tem a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar a pretensão formulada. Poder-se-á discordar da decisão, como, aliás, o recorrente demonstra ser o caso, mas não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados. A arguição de tais nulidades não procede quando fundada em divergências com o decidido, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.
[3] Nota 1.
[4] Como escreve Teixeira de Sousa (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pp. 220 e s), está em causa «o corolário do princípio da disponibilidade objectiva (artº 264º, nº 1 e 664º, 2ª parte) o que significa que o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões».
[5] Lei 11/87, de 11/4, entretanto revogada pela Lei 19/2014 de 14/4.
[6] Acórdão do STJ de 17-10-2002 (p. 2255/02 – Simões Freire). No mesmo sentido, o acórdão de 6-05-1998 (338/98 – Fernandes Magalhães): «A consagração de um valor máximo de nível sonoro do ruído apenas significa que a administração não pode autorizar a instalação de equipamento nem conceder licenciamento de actividades que não respeitem aquele limite máximo e quem desrespeitar esse limite incorre em ilícito de mera ordenação social punida com coima».
[7] «Os direitos ao repouso, ao sono e à tranquilidade constituem uma emanação dos direitos fundamentais de personalidade, nomeadamente à integridade física e moral da pessoa e a um ambiente de vida sadio, direitos esses acolhidos quer em Convenções Internacionais, como a DUDH (art. 24.º) e a CEDH (art. 8.º, n.º 1), encontrando-se também constitucionalmente consagrados, nos arts. 17.º e 66.º da CRP. (…) Embora o direito à integridade pessoal não seja em absoluto um direito imune a quaisquer limitações, em caso de conflito de direitos, designadamente com o de desenvolvimento de uma actividade que actua na realização de um interesse público – como é o da indústria geradora de energia limpa, a prevalência a que alude o art. 335.º do CC poderá impor ao seu titular limitações (sacrifícios que terá de suportar em nome do bem comum) apenas compensáveis monetariamente.» (acórdão do STJ de 30-05-2013, p. 2209/08.0TBTVD.L1.S1 – Granja da Fonseca).
[8] Tal como argumentou a recorrente, ainda que visando um outro efeito jurídico.
[9] «É que a convivência comunitária, como a que ocorre nas cidades, implica real ou potencialmente, ex natura rerum, algumas contrariedades e incomodidades que os elementos do grupo social sujeitam-se a suportar, para poderem continuar a viver no meio urbano que escolheram» (Acórdão do STJ de 30-09-2010, p. 1229/05.0TVLSB.L1.S1 – Álvaro Rodrigues).
[10] Ac. do STJ de 21/1/2016 (1021/11.3TBABT.E1.S1 – Lopes do Rego).