Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B3825
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: QUIRINO SOARES
Descritores: DIREITO À VIDA
PERDA
INCAPACIDADE PERMANENTE
DANOS MORAIS
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS FUTUROS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
UNIÃO DE FACTO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Nº do Documento: SJ200312040038257
Data do Acordão: 12/04/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 3506/02
Data: 05/06/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. As "quantias" despendidas com deslocações efectuadas para tratar das formalidades decorrentes do óbito estão incluídas na previsão genérica, "todas as demais" (despesas, é claro), que o nº1, do artº495º, CC, declara indemnizáveis.
2. A indemnização de € 40.000 pela perda do direito à vida inscreve-se, perfeitamente, nos padrões de cálculo mais recentes deste Supremo Tribunal.
3. As verbas indemnizatórias relativas a danos não patrimoniais e patrimoniais futuros derivados de incapacidade permanente são calculadas segundo os valores da data em que a operação de cálculo é efectuada, tendo em conta o dever que promana do citado nº2, do artº566º, CC (de referenciar a "diferença" no património do lesado à data "mais recente que puder ser atendida pelo tribunal"), razão pela qual os juros de mora sobre tais quantias devem ter como dies a quo o da data da decisão, nos termos do AUJ 4/02, de 09.05.02, e não o da citação
4. Não é materialmente inconstitucional a norma do artº496º, 2, CC, interpretada no sentido de que o cônjuge de facto está excluído da sua previsão.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. Na acção de responsabilidade civil por acidente de viação que A, por si e em representação do filho menor, B, moveu a Companhia de Seguros C, para ressarcimento do danos patrimoniais e não patrimoniais derivados da morte da, respectivamente, companheira e mãe dos autores, as instâncias concluíram pela exclusividade da culpa do condutor do veículo do segurado da ré, e, em conformidade, foi esta condenada a pagar as seguintes indemnizações:

em 1ª instância
ao autor A
€ 14.418, 75, a título de despesas de funeral e de despesa, já realizada, com a contratação de uma empregada para tomar conta do filho;
o que se liquidar em execução de sentença de despesas feitas para tratar de formalidades decorrentes do óbito e a fazer para pagar a empregada que toma conta do filho;
ao autor B
€ 35.000, a título de perda dos alimentos prestados pela mãe;
€ 35.000, pela perda do direito à vida da mãe;
€ 20.000, pelos danos não patrimoniais próprios.
Em recurso, que lhe foi levado por ambas as partes, a Relação de Coimbra deu parcial procedência às apelações, e, deste modo, alterou o decidido, da seguinte maneira:
a indemnização pela perda do direito à vida subiu para € 40.000;
os juros sobre as quantias indemnizatórias atribuídas ao autor B vencem-se a partir da sentença (as relativas ao dano de frustração de alimentos e danos morais próprios) e a partir do acórdão, a respeitante ao dano de perda da vida.
As partes ainda se não conformaram, e pedem revista, assim fundamentada:
os autores os juros moratórios sobre as quantias devidas ao autor B devem contar-se desde a citação, porque os valores atribuídos devem considerar-se reportados à data da petição;
a união de facto, que era a que ligava o autor A à sinistrada, deve equiparar-se ao casamento, para efeitos do artº496º, 2, CC, sob pena de inconstitucionalidade;
a ré
não há fundamento legal para atribuir ao autor B indemnização por frustração de alimentos, para além dos encargos com a contratação de uma empregada;
não o há, também, para indemnizar o autor A pelas quantias despendidas com deslocações efectuadas para tratar das formalidades decorrentes do óbito, porque não cobertas pelo artº495º, 2, CC (1);
também o não haveria para remeter o apuramento de tais despesas para liquidação em execução de sentença, visto que não foi alegada justificação da impossibilidade de liquidação à data da petição inicial;
o montante indemnizatório da supressão da vida está exagerado com relação ao que o Supremo Tribunal de Justiça costuma atribuir em casos paralelos.
2. São os seguintes os factos provados:
· no dia 09/12/93, cerca das 11H45, na E.N. n° 1, ao Km 105, D conduzia o veículo pesado de mercadorias semi-reboque, de matrículas LQ e L-, no sentido Lisboa - Porto;
· pela mesma estrada, e no mesmo sentido de trânsito, seguia E, que conduzia o veículo ligeiro misto de matrícula XA;
· E era acompanhada por F;
· na mesma estrada, e no sentido de trânsito oposto circulava G, que conduzia um veículo pesado de mercadorias de matrícula SB;
· E encontrava-se parada, pois pretendia virar à esquerda, atento o seu sentido de marcha, e entrar no parque de estacionamento de um restaurante ali existente;
· E estava parada junto ao eixo da faixa de rodagem, dentro da sua mão de trânsito, com o sinal de mudança de direcção à esquerda ligado;
· ao aproximar-se do veículo conduzido por E, D embateu com o veículo por si conduzido no veículo conduzido por E;
· o embate deu-se entre a parte da frente do lado esquerdo do veículo conduzido por D e a retaguarda do lado direito do veículo conduzido por E;
· devido ao embate, o veículo conduzido por E foi projectado para a faixa de rodagem de sentido contrário;
· o veículo conduzido por G embateu com a parte da frente na parte frontal do veículo conduzido por F;
· após os embates, o veículo conduzido por E ficou imobilizado na fixa de rodagem contrária àquela em que seguia;
· após o embate, o veículo conduzido por D ficou tombado na sua faixa de rodagem;
· o local do embate é uma recta com boa visibilidade;
· a faixa de rodagem, no local do embate, tem 7,30 metros de largura;
· D exercia a condução no interesse, por conta e sob a responsabilidade da Transportadora Central de Montelavar;
· em consequência do embate, F sofreu lesões corporais que foram causa directa e necessária da sua morte;
· F sofreu lesões graves a nível do tórax, com fractura completa dos 4°, 5° e 6° arcos costais direitos e esquerdos pelo terço anterior, volumoso hemotórax bilateral e hemoperitoneu, devido a rotura esfacelada do lobo direito do fígado;
· foi o autor quem suportou todas as despesas relacionadas com o funeral, compra e revestimento do jazigo, tendo despendido a quantia de 350.000$00;
· o autor A teve gastos com deslocações para tratar das formalidades post-mortem;
· o autor A vivia, há mais de cinco anos, em união de facto com F, mantendo uma ligação muito estreita, surgindo à vista de toda a gente como se de marido e mulher se tratassem;
· o casal tinha recentemente montado um armazém para venda de pesticidas, rações, adubos e cimento, localizado junto da sua residência;
· a comercialização destes produtos, tendo em conta a região em que está inserida, é uma actividade potencialmente lucrativa;
· dado que A era motorista, era F quem dirigia o negócio;
· F auferiria proventos da exploração desse negócio, tendo sido declarado pelo autor à administração fiscal, no ano de 1997, um resultado apurado positivo, relativo a esse negócio, no montante de 257.386$00;
· esses proventos seriam integrados no orçamento familiar que F formava com os autores;
· com a morte de F, o autor A sofreu grande angústia, profunda tristeza e enorme desgosto;
· a lida da casa e o apoio e guarda do filho eram da responsabilidade de F;
· dado o falecimento de F o autor A teve que contratar uma empregada doméstica/ama, situação que ainda se mantém;
· desde então, o autor A pagou à empregada doméstica 2.540.700$00;
· o autor B apercebeu-se de tudo quanto se passou, tanto mais que sentiu a falta daquela que diariamente o acompanhava, que lhe prodigalizava carinho e amor;
· várias noites passou sem dormir, chorando pela mãe;
· ainda hoje pergunta onde se encontra a sua mãe, começando finalmente a perceber que jamais poderá contar com o seu apoio, carinho e palavra amiga;
· o autor B atravessou crises de tristeza e, por vezes, de choro;
· eram ambos os pais do B que angariavam fundos para a sua subsistência;
· B nasceu em 24/06/89, sendo filho de A e de F;
· a responsabilidade por danos causados a terceiros emergentes de acidente de viação relativa ao veículo pesado de mercadorias de matrícula LQ havia sido transferida para a ré Companhia de Seguros H, até ao limite de 100.000.000$00, nos termos da apólice nº6266240;
· por força da referida apólice e por conta destes embates, a ré Companhia de Seguros H, procedeu ao pagamento da quantia de 34.549.950$00.
3. A começar pelo recurso da ré seguradora, diremos que tanto é aceitável a indemnização, do autor A, pelo dano emergente, presente e futuro, de cobertura dos encargos com a contratação de uma empregada doméstica, como a indemnização do autor B pela perda da dose de alimentos que previsivelmente a mãe lhe prestaria até à maioridade, pelo menos. Este último tem cobertura especial nos artº495º, 3, e 1874º, 1 e 2, CC; o primeiro, nas regras gerais prescritas nos artº483º, 1, 562º, 563º e 564º, 1 e 2, CC.
O cálculo do dano de perda de alimentos (futuro, e dependente dos ganhos produzidos pelo prestador dos alimentos) só pode ser feito à base da equidade, tal como prescreve o artº566º, 3, CC, reportado, nesta hipótese, ao disposto ao 564º, 1 e 2.
E assim se fez.
O cálculo teve como factores relevantes a tenra idade do autor e a recente e potencialmente lucrativa actividade comercial da sinistrada, sua mãe, devedora dos alimentos frustrados.
Foi um cálculo prudente e cauteloso, quedando-se numa importância perfeitamente defensável, face ao número de anos de alimentos que o menor tinha pela frente, às potencialidades do negócio e à natural capacidade produtiva de uma jovem mulher.
· As "quantias despendidas pelo autor A com deslocações efectuadas para tratar das formalidades decorrentes do óbito de F" inserem-se nas "todas as demais" (despesas, é claro), que o nº1, do artº495º, CC, declara indemnizáveis.
Não se concebe que o legislador quisesse deixar sem reparação tais despesas, nem se percebe como é possível sustentar o contrário.
Não há, por outro lado, razão para criticar a decisão de lhes remeter o apuramento para liquidação em execução de sentença, visto que, tendo o pedido genérico sido admitido, e não tendo a liquidação sido operada na pendência da causa, não restava outra solução que não fosse a de cumprir, como foi feito, o nº2, do artº661º, CPC.
· A indemnização pela perda do direito à vida foi correctamente fixada.
Inscreve-se, perfeitamente, nos padrões de cálculo mais recentes deste Supremo Tribunal (vejam-se, só a título de exemplo, os acórdãos: de 27.02.03, na revista 4553/02, 2ª secção; de 25.06.02, na revista 4038/01, da 6ª secção; de 28.05.02, na revista 920/02, 1ª secção).
Não havia razões nenhumas, a começar pela exclusividade da culpa do condutor segurado, para, no presente caso, o tribunal se desviar daquele padrão indemnizatório.
E, assim, ao contrário do que a recorrente seguradora diz, não foi praticada nenhuma injustiça relativa.
· O dies a quo do vencimento dos juros de mora sobre as verbas indemnizatórias atribuídas ao autor e recorrente B (danos patrimoniais futuros de perda de alimentos; danos não patrimoniais próprios e dano de perda de vida) foi estabelecido de harmonia com a jurisprudência uniformizadora deste Supremo Tribunal, estabelecida no AUJ (2) 4/02, de 09.05.02 (3), onde se faz a conciliação das disposições dos artº566º, 2, e 805º, 3, parte final, CC.
As mencionadas verbas indemnizatórias foram obviamente calculadas segundo os valores da data em que a operação de cálculo foi efectuada.
Nem poderia ter sido de outro modo, tendo em conta o dever que promana do citado nº2, do artº566º, CC (de referenciar a "diferença" no património do lesado à data "mais recente que puder ser atendida pelo tribunal").
· A regra geral, em matéria de responsabilidade civil extra-contratual, é a de que a indemnização cabe ao titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado.
O terceiro, reflexa ou indirectamente prejudicado, está fora do círculo dos titulares do direito à indemnização.
Excepcionalmente, esta pode caber também ou apenas a terceiros.
É o que se passa com as situações previstas no artº495º, CC, e 496º, 2, CC.
Designadamente, sobre esta última disposição, o fundamento geralmente apontado para a opção por uma lista taxativa de lesados com direito de indemnização, é o de evitar a multiplicação incontrolada de pretensões indemnizatórias (4).
Neste último (496º, 2), vai contemplada e valorada a dor do cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e a dos filhos ou outros descendentes.
Mas não a daquele, companheiro ou companheira, que, à data da morte da vítima, com ela vivia em união de facto, em condições análogas às dos cônjuges.
E não se trata, este último, de caso omisso, merecedor de tratamento análogo (segundo o disposto no artº10º, 1, CC), porque, enquanto norma excepcional, a do nº2, do artº496º, não comporta a possibilidade de extensão analógica (cfr. artº11º, CC).
Por outro lado, uma simples interpretação extensiva, que as normas excepcionais já admitem, depara com dois obstáculos incontornáveis, o primeiro dos quais é a própria letra da lei (cfr. artº9º, 2, CC), e o segundo é o enquadramento histórico da norma, nascida num tempo e num espaço de absoluta rejeição dos valores que suportam as uniões de facto.
Entretanto, a Constituição da República de 1976, que deu expressão a novos valores sócio-políticos emergentes da revolução de 25 de Abril de 1974, consagrou, no artº36º, 1, incluído no Título II, dedicado aos direitos, liberdades e garantias, um "direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade".
A letra e a história do preceito, e das suas revisões (5), induzem a conclusão de que, por detrás daquela um tanto dúbia fórmula, ficou a intenção de dar abertura constitucional à chamada família de facto (a união não fundada no matrimónio), tendo em vista, principalmente, a não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (6), mas, também, a possibilidade de a legislação ordinária se ir adaptando à forma como evolui o pensamento social a respeito das diferentes manifestações da conjugalidade.
É, no entanto, óbvio, por outro lado, que a Constituição não quis colocar, em definitivo, ao mesmo nível de protecção, e de direitos e de deveres, a família de direito e a família de facto.
Mais afoitos à esquerda, mais conservadores à direita, os constituintes abriram a porta, mas esperam para ver quem quer e quem está em condições de por ela entrar.
É não só o modo de constituir família que está sob a mira do difuso texto do nº1, do artº36º, Const. (7), mas, também, a própria evolução do conceito de família.
À luz de um tal entendimento daquele normativo, é forçoso, portanto, considerar como simplesmente exemplificativas as fontes das relações jurídicas familiares a que se reportam os artº1576º, e ss., CC, mas não colocar em plena igualdade com elas as relações de facto que se lhes assemelhem.
Digamos que a Constituição não pretende andar com o carro à frente dos bois, que o mesmo é dizer, acha preferível a família jurídica (ou não fosse o Estado, por essência, o domínio da lei e do direito), não pretende ser o motor do desenvolvimento de outras formas de união familiar, que, ou se impõem no corpo social e encontram guarida no artº36º, 1, que, nessa altura, conjurará o legislador ordinário a agir em conformidade, ou devem ficar, de todo, à margem do direito. Não se esqueça que o artº36º, 1, Const, se não comprometeu propositadamente com nenhuma outra definição de família que não seja a baseada no casamento. Quanto ao mais, limitou-se a manter a porta aberta.
E não se esqueça, também, que, mesmo na acepção dual (constituir família e contrair casamento) não é preciso pensar na "união de facto" para colher o sentido útil da fórmula legal.
É que a célula familiar, como realidade social, como agregado humano de parentesco, convivência e afecto, também pode nascer dos laços naturais da filiação e dos legais da adopção, sem passar, necessariamente, pela matriz matrimonial (é pensar, p. ex., nos não raros casos de agregados monoparentais, criados à sombra de ligações fugazes à margem do matrimónio).
Também eles terão estado no pensamento do legislador constitucional, e motivado, tanto a expressão solene dos dois direitos como a própria ordem por que foram enunciados, assim prevenindo a interpretação redutora que a ordem tradicional (contrair casamento e constituir família) induziria.
Entretanto, com o decorrer dos anos, a proliferação das uniões de facto e a evolução do pensamento sócio-jurídico dominante, o legislador ordinário foi fazendo o que estava implícito que deveria fazer, à luz do referido normativo constitucional (a tal prudente abertura da Constituição às uniões de facto).
Principiou por reformar o Código Civil, em 1977 (8), dando nova redacção aos artº1911º, 3 (em matéria de exercício de poder paternal no âmbito da união de facto (9) e 2020º (em matéria de alimentos ao companheiro sobrevivo, de união de facto com mais de dois anos); em 1985 (10), alterou o artº1111º, 2 e 3, CC, para incluir o cônjuge de facto, de união com mais de 5 anos, entre os beneficiários da transmissão por morte do direito ao arrendamento (embora no último lugar), solução que passou para o artº85º, RAU (11); ao correr dos tempos, foi-lhe estendendo direitos sociais próprios da condição de casado, até que, pela Lei 7/01, de 11/5 (12), além de um enorme salto qualitativo na definição do que é união de facto, de que retirou o requisito do sexo diferente das duas pessoas que vivem em união, estabeleceu, pela primeira vez, uma espécie de lei-quadro das uniões de facto, sem prejuízo dos direitos já estabelecidos anteriormente, e na que, inclusivamente, estabeleceu, para a modalidade heterossexual, o direito de adopção plena (artº7º), em condições análogas às revistas no artº1979º, CC, e deu nova redacção ao acima mencionado artº85º, RAU, tendo feito subir a nova união de facto (13), que chama, expressamente, de família (14), dois lugares na escala dos beneficiário da transmissão, colocando o cônjuge de facto no lugar imediatamente a seguir aos filhos, mas adiante dos ascendentes e dos afins.
As intervenções do legislador ordinário têm incidido quase em exclusivo no âmbito das chamadas normas de protecção (alimentos, garantia da casa de morada em caso de morte do companheiro (15), benefícios sociais), na evidente lógica de não estimular experiências sociais em matéria tão delicada, mas de esperar, estudar e, só depois, agir.
É nesta perspectiva que deve ser encarada a constitucionalidade da norma do artº496º, 2, CC, posta em causa, na medida em que afasta da sua previsão o cônjuge de facto.
Sob tal perspectiva, não há como não concluir que a dita norma nem vai contra o artº13º (princípio da igualdade), nem contra o artº36º, 1 (família, casamento e filiação), conjugado com o princípio da proporcionalidade, nem contra o artº67º (família), todos da Constituição da República, porque, na verdade, a distinção que estabelece tem respaldo numa prioridade de valores e num programa de protecção que ela própria adoptou, e, por isso, não é injustificadamente arbitrária nem discriminatória, nem desprotege a família de facto.
Trata diferentemente, para aquele efeito indemnizatório, o cônjuge legal e o cônjuge de facto, tendo boas razões para distinguir, aí, o que distinto é, sem, por outro lado, ao negar o direito ao cônjuge de facto passar dos limites da necessidade, da adequação e da racionalidade, que dão corpo à ideia de proporcionalidade.
É de dizer, nesta última perspectiva, que o direito previsto no nº2, do artº496º, CC, não constitui, na óptica da proporcionalidade, como princípio de direito constitucional inspirador dos direitos fundamentais, uma medida necessária à protecção do direito fundamental a constituir família, porque não implica com a protecção minimamente exigível àquele elemento base da sociedade, e que, nessa medida, atribuir tal direito ao cônjuge de direito e não ao cônjuge de facto não constitui defeito de protecção deste último.
O direito que o nº2, do artº496º, CC, confere ao cônjuge de direito e nega ao cônjuge de facto (e porque não, então, ao companheiro da união de facto homossexual?) tem uma justificação que passa muito para além do amor e da compaixão, porque tem, igualmente, raízes na subordinação a deveres menos próximos do prazer, mas que cimentam a união, como sejam o auxílio, a cooperação a fidelidade, a entrega total que a união de facto, que se extingue num simples querer (artº 8, 1, b, Lei 7/01), decididamente não garante.
O único acórdão do Tribunal Constitucional que, até ao momento, abordou o problema (nº275/02, no D.R., 2ª série, nº169, de 24.07.02, pag.12.896 e ss.), foi tirado sobre um caso de homicídio doloso e a solução nele encontrada, diferente da, aqui, defendida, tem, confessadamente, a marca da gravidade extrema do ilícito.
Vem, pois, com uma faceta de casuísmo que o debilita como precedente jurisprudencial.
4. Pelo exposto, negam ambas as revistas.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 4 de Dezembro de 2003
Quirino Soares
Neves Ribeiro
Araújo Barros
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(1) Código Civil
(2) Acórdão Uniformizador de Jurisprudência
(3) Diário da República, I-A, nº146, de 27.06.02
(4) P. Lima e A. Varela, em Código Civil Anotado, I, 4ª edição.
(5) Registada nos pertinentes números do Diário da Assembleia da República
(6) Esta preocupação foi, com efeito, a primitiva bandeira dos proponentes da abertura constitucional à união de facto
(7) Constituição da República Portuguesa
(8) DL 496/77, de 25/11
(9) Designação que daremos aos "cônjuges de facto"
(10) Lei 46/85, de 20/9
(11) Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo DL 321-B/90, de 15/10
(12) Que pôs fim à breve vida da Lei 135/99, de 28/8
(13) Pessoa que com (o falecido arrendatário) vivia em união de facto há mais de dois anos, quando o arrendatário não seja casado ou esteja separado judicialmente de pessoas e bens
(14) Cfr. artº4º.
(15) Cfr. o artº4º, da recente Lei 7/01, citada no texto, onde se atribui ao companheiro sobrevivo um direito real de habitação periódica