Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06S2445
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: VASQUES DINIS
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO A TERMO
CONCURSO
INSTITUTO DE ESTRADAS DE PORTUGAL
INCONSTITUCIONALIDADE
ÓNUS DA PROVA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
SEGURANÇA NO EMPREGO
Nº do Documento: SJ200806180024454
Data do Acordão: 06/18/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
I - É inconstitucional, por violação do disposto no artigo 47.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), a norma extraída da conjugação dos artigos 41.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, 44.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, e 13.º dos estatutos do Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária (ICERR), aprovados pelo Decreto-Lei n.º 237/99, de 25 de Junho, interpretados no sentido de permitirem a contratação de pessoal daquele Instituto sujeito ao regime jurídico do contrato individual de trabalho, designadamente na parte em que permite a conversão dos contratos de trabalho a termo em contratos de trabalho sem termo, sem imposição do procedimentos de recrutamento e selecção dos candidatos à contratação que garanta o acesso em condições de liberdade e igualdade.
II - Tendo o autor sido contratado para exercer as funções na área de informática, designadamente na administração de sistemas, apoio aos utilizadores, resoluções de avarias ou problemas com equipamento informático e gestão de parque informático, que efectivamente desempenhou, tais funções, por si só, não justificam a dispensa do concurso.
III - E, não tendo sido alegados outros motivos que, a coberto de valores de relevância constitucional, pudessem fundar a postergação da regra do concurso, é de concluir que a contratação do autor estava sujeita à observância de procedimento administrativo de recrutamento e selecção que garantisse a efectiva concretização do princípio da liberdade e igualdade no acesso à função pública.
IV - Compete ao trabalhador/autor alegar e provar que foi observado o procedimento administrativo de recrutamento e selecção que assegurou a liberdade e igualdade de acesso à função pública
V - Não se mostra efectuada tal prova, se apenas se demonstra que previamente à contratação do autor e como condição para a mesma, este apresentou o seu currículo e esteve presente em entrevista de selecção de candidatos.
VI - As exigências do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) reconduzem-se à proibição do arbítrio, não impedindo, em absoluto, toda e qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as diferenciações materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou justificação objectiva e racional.
VII - Por isso, a interpretação referida nas proposições anteriores não viola o referido princípio da igualdade se não estão demonstrados factos bastantes que permitam averiguar se o autor foi alvo de tratamento discriminatório, decorrente da sujeição do seu contrato ao regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na Administração Pública, em matéria de conversão de contrato precário em vínculo permanente.
VIII - Também não se demonstra a violação do princípio da segurança no emprego (artigo 53.º da CRP), porquanto o mesmo apenas garante relações laborais validamente constituídas e não situações de invalidade do contrato, como ocorre no caso.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. AA intentou, no Tribunal do Trabalho de Coimbra, contra o I…. de E… de P…. (ex-ICERR), acção com processo comum, pedindo que seja declarado que é ilícito e nulo o seu despedimento e que ele, Autor, é trabalhador do Réu, ao abrigo de contrato sem termo, desde 3 de Dezembro de 2001; e que o Réu seja condenado a reintegrá-lo no seu posto de trabalho, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, e do direito de optar, até à data da sentença, pela indemnização de antiguidade, e a pagar-lhe os salários e subsídios que se vencerem desde o despedimento até ao trânsito em julgado da sentença, acrescidos de juros de mora, contados desde o vencimento de cada uma dessas importâncias.

Alegou, em síntese, que:

Foi admitido ao serviço do extinto ICERR (I… para a C… e E… da R… R…) no dia 3 de Dezembro de 2001, para exercer as funções de apoio na área informática, designadamente administração de sistemas, apoio aos utilizadores, resolução de avarias ou problemas de equipamento informático, sendo que, dois meses e meio depois, o Réu apresentou-lhe um contrato de trabalho escrito, a termo certo, pelo período de seis meses, que assinou, por imposição do Réu, para não perder o posto de trabalho;
Em 7 de Novembro de 2002, o Autor recebeu uma carta, vinda do Réu, em que este lhe comunicava a não renovação do contrato de trabalho a termo certo, fazendo cessar o mesmo em 2 de Dezembro de 2002;
Esta comunicação constitui um despedimento ilícito, porquanto, não sendo válido o contrato de trabalho a termo certo, a entidade patronal não instaurou qualquer processo disciplinar, não apresentou qualquer nota de culpa, nem se fundamentou em qualquer comportamento culposo do Autor.
2. Frustrada, na audiência de partes, a tentativa de conciliação, o Réu contestou, dizendo, no essencial, que:
Por razões organizativas, apenas foi possível a assinatura do contrato a termo em 21 de Fevereiro de 2002, apesar de o Autor ter iniciado o exercício das suas funções em 3 de Dezembro de 2001, sendo que, como não podia deixar de ser, o contrato reportou os seus efeitos a esta data;
O Autor sempre soube que a sua contratação seria a termo certo;
Terminando o prazo acordado em 2 de Junho de 2002, o Réu, em Maio desse ano, comunicou ao Autor a sua não renovação e, logo, a sua caducidade na data prevista;
Como o Autor comunicou ao Réu que a comunicação de não renovação foi efectuada sem respeitar a antecedência legalmente definida, o contrato renovou-se por igual período, não tendo fundamento legal as conclusões que o Autor pretende retirar;
No que tange ao motivo justificativo da contratação, o invocado acréscimo temporário da actividade do Réu foi uma realidade na segunda metade do ano de 2001, ano em que o Inverno foi particularmente chuvoso, com frequentes temporais, que danificaram as estradas sobremaneira na Região Centro do País;
No contrato a termo foram concretizadas as circunstâncias integradoras do acréscimo excepcional e temporário da actividade e do “lançamento” de nova actividade;
O Autor, interpretando a seu bel-prazer e fora de qualquer contexto legal, as normas aplicáveis, litiga de má fé, devendo ser condenado em multa e em indemnização a fixar nos termos do n.º 2 do artigo 457.º do CPC.
3. Efectuado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, declarando ilícito o despedimento do Autor e condenando o Réu a reconhecer a existência de um contrato de trabalho sem termo, entre as partes, com efeitos reportados a 3 de Dezembro de 2001, bem como a reintegrá-lo no seu posto de trabalho, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, e a pagar-lhe a quantia global de € 1.9126,16 (dezanove mil, cento e vinte e seis euros e dezasseis cêntimos), a título de salários intercalares, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data de vencimento de cada uma dessas importâncias, até integral e efectivo pagamento.
4. Em recurso de apelação, o Réu impugnou a sentença, quer quanto à decisão sobre a matéria de facto, quer quanto à solução jurídica do pleito, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra – no entendimento de que a relação juslaboral em causa está sujeita à disciplina legal constante do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, que não consente, em caso algum, a conversão de contrato a termo em contrato sem termo, concluído que o contrato celebrado pelas partes cessou por caducidade, com a consequência de se considerar prejudicada a apreciação das demais questões propostas no recurso –, revogado a sentença e absolvido o Réu do pedido.
5. Para pedir a revogação do acórdão da Relação e a repristinação da sentença da 1.ª instância, interpôs o Autor recurso de revista, terminando a alegação com as conclusões assim redigidas:

1.ª - Por douta sentença proferida pelo Tribunal do Trabalho de Coimbra foi decidido julgar a acção emergente de contrato individual de trabalho instaurada pelo A. contra o Réu, procedente por provada e, consequentemente, condenar o R. a reintegrar o A. no seu posto de trabalho;

2.ª - Fundamentou-se a decisão de 1.ª instância – em síntese – na inexistência, no contrato de trabalho a termo certo celebrado entre Autor, ora recorrente, e Réu, ora recorrido, em 5 de Dezembro de 2001, [de alusão expressa] à concreta factualidade real da necessidade da contratação a termo, pelo que se concluiu pela nulidade da estipulação do termo e pela conversão do contrato a termo em contrato sem termo, equivalendo a denúncia daquele contrato a termo a um despedimento ilícito, uma vez que não foi sequer precedido da instauração de processo disciplinar;

3.ª - O Tribunal da Relação de Coimbra, no recurso de apelação intentado pelo R., decidiu – erradamente – que o contrato a termo cessou por caducidade por força do disposto no Decreto-Lei n.º 427/89, de 7/12, o que se não aceita;

4.ª - Não é aplicável ao R. o disposto no Decreto-Lei n.º 427/89, de 7/12, designadamente, quanto ao contrato de trabalho a termo e consequências da sua invalidade;

5.ª - Nos termos do disposto nos Estatutos do ICERR (aprovados pelo Decreto-Lei n.º 237/99, de 25 de Junho), artigo 13.º, o pessoal do ICERR está sujeito ao regime jurídico do contrato individual de trabalho;

6.ª - Ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 227/2002, de 30 de Outubro (que aprovou os Estatutos do IEP e que integrou, por fusão, o ICERR), o pessoal do IEP está sujeito ao regime jurídico do contrato individual de trabalho;

7.ª - O IEP foi transformado em entidade pública empresarial EP – Estradas de Portugal – EPE e, nos termos do disposto no Decreto-Lei n.º 239/2004, de 21 de Dezembro, o seu pessoal está sujeito ao regime jurídico do contrato individual de trabalho;

8.ª - Aplicando-se, necessariamente, o regime previsto na LCCT e, actualmente, no Código do Trabalho;

9.ª - Assim, à relação laboral existente entre o A. e o R. aplica-se o regime jurídico do contrato individual de trabalho e, consequentemente, o disposto no artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27/2 (com a redacção da Lei n.º 17/2002, de 3 de Julho), convertendo-se o contrato de trabalho a termo em contrato de trabalho sem termo, em virtude invalidade do contrato a termo, face à ausência de motivo justificativo;

10.ª - E tanto é assim que fazem parte dos quadros de pessoal do Réu trabalhadores contratados por contrato individual de trabalho, por termo indeterminado, sem precedência de processo concursal;

11.ª - O Réu tem celebrado, actualmente, contratos de trabalho por tempo indeterminado, na sequência de acordos de integração dos trabalhadores (na mesma situação do ora Autor) no IEP no âmbito de processos judiciais que correram termos no Tribunal do Trabalho de Coimbra (Processos n.º 815/04.OTTCBR e 934104.3TTCBR do 1.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Coimbra) e sem a prévia existência de concurso público;

12.ª - Significa então que é possível a celebração inicial de contratos de trabalho por tempo indeterminado, sem a precedência de processo de concurso, mas já não é possível a conversão dos contratos a termo em contratos sem termo?!?;

13.ª - Ora, salvo melhor entendimento, tal posição implica uma desigualdade de tratamento dos trabalhadores do Réu, em manifesta violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa;

14.ª - Sem prescindir e caso se entenda que ao R. é aplicável o disposto no Decreto-Lei n.º 427/89, de 7/12 – o que se não aceita, mas que se aflora como mera hipótese de trabalho –, não seria legalmente possível a conversão dos contratos de trabalho a termo em contratos de trabalho sem qualquer termo, como entendeu o Tribunal da Relação de Coimbra;

15.ª - No entanto, desconhece-se, no caso concreto dos autos, qual o preceito legal que expressamente consagre a impossibilidade da conversão dos contratos de trabalho a termo certo em contratos de trabalho sem termo, nem o regime da nulidade previsto no Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27/2, foi afastado por qualquer norma específica, designadamente, pelos Decretos-Lei n.º 237/99, de 25/6, n.º 227/2002, de 30/10 e n.º 239/2004, de 21/12, nem dos Estatutos do Ex-ICERR, do ex-IEP e da actual EP – Estradas de Portugal, EPE;

16.ª - Sendo certo que uma decisão nesse sentido, sempre seria iníqua, desde logo porque seria o próprio R., enquanto infractor à lei (ao celebrar um contrato de trabalho a termo certo em manifesta violação à lei), a beneficiar da ilegalidade que ele próprio criou e fraudulentamente manteve;

17.ª - A violação da lei determinaria, tão-só e apenas, consequências gravosas e nefastas para o próprio A., ou seja, a caducidade do contrato inválido;

18.ª - O que determinaria uma situação absurda: o contrato podia durar indefinidamente, sem qualquer benefício para o trabalhador, dado que o mesmo nunca podia ser convertido em contrato de trabalho sem termo ou por tempo indeterminado;

19.ª - O R. e o próprio Estado beneficiam assim de um tratamento mais favorável do que o empregador privado, quando lhes incumbe precisamente assegurar a legalidade e política de emprego (artigo 53.º da Constituição da República Portuguesa);

20.ª - O A. deve ser reintegrado, como trabalhador do R., vinculado ao mesmo através de uma relação de emprego privado disciplinada pelo direito comum de trabalho, atendendo à nulidade do contrato de trabalho a termo certo celebrado entre A. e R. e à consequente conversão do mesmo em contrato de trabalho sem qualquer termo;

21.ª - Ao não decidir nestes termos, violou o douto acórdão da Relação de Coimbra, entre outros, o disposto na LCCT (designadamente, artigos 41.º e 42.º) e os Decretos-Lei n.º 237/99, de 25/6, n.º 227/2002, de 30/10 (artigo 14.º) e n.º 239/2004, de 21/12, Estatutos do Ex-ICERR (artigo 13.º), do ex-IEP (artigo 13.º) e da actual EP – Estradas de Portugal, EPE (artigo 11.º) e artigos 13.º e 53,º da Constituição da República Portuguesa.

Contra-alegou o Réu a pugnar pela confirmação do julgado.

Neste Supremo Tribunal, a Exma. Magistrada do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido de ser concedida a revista e ordenada a baixa do processo à Relação, a fim de serem conhecidas as questões suscitadas na apelação, cuja apreciação ficou prejudicada, e julgada novamente a causa, nos termos do artigo 730.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Tal parecer mereceu resposta do Réu, reafirmando a posição assumida na contra-alegação.

6. Por acórdão de 22 de Março de 2007 (fls. 266/279), este Supremo decidiu conceder a revista e ordenar que os autos voltassem à Relação, a fim de, em novo acórdão, serem apreciadas as questões de facto suscitadas na apelação, julgando-se de novo a causa, nos termos do n.º 1 do artigo 730.º do CPC.

Sobre o problema da aplicação do regime do contrato individual de trabalho ao contrato de trabalho a termo celebrado entre as partes, escreveu-se nesse acórdão (omitem-se as notas de rodapé):

“[...]

Este Supremo Tribunal teve ensejo de se pronunciar sobre o objecto da controvérsia, suscitado em casos semelhantes ao que nos ocupa, nos Acórdãos de 18 de Maio de 2006 e de 24 de Maio de 2006.

No primeiro dos referidos arestos, observou-se:

(...)

O Decreto-Lei n.º 427/89 regulamenta os princípios a que deve obedecer a relação jurídica de emprego na Administração Pública e foi emitido pelo Governo em desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho (alterado pelas Leis n.os 30-C/92, de 28 de Dezembro, 25/98, de 26 de Maio, 10/2004, de 22 de Março, e 23/2004, de 22 de Junho), diploma que aprovou princípios gerais sobre salários e gestão de pessoal da função pública.

Segundo o regime do Decreto-Lei n.º 427/89, a relação jurídica de emprego na Administração Pública constitui-se por nomeação e contrato de pessoal (artigo 3.º), podendo esta última revestir as modalidades de contrato administrativo de provimento e de contrato de trabalho a termo certo [alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 14.º], sendo que, a partir da entrada em vigor do diploma legal em referência, ficou vedado ao Estado a constituição de relações de emprego com carácter subordinado por forma diversa das previstas no seu artigo 14.º, com responsabilização dos funcionários e agentes que tal possibilitassem (artigo 43.º).

O certo é, porém, que o Decreto-Lei n.º 427/89, ao mesmo tempo que prescrevia que as relações de emprego público não se poderiam constituir por forma diversa das previstas no dito artigo 14.º, veio determinar, no n.º 1 do seu artigo 44.º, epigrafado «Salvaguarda de regimes especiais», que ao pessoal dos institutos públicos que revistam a forma de serviços personalizados ou de fundos públicos abrangidos pelo regime aplicável às empresas públicas ou pelo contrato individual de trabalho aplicavam-se as respectivas disposições estatutárias.

Neste mesmo sentido era já a previsão do n.º 4 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 189/89, de 2 de Junho, regime jurídico que o Decreto-Lei n.º 427/89 desenvolveu.

Consequentemente, estes dois preceitos salvaguardam a existência de regimes especiais, determinando a aplicação das respectivas disposições estatutárias ao pessoal dos institutos públicos que revistam a natureza de serviço personalizado e se rejam pelo regime do contrato individual de trabalho.

Os contratos em causa nos autos foram celebrados com um instituto público na modalidade de serviço personalizado e que se regia pelo regime do contrato individual de trabalho, pelo que vigora a salvaguarda de regime especial consagrada no n.º 4 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 184/89 e no n.º 1 do artigo 44.º do Decreto-Lei n.º 427/89, razão pela qual a disciplina dessas relações contratuais devem observar as disposições estatutárias do instituto em causa e não o regime geral da relação jurídica de emprego na Administração Pública.

Deste modo, a salvaguarda de um regime especial e diferenciado para o pessoal do extinto ICERR impede que se aplique, no caso, o regime geral da relação jurídica de emprego na Administração Pública editado pelo Decreto-Lei n.º 427/89.

Não faz, por isso, sentido argumentar-se com as três formas de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública (artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 427/89) para concluir pela impossibilidade de conversão dos contratos a termo em contratos por tempo indeterminado, nem com a proibição de conversão dos contratos de trabalho a termo certo, em contratos por tempo indeterminado, prevista no n.º 4 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 427/89, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 218/98.

Por outro lado, também carece de fundamento legal invocar-se a violação da regra do concurso para ingresso na função pública, quando o legislador estabeleceu um regime especial para a relação de emprego no extinto ICERR, em que não se previa a obrigatoriedade de tal forma de selecção e recrutamento de pessoal.

(...)

E, mais adiante, a propósito da invocação do regime da Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, que aprovou o regime jurídico do contrato individual de trabalho na Administração Pública, revogando os artigos 18.º a 21.º do Decreto-Lei n.º 427/89, que regulavam a «Admissibilidade», «Selecção de candidatos», «Estipulação do prazo e renovação do contrato» e «Limites à celebração» dos contratos de trabalho a termo certo na Administração Pública:

(...)

No que respeita às regras especiais agora aplicáveis ao contrato de trabalho a termo resolutivo, o artigo 10.º da Lei n.º 23/2004 estabelece que «[o] contrato de trabalho a termo resolutivo certo celebrado por pessoas colectivas públicas não está sujeito a renovação automática» (n.º 1), que «[o] contrato de trabalho a termo resolutivo celebrado por pessoas colectivas públicas não se converte, em caso algum, em contrato por tempo indeterminado, caducando no termo do prazo máximo de duração previsto no Código do Trabalho» (n.º 2) e que «[a] celebração de contratos de trabalho a termo resolutivo com violação do disposto na presente lei implica a sua nulidade e gera responsabilidade civil, disciplinar e financeira dos titulares dos órgãos que celebraram os contratos de trabalho» (n.º 3).

Sucede que, nos termos do n.º 1 do artigo 26.º do aludido diploma legal, «[f]icam sujeitos ao regime da presente lei os contratos de trabalho e os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho celebrados ou aprovados antes da sua entrada em vigor que abranjam pessoas colectivas públicas, salvo quanto às condições de validade e aos efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento».

Ora, sendo o autor admitido ao serviço do réu em 15 de Novembro de 2001, ocorrendo, em 20 de Dezembro de 2001, a celebração do contrato escrito de trabalho a termo certo, e a respectiva cessação, pelo recorrente, em 14 de Novembro de 2002, e tendo a contratação da alegada prestação de serviços cessado em 18 de Maio de 2003, é inquestionável que a Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, que entrou em vigor «30 dias após a data da sua publicação» (artigo 31.º), não se aplica às condições de validade e aos efeitos das relações jurídicas sucessivamente estabelecidas entre as partes, porque referentes a factos e/ou situações totalmente passados anteriormente à data da sua entrada em vigor.

Nestes termos, também não colhe a pretendida aplicação do regime jurídico aprovado pela Lei n.º 23/2004 ao caso em apreciação.

(...)

Na mesma linha de orientação, o segundo dos citados acórdãos, onde se pode ler:

(...)

É certo que, de acordo com o seu art.º 2.º, este diploma [o Decreto--Lei n.º 427/89] se aplicava aos serviços e organismos da Administração Central, bem como aos institutos públicos nas modalidades de serviços personalizados do Estado e de fundos públicos.

E é certo também que, de acordo com o art.º 1.º, n.º 1, do DL n.º 237/99, de 25.06, que o criou, o ICERR era um instituto público dotado de personalidade jurídica, à semelhança do Instituto das Estradas de Portugal, IEP, no qual aquele foi integrado, por fusão, após a sua extinção (art.º 2.º, n.º 1, do DL n.º 227/2002, de 30.10).

Mas tal natureza do ICERR não era impeditiva, por si só, da celebração com a A. do contrato de trabalho a termo, segundo o regime da LCCT e, portanto, não submetido ao regime do DL n.º 427/89.

É que há, a nosso ver, legislação ulterior a este e anterior à celebração do contrato que legitimava tal procedimento

Atentemos em que, segundo o n.º 1 do art.º 13.º dos seus Estatutos, aprovados pelo referido DL n.º 237/99 e a ele anexos, “o pessoal do ICERR está sujeito ao regime jurídico do contrato individual de trabalho, com as especificidades previstas nos presentes estatutos e no diploma que o aprova” (o sublinhado é nosso).

E tal regime jurídico é o geral do contrato individual de trabalho, previsto na Lei do Contrato de Trabalho (LCT), aprovado pelo DL n.º 49.048, de 24.12.1969 (ver o art.º 1.º deste diploma) – e não o regime do DL n.º 427/89 –, como tal consentindo a celebração de contratos por tempo indeterminado ou a termo, sendo que estes estavam sujeitos à disciplina da LCCT e respectiva legislação conexa (v.g. a Lei n.º 38/96, de 31.08)

Tal orientação insere-se num propósito, também revelado pelo preâmbulo e outras disposições do DL 237/99 e estatutos a ele anexos, de redução do efectivo dos funcionários públicos em serviço no Instituto, na dupla vertente da opção dada aos que já serviam na então extinta Junta Autónoma de Estradas de celebrarem contratos individuais de trabalho com o ICERR (art.os 8.º, 10.º e 11.º), e da submissão dos "servidores" a recrutar ao regime jurídico do contrato individual de trabalho.

(...)

Face ao que deixamos exposto, entendemos que o contrato a termo ora em causa está sujeito ao regime da LCCT (e legislação conexa), como defendeu a sentença, e não o aludido DL 427/89, como entendeu a 2.ª instância.

(...)

Irrelevante, para a apreciação da questão em análise, se mostra a Resolução do Conselho de Ministros n.º 77/2002, de 18 de Maio – invocada pelo Réu, na contra-alegação – que suspendeu a celebração de contratos de trabalho e ordenou a caducidade dos contratos de trabalho a termo no final dos respectivos prazos, visto que tal Resolução foi editada posteriormente à celebração do contrato em causa, não tendo, portanto, virtualidade para tornar válido um contrato afectado na sua origem, por insuficiência de motivo justificativo, nem evitar a conversão do contrato a termo, aspectos que tinham de ser aferidos pelas normas vigentes à data da sua celebração.

Defende, também, o Réu, na linha do entendimento vertido no douto acórdão impugnado, que o n.º 2 do artigo 47.º da Constituição da República proíbe a conversão do contrato a termo por termo indeterminado, daí que faltando o concurso para a admissão do Autor, qualquer decisão que determinasse tal conversão violaria aquele preceito.

Como se observou no último dos referidos acórdãos deste Supremo, citando Gomes Canotilho e Vital Moreira, o conceito de função pública contido no artigo 47.º, n.º 2, da Constituição da República, não contempla actividades exercidas ao abrigo do regime comum do contrato individual de trabalho, legalmente autorizado, ao serviço de uma pessoa colectiva pública, daí que aquele preceito não tenha aplicação ao caso.

Em suma, face ao disposto no artigo 44.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, e no artigo 13.º, n.º 1, dos Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei n.º 237/99, de 25 de Junho, o contrato celebrado pelas partes deve considerar-se submetido ao regime da LCCT, e não ao regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na Administração Pública, constante do citado Decreto-Lei n.º 427/89.

[...]”

Na sequência deste entendimento, considerou-se, então, haver necessidade, para a solução do litígio à luz do regime da LCCT, de apurar factos alegados pelo Réu, tendentes à demonstração da existência de fundamento para a celebração do contrato a termo, que haviam sido impugnados no recurso de apelação e cuja apreciação o Tribunal da Relação considerara prejudicada por ter concluído pela não aplicação daquele regime.

7. Deste acórdão interpôs o Instituto de Estradas de Portugal recurso para o Tribunal Constitucional, que, pelo acórdão n.º 248/2008, de 30 de Abril de 2008 (fls. 379/412), decidiu:

a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 47.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, a norma extraída da conjugação dos artigos 44.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, e 13.º dos Estatutos do I… para a C… e E… da R… R… (ICERR,), aprovados pelo Decreto-Lei n.º 237/99, de 25 de Junho, interpretada no sentido de permitir a aplicação de um regime especial e diferenciado para o pessoal do actual I… das E… de P…, mediante a conversão de contratos a termo em contratos por tempo indeterminado de pessoal sujeito ao regime jurídico do contrato individual de trabalho, sem imposição de um procedimento de recrutamento e de selecção que assegure o respeito pelos princípios da liberdade e da igualdade de acesso à função pública.

b) Conceder parcialmente provimento ao recurso, determinando-se a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça para reformulação da decisão recorrida, em conformidade com a decisão ora proferida, conforme determina o n.º 2 do artigo 80.º da LTC.

É, pois, mister, proceder à ordenada reformulação da decisão deste Supremo proferida em 27 de Março de 2007.

Conforme despacho do relator, foram dispensados os vistos, atendendo ao sentido de anteriores decisões, adiante mencionadas, proferidas por este Supremo Tribunal em casos semelhantes, na sequência do juízo de inconstitucionalidade das normas em causa constante do Acórdão n.º 409/2007 do Tribunal Constitucional, coincidente com o que se deixou transcrito.

Cumpre decidir.


II

1. As instâncias fixaram a matéria de facto provada nos termos seguintes:
1) - O R. é um Instituto Público que integrou o ICERR;
2) - Em 21 de Fevereiro de 2002, o A. e o R. celebraram um contrato de trabalho a termo certo, pelo período de seis meses e nos termos constantes de fls. 8 e 9, cujo conteúdo se tem aqui por integralmente reproduzido;
3) - O A. foi admitido ao serviço do extinto I… para a C… e E… da R… R… (ICERR) no dia 3 de Dezembro de 2001, para exercer as funções de apoio na área informática designadamente na administração de sistemas, apoio aos utilizadores, resolução de avarias ou problemas com o equipamento informático e gestão do parque informático, nas instalações da sede do R., sem prejuízo de eventuais deslocações necessárias em consequência do desempenho normal da actividade;
4) - O A., a partir do referido dia 3.12.2001, passou a desempenhar funções de apoio na área informática, designadamente administração de sistemas, apoio aos utilizadores, resolução de avarias ou problemas com equipamento informático e gestão do parque informático, por conta, ordem e direcção do R.;
5) - …Mediante a remuneração base mensal ilíquida de € 732,00, abonada em seis mensalidades, subsídios de Natal e de férias, à qual acrescia o subsídio de refeição no valor de € 5,08 por cada dia de trabalho efectivamente prestado e que o R. lhe pagou;
6) - O A. assinou o contrato referido em 2. em 21.2.2002;
7) - O R., em Maio de 2002, comunicou ao A. a não renovação do contrato, nos termos constantes de fls. 32;
8) - O A. enviou ao R. a carta junta a fls. 33, cujo conteúdo aqui se tem por reproduzido;
9) - O contrato de trabalho do A. renovou-se por igual período de seis meses;
10) - Em 7 de Novembro de 2002 o A. recebeu do R. uma carta registada com A/R em que este lhe comunicou a não renovação do contrato a termo, fazendo cessar o mesmo em 2 de Novembro de 2002, nos termos de fls. 10, cujo teor se dá aqui por integralmente vertido;
11) - O R. não instaurou qualquer processo disciplinar ao A.;
12) - O A. foi exercer uma actividade que já existia e com a qual o R. já laborava;
13) - Os serviços que o A. foi executar para o R. e para os quais foi contratado já eram executados há mais de 5 anos por outros trabalhadores do R. e continuaram a sê-lo;
14) - Os trabalhadores do R., após a saída do A., passaram a exercer as funções deste;
15) - O A. previamente à sua contratação e como condição para a mesma, apresentou o seu currículo e esteve presente em entrevista de selecção de candidatos;
16) - Foi dado conhecimento ao A. de que ia celebrar um contrato de trabalho a termo e o respectivo conteúdo;
17) - Na mesma altura em que foi contratado, foram contratados a termo outros técnicos, tendo os respectivos contratos a termo sido assinados na mesma data da do A., posterior à data do início de funções;
18) - O Inverno de 2000/2001 foi bastante chuvoso, com frequentes temporais que danificaram várias estradas do País, o que originou a necessidade de reformulação do sistema de informação;
19) - O A. apresentou a declaração de rendimentos junta a fls. 97-101, relativa ao ano de 2003, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.
2. No recurso de revista, suscitam-se as questões de saber:
Se ao contrato de trabalho celebrado entre as partes em 21 de Fevereiro de 2002 é aplicável o regime do contrato individual de trabalho, então vigente, designadamente o estabelecido no Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho e da Celebração e Caducidade do Contrato a Termo (LCCT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 69-A/89, de 27 de Fevereiro, em matéria de conversão de contrato a termo em contrato sem termo;
Se, aplicando-se esse regime, deve declarar-se convertido em contrato sem termo, o contrato celebrado pelas partes;
Se, a considerar-se inaplicável tal regime, ocorre violação dos artigos 13.º e 53.º da Constituição da República Portuguesa.
3. Quanto à primeira das enunciadas questões, o acórdão do Tribunal Constitucional lavrado nestes autos pronunciou-se nos seguintes termos:

“[...]

C) Inconstitucionalidade da interpretação normativa do n.º 1 do artigo 44.º do Decreto-Lei n.º 427/89 e do n.º 1 do artigo 13.º dos Estatutos do ICERR, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 237/99

9. As normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada têm o seguinte teor:


Artigo 44.º do Decreto-Lei n.º 427/89


«1. Ao pessoal dos institutos públicos que revistam a forma de serviços personalizados ou de fundos públicos abrangidos pelo regime aplicável às empresas públicas ou pelo contrato individual de trabalho e, bem assim, ao pessoal abrangido por regimes identificados em lei como regimes de direito público privativo aplicam-se as respectivas disposições estatutárias».

Artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 237/99

«1. As referências feitas, na legislação ou regulamentação em vigor, à Junta Autónoma de Estradas devem considerar-se feitas ao IEP ou ao ICERR, conforme o âmbito das respectivas competências».

Conforme já supra demonstrado, o Tribunal Constitucional teve, recentemente, oportunidade de se pronunciar exacta e precisamente sobre a questão em apreço nos presentes autos, através de decisão tomada, por unanimidade, pela 2.ª Secção (cfr. Acórdão n.º 409/07, de 11 de Julho de 2007, disponível in www.tribunalconstitucional.pt). Tal jurisprudência é integralmente acompanhada pelo presente Acórdão, optando-se por reproduzir o teor da mesma:

“Como é sabido, a questão central objecto do presente recurso já foi objecto de diversas pronúncias deste Tribunal, embora a propósito de outras normas. No Acórdão n.º 61/2004, na sequência dos Acórdãos n.os 140/2002 e 406/2003, todos proferidos em sede de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade e tendo por objecto a questão da admissibilidade da aplicação do regime do contrato individual de trabalho, designadamente quanto à conversão dos contratos de trabalho a termo em contratos sem termo, expendeu-se:

«6.1. O n.º 2 do artigo 47.º da CRP e a jurisprudência constitucional

O mencionado n.º 2 do artigo 47.º da CRP preceitua o seguinte:

Artigo 47.º

Liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública

1. (...)

2. Todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso.

A questão do direito de acesso à função pública e da regra do concurso foi recentemente analisada pelo já citado Acórdão n.º 406/2003, relativo ao Instituto Nacional da Aviação Civil, com argumentação que se reitera e que conduz à emissão de declaração de inconstitucionalidade.

Como se afirmou no Acórdão n.º 683/99 (Diário da República, II Série, n.º 28, de 3 de Fevereiro de 2000, pág. 2351):

«Entre nós, retira-se do artigo 47.º, n.º 2, da Constituição, como concretização do direito de igualdade no acesso à função pública, um direito a um procedimento justo de recrutamento e selecção de candidatos à função pública, que se traduz, em regra, no concurso (embora não um direito subjectivo de qualquer dos candidatos à contratação – assim, v. recentemente o Acórdão n.º 556/99).

Este não pode, por outro lado, ser procedimentalmente organi­zado, ou decidido, em condições ou segundo critérios discriminatórios, conducentes a privilégios ou preferências arbitrárias, pela sua previsão ou pela desconsideração de parâmetros ou elementos que devam ser relevantes (cf., recentemente, o Acórdão n.º 128/99, que fundou no artigo 47.º, n.º 2, da Constituição, embora com votos de vencido quanto à sua aplicação ao caso, um julgamento de inconstitucionalidade da norma do artigo 36.º, alínea c), da Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro, na medida em que, para a candidatura a Juiz do Tribunal de Contas, em concurso curricular, não considerava o exercício durante três anos de funções de gestão em sociedades por quotas).

É certo que o direito de acesso previsto no artigo 47.º, n.º 2, não proíbe toda e qualquer diferenciação, desde que fundada razoavelmente em valores com relevância constitucional – como exemplos pode referir-se a preferência no recrutamento de deficientes ou na colocação de cônjuges um junto do outro (assim G. Canotilho/V. Moreira, Cons­tituição..., cit., pág. 265). Poderá dis­cutir-se se do princípio consagrado no artigo 47.º, n.º 2, resulta, como concretização dos princípios de igualdade e liberdade, que os critérios de acesso (em regra, de decisão de um concurso) tenham de ser exclusivamente meritocráticos, ou se pode conceder-se preferência a candidatos devido a características diversas das suas capacidades ou mérito, desde que não importem qualquer preferência arbitrária ou discriminatória – assim, por exemplo, o facto de serem oriundos de uma determinada região, ou de terem outra característica (por exemplo, uma deficiência) reputada relevante para os fins prosseguidos pelo Estado.

Seja como for, pode dizer-se que a previsão da regra do concurso, associada aos princípios da igualdade e liberdade no acesso à função pública, funda uma preferência geral por critérios relativos ao mérito e à capacidade dos candidatos (de «princípio da prestação» fala a doutrina alemã – v., por exemplo, Walter Leisner, «Das Leistungsprinzip», in idem, Beamtentum, Berlim, 1995, pág. 273 e seguintes –, sendo certo, contudo, que o respectivo texto constitucional é, como vimos, explicitamente mais exigente).

E o concurso é justamente previsto como regra por se tratar do procedimento de selecção que, em regra, com maior transparência e rigor se adequa a uma escolha dos mais capazes – onde o concurso não existe e a Administração pode escolher livremente os funcionários não se reconhece, assim, um direito de acesso (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. e loc. cits., anotação XI; sobre o fundamento do procedimento concursal, v. também Ana Fernanda Neves, Relação jurídica de emprego público, cit., págs. 147 e seguintes).

Assim, para respeito do direito de igualdade no acesso à função pública, o estabelecimento de excepções à regra do concurso não pode estar na simples discricionariedade do legislador, que é justamente limitada com a imposição de tal princípio. Caso contrário, este princípio do concurso – fundamentado, como se viu, no próprio direito de igualdade no acesso à função pública (e no direito a um procedimento justo de selecção) – poderia ser inteiramente frustrado. Antes tais excepções terão de justificar-se com base em princípios materiais, para não defraudar o requisito constitucional (assim Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit.; Ana F. Neves, ob. cit., págs. 153-4).»

No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão n.º 368/2000 (Diário da República, I Série-A, n.º 277, de 30 de Novembro de 2000, pág. 6886). E, anteriormente, no Acórdão n.º 53/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., pág. 303 e seguintes) já se expressara o seguinte entendimento, relativamente ao n.º 2 do artigo 47.º da CRP:

«Como decorre do seu próprio enunciado, este preceito compreende três elementos: a) o direito à função pública, não podendo nenhum cidadão ser excluído da possibilidade de acesso, seja à função pública em geral, seja a uma determinada função em particular, por outro motivo que não seja a falta dos requisitos adequados à função (v. g., idade, habilitações académicas e profissionais); b) a regra da igualdade e da liberdade, não podendo haver discriminação nem diferenciações de tratamento baseadas em factores irrelevantes, nem, por outro lado, regimes de constrição atentatórios da liberdade; c) regra do concurso como forma normal de provimento de lugares, desde logo de ingresso, devendo ser devidamente justificados os casos de provimento de lugares sem concurso.»

E, neste mesmo acórdão, ainda se acrescentou que «não existe aqui nenhuma garantia de igualdade quando o provimento depende decisivamente de uma escolha discricionária do serviço» e que «é precisamente contra o poder de os serviços escolherem livremente o seu pessoal que se dirigem os princípios constitucionais da igualdade e do concurso no acesso à função pública».

Ainda quanto à questão do direito de acesso à função pública e da regra do concurso, no já citado Acórdão n.º 683/99 afirmou-se igualmente que «visando as­sim o concurso possibilitar o exercício do próprio direito de acesso em condições de igualdade, a sua dispensa não pode deixar, como se afirmou, de se basear em razões materiais – isto é, designadamente, em razões relevantes para o cargo para o qual há que efectuar uma escolha (assim, por exemplo, para a escolha de pessoal dirigente, para o qual poderá eventualmente revelar-se adequada a selecção sem concurso). Considerando esta necessidade de justificação material da postergação da regra do concurso não pode, pois, tirar-se qualquer argumento do facto de o concurso não ser previsto imperativamente pela Constituição como único meio de acesso à função pública».

Este Acórdão n.º 683/99 firmou, pois, o entendimento segundo o qual a postergação da regra de concurso carece de uma justificação material, entendimento esse que não foi questionado nos votos de vencido a ele apostos.

Próxima da apreciação da justificação material da postergação do concurso, situa-se a argumentação desenvolvida pelo Acórdão n.º 556/99 (Diário da República, II Série, n.º 63, de 15 de Março de 2000, pág. 4987). Neste acórdão discutiu-se a questão da conformidade constitucional do disposto na alínea a) dos n.os 1 e 2 do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 46/88, de 11 de Fevereiro, através do qual o legislador permitiu o ingresso nos quadros do Ministério da Defesa Nacional a pessoal que, à data de 31 de Dezembro de 1987, não tendo a qualificação legal de funcionário, quisesse obtê-la; e, a propósito de tal questão, afirmou-se no citado aresto:

«No entanto, o direito de acesso à função pública não é um direito de exercício incondicionado.

O n.º 2 do artigo 47.º da Constituição estabelece a regra do concurso público, que será realizado sempre que as necessidades de preenchimento de lugares de quadro se verificarem. Este concurso é uma forma de selecção de candidatos, em função das aptidões demonstradas, não se podendo afirmar, à partida, o direito subjectivo de qualquer dos candidatos à contratação.

Da norma constitucional também não decorre uma exigência absoluta de realização de concurso, em todos os casos, para o acesso à função pública.

O artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 41/84, de 3 de Fevereiro (diploma que aprova instrumentos de mobilidade nos serviços da Administração Pública), proíbe, como regra, que, nos casos de criação ou alteração de quadros de pessoal, se estabeleçam ‘promoções automáticas ou reclassificações de pessoal’ [alínea a)] ou ‘integração directa em lugares de quadro a pessoal que não tenha a qualidade de funcionário ou que, sendo agente, não desempenhe funções em regime de tempo completo, não se encontre sujeito à disciplina, hierarquia e horário do respectivo serviço e conte menos de três anos de serviço ininterrupto’ [alínea b)].

Esta norma é uma concretização do imperativo constitucional do recurso ao concurso público para preenchimento de lugares nos quadros da função pública, em atenção, precisamente, ao respeito pela igualdade de oportunidades dos candidatos e à transparência nas relações jurídicas administrativas.

O artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 46/88 surge como uma derrogação a este regime. Derrogação, porém, que, como se demonstrou, obedece a imperativos de interesse público e à qual subjaz um critério objectivo, não incompatível com a Constituição. A desigualdade no tratamento legislativo das situações, ou seja, na fixação dos critérios de acesso aos quadros de funcionários do Ministério da Defesa Nacional, tem uma base constitucionalmente aceitável, que justifica a excepção à regra da realização do concurso público.»

6.2. O n.º 2 do artigo 47.º da CRP e a celebração de contratos individuais de trabalho

A primeira linha de argumentação da resposta do Primeiro-Ministro assenta na ideia de que o n.º 2 do artigo 47.º se destina à função pública, interpretando esta expressão no sentido de a limitar ao universo dos elementos ao serviço da Administração Pública a que corresponda o qualificativo de funcionário público, com exclusão dos agentes não funcionários e dos demais trabalhadores da Administração Pública não funcionários nem agentes.

Seguindo, uma vez mais, a argumentação desenvolvida no Acórdão n.º 406/2003, recordar-se-á que uma solução intermédia parece ser defendida por J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, quando referem (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, pág. 264, nota VIII ao artigo 47.º):

«A definição constitucional do conceito de função pública suscita alguns problemas, dada a diversidade de sentidos com que as leis ordinárias utilizam a expressão e dada a pluralidade de critérios (funcionais, formais) defendidos para a sua caracterização material. Todavia, não há razões para contestar que o conceito constitucional corresponde aqui ao sentido amplo da expressão em direito administrativo, designando qualquer actividade exercida ao serviço de uma pessoa colectiva pública (Estado, região autónoma, autarquia local, instituto público, associação pública, etc.), qualquer que seja o regime jurídico da relação de emprego (desde que distinto do regime comum do contrato individual de trabalho), independentemente do seu carácter provisório ou definitivo, permanente ou transitório.»

No entanto, Vital Moreira, mais tarde, viria a pronunciar-se em sentido mais amplo (Projecto de lei-quadro dos institutos públicos, Relatório Final e Proposta de Lei-Quadro, Grupo de Trabalho para os Institutos Públicos, Ministério da Reforma do Estado e da Administração Pública, Fevereiro de 2001, n.º 4, pág. 50, nota ao artigo 45.º), adoptando uma posição que tem também sido defendida pelo Tribunal Constitucional, ao ponderar que:

«No entanto, mesmo quando admissível o regime do contrato de trabalho, nem a Administração Pública pode considerar-se uma entidade patronal privada nem os trabalhadores podem ser considerados como trabalhadores comuns.

No que respeita à Administração, existem princípios constitucionais válidos para toda a actividade administrativa, mesmo a de «gestão privada», ou seja, submetida ao direito privado. Entre eles contam-se a necessária prossecução do interesse público, bem como os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé (artigo 266.º, n.º 2, da Constituição), todos eles com especial incidência na questão do recrutamento do pessoal.

Além disso, estabelecendo a Constituição que ‘todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso’ (CRP, artigo 47.º, n.º 2), seria naturalmente uma verdadeira fraude à Constituição se a adopção do regime de contrato individual de trabalho incluísse uma plena liberdade de escolha e recrutamento dos trabalhadores da Administração Pública com regime de direito laboral comum, sem qualquer requisito procedimental tendente a garantir a observância dos princípios da igualdade e da imparcialidade.»

Estas últimas considerações afiguram-se inteiramente procedentes, principalmente quando, como é o caso, o regime laboral do contrato individual de trabalho se reporta a um instituto público que mais não é que um serviço público personalizado.

Com efeito, a exigência constitucional de «acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso» apresenta duas vertentes. Por um lado, numa vertente subjectiva, traduz um direito de acesso à função pública garantido a todos os cidadãos; por outro lado, numa vertente objectiva, constitui uma garantia institucional destinada a assegurar a imparcialidade dos agentes administrativos, ou seja, que «os trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas estão exclusivamente ao serviço do interesse público» (n.º 1 do artigo 269.º da CRP). Na verdade, procedimentos de selecção e recrutamento que garantam a igualdade e a liberdade de acesso à função pública têm também a virtualidade de impedir que essa selecção e recrutamento se façam segundo critérios que facilitariam a ocupação da Administração Pública por cidadãos exclusiva ou quase exclusivamente afectos a certo grupo ou tendência, com o risco de colocarem a mesma Administração na sua dependência, pondo em causa a necessidade de actuação «com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé» (n.º 2 do artigo 266.º da CRP).

Esta perspectiva é particularmente importante quando se trate de recrutamento e selecção de pessoal para entidades que exerçam materialmente funções públicas, como acontece com o IPCR (cf., supra, 4.1).

A afirmação anterior não é desmentida pelo facto de o pessoal técnico superior e o pessoal destinado a desempenhar funções especializadas em investigação laboratorial para a conservação e restauro, ao contrário do restante pessoal do Instituto, ser admitido em regime de contrato individual de trabalho (artigo 22.º, n.º 1, do Decreto-Lei em análise). De facto, e se bem que se possa admitir que aquele regime se poderá adaptar melhor à situação do pessoal técnico especializado (embora não de todo o pessoal técnico superior), em virtude da sazonalidade e especificidade das tarefas que é chamado a desempenhar, não podemos ignorar que, no decurso da sua actividade, também poderá estar em causa o exercício de poderes de autoridade estadual, nomeadamente, os poderes de superintendência e de certificação acima mencionados.

Consequentemente, as atribuições e a natureza do IPCR, bem como as funções cometidas aos seus órgãos e agentes justificam inteiramente que ao recrutamento e selecção do seu pessoal, ainda que sujeito ao contrato individual de trabalho, se apliquem as garantias de liberdade e igualdade de acesso que se encontram fixadas no n.º 2 do artigo 47.º da Constituição.

Ainda que se entenda que para o recrutamento de pessoal sujeito ao regime do contrato individual de trabalho se não justifica a realização de um concurso público, nem por isso se pode deixar de reconhecer que a selecção e o recrutamento desse pessoal deverá sempre ter lugar através de procedimentos administrativos que assegurem a referida liberdade e igualdade de acesso.

A recente Lei n.º 3/2004, de 15 de Janeiro (Lei quadro dos institutos públicos), no seu artigo 34.º, sob a epígrafe Pessoal, veio justamente dispor:

«1 – Os institutos públicos podem adoptar o regime do contrato individual de trabalho em relação à totalidade ou parte do respectivo pessoal, sem prejuízo de, quando tal se justificar, adoptarem o regime jurídico da função pública.

2 – O pessoal dos institutos públicos estabelece uma relação jurídica de emprego com o respectivo instituto.

3 – O recrutamento do pessoal deve, em qualquer caso, observar os seguintes princípios:

a) Publicitação da oferta de emprego pelos meios mais adequados;

b) Igualdade de condições e oportunidades dos candidatos;

c) Fundamentação da decisão tomada.

4 – Nos termos do artigo 269.º da Constituição, a adopção do regime da relação individual de trabalho não dispensa os requisitos e limitações decorrentes da prossecução do interesse público, nomeadamente respeitantes a acumulações e incompatibilidades legalmente estabelecidas para os funcionários e agentes administrativos.

(...).»

Tratou-se da generalização para todos os institutos públicos de soluções que já vinham sendo adoptadas pelo legislador, como, por exemplo, no Decreto-Lei n.º 59/2002, de 15 de Março, que criou o Instituto Geográfico Português (vide o n.º 6 do artigo 46.º dos Estatutos por ele aprovados), e no Decreto-Lei n.º 96/2003, de 7 de Maio, que criou o Instituto do Desporto de Portugal (vide o artigo 33.º dos Estatutos por ele aprovados), o que demonstra que não existe qualquer incompatibilidade entre o regime do contrato individual de trabalho e a definição de garantias de liberdade e igualdade no acesso ao exercício de funções nos institutos públicos.

Em suma: as normas em causa, na medida em que prevêem uma plena liberdade de selecção e recrutamento do pessoal técnico superior e do pessoal técnico especializado do instituto público em apreço, sem estabelecerem qualquer requisito procedimental tendente a garantir a observância dos princípios da liberdade e da igualdade de acesso à função pública, colidem com o preceituado no n.º 2 do artigo 47.º da CRP.

6.3. A eventual existência de justificação material para um regime de excepção

Como vimos, sustentou o Primeiro-Ministro que existem aqui específicas razões materiais que se apresentam como bastantes para se admitir a dispensa do concurso público. Tais razões consistiriam na especial natureza, pontualidade, sazonalidade e especificidade das funções a desempenhar, conjugadas com as exigências da preservação, defesa e valorização da herança patrimonial.

Ainda que assim seja, estas razões não colhem no que respeita ao pessoal técnico superior, uma vez que estão em causa tarefas de gestão de recursos humanos, biblioteca e documentação, arquivo, consultadoria jurídica e informática, para os quais não se vislumbram quaisquer especificidades ou sazonalidade justificativas da dispensa de concurso público (veja-se o mapa anexo à Portaria n.º 288/2003, de 3 de Abril, que aprova o quadro de pessoal do IPCR – cf., supra, 4.2).

Já quanto ao pessoal técnico especializado em conservação e restauro (superior ou não), se as razões alegadas pelo Primeiro-Ministro se podem apresentar como procedentes para a opção pelo regime do contrato individual de trabalho, e eventualmente mesmo para se não prever que o recrutamento e selecção devessem ser efectuados por concurso público, o que elas não podem justificar é a ausência de quaisquer regras e procedimentos tendentes a assegurar que o acesso tenha lugar com efectivas garantias de liberdade e igualdade. Efectivamente, as qualidades técnicas que deverão constituir critério essencial de selecção do pessoal técnico especializado são, em grande medida, objectivamente avaliáveis, pelo que não se compreende a postergação daquelas regras.

De facto, se é verdade que este Tribunal definiu o entendimento segundo o qual a regra do concurso pode ser postergada, caso exista uma justificação material, uma vez que o n.º 2 do artigo 47.º apenas determina que o recurso ao concursos deve ter lugar em regra, já se não descortinam nem credencial constitucional nem, no caso vertente, quaisquer interesses que pudessem determinar a eventual existência de motivos conducentes ao afastamento de um recrutamento baseado em critérios que assegurem a liberdade e igualdade de acesso à função pública.»

Estas considerações são inteiramente transponíveis para o caso do presente recurso, sendo inquestionável que o instituto em causa está investido de poderes de autoridade (cf., designadamente, o n.º 3 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 237/99), e não se vislumbra nenhuma razão válida, nomeadamente face à especificidade das funções desempenhadas, para subtrair todo o seu pessoal, e especificamente a categoria profissional da ora recorrida, à regra do concurso.

Não se ignora que, entre a matéria de facto provada, consta que “a autora foi contratada na sequência de um processo de avaliação de currículos dos candidatos, com entrevista de selecção” (n.º 8). No entanto, para além de o critério normativo seguido no acórdão recorrido (e é sobre esse que há-de incidir o juízo de constitucionalidade deste Tribunal) ter considerado de todo irrelevante a existência, ou não, de procedimentos objectivos de selecção do pessoal a contratar, o certo é aquele facto provado é insuficiente (por nada revelar, por exemplo, sobre a prévia publicitação da existência da vaga) para dar por adquirido que o procedimento em concreto seguido tenha efectivamente garantido a todos os potenciais candidatos o acesso ao cargo “em condições de liberdade e igualdade”. Competirá, naturalmente, ao tribunal recorrido, ao proceder à reformulação da sua decisão, e se tal lhe for processualmente permitido, apurar se, em concreto, estas condições terão sido respeitadas, hipótese em que, adoptando então – como lhe é lícito – critério normativo distinto do ora julgado inconstitucional, não está à partida excluída a possibilidade de vir a julgar não inconstitucional esse novo critério.”

Posto isto, dúvidas não restam de que o juízo proferido, por unanimidade, pelo Acórdão n.º 409/07, em plena consonância com as declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral decorrentes dos Acórdãos n.º 61/04, de 27 de 01 de 2004 (disponível in «Diário da República», Iª Série-A, n.º 49, de 27 de Fevereiro de 2004, pp. 1038 e seguintes), n.º 406/03, de 17 de Setembro de 2003 (disponível in «Diário da República», Iª Série-A, n.º 247, de 24 de Outubro de 2003, pp. 7094 e seguintes) e n.º 140/02, de 09 de Abril de 2002 (disponível in «Diário da República», Iª Série-A, n.º 146, de 27 de Junho de 2002, pp. 5044 e seguintes), é transponível para os presentes autos.

10. E nem sequer procede a fundamentação da decisão recorrida (ainda que por remissão para a posição de J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Volume I, 2007, Coimbra, pp. 659 e 660), de acordo com a qual “o conceito de função pública contido no artigo 47.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, não contempla actividades exercidas ao abrigo do regime comum do contrato individual de trabalho, legalmente autorizado, ao serviço de uma pessoa colectiva pública, daí que aquele preceito não tenha aplicação ao caso” (fls. 277).

O Tribunal Constitucional já teve ocasião de afirmar:

“No entanto, é VITAL MOREIRA que, mais tarde, viria a assinalar (Projecto de lei-quadro dos institutos públicos, Relatório Final e Proposta de Lei-Quadro, Grupo de Trabalho para os Institutos Públicos, Ministério da Reforma do Estado e da Administração Pública, Fevereiro de 2001, n.º 4, pág. 50, nota ao artigo 45.º):

«No entanto, mesmo quando admissível o regime do contrato de trabalho, nem a Administração Pública pode considerar-se uma entidade patronal privada nem os trabalhadores podem ser considerados como trabalhadores comuns.

No que respeita à Administração, existem princípios constitucionais válidos para toda a actividade administrativa, mesmo a de “gestão privada”, ou seja, submetida ao direito privado. Entre eles contam-se a necessária prossecução do interesse público, bem como os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé (art. 266º- 2 da Constituição), todos eles com especial incidência na questão do recrutamento do pessoal.

Além disso, estabelecendo a Constituição que “todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso” (CRP, art. 47.º-2), seria naturalmente uma verdadeira fraude à Constituição se a adopção do regime de contrato individual de trabalho incluísse uma plena liberdade de escolha e recrutamento dos trabalhadores da Administração Pública com regime de direito laboral comum, sem qualquer requisito procedimental tendente a garantir a observância dos princípios da igualdade e da imparcialidade.»

Estas últimas considerações afiguram-se inteiramente procedentes, principalmente quando, como é o caso, o regime laboral do contrato individual de trabalho se reporta a um instituto público que mais não é que um serviço público personalizado.

Com efeito, a exigência constitucional de “acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso” apresenta duas vertentes.

Por um lado, numa vertente subjectiva, traduz um direito de acesso à função pública garantido a todos os cidadãos; por outro lado, numa vertente objectiva, constitui uma garantia institucional destinada a assegurar a imparcialidade dos agentes administrativos, ou seja, que “os trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas estão exclusivamente ao serviço do interesse público” (n.º 1 do artigo 269.º da CRP). Na verdade, procedimentos de selecção e recrutamento que garantam a igualdade e a liberdade de acesso à função pública têm também a virtualidade de impedir que essa selecção e recrutamento se façam segundo critérios que facilitariam a ocupação da Administração Pública por cidadãos exclusiva ou quase exclusivamente afectos a certo grupo ou tendência, com o risco de colocarem a mesma Administração na sua dependência, pondo em causa a necessidade de actuação “com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé” (n.º 2 do artigo 266.º da CRP).

Esta perspectiva é mesmo particularmente importante para quem defenda que se está perante um caso de recrutamento de pessoal para entidade que exerce materialmente funções públicas.

Ora, consoante resulta dos respectivos Estatutos, o INAC é um instituto com vocação reguladora e inspectiva (n.º 1 do artigo 1.º e artigo 2.º), ao qual é atribuído o exercício de poderes de autoridade do Estado, designadamente, nos seguintes aspectos: quanto ao licenciamento, certificação, autorização e homologação de certas actividades e procedimentos (artigo 7.º); quanto à emissão de regulamentos (artigo 8.º); quanto à realização de inquéritos, requisição de informações e efectivação de actividades de inspecção (artigos 9.º e 10.º); quanto à aplicação de medidas administrativas e sancionatórias (artigo 11.º); quanto à liquidação e cobrança coerciva de taxas, através do processo de execução fiscal (artigo 26.º); quanto à expressa atribuição de poderes de autoridade ao pessoal que desempenhe funções de fiscalização, que incluem, nomeadamente, “a suspensão ou cessação de actividades e encerramento de instalações” a título preventivo [artigo 25.º, designadamente, a alínea c) do n.º 1].

Nestas condições, e na esteira da doutrina estabelecida no Acórdão n.º 140/02 (Diário da República, I Série-A, de 27 de Junho de 2002), também o INAC se afigura ser um instituto público com clara prevalência do regime de direito público, exercendo poderes de autoridade pública através dos seus órgãos e agentes; os seus trabalhadores desempenham nestes termos, em suma, uma função pública em sentido material.

Consequentemente, as atribuições e a natureza do INAC, bem como as funções cometidas aos seus órgãos e agentes justificam inteiramente que ao recrutamento e selecção do seu pessoal, ainda que sujeito ao contrato individual de trabalho, se apliquem as garantias de liberdade e igualdade de acesso que se encontram fixadas no n.º 2 do artigo 47.º da Constituição.

Ainda que se entenda que para o recrutamento de pessoal sujeito ao regime do contrato individual de trabalho se não justifica a realização de um concurso público, nem por isso se pode deixar de reconhecer que a selecção e o recrutamento desse pessoal deverá sempre ter lugar através de procedimentos administrativos que assegurem a referida liberdade e igualdade de acesso.

Aliás, essa era a proposta contida no já mencionado Projecto de lei-quadro dos institutos públicos, em cujo artigo 45º se previa que, mesmo nos casos em que se tenha optado pelo regime do contrato individual de trabalho e se não observe o regime de concurso próprio da função pública, o recrutamento do pessoal deveria ter lugar através de um procedimento administrativo conforme aos seguintes princípios:

a) - publicitação da oferta de emprego pelos meios mais adequados;

b) - igualdade de condições e oportunidades dos candidatos;

c) - aplicação de métodos e critérios objectivos de avaliação e selecção;

d) - fundamentação da decisão tomada.

E, no nosso ordenamento jurídico, existem já alguns exemplos recentes de actos legislativos respeitantes a institutos públicos que contêm normas relativas aos requisitos procedimentais acima referidos. É o caso do Decreto-Lei 59/2002 de 15 de Março que criou o Instituto Geográfico Português (vide o n.º 6 do artigo 46.º dos Estatutos por ele aprovados), e do Decreto-Lei n.º 96/2003 de 7 de Maio, que criou o Instituto do Desporto de Portugal (vide o artigo 33.º dos Estatutos por ele aprovados), o que demonstra que não existe qualquer incompatibilidade entre o regime do contrato individual de trabalho e a definição de garantias de liberdade e igualdade no acesso ao exercício de funções nos institutos públicos.

Em suma: as normas em causa, na medida em que prevêem uma plena liberdade de selecção e recrutamento dos trabalhadores do instituto público em apreço, sem estabelecerem qualquer requisito procedimental tendente a garantir a observância dos princípios da liberdade e da igualdade de acesso à função pública, colidem com o preceituado no n.º 2 do artigo 47.º da Constituição.” (Acórdão n.º 406/03, de 17 de Setembro de 2003, publicado in «Diário da República», Série I-A, n.º 247, 24 de Outubro de 2003, pp. 7094 e segs.)

Esta jurisprudência encontra pleno acolhimento no caso em apreço nos presentes autos, na medida em que o ICERR exerce poderes típicos de autoridade pública, para prossecução de fins de interesse geral, conforme já anteriormente demonstrado por este Tribunal:

Assim, e desde logo, importa lembrar que se está agora perante entes que vêm suceder, por um lado, a um “instituto público” preexistente” (porventura um dos mais antigos do direito público português, correspondendo à modalidade de “serviço público personalizado”), a Junta autónoma das Estadas (cujo diploma orgânico era, por último, o Decreto-Lei n.º 184/78, de 18 de Julho), e, por outro lado, a uma “sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos”, a JAE Construção, S.A. (criada pelo Decreto-Lei n.º 142/97, de 6 de Junho).

Ora, isto já denuncia que, por outra parte, a natureza do seu objecto e fim não será, pois, coincidente (ou inteiramente coincidente) com o Instituto antes considerado, nem coincidente entre os vários institutos agora em análise; e, de facto, o que temos, agora, é, a par de uma entidade com funções essencialmente de “planeamento” e “regulação” (o IEP), uma outra com uma função basicamente “operativa” e de “exploração”, mas incluindo ainda competências “reguladoras” (o ICERR) e uma terceira concebida nitidamente com uma natureza empresarial (o ICOR) (....). As duas primeiras sucederam à Junta Autónoma de Estradas, por “desdobramento” das anteriores atribuições desta; a terceira, à JAE Construção, S.A. (..).

Pois bem, desta diferente origem, natureza e vocação de cada um dos Institutos decorrem consideráveis divergências no modo como o legislador os concebe e no seu regime jurídico – divergências essas que se reconduzem, em síntese, à mais acentuada emergência, e mesmo prevalência, dos elementos “publicísticos” nos dois primeiros institutos referidos (o IEP e o ICERR), e dos elementos “privatísticos” no último (o ICOR).

Com efeito:

i) Só o IEP e o ICERR são concebidos como uma “autoridade nacional de estradas”, em representação do Estado: o primeiro, relativamente às infra-estruturas rodoviárias concessionadas, e, o segundo, relativamente às infra-estruturas rodoviárias nacionais não concessionadas (artigo 5.º, n.º 2 do Decreto-Lei):

ii) Só relativamente ao pessoal do ICERR se prevê a atribuição de “poderes de autoridade”, no exercício de funções de “vigilância, manutenção ou fiscalização” (n.º 4 do mesmo artigo).

iii) Só relativamente ao IEP e ao ICERR se prevêem, expressamente, entre as suas receitas, as provenientes de “coimas e outras sanções” ou de “multas e/ou coimas” (cfr. alínea g) e alínea h), respectivamente, do n.º 1 do art.º 16.º de cada um dos Estatutos), e, implicitamente (dir-se-á), o exercício de um correspondente poder sancionatório “público” (a postular, possivelmente, uma correspondente “redução” interpretativa da previsão genérica da alínea i), e porventura também da alínea g) do n.º 3 do artigo 5.º do Decreto-Lei).

iv) Também só relativamente aos mesmos institutos se prevêem, expressamente, entre as suas receitas, “taxas”, “emolumentos” e outras cobradas por “licenciamentos, aprovações e actos similares e por serviços prestados no âmbito das suas atribuições” (cfr. a alínea c) do n.º 1 do artigo 16.º de ambos os Estatutos) – o que legitimará, também quanto a esta matéria, uma inferência e uma observação paralelas às acabadas de fazer quanto às receitas sancionatórias (a observação, com referência, agora, à primeira parte da alínea c) do n.º 3 do artigo 5.º do Decreto-Lei).

Acrescente-se que, para a cobrança coerciva de tais receitas, se estabelece a utilização do processo de “execução fiscal” (cfr. n.º 2 do dito artigo 16.º de ambos os Estatutos) (.....).

v) Finalmente – e o ponto não pode, no presente contexto, deixar de ser particularmente significativo – se a “gestão financeira e patrimonial (...) incluindo a organização da sua contabilidade”, tanto do IEP como do ICERR, se rege “exclusivamente pelo regime aplicável aos fundos e serviços autónomos do Estado”, em tudo o que não esteja especialmente regulado (cfr. n.º 1 do artigo 15.º de ambos os Estatutos) (.....).” (cfr. Acórdão n.º 140/02, de 09 de Abril de 2002, publicado in «Diário da República, Iª Série-A, n.º 146, de 27 de Junho de 2002, pp. 5044 e segs.)

Para além disso, acresce ainda que o contrato individual de trabalho previsto no n.º 1 do artigo 13.º dos Estatutos do ICERR não é configurável como um contrato exclusivamente regido por normas de Direito Privado, na medida em que competia ao Conselho de Administração definir as condições de prestação e disciplina de trabalho, mediante regulamento, de modo a assegurar a referida prossecução de fins de interesse geral (cfr. n.º 2 do artigo 13.º dos Estatutos do ICERR).

Em suma, resta concluir que uma interpretação normativa, extraída da conjugação entre o artigo 44.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 427/89 e o artigo 13.º dos Estatutos do ICERR, que determine o reconhecimento de um regime especial e diferenciado para o pessoal do actual Instituto das Estradas de Portugal e que impeça a aplicação de regras decorrentes do regime geral da relação jurídica de emprego na administração pública, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 427/89, permitindo assim, mediante a conversão de contratos a termo em contrato por tempo indeterminado, uma liberdade de selecção e recrutamento de trabalhadores, sem requisitos procedimentais necessários a assegurar o respeito pelos princípios da liberdade e da igualdade de acesso à função pública constitucionalmente consagrados no artigo 47.º, n.º 2, da CRP.

[...]”.

4. Na sequência da posição assumida pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 409/2007, publicado no Diário da República, II Série, n.º 165, de 28 de Agosto de 2007, pp. 24793 e segs. – cujos fundamentos e sentido interpretativo foram reproduzidos e acolhidos no acórdão proferido por aquele Alto Tribunal nestes autos –, este Supremo teve ensejo de observar, nos Acórdãos de 26 de Setembro de 2007 (Revista n.º 4470/06-4.ª Secção), 3 de Outubro de 2007 (Revista n.º 177/07-4.ª Secção), e 14 de Novembro de 2007 (Revista n.º 2451/06-4.ª Secção) – Documentos n.os SJ200709260044704, SJ20071003001774, SJ200711140024514, respectivamente, em www.dgsi.pt – que o juízo de inconstitucionalidade não contemplou, “em si mesmas, as normas dos artigos 41.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 184/89 e 44.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 427/89, na parte em que salvaguardam a existência de regimes especiais, diversos do regime geral de emprego público, e determinam a aplicação das respectivas disposições estatutárias ao pessoal dos institutos públicos que revistam a natureza de serviço público e se rejam pelo regime do contrato individual de trabalho”, nem “em si mesma, a norma do artigo 13.º, n.º 1, dos Estatutos do ICERR, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 237/99, de 25 de Junho, que dispôs que pessoal do ICERR está sujeito ao regime jurídico do contrato individual de trabalho, com as especificidades previstas nesses estatutos e no diploma que os aprovou”.

Tal juízo de inconstitucionalidade incidiu tão-somente sobre a “norma extraída da conjugação dos sobreditos preceitos, na interpretação segundo a qual seria permitida a contratação de pessoal daquele Instituto sujeito ao regime jurídico do contrato individual de trabalho, nomeadamente na parte em que permite a conversão dos contratos de trabalho a termo em contratos sem termo, sem imposição de procedimentos de recrutamento e selecção dos candidatos à contratação tendentes a garantir o acesso em condições de liberdade e igualdade”, aceitando-se que, “ao emitir-se pronúncia sobre a pretendida conversão de tais contratos, se pondere a questão da suficiência ou não, em concreto, dos procedimentos objectivos de selecção do pessoal a contratar que, porventura tenham sido seguidos na contratação efectuada e da consequente constitucionalidade, ou não, do critério normativo adoptado”.

No caso que nos ocupa, não se descortina qualquer fundamento de ordem material que justificasse a preterição da regra do concurso, excepcionalmente admitida, segundo o juízo do Tribunal Constitucional, designadamente em razão da natureza das funções, de que é exemplo o recrutamento de pessoal dirigente.

Com efeito, o Autor foi contratado para “exercer as funções de apoio na área informática designadamente na administração de sistemas, apoio aos utilizadores, resoluções de avarias ou problemas com o equipamento informático e gestão do parque informático”, que efectivamente desempenhou [pontos 3) e 4) da decisão sobre a matéria de facto], funções essas cuja natureza, por si só, não justifica a dispensa do concurso, sendo certo que não se vislumbram, no caso, outros motivos que, a coberto de valores de relevância constitucional, pudessem fundar a postergação da regra do concurso.

Quer isto dizer que a contratação do Autor estava sujeita à observância de procedimento administrativo de recrutamento e selecção que garantisse a efectiva concretização do princípio da liberdade e igualdade no acesso à função pública.

Sabe-se que o Autor, “previamente à sua contratação e como condição para a mesma, apresentou o seu currículo e esteve presente em entrevista de selecção de candidatos” [ponto 15) da decisão sobre a matéria de facto].

Estes factos não são suficientes para se considerar que houve um procedimento de recrutamento e selecção de candidatos equiparável ao concurso, que pressupõe a publicitação da existência da(s) vaga(a)s, de modo a permitir a candidatura de todos os eventuais interessados, facto que não está demonstrado, nem, oportunamente, foi alegado – como não foi demonstrado, nem alegado o contrário.

Como se observou no supra referido Acórdão de 26 de Setembro de 2007, “estamos perante aspecto de facto que, na presente acção, reveste natureza constitutiva e cujo ónus da prova cabe, por isso, ao A., nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do Cód. Civil (diga-se que parece ter sido também o entendimento subjacente à posição do Acórdão do TC que vem sendo abordado, como se deduz da passagem acima transcrita sobre a projecção do juízo de inconstitucionalidade nele formulado ao caso concreto aí abordado)”.

Não se sabendo se houve, ou não, o adequado procedimento, porque ao Autor competia alegar e provar o facto, a dúvida resolve-se contra ele, nos termos das disposições combinadas dos artigos 342.º, n.º 1, do Código Civil e 516.º do Código de Processo Civil.

Ora, sendo inconstitucional, por violação do preceituado no artigo 47.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do bloco normativo constituído pelos artigos 41.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 184/89, 44.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 427/89, e 13.º, n.º 1, dos Estatutos do ICERR, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 237/99, de 25 de Junho, com o alcance de consentir a contratação de pessoal sujeita ao regime do contrato individual de trabalho, na parte em que permite a conversão em contratos de trabalho sem termo de contratos de trabalho a termo celebrados sem prévia realização de concurso ou procedimento equiparável que garanta, no recrutamento e selecção de todos os eventuais interessados, condições de liberdade e igualdade, a relação jurídica estabelecida entre as partes, iniciada em 3 de Dezembro de 2001, a ser perspectivada como relação de trabalho subordinado, deve considerar-se nula e como tal declarada, em vista do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, 286.º e 294.º, todos do Código Civil, o que conduz à impossibilidade de conversão do contrato a termo em contrato sem termo.

Esta conclusão, afastando a aplicação ao caso do regime estabelecido na LCCT, prejudica, logicamente, a apreciação da segunda questão acima enunciada, consistente em averiguar se, à luz daquele regime, a factualidade provada preenche alguma das situações determinantes da conversão em contrato sem termo do contrato celebrado pelas partes.

Improcede, assim, o que a tal respeito foi alegado nas conclusões 1.ª a 9.ª, 20.ª e 21.ª da revista.

5. O recorrente alegou, também, que, a considerar-se o seu contrato sujeito ao regime do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, e, pois, à regra da precedência de concurso público, de tal resultaria a violação dos artigos 13.º e 53.º da Constituição da República Portuguesa, argumentando, por um lado, com a existência de contratos sem termo, não precedidos de procedimento concursal, celebrados pelo Réu com outros trabalhadores, “no âmbito de processos judiciais que correram termos no Tribunal do Trabalho de Coimbra”, e, por outro lado, com o benefício que, assim, seria concedido ao Réu, e ao próprio Estado, a quem seria concedido tratamento mais favorável do que ao empregador privado, “quando lhes incumbe precisamente assegurar a legalidade e política de emprego”.

No artigo 13.º da Constituição está consagrado o princípio da igualdade, nos seguintes termos: “1 – Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”; “2 – Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social”.

Tem este Supremo Tribunal afirmado, em consonância com o entendimento pacífico do Tribunal Constitucional e da doutrina, que as exigências do princípio da igualdade se reconduzem, no fundo, à proibição do arbítrio, não impedindo, pois, em absoluto, toda e qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as diferenciações materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou justificação objectiva e racional, como são as baseadas nos motivos indicados no referido preceito constitucional (cfr., entre outros, o recente Acórdão deste Supremo de 14 de Maio de 2008, em www.dgsi.pt, Documento n.º SJ20080514035194).

É dizer que, devendo tratar-se por igual o que é substancial e essencialmente igual e desigualmente o que é essencialmente desigual, são legítimas as medidas de diferenciação de tratamento fundadas em distinção objectiva de situações, não baseadas em qualquer motivo constitucionalmente impróprio, que tenham um fim legítimo à luz do ordenamento constitucional positivo, e se revelem necessárias, adequadas e proporcionais à satisfação do objectivo prosseguido (1).

No presente caso, não estão demonstrados factos bastantes que permitam averiguar se o Autor foi alvo de tratamento discriminatório, decorrente da sujeição do seu contrato ao regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na Administração Pública, em matéria de conversão de contrato precário em vínculo permanente.

Na verdade, ignora-se, porque nada foi alegado a tal respeito na petição inicial, o circunstancialismo em que, segundo veio a ser dito na alegação da revista, terão outros trabalhadores alcançado vínculo de emprego permanente no Instituto Réu, não sendo, por conseguinte, possível o confronto de situações indispensável à formulação do juízo sobre a violação do princípio da igualdade.

O artigo 53.º da Constituição consagra o princípio da segurança no emprego, estatuindo a proibição dos despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos.

A preterição da imposição legal de precedência de concurso para acesso a emprego na Administração Pública – de que decorre a inadmissibilidade da conversão em contrato sem termo de contrato a termo, quando este haja sido celebrado sem prévio concurso – determina, como se referiu, a nulidade do contrato.

A garantia de segurança no emprego apenas contempla relações laborais validamente constituídas, por isso que uma situação como a dos autos, em que a impossibilidade da pretendida conversão do contrato resulta de não se ter provado aquele requisito legal, não pode ser perspectivada como despedimento.

Improcede, assim, o que, a respeito da violação do princípio da igualdade e do direito à segurança no emprego, o Autor aduziu nas conclusões 10.ª a 19.ª e 21.ª.


III

Por tudo o exposto, decide-se negar a revista.

Custas a cargo do Autor.

Lisboa, 18 de Junho de 2008.

Adelino César Vasques Dinis

José Manuel de Sepúlveda Bravo Serra

Mário Manuel Pereira

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1- J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, Vol. I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, p. 340.