Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
97A711
Nº Convencional: JSTJ00033934
Relator: GARCIA MARQUES
Descritores: OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
NEXO DE CAUSALIDADE
PRESUNÇÃO DE CULPA
ACTIVIDADES PERIGOSAS
DANO CAUSADO POR COISAS OU ACTIVIDADES
DANOS SIGNIFICATIVOS
AMBIENTE
ACÇÃO ESPECIALMENTE PERIGOSA
Nº do Documento: SJ199806020007111
Data do Acordão: 06/02/1998
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 1405/96
Data: 03/13/1997
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR AMB. DIR CIV - DIR OBG.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 346 ARTIGO 483 N2 ARTIGO 493 N2 ARTIGO 563.
L 11/87 DE 1987/04/07 ARTIGO 40 N4 ARTIGO 41 ARTIGO 52 N2.
DL 74/90 DE 1990/03/07 ARTIGO 48 N1.
Referências Internacionais: CONV EUROPEIA RELATIVA À RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS RESULTANTES DE ACTIVIDADES PERIGOSAS PARA O AMBIENTE.
Sumário : I - A responsabilidade civil pelos danos emergentes de actividade perigosa, seja por sua natureza, seja pela natureza dos meios utilizados, encontra a sua matriz legal no artigo 493, n. 2, do C.Civil, no qual se estabelece uma presunção de culpa do agente, ilidível mediante a demonstração de que se empregaram as medidas preventivas exigidas pelas circunstâncias.
II - Na previsão do referido normativo caem todas as actividades que, por sua natureza ou pela natureza dos meios empregues, comportem perigo para o ambiente e que não estejam submetidas a regime especial (por exemplo, os artigos 509, n. 1, 1346 e 1347, ns. 1 a 3, do C.Civil); ficam, por conseguinte, sujeitos a um regime de responsabilidade subjectiva, muito embora reforçado pela referida presunção relativa de culpa.
III - Ao consagrar a responsabilidade objectiva, a Lei 11/87, de 7 de Abril (Lei de Bases do Ambiente - LBA), veio ampliar os pressupostos da responsabilidade civil no domínio do ambiente, já que prescreveu a obrigação de indemnizar independentemente de culpa, aqui residindo a grande inovação da LBA.
IV - Todavia, a obrigação de indemnizar, embora num quadro de responsabilidade objectiva, fica ainda dependente da verificação de dois requisitos: é necessário que o agente cause danos significativos e, ainda, que os danos decorram de uma acção especialmente perigosa.
V - A especificidade inerente aos factos de poluição, levou a doutrina nacional e estrangeira a considerar que, no domínio do direito do ambiente, nem todos os pressupostos clássicos da responsabilidade civil podem servir para determinar a obrigação de indemnizar.
VI - Um desses requisitos é, desde logo, o nexo de causalidade, entendendo-se que o critério da causalidade adequada é desajustado à demonstração da ligação de causa-efeito entre determinado evento e o dano (considerável) sofrido, quer no património ou na saúde dos particulares, quer no ambiente em geral, defendendo-se, por isso, na esteira de alguns textos internacionais - em elaboração ou já concluídos -, um critério menos exigente que se contentaria com uma probabilidade séria ou plausível de causalidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I
A, B e Mulher, C todos com os sinais dos autos, intentaram contra D, nos Juízos Cíveis da comarca do Porto, acção em processo ordinário em que pediram a condenação da Ré a:
A) solver a quantia de esc. 5192000 escudos, a título de ressarcimento pelos prejuízos e danos patrimoniais já apurados, sendo 5000000 escudos de lucros cessantes e 192000 escudos da matéria peticionada nos itens 53º a 54ºA;
B) indemnizar a 1ª autora por todos os danos futuros que venham a ser quantificados, a liquidar e a determinar em execução de sentença;
C) pagar aos 2º e 3º autores a quantia de 1000000 escudos como compensação pelos danos morais sofridos;
D) pagar os juros legais, contados desde a citação até integral pagamento.

Fundamentando a sua pretensão, alegaram, em síntese, que, com o derrame do combustível verificado num posto de abastecimento da Ré, sito na comarca de Santa Maria da Feira, ficou contaminada a água de um poço que abastecia o restaurante da sociedade-autora e a casa dos restantes autores, o que provocou prejuízos no funcionamento da primeira e afectou o normal abastecimento dos segundos, com as consequências relatadas na petição inicial.
A Ré contestou, impugnando a versão dos autores e sustentando que o derrame não chegou a afectar a água do referido poço, já que os hidrocarbonetos aí detectados não são derivados do petróleo.
Após réplica dos autores, foi proferido despacho a julgar incompetente, em razão do território, o Tribunal Cível do Porto para o conhecimento da acção e a determinar a remessa dos autos ao Tribunal de Santa Maria da Feira, por ser o territorialmente competente para o efeito.
Proferido o despacho saneador e organizados a especificação e o questionário, no círculo judicial de Santa Maria da Feira, e após o julgamento, as respostas aos quesitos e as alegações de direito, foi proferida a sentença segundo a qual a acção foi julgada improcedente, com a consequente absolvição da Ré do pedido.
Inconformados, dela interpuseram os autores recurso de apelação, o qual, por acórdão de 13 de Março de 1997, do Tribunal da Relação do Porto, foi julgado improcedente, sendo, consequentemente, confirmada a sentença da 1ª instância.
É do referido acórdão que o autores, ainda inconformados, trazem a presente revista, oferecendo, a finalizar as suas alegações, as seguintes conclusões:

a) É inequívoco que a actividade desenvolvida pela Ré é uma actividade especialmente perigosa;
b) E que o encerramento do poço dos AA ocorreu em virtude do acidente ecológico (derrame ocorrido num dos depósitos da Ré), que contaminou diversos aquíferos da zona de Argoncilhe;
c) À data do referido acidente, as análises efectuadas pelo Laboratório de Hidrologia da Faculdade de Farmácia do Porto, revelaram a presença de "2,2" hidrocarbonetos totais dissolvidos emulsionados e óleos minerais m/l;
d) As análises obtidas pela R. realizaram-se volvidos cerca de 2 anos sobre a ocorrência do derrame;
e) Assim, peca o (...) douto Acórdão da instância, ao confirmar a Sentença recorrida, por incorrer:
e)1 - em violação de lei substantiva - o art.º 8º do Cód. Civil;
e)2 - em erro de interpretação e determinação das normas aplicáveis. Nomeadamente: artº 40º, nº 4, e 41º, nº 1, da Lei 11/87, de 7 de Abril, o artº 130º (r/2) do Tratado de Roma na redacção introduzida pelo Acto Único Europeu, al. h), e o artº 10º da Convenção de Lugano.
f) Na medida em que se exige o nexo de causalidade adequada, numa óptica de responsabilidade civil tradicional quando esta matéria (responsabilidade delitual do Direito do Ambiente) se contenta com juízos de mera probabilidade ou verosimilhança dispensando, por isso, um juízo de certeza absoluta;
g) Por outro lado e no que respeita à consagração da responsabilidade objectiva neste especial ramo de direito (Direito do Ambiente), a não regulamentação do quantum indemnizatório não justifica que o Tribunal se abstenha de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei; pelo contrário, sempre haveria de integrar a eventual lacuna existente com o recurso à interpretação extensiva ou analógica, em última instância sempre haveria de resolver a lacuna com recurso a uma norma por si criada, tal como se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema;
h) Atenta a natureza e o âmbito europeu e internacional do direito de Protecção do Ambiente e respectiva corresponsabilização no conceito dentro do espírito do sistema referido anteriormente, contido no artº 8º do Cód. Civil, sempre caberiam as normas de Direito Europeu e de Direito Internacional invocadas no item C)2 ( ) Trata-se certamente de lapso, devendo ter querido escrever-se "e)2".);
i) Assim, no uso do artº 729º e ss., deverá o Supremo aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado com as demais consequências legais implícitas.

A Ré contra-alegou pugnando pela improcedência da revista.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II
É a seguinte a matéria de facto dada como provada pelas instâncias:
A) A autora A é uma sociedade comercial que se dedica à indústria hoteleira e similares, nomeadamente à exploração de um restaurante sito na Avenida São Salvador, Vendas de Grijó, Carvalhos, Vila Nova de Gaia (A)).
B) O autor B é sócio-gerente da autora-sociedade (B)).
C) A Ré tem como actividade o fornecimento de combustíveis (C)).
D) Por motivos estranhos aos autores, em Abril de 1990 ocorreu uma ruptura num dos depósitos do posto de abastecimento da Ré D, sito na E.N. nº 11, em Argoncilhe, Santa Maria da Feira (D)).
E) Dessa ruptura resultou a perda de combustível que se encontrava no depósito (4º).
F) Esse combustível infiltrou-se no solo (5º).
G) Contaminou com hidrocarbonetos diversos aquíferos (águas subterrâneas e superficiais (6º).
H) Na água deste poço (o que fornecia água ao restaurante da 1ª autora), foram detectados, por análise do Laboratório de Hidrologia da Faculdade de Farmácia do Porto a presença de "2,2" hidrocarbonetos totais dissolvidos e emulsionados e óleos minerais em mg/I (8º).
I) O valor médio admitido em águas de consumo relativo ao teor de hidrocarbonetos é de 0,2 microgramas por litro (9º).
J) Em consequência da referida análise, o Sr. Delegado de Saúde aconselhou que não se procedesse ao consumo de água proveniente do poço que abastece o restaurante dos autores (10º).
K) O restaurante e a habitação incluídos no mesmo edifício passaram a ser diariamente fornecidos por água transportada em camiões cisternas (E)).
L) Inicialmente (Dezembro de 1991) pelos Bombeiros Voluntários e a partir de Fevereiro de 1992 por empresa transportadora contratada pela Ré (F)).
M) O horário destes fornecimentos de água situavam-se entre as 09.00 horas e as 20.00 horas (G)).
N) São fornecidos aos autores uma média diária de 8 a 9 mil litros de água (H)).
O) Procedeu-se à construção de uma canalização nova (autónoma do poço), de forma a permitir o armazenamento de água, a ser fornecida em condições de segurança (13º e 14º).
P) O restaurante sempre teve como horário de funcionamento das 08.30 horas às 24.00 horas (16º).
Q) No lapso de tempo em que a água foi fornecida por tanques automóveis, a 1ª autora deixou de servir algumas refeições, não podendo finalizar em tempo algumas delas, deixando ainda e momentaneamente de lavar louças, máquinas e outros utensílios (20º).
R) Na sequência do anteriormente referido houve uma diminuição de produtividade e rendimento da autora-sociedade (28º).
S) A falta de água impediu algumas vezes a autora-sociedade de proporcionar um atendimento completo e adequado (24º).
T) Os autores B e ... residem no mesmo edifício do restaurante (21º).
U) Ficaram, por vezes, privados do uso normal de água para a sua higiene pessoal e alimentar (22º).
V) O que lhes provocou carências e incómodos (23º).
W) As canalizações referidas na resposta conjunta aos quesitos 13º e 14º (a que se alude em O-) têm carácter precário e provisório (25º).
X) Em 1997, a água do poço foi considerada como bacteriologicamente própria para consumo (31º).
Y) Mercê da situação da água do poço, os autores vão ter de se servir em absoluto da rede pública de água, logo que instalada (32º).
Z) Actualmente (1992/Mai/29), os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento cobram a importância de 165 escudos por m3 para os gastos de água referenciados na alínea H) da especificação (N - supra) (34º).
AA) A Ré fazia inspecções ao depósito de combustível (39º).
BB) Fazia inspecções extraordinárias sempre que aconselháveis (40º).
CC) Logo que foi detectada a ruptura, o tanque foi imediatamente neutralizado e tornado inoperacional (41º).
DD) As águas para consumo humano podem ter 10 microgramas por litro de hidrocarbonetos dissolvidos ou emulsionados (42º).
EE) Tais hidrocarbonetos incluem os derivados do petróleo e os que o não são (de origem orgânica, vegetais ou animais) (43º).
FF) Na análise efectuada não foram detectados hidrocarbonetos derivados do petróleo (44º).
GG) Da perda do combustível apenas hidrocarbonetos derivados do petróleo podiam resultar (45º).
HH) Em Janeiro de 1992, um laboratório estrangeiro e o LNETI efectuaram análises em 19 amostras de água extraídas de poço e furos artesianos indicados pelas Câmaras das áreas das freguesias de Grijó e Argoncilhe (46º).
II) Não detectaram hidrocarbonetos derivados do petróleo (47º).
JJ) Do boletim de análise junto a fls. 21, não foi apurada e discriminada a existência de hidrocarbonetos derivados do petróleo (48º).
LL) A água que foi então fornecida aos autores e restaurante por tanques automóveis era adequada para o consumo público (50º).
MM) Os autores apenas em Dezembro de 1991 é que tiveram conhecimento da situação da ruptura do depósito mencionada na alínea D) da especificação (supra D-).
NN) A manutenção dos depósitos de combustível era da responsabilidade da D (I)).
III
1.- Os recorrentes que, nas conclusões das alegações da apelação tinham limitado as razões da sua discordância quase exclusivamente a pretensos erros processuais, excepção feita a um alegado erro de julgamento, centram agora a sua impugnação ao acórdão recorrido no aspecto substantivo relacionado com suposta violação da lei e pretenso erro de interpretação e de determinação das normas aplicáveis.
Sendo certo que as conclusões das alegações de recurso delimitam o objecto do recurso - artigos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do CPC -, resulta das mesmas que a principal e decisiva questão a equacionar na presente revista consiste em saber se, no caso sub juditio, existirá efectivamente responsabilidade objectiva por parte da Ré.
Vejamos, porém, com a necessária atenção.

2. - Ter-se-á presente, ao nível do nosso ordenamento jurídico, que o artigo 41º da LBA (Lei nº 11/87, de 7 de Abril) veio introduzir, no quadro da responsabilidade civil no domínio do ambiente, a responsabilidade objectiva, inovação da maior relevância, em face do princípio geral do nº 2 do artigo 483º do Código Civil, segundo o qual "só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa, nos casos especificados na lei" () Prescreve o nº 1 que "aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".).
2.1. - Estabelece o artigo 41º da Lei de Bases do Ambiente:
1- Existe obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, sempre que o agente tenha causado danos significativos no ambiente, em virtude de uma acção especialmente perigosa, muito embora com respeito do normativo aplicável.
2- O quantitativo da indemnização a fixar por danos causados no ambiente será estabelecido em legislação complementar () Termos em que, em face do disposto no artigo 52º, nº 2, da Lei nº 11/87, a entrada em vigor do regime figurado só ocorrerá com a dos respectivos diplomas regulamentares.).

Ou seja, até à data da entrada em vigor da LBA, inexistindo norma (excepcional) que admitisse a indemnização sem culpa do agente, forçoso era concluir, de acordo com os princípios gerais, que apenas nos casos em que se provasse dolo ou mera culpa, existiria a obrigação de indemnizar os correspondentes danos. Nas demais situações estes não seriam ressarcidos. Isto sem esquecer o regime consagrado no artigo 493º, nº 2, do CC, a que adiante faremos referência.
Como escreve um anotador da legislação do "Direito do Ambiente", JOÃO PEREIRA REIS, "Leis de Bases do Ambiente Anotada e Comentada, Legislação Complementar", Almedina, Coimbra, 1992, pág. 86.) tal regime era, por assim dizer, algo penalizante para os valores ambientais e manifestamente benéfico para as agressões praticadas sem culpa do agente. A manterem-se os pressupostos tradicionais da responsabilidade civil, boa parte dos danos causados ao ambiente ficariam por ressarcir, já que, na maioria dos casos, eles não têm na sua origem qualquer conduta culposa e, mesmo quando esta exista, será sempre difícil o apuramento de factos que inequivocamente a demonstrem, tanto mais que apenas ao lesado cumpre fazer a culpa do autor da lesão (artigo 487º do Código Civil).
2.2. Consagrando a "responsabilidade objectiva", o artigo 41º da LBA veio ampliar os pressupostos da responsabilidade civil no domínio do ambiente, já que prescreveu a obrigação de indemnizar independentemente de culpa do agente. Segundo João Pereira Reis, "aqui residiu a grande inovação da Lei de Bases. Com efeito, nas situações em que o autor da lesão tivesse actuado com culpa já era inquestionável, face às regras gerais do Código Civil, que sobre ele impendia o dever de ressarcir os danos causados ao ambiente".
Todavia, no regime do citado artigo da LBA, a obrigação de indemnizar, embora num quadro de responsabilidade objectiva, fica ainda dependente da verificação de dois requisitos. Em primeiro lugar, será necessário que o agente cause danos significativos. Em segundo lugar, que os danos decorram de uma acção especialmente perigosa () Não resultando da LBA critérios que permitam qualificar uma actividade como "especialmente perigosa", deve concluir-se que se trata de matéria a esclarecer em sede regulamentar. Sobre o assunto, podem ver-se, com algum desenvolvimento, Manuel Tomé e Manuela Flores, "Sobre a Responsabilidade Civil por Factos de Poluição", in Textos, Centro de Estudos Judiciários, col. "Ambiente", 1994, págs. 34-50, maxime págs. 39 e 43 a 46.). Se, in casu, fosse de aplicar o quadro próprio do regime jurídico da responsabilidade objectiva, sempre haveria que tentar apurar se ocorreriam os requisitos típicos dos conceitos normativamente estabelecidos de "acção especialmente perigosa" e de "dano significativo".
Refira-se, embora a título lateral, que o conceito de "dano significativo" é igualmente referido em sede de "direito do ambiente" no artigo 48º, nº 1, do Decreto-Lei nº 74/90, de 7 de Março, que estabeleceu normas de protecção da qualidade da água, embora num contexto da responsabilidade subjectiva. Aí se prescreve, com efeito, que "aqueles que, com dolo ou mera culpa, infringirem as disposições do presente diploma, provocando danos significativos no ambiente em geral e afectando a qualidade das águas em particular, ficam constituídos na obrigação de indemnizar o Estado pelos danos a que derem causa". Por sua vez, acrescenta o nº 2, "o referido no número anterior não prejudica o exercício pelos particulares da pretensão indemnizatória fundada no nº 4 da Lei nº 11/87, de 7 de Abril e demais legislação aplicável".
Norma esta - a do nº 4 do artigo 40º da Lei de Bases do Ambiente - que também se justifica transcrever. Dispõe que "os cidadãos directamente ameaçados ou lesados no seu direito a um ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado podem pedir, nos termos gerais de direito, a cessação das causas de violação e a respectiva indemnização".

2.2. - A responsabilidade civil pelos danos emergentes de actividade perigosa, seja por sua natureza, seja pela natureza dos meios utilizados, encontra a sua matriz legal no artigo 493º, nº 2, do Código Civil, no qual se estabelece uma presunção de culpa do agente ilidível mediante a demonstração de que se empregaram as medidas preventivas exigidas pelas circunstâncias.
Na previsão daquele normativo cairão, pois, todas as actividades que, por sua natureza ou pela natureza dos meios empregues, comportem perigo para o ambiente e que não estejam confinadas a regime especial (cfr., verbi gratia, os artigos 509º, nº 1, 1346º e 1347º, nºs 1 a 3, todos do CC), ficando, por conseguinte, submetidas a um regime de responsabilidade subjectiva, muito embora reforçado pela referida presunção relativa de culpa - cfr. Manuel Tomé e Manuela Flores, loc. cit., pág. 36.
Em face do matizado panorama legal agora apenas esquissado, importará reconhecer que o artigo 41º, nº 1, da lei nº 11/87 tem o mérito de reduzir a um quadro unitário de responsabilidade objectiva a responsabilidade emergente de danos significativos no ambiente causados por acção especialmente perigosa.
Só que, para isso importa explicitar o conceito legal de acção especialmente perigosa e de dano significativo, bem como definir o critério aferidor do nexo de causalidade a estabelecer entre esses dois pressupostos.
Deixando agora de lado, por não ser matéria de especial relevo na economia do caso sub judice, os conceitos de acção especialmente perigosa () Será legítimo questionar se o alcance da expressão "acção especialmente perigosa", utilizada no artigo 41º, nº 1, coincidirá ou não com o sentido do sintagma "actividade que envolva alto grau de risco para o ambiente", adoptada no artigo 43º do mesmo diploma - cfr, a esse propósito, Manuel Tomé e Manuela Flores, loc. cit., págs. 43 e 44.) e de dano ressarcível, que deverá ser significativo (Segundo os autores citados na nota anterior, tornar-se-á imperioso formular um conceito operatório de "dano significativo no ambiente", que deverá inspirar-se na noção de poluição decorrente dos artigos 21º a 26º da Lei de Bases, tomando em consideração os seguintes vectores: - as causas de poluição, os tipos de alterações por elas provocadas nos componentes ambientais e as incidências dessas alterações no homem, nos seres vivos, em geral, nos equilíbrios ecológicos e até nos sistemas inorgânicos.), detenhamo-nos um pouco mais sobre o nexo de causalidade entre aquela e este.

2.3. - É indiscutível, neste domínio, a especificidade inerente aos factos de poluição, susceptíveis de projectar, não raramente, efeitos assaz difusos e quantas vezes longínquos, quer no tempo, quer no espaço, em relação à respectiva fonte. Fonte que pode ser o "acidente" ecológico ou o "evento" poluidor.
O que se deixa dito, que dificulta a prova do nexo de causalidade por parte do lesado, levou a doutrina, nacional e estrangeira, a considerar que, no domínio do direito do ambiente, nem todos os pressupostos clássicos da responsabilidade civil podem servir para determinar a obrigação de indemnizar.
Um desses requisitos é, desde logo, o nexo de causalidade. Pelas razões expostas, as modernas correntes jus-ambientalistas defendem que o critério da causalidade adequada, baseado na prova bastante a que se refere o artigo 346º do CC é desajustado à demonstração da ligação de causa-efeito entre determinado evento e o dano (considerável) sofrido quer no património ou na saúde dos particulares, quer no ambiente em geral. Preconiza-se, por isso, na esteira de alguns textos internacionais, em elaboração ou já concluídos () De que é exemplo a Convenção Europeia Relativa à Responsabilidade Civil por Danos Resultantes de Actividades Perigosas para o Ambiente, ainda não ratificada por Portugal e que foi objecto da Informação/Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República nº 30/96, de 20 de Outubro de 1996.), um critério menos exigente que se contentaria com uma probabilidade séria ou plausível de causalidade () Aquilo a que Manuel Tomé e Manuela Flores chamaram um critério de verosimilhança ou probabilidade séria - cfr. loc. cit., pág. 47.).
Há, assim, conformidade, do ponto de vista teórico, entre o teor da conclusão f) oferecida pelos recorrentes, e supra transcrita, e algumas reflexões doutrinárias em matéria de direito do ambiente. Apesar disso, porém, falece fundamento à sua pretensão.
Vejamos porquê.

3. - Segundo as decisões das instâncias, a improcedência da pretensão dos autores não se deveu à inexistência do pressuposto da responsabilidade civil que consiste na prática de um facto ilícito culposo imputável à Ré.

3.1. - Escreveu-se no acórdão recorrido, recuperando, de resto, asserções já constantes da sentença da 1ª instância: "Só que não basta que ocorra um facto ilícito culposo imputável à Ré, que aqui consistiu na ruptura de um reservatório e consequente derrame do combustível aí armazenado, para aquela ter a obrigação de indemnizar os AA , já que é necessário que tal evento tenha causado danos aos mesmos - cfr. artigo 493º, nº 2, do Código Civil («quem causar danos a outrem») " para além de que, como decorre do artigo 563º do mesmo Código, tal obrigação supõe a existência de um nexo causal entre o facto e o prejuízo («a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão»).
Já vimos, porém, que estas considerações merecem algumas adaptações à luz dos critérios da mais moderna doutrina jusambientalista, no que se refere ao nexo de causalidade entre a acção especialmente perigosa e o dano significativo, no domínio da responsabilidade civil objectiva.
Todavia, e no essencial, quedam incólumes as consequências.

Assim, ainda que se desse de barato que, no caso vertente se está perante uma acção especialmente perigosa (conforme afirmado, sem comprovação, na conclusão 1ª), sempre os autores haveriam de ter feito prova da ocorrência, para eles, de danos significativos.
O que não foi feito.
Mas mesmo que se concedesse que assim era, seria sempre indispensável, ainda que se aceite a teoria mais favorável aos autores em matéria de nexo de causalidade, que se tivessem apurado factos concretos e relevantes do ponto de vista da imputação do dano ao evento poluidor. Ou seja, sempre importaria que, em sede de matéria de facto, se tivesse provado que o dano sofrido na água do poço dos recorrentes - traduzido no aumento drástico dos hidrocarbonetos poluidores - tinha sido resultante da ruptura e consequente derrame do reservatório da Ré.
Ora, no caso sub judice, da matéria de facto dada como assente pelas instâncias resulta, com suficiente clareza, a exclusão da causalidade entre tal rupura do depósito da Ré e a inquinação da água dos Recorrentes. Com efeito, os factos enunciados não permitem estabelecer sequer a ligação causal, mesmo ao nível da teoria (ou do critério) da probabilidade séria, entre aqueles eventos.
3.2. - Recordem-se alguns factos elencados oportunamente:

FF) Na análise efectuada não foram detectados hidrocarbonetos derivados do petróleo (44º).
GG) Da perda do combustível apenas hidrocarbonetos derivados do petróleo podiam resultar (45º).
HH) Em Janeiro de 1992, um laboratório estrangeiro e o LNETI efectuaram análises em 19 amostras de água extraídas de poço e furos artesianos indicados pelas Câmaras das áreas das freguesias de Grijó e Argoncilhe (46º).
II) Não detectaram hidrocarbonetos derivados do petróleo (47º).
JJ) Do boletim de análise junto a fls. 21, não foi apurada e discriminada a existência de hidrocarbonetos derivados do petróleo (48º).

Ora, mesmo na tese mais favorável para os recorrentes, no que diz respeito ao nexo de causalidade, acima referida, sempre terá de existir, no mínimo, a probabilidade - ou plausibilidade - de se estabelecer um nexo de causalidade entre o facto e o dano. Mas, se a matéria de facto apurada nos autos exclui essa probabilidade, não é possível dar como verificada a existência de responsabilidade civil, tanto aquiliana como objectiva.
Improcedem, pois, as conclusões do recurso.
Quer isto dizer que os recorrentes, apesar de desenvolverem alguns tópicos que, do ponto de vista teórico, são correctos, à luz dos princípios aplicáveis em matéria de responsabilidade civil em sede de direito do ambiente, chegam a uma conclusão errada, na medida em que a questão em apreço não encontra solução que lhes seja favorável no quadro da invocação dos princípios da responsabilidade objectiva, pela simples razão de que inexiste, no caso vertente, a prova de que a contaminação da água do poço dos autores possa ter sido provocada pelo derrame de combustível verificado em virtude da ruptura do depósito da Ré. Ou seja, inexiste a prova do dano, como consequência, ainda que no plano da probabilidade ou da verosimilhança, do derrame do combustível.
Termos em que, na improcedência do recurso, se confirma a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 2 de Junho de 1998.
Garcia Marques,
Aragão Seia,
Ferreira Ramos.